Ethos e gênero do discurso Eduardo Lopes Piris Rua Carmelina Crem de Aguiar, nº 233, vila Aguiar 18130-650 – São Roque – SP – Brasil Resumo. Este artigo apresenta considerações sobre a relação entre ethos e gênero do discurso, analisando um pronunciamento feito pelo deputado federal Geraldo Freire (ARENA/MG) durante a histórica sessão parlamentar que antecedeu ao AI-5. Palavras-chave. Análise do Discurso; ethos; gênero do discurso; discurso político. Abstract. This article presents considerations about the relation between ethos and discourse genre, analyzing a pronouncement made by the representative Geraldo Freire (ARENA/MG) during the historical parliamentary session that preceded the AI-5. Keywords. Discourse Analysis; ethos; discourse genre; political discourse. Introdução A histórica sessão da Câmara dos Deputados Federais que antecedeu ao AI-5 recolocou em cena a eterna polêmica entre situação e oposição. Nossa pesquisa busca mostrar como Geraldo Freire (ARENA), Márcio Moreira Alves e Mário Covas Júnior (MDB) constroem seus ethé e seus discursos, inscrevendo-os nessa memória polêmica. Neste encontro, apresentaremos a parte da pesquisa que se volta para a caracterização do ethos no discurso pronunciado pelo deputado Geraldo Freire e para o processo de validação da enunciação de seu discurso numa formação discursiva governista. A análise focaliza a construção do ethos tendo em vista as coerções do gênero parlamentar, da cena enunciativa e das formações discursivas. Num primeiro momento, situaremos as condições de produção que envolveram o discurso em análise. Depois, apresentaremos a noção de gênero, seguida de uma breve caracterização do gênero parlamentar. Mais adiante, relacionaremos a noção de gênero com a de ethos, descrevendo e comparando as cenas enunciativas produzidas nos discursos de Geraldo Freire e de Márcio Moreira Alves. E, finalmente, após definirmos a noção de ethos, apontaremos suas características no discurso de Geraldo Freire. Enfim, podemos dizer que os dados levantados até aqui nos mostram que o discurso de Geraldo Freire constrói seu ethos ordeiro, ao discursivizar a conformidade com as regras instituídas, validando a enunciação de um discurso situacionista. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 726-731, 2005. [ 726 / 731 ] As condições de produção dos discursos que antecederam ao AI-5 O cenário político internacional, entre 1945 e 1989, foi marcado pela Guerra Fria, em que EUA e URSS, temendo perder o domínio político e econômico que haviam conquistado após a II Guerra Mundial, envolveram-se numa corrida armamentista, patrocinaram guerras civis e interferiram em governos de diversos países. Essa tensão entre capitalismo e comunismo construiu representações culturais que balizavam a produção discursiva nesse período, em que era comum associar o capitalismo à direita e, o comunismo à esquerda. No Brasil, o reflexo dessa tensão internacional culminou em outubro de 1965, quando o regime militar, por meio do AI-2, dissolveu todos os partidos políticos existentes e os encerrou em duas siglas. Assim, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) agrupou os apoiadores do Golpe de 64, em sua maioria membros da UDN e do PSD, enquanto que seus discordantes, principalmente filiados ao PTB, uniram-se em torno do MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Construiu-se, então, a partir dessa polarização ideológica, uma grade sóciocultural que passou a interpelar o sujeito enunciador por meio de mundo categorizado em direita vs esquerda; capitalismo vs comunismo; revolução vs golpe. Essa tensão política arrastou-se durante o período da guerra fria e desvelou-se definitivamente durante o regime militar, provocando inúmeras crises, entre as quais, o episódio que envolveu o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara. Nesse episódio, os Ministros das Forças Armadas solicitaram ao Presidente da República, Mal. Arthur da Costa e Silva, “providências sobre o problema criado”, pois entendiam que o pronunciamento de Márcio Moreira Alves, feito em 4 de setembro de 1968, ofendia e desmoralizava tal instituição. Encaminhou-se, então, à Câmara dos Deputados Federais, um pedido de concessão de licença para processar o referido deputado. O desfecho desse episódio dependia, assim, de uma decisão da Câmara Federal que, na sessão parlamentar de 12 de dezembro, acabou negando o pedido de concessão de licença solicitado pelo governo militar. Numa resposta imediata, o regime concluiu a chamada “Revolução de 31 de março de 1964”, na noite de 13 de dezembro de 1968, editando o Ato Institucional nº 5. A noção de gênero do discurso A noção de gênero remonta à Antigüidade e sua classificação já fora perseguida por Platão e Aristóteles que nos legaram uma grande tradição no campo dos estudos literários e retóricos. Assim, na literatura, destacam-se as distinções entre prosa e poesia; entre lírico, épico e dramático; entre tragédia e comédia. Já, na Retórica, distinguem-se três gêneros: o deliberativo, o judicial e o epidítico. Haja vista que, naquele momento, a preocupação estava voltada para a techné. Conforme Helena Brandão (2000, p.22-23), há, hoje, uma série de tipologias como as funcionais, enunciativas, cognitivas e a sócio-interacionista. Nossas reflexões sobre o gênero são orientadas por esta última tipologia devido a sua afinidade com o quadro teórico articulado em nossa pesquisa. Referimo-nos, pois, à tipologia fundada nos postulados do círculo de Bakhtin. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 726-731, 2005. [ 727 / 731 ] Bakhtin (Volochinov), em Marxismo e Filosofia da Linguagem, de 1929, ao anunciar o problema dos “gêneros lingüísticos”, observa que “cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica” (2002, p.43). Note que Bakhtin integra o caráter ideológico à noção de comunicação, caracterizando-a como discurso, cuja materialização se dá por meio de formas repertoriadas pelas sociedades através dos tempos – os gêneros. Podemos dizer, assim, que gênero é um dispositivo de linguagem instituído sócio-historicamente. Mais adiante, em seu artigo intitulado Os gêneros do discurso, de 1956, Bakhtin (1992, p.285) afirma que para classificar os gêneros de discurso é preciso considerar as esferas da atividade humana (tais como a jurídica, a política, a familiar). O autor (1992, p.279) detalha, ainda, a noção de gênero, postulando que cada esfera de atividade humana demanda finalidades e condições específicas que determinam a geração do enunciado, que, por sua vez, as reflete por meio de seu tema (o conteúdo do enunciado); de seu estilo (componente lingüístico que envolve recursos lexicais, sintáticos, gramaticais); de sua forma composicional, que comporta o tipo de estruturação e de conclusão do enunciado, bem como o tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (ouvinte, leitor, interlocutor, discurso do outro). Com efeito, o enunciado não é caracterizado apenas pela sua forma composicional e seu estatuto lingüístico, mas também pelas suas condições de produção que aparecem refletidas na própria materialização lingüística do enunciado. E é nesse processo dinâmico e interativo que a recorrência e a estabilização de um enunciado elaborado numa esfera de comunicação institui o gênero discursivo. Dessa forma, Bakhtin (1992, p.279) definiu os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados. Nessa mesma linha, Maingueneau entende que “a explicitação das condições genéricas não representa uma finalidade para a Análise do Discurso” (1997, p.37) e que “a Análise do Discurso não tem por objeto nem a organização textual considerada em si mesma, nem a situação de comunicação, mas a imbricação de um modo de enunciação e de um lugar social determinados” (1995, p.7). E assim, o autor concebe o gênero na articulação entre a sua forma e a situação social de sua enunciação, bem como propõe o enfoque da análise sobre as coerções genéricas, já preconizadas por Bakhtin (1992, p.302), quando, ao comparar as formas do gênero e as formas da língua, menciona o caráter normativo e coercitivo do gênero sobre a fala do locutor. Caracterização do gênero pronunciamento parlamentar As origens do gênero parlamentar se confundem com a invenção da própria política, que surgiu na Grécia e em Roma como forma de mediação para os conflitos entre as classes sociais envolvidas na disputa pelo poder, já que a soberania das grandes famílias começava a ser contestada pela emergente classe dos artesãos e comerciantes. Gregos e romanos criaram, assim, o espaço público para que os cidadãos pudessem defender seus interesses e tomar suas decisões consensualmente, concebendo, então, o que a sociedade moderna conhece como parlamento. Instaurava-se, portanto, o regime político, em que o debate e a expressão pública da vontade da maioria estabeleciam o consenso, condicionando o sucesso da política à argúcia da palavra. No interior da atividade política, estabeleceu-se uma série de convenções sociais que instituíram a própria atividade e seus dispositivos de linguagem, constituindo-se nas Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 726-731, 2005. [ 728 / 731 ] condições de produção dos discursos políticos que se refletiam nas formas de seus próprios enunciados. E a estabilização desses enunciados instituiu o gênero discursivo que agora denominamos pronunciamento parlamentar. Entre as características mais pertinentes desse gênero, podemos apontar, em sua forma composicional, a ritualização da fala do parlamentar (observada nas regras de concessão da palavra e na forma de tratamento), a orientação fortemente argumentativa, a organização do pronunciamento (abertura, apresentação e defesa dos argumentos e exortação) e o emprego das várias formas do discurso citado. Quanto ao estilo, o gênero parlamentar se caracteriza pela formalidade e polidez. Porém, é preciso considerar que o gênero apenas delimita a construção de um estilo, pois, a partir de Norma Discini (2003, p.57-63), podemos dizer que estilo é o efeito de sentido de subjetividade construído numa totalidade de discursos, depreendido pela recorrência das marcas lingüísticas expressas no dito. Assim, cada deputado constrói seu próprio estilo discursivo dentro do estilo formal e polido do gênero parlamentar. Enfim, é preciso frisar ressaltar que esses elementos caracterizadores do gênero pronunciamento parlamentar formam uma rede de coerções genéricas à qual o sujeito enunciador é submetido no processo de produção discursiva. A cena enunciativa no pronunciamento de Geraldo Freire Se a cena enunciativa é, como define Maingueneau (2002, p.85), “uma tripla interpelação”, o discurso de Geraldo Freire interpela o enunciador e os co-enunciadores como políticos, parlamentares e deputados federais, sobrepondo três cenas, a saber: o discurso político (cena englobante), o pronunciamento parlamentar (cena genérica) e a reiteração do próprio pronunciamento parlamentar (cenografia). Essa cenografia construída pelo discurso de Geraldo Freire (em 3) visa não apenas à reafirmação de uma cena estritamente política, mas também à denegação da cenografia produzida no discurso de seu adversário, Márcio Moreira Alves (em 1 e 2): (1) “Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu mandato, aos partidos”; (2) “Rogo a Deus, finalmente, que o Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua degola”; (3) “Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos. O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado. Não se trata absolutamente disto. Então quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados”. O alinhamento da cenografia com a cena genérica e a cena englobante cria, nesse discurso de Geraldo Freire, o efeito de sentido da ordem, construindo a imagem de um mundo institucionalizado, em que somente o modo de ser conformado às suas regras pode ser valorizado positivamente. Assim, impõem-se ao ethos não somente as coerções do gênero, mas também as da cenografia, que pressupõe um modo de enunciar compatível com o mundo que ela constrói, para validar a enunciação de seu discurso. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 726-731, 2005. [ 729 / 731 ] A noção de ethos Maingueneau, ao integrar o ethos retórico à Análise do Discurso, concebeu uma noção de ethos que extrapola aquela de estratégia de adesão imediata, já que a instância subjetiva, manifestada no e pelo discurso através do ethos, se constitui por uma ‘voz’ e um ‘corpo’ historicamente investidos de valores compartilhados socialmente, a fim de legitimar a enunciação de seu próprio discurso. O autor reelaborou, também, as noções de tom, corpo e caráter de forma que pudesse aplicá-las a textos escritos, desenvolvendo, então, uma noção de ethos capaz de compreender as dimensões vocal, física e psíquica ligadas à imagem do enunciador criada em seu discurso. Afirma, ainda, que mesmo “o texto escrito possui um tom que dá autoridade ao que é dito e que permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador” (2002, 98), porém não se trata do corpo do autor empírico, mas sim de “uma instância subjetiva encarnada que assume o papel do fiador” do discurso enunciado (1999, 79). Assim, a corporalidade (dimensão física desse fiador) se associa a um modo de ser e se movimentar num espaço social, enquanto que o caráter (dimensão psíquica do fiador) corresponde a um feixe de traços psicológicos, ao passo que a constituição dessas dimensões está fundada em representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, isto é, em estereótipos culturais (Maingueneau, 1999, 79; 2002a, 61). Dessa forma, a qualidade do ethos está associada à imagem do fiador que confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado (Maingueneau, 2002, 99). Logo, as representações sociais impõem ao sujeito enunciador não só o que ele deve e pode dizer, mas também a maneira que ele deve e pode se representar no mundo. Como nosso enfoque se volta para o sujeito discursivo e não para o sujeito empírico, consideramos o destinatário do discurso, o co-enunciador, como um feixe de estratégias argumentativas inscritas no próprio enunciado, pois, dessa maneira, isso nos permite dizer que as mesmas coerções impostas ao enunciador, ao incidirem sobre o coenunciador, contribuem para a estratégia de incorporação do ethos. Maingueneau (1999, 79) fala de incorporação “para designar a maneira que o co-enunciador se relaciona com o ethos de um discurso”. Trata-se, portanto, de uma estratégia de assimilação do ethos do enunciador, para que o co-enunciador incorpore um modo de ser no espaço social e, ao identificar-se com o ethos, passe a fazer parte de um corpo social. Caracterização do ethos no pronunciamento de Geraldo Freire Enunciados como “o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos”; “Está claro, a não mais poder”; “Sr. Presidente, desfeito o primeiro equívoco, passamos para o segundo”; “Nada mais inexato, Sr. Presidente”; “É preciso que se restabeleça”; “não ouso censurar a ninguém”; “me fez líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerentes e puros, bravos e patrióticos” revelam o tom assertivo que permeia todo o pronunciamento de Geraldo Freire e permite construir a imagem de um corpo rijo, estável e não hesitante. Cristalizada em estereótipos culturais, a crença em que o governante deve ser firme e seguro é o que valoriza positivamente o tom e o corpo construídos nesse discurso de Geraldo Freire, que, assim, produz uma qualidade de ethos que garante o Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 726-731, 2005. [ 730 / 731 ] conteúdo do que é dito. Constrói-se aí um modo de ser disciplinado e disciplinador, isto é, um ethos ordeiro, compatível com o mundo discursivizado pela cenografia e que valida a inscrição de seu discurso numa formação discursiva situacionista. Além disso, esse ethos ordeiro é também produzido por meio da construção de um anti-ethos abusado, ao qual referem-se enunciados como “um atentado contra a ordem democrática do Brasil”; “a imunidade parlamentar deve ser entendida como ligada ao exercício normal do mandato e não ao exercício anormal ou abusivo”; “todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem democrática”. Trata-se aí de uma estratégia em que o enunciador desqualifica e marginaliza seu anti-ethos, ao passo que atribui valores positivos ao seu ethos, a fim de captar o imaginário do co-enunciador e fazê-lo membro de seu grupo ordeiro, conquistando sua adesão. Esse processo também legitima a enunciação de seu discurso situacionista, construindo seu ethos e seu anti-ethos sobre a categoria ordem vs abuso, em que valoriza o jeito ordeiro e normal de ser no espaço social já discursivizado na cenografia. Conclusões Em suma, podemos concluir que a construção do ethos submete-se a um conjunto de regras ideológicas e enunciativas, cuja predominância de uma sobre a outra pode variar conforme o gênero discursivo. No caso estudado, entendemos que as coerções genéricas são tão predeterminantes quanto as coerções ideológicas, pois, embora cada qual imponha, ao seu modo, o que dizer e como dizer, o discurso de Geraldo Freire não inscreve apenas um sujeito conformado às regras que lhe são impostas, mas sim um enunciador que utiliza e se serve de todo esse conjunto de coerções para construir uma imagem valorizada de si, enquanto marginaliza a imagem de seu adversário. É o que podemos considerar sobre a relação entre ethos e gênero do discurso. 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