1 Nós Gregos, eles Modernos. Notas acerca da

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Nós Gregos, eles Modernos.
Notas acerca da historiografia para a filosofia antiga1.
Nos Grecs, leur Modernes é o título de um livro publicado na França por
Barbara Cassin2; são textos reunidos que tratam da apropriação da
Antiguidade pelos modernos. Não quero discutir deste assunto, seria de mais
pretensioso. Quero somente dar uma pequena perspectiva para abordar os
estudos
clássicos
que
seja
útil
para
esclarecer
alguns
problemas
hermenêuticos. Este texto é inspirado e se baseia no livro de Giovanni
Casertano, La nascita dela filosofia vista dai Greci. Aqui gostaria de retomar o
discurso dele para dar algumas indicações a mais em relação às aulas
gravadas, porque o caso da filosofia se presta bem a uma conceituação da
interpretação dos “textos” (qualquer tipo de texto).
O problema de todos os tipos de estudos é a relação entre o
pesquisador (ou mais geralmente quem estuda quer conhecer algo) e o objeto
da pesquisa. Isso é, mais em geral, o problema da relação do sujeito e do
objeto...tema filosófico como poucos! Mas, no interior desta macro-categoria,
encontramos a relação entre pesquisador e seu objeto. A primeira coisa que
temos que tomar em conta é que nós, modernos, também quando
pesquisamos, tomamos contato com a realidade sempre a partir do presente
em que, hic et nunc, vivemos. Isso comporta já uma primeira “distorção” na
abordagem do objeto. Mas esta “distorção” é mesmo o que se chama de
pesquisa, porque a pesquisa é esta ligação entre o presente (e muitas vezes o
futuro) e o passado que queremos esclarecer. Isso significa que a nossa
pesquisa é a ponte que botamos entre nós e o passado. Mas, em fazer,
colocando uma ponte, precisamos de dois pontos de apoio, se não a ponte cai!
A nossa reconstrução do passado não é diretamente o passado, quase como
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Este presente texto repõe uma pequena parte (os primeiros capítulos e as primeiras paginas do texto
«Può ancora Talete essere considerato il “primo filosofo”») de um texto de Giovanni Casertano, La
nascita dela filosofia vista dai Greci. Com in appendice: Può ancora Talete essere considerato il “primo
filosofo”, Petite Plaisance, Pistoia 2007. Infelizmente este texto não é traduzido em português, mas me
parece que o discurso dele para a metodologia dos estudos clássicos é importante e pode ajudar na
compreensão de vários aspectos do trabalho do classicista.
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Nos Grecs et leurs modernes : les stratégies contemporaines d'appropriation de l'Antiquité, Paris, Seuil,
1992.
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uma máquina do tempo, mas é uma estrada (entre muitas) através do mare
Magnum das interpretações. Quando se faz uma pesquisa, traça-se uma
estrada e precisamos não somente saber, ter consciência do ponto onde
queremos chegar, mas também – e talvez sobretudo – do ponto de partida.
Nossos conhecimentos, hábitos, nossa cultura, formada por nossas
leituras, são, podemos dizer, alguns a priori que influenciam todas nossas
interpretações. E mesmo destes a priori temos que ter consciência. Como diz
Giovanni Casertano, na nossa leitura do passado nós lemos através de “um
certo tipo de óculos”, que nunca podemos tirar do nosso nariz.
O facto é que, na pesquisa sobre as origens da filosofia, se se quiser
encontrar tudo o que depois veio na história da filosofia, e isso constitui um
problema porque as categorias que utilizamos foram criadas na antiguidade, os
termos foram cunhados. Mas a identidade dos termos pode significar a
identidade dos conceitos? Responder a esta pergunta já significa tomar uma
posição no interior do debate filosófico, histórico, artístico, literário, politico etc.
A complicar as coisas há o facto que a história da filosofia foi feita por filósofos!
Ou seja por pensadores que, em fazer “história”, já interpretaram de uma
maneira muito pessoal, conforme ao pensamento de cada um deles, o material
que encontraram. É um facto que Aristóteles, o primeiro “historiador” da
filosofia, adaptou a seus próprios fins as filosofias dos pré-socráticos. Mas já
Platão, em citar os filósofos a ele anterior, desenvolve o pensamento deles
levando os assuntos às últimas consequências; o caso mais indicativo está no
Teeteto onde se discute a “doutrina secretas” de Protágoras!
Pensemos nas outras “histórias” filosóficas da filosofia, por exemplo
naquela de Hegel, que vê na história da humanidade um desenvolvimento
contínuo em que cada etapa tem sua própria razão na etapa anterior. Desse
jeito, a história da filosofia acaba por ser um movimento sem solução de
continuidade em que cada filósofo é um “precursor” do filósofo que vem logo e
o sucessor de quem vem antes. Claramente este tipo de historiografia tem seu
fundamento em uma leitura da filosofia que foi dada já a partir da antiguidade
tardia, época em que se iniciaram as “escolas” filosóficas, em que se
colocaram cada autor: exemplo é a “escola de Mileto” e a “escola eleática”.
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Como nota Giovanni Casertano, no caminho do pesquisador se
encontram dois problemas opostos, mas que podem ser ambos chamados de
anacrônicos: um é o tipo de anacronismo que leva categorias próprias do
presente no passado (exemplos podem ser o comunismo platônico ou as
figuras do Espírito que Hegel atribuiu aos vários sistemas de pensamento da
antiguidade); o outro tipo de anacronismo, talvez mais perigoso porque
portador de fundamentações políticas e ideológicas, é o que leva categorias do
passado no presente. Por isso quando falamos de democracia, ditadura,
monarquia, temos que verificar o sentido histórico dos termos que são
utilizados no nosso discurso, o discurso que quer ligar o passado ao presente.
E isso é ainda mais importante, por exemplo, no momento mesmo em que para
fundar a Europa se busca achar uma origem comum para todos os povos e
claramente esta origem é encontrada agora – e não como no terceiro
humanismo –, ideologicamente, nas raízes cristãs.
Como já podemos ver, os paradigmas de apropriação mudam muito e as
vezes muito rapidamente, conforme o fim que se quer perseguir.
Mas o problema que quero mostrar na filosofia antiga é que nós
trabalhamos ainda sob a influência de padrões “filosóficos”, como aquele de
Aristóteles ou de Hegel.
1- Hegel
A origem da filosofia, seu nascimento, interessou e interessa muito
também os filósofos e os pesquisadores de filosofia contemporâneos. Se isso
acontece é porque, como já disse, se opera uma ligação entre o presente da
filosofia com seu passado; e isso depende do facto que para justificar
“filosoficamente” uma determinada filosofia não há nada melhor do que
procurar e mostrar que esta filosofia contemporânea tem raízes mesmo na
filosofia do passado, ou seja que esta filosofia obedece ao princípio da
auctoritas, justificativa poderosa quanto poucas. O discurso, portanto, sobre a
origem da filosofia foi – e talvez ainda é ou tem que ser – um discurso
filosófico. Como nota o mesmo Hegel (Lições sobre a história da filosofia), há
uma parcialidade na história e na filosofia, contra as aspirações à objetividade
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e à neutralidade. Mas esta parcialidade é um “lembrete crítico” que nos ajuda a
ter consciência do facto que, no momento mesmo em que fazemos história, ou
abordamos um assunto que pertence a um período do passado, nós estamos
no âmbito da interpretação; por conta de uma suposta narração de facto
separada das opiniões do historiador.
Como mostram os textos de Mario Vegetti propostos para a leitura sobre
as interpretações da política de Platão, o historiador, o pesquisador, o filólogo,
dá importância a alguns aspectos particulares, destacando termos e conceitos
para sua própria linha interpretativa, mas estes termos e conceitos, nos vários
textos, estão juntos a outros termos e conceitos que compõem um texto.
Mas esta parcialidade não tem que ser concebida como a afirmação que
“todas as interpretações” são corretas, e que cada um que diga algo sobre o
passado tem razão porque o que diz é expressão de sua opinião. A
parcialidade tem que ter, seja como for, uma ligação com a verdade. Cada
interpretação tem que ser verdadeira, e o verdadeiro tem que ser concebido
como algo que tem um próprio sentido, um próprio horizonte conceitual. Cada
interpretação é uma opinião, mas não cada opinião é uma interpretação,
porque uma interpretação tem que ser avaliada através do aprofundamento do
conceito e não basear-se sobre um sentimento, uma ideia não refletida, um “se
diz” não verificado. Sobretudo, como nota Casertano, “o facto importante é que
esta verdade não é nunca absoluta e supratemporal, mas é sempre um saber
histórico” (p. 16).
Claramente, se quisermos fazer “história da filosofia antiga”, como nota
Hegel, temos que ter, mais ou menos, um conceito de filosofia. Isso é
fundamental, mesmo em épocas em que se fala de “morte da filosofia”, e é
fundamental porque na definição de qualquer disciplina, âmbito de pesquisa,
temos que ter já um conceito que justifique a “realidade” da disciplina. Esta
notação está ligada à operação que antes mostramos, ou seja a operação de
levar no passado categorias próprias do presente. Mas este problema é
constitutivo da obra de quem pesquisa! Temos que ter um conceito (no
presente, agora) para indagar o passado, e é sempre a partir deste presente
que começa a pesquisa.
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Este problema põe em causa um outro problema, que é o paradoxo do
conhecimento, exposto magistralmente no Menon platônico: quem vai à
procura de algo conhece já o que está procurando, porque senão não saberia o
que procurar, mas, ao mesmo tempo, não o conhece, porque senão não o
procuraria.
Nesse
ponto,
revela-se
a
visão
de
Hegel
que
concebe
o
desenvolvimento histórico do pensamento filosófico como a história do
Pensamento que procura e encontra a si mesma. O valor histórico deste
desenvolvimento encontra sua razão no valor meta-temporal da Ideia, que está
no mesmo tempo dentro e fora do tempo. Cada etapa deste desenvolvimento
representa para Hegel uma etapa do Espírito, e estas etapas são históricas
porque se concretizam na história da humanidade, mas também, para assim
dizer, metafísicas, porque atuam em um projeto que não está na história. Esta
visão implica que a “filosofia” e a “história da filosofia” são conjuntas, sendo
esta última a encarnação da primeira, que é um continuum ideal-temporal
necessário. E neste esquema “necessário” cada filosofia, cada pensamento de
um autor assume o caráter necessário deste desenvolvimento.
A abordagem de Hegel dá, portanto, uma imagem das filosofias (as
várias que se seguiram na história) como epifenômenos da mais alta Filosofia,
causa destas concretizações históricas.
2- Windelband e Zeller
Um outro filósofo, Wilhelm Windelband (1848-1915 – História da filosofia,
1892), do ambiente neo-kantiano de Heidelberg, também se interessou por
problema de historiografia filosófica. Ele criticou a ideia de Hegel da história da
filosofia, porque recusou o princípio pelo qual as categorias eternas do Espírito
“aparecem historicamente nos sistemas dos filósofos. Contra a concepção de
Hegel ele pensou que as filosofias de cada autor refletem exigências espirituais
dos pensadores e condições pessoais.
O resultado geral da história da filosofia e as variedades dos
movimentos ideais são determinados, para Windelband, em última instância
por três fatores: 1) um fator que ele chama de pragmático, que consiste em
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descobrir que os problemas filosóficos são já dados, ao longo da história,
representam-se como enigmas originários da existência; 2) um fator de
desenvolvimento da civilização, que está na relação entre arte, religião,
momento social, momento político e filosofia, e pelo qual, a um certo ponto, os
sistemas filosóficos se revelam como consciência reflexa de um determinado
século; 3) um fator individual pelo qual também as convenções gerais recebem
uma importância das personalidades singulares. Como nota Casertano,
Windelbandafirma que para acertar mais nossa metodologia de pesquisa temo
que cuidar dos sentidos que o termo “filosofia” pegou nas várias épocas.
Mas também em Windelband podemos achar um paradigma da
“idealístico” para a história da filosofia, porque ele atribui grande importância à
Filosofia em relação às várias filosofias e porque, seja como for, mesmo
destacando o fator individual, o desenvolvimento das filosofias segue uma linha
já traçada, já definida. Prova seja o facto que ele divide a filosofia antiga em
três momentos: 1) cosmológico, 2) antropológico e 3) sistemático, categorias,
estas, que foram dominantes e que ainda reagem com os trabalhos dos
historiadores da filosofia antiga, sobretudo de área continental.
O trabalho de Eduard Zeller (1814-1908), A filosofia dos Gregos em seu
desenvolvimento histórico (1844-1852), apresenta um cuidado muito forte para
as fontes, contendo muito material documentário e fica, ainda hoje, um trabalho
importante para a história da filosofia antiga (esta obra foi traduzida
parcialmente e revisada por um pesquisador italiano, Rodolfo Mondolfo).
O problema do qual Zeller parte é o problema do termo “filosofia”, porque
ele constata que este termo, em seu uso ao longo de toda a literatura grega,
indicou as coisas mais diferentes; por isso, se tivéssemos que pegar todos
estes sentidos para dar uma imagem da filosofia teríamos de ou restringir muito
o âmbito da filosofia, ou, na maioria dos casos, de alargar este âmbito, até
deixar entrar muitas cosias que não consideramos mais filosofia. Fazendo isso,
ele passa através de Homero, de Tucídides, de Sócrates, de Platão, de
Aristóteles, até dos Neoplatônicos.
Por essa razão, Zeller teve que dar uma definição de filosofia; mesmo
como destacamos para Hegel, fazer história da filosofia significa em primeiro
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lugar ter já uma ideia e uma definição do que é a filosofia. E Zeller dá esta
definição: “a filosofia é uma atividade puramente teorética, tal que nela se trata
só de conhecer”, ou seja, é uma ciência, “uma reflexão metódica que se põe
como fim cientemente um conhecimento racional das coisas”.
Não queremos aqui dar juízos sobre estas três concepções da filosofia e
da história da filosofia; queremos só mostrar algumas das mais importante
vertentes da historiografia filosófica, muito em breve como estes três autores
resolveram os problemas que temos em começar um trabalho de pesquisa
acerca da filosofia antiga, o, mais em geral, um trabalho de reconstrução
histórica sobre a antiguidade clássica.
Mas a solução de Zeller, embora exclua muito com esta perspectiva
cognitiva e intelectual, nos parece interessante, porque é o mesmo Zeller que
tem consciência do facto que, mesmo tendo esta definição de filosofia, em
nosso trabalho, quando realizamos uma delimitação que podemos não dar
conta do real cruzamento de concepções, filosofias, sistemas científicos, então
temos que adaptar nosso paradigma às novas exigências de pesquisa.
3- Uma pequena notação de método de Giovanni Casertano
Giovanni Casertano indica três erros a evitar em fazer história da
filosofia antiga, mas podemos também utilizar estas indicações, gerais e
adaptadas, para qualquer estudo sobre a antiguidade e às quais nossas aulas
se inspiraram, para assim concluir esse pequeno discurso, certamente não
exaustivo, mas que pode dar direções para não cair em erros e ter uma
bússola em nosso mare Magnum.
O primeiro erro que o estudioso italiano indica é “operar anacronismos”.
“Anacronismo” é a entender aqui como transposição de temáticas, hábitos
mentais, impostações culturais. Esta transposição acontece usualmente do
presente para o passado, no sentido que no passado se tenta achar
precursores para as filosofias que vão ser seguidas depois (isso é, uma forma
mentis típica do idealismo, cujo máximo representante é Hegel, de quem mais
acima demos algumas indicações). O perigo deste modo de fazer história do
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pensamento é o de perder a peculiaridade de uma época. Este anacronismo
Casertano o chama de “anacronismo positivo”.
O outro tipo de anacronismo é o “anacronismo negativo”, que consiste
em não ver um tipo de pensamento novo de um contexto tradicional; ou seja
atribuir categorias do passado para algo que, mesmo fazendo parte de um
contexto cultural ligado ao passado, cria uma descontinuidade nas concepções
sobre um determinado argumento. Podemos ligar isso com o discurso sobre o
contínuo e o descontínuo.
No primeiro tipo de anacronismo se leva o presente para o passado; no
segundo o passado para presente.
O segundo erro é “operar esquematizações”. Procurar esquemas é uma
exigência da ciência, mas o erro consiste em sobrepor um esquema aos factos,
em constringir os factos ao esquema. Isso claramente impede de encontrar
dados que podem mudar o esquema mesmo. Mas isso nos levaria muito longe,
porque implica em um discurso epistemológico que pertence ao modo de
procurar dados, discurso que se joga entre teoria da ciência e hermenêutica.
Podemos dizer que a validade de um esquema consiste na capacidade
do esquema de dar conta mesmo de dados não contemplados por ele; dar
conta da diversidade e complexidade do objeto de pesquisa.
O terceiro erro é “operar absolutizações”. Este erro consiste em achar os
resultados de uma pesquisa, de uma interpretação como “definitiva”. Cada obra
de compreensão, a qualquer nível, não é nunca uma obra terminada, que
chega a resultados dados uma vez e para sempre. Não absolutizar a própria
pesquisa significa não somente não afirmar os resultados conseguidos como
“verdades absolutas”, mas também ser conscientes que os resultados são
pontos de partida para outras pesquisas, deixando, assim, a pesquisa aberta a
verificações ulteriores.
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