Curso de Extensão: Governança Metropolitana Colaborativa Apostila do Curso - Belém, 16, 17 e 18 de novembro 2009 - Organização Secretaria de Estado de Integração Regional do Pará Universidade de British Columbia CHS/UBC – Canadá Novembro 2009 Prezados Participantes do Curso, Recentemente, testemunhamos no Brasil um interesse renovado em novas formas de gestão urbana compartilhada, envolvendo governos locais e estaduais (governança regional e metropolitana), e o aparecimento de uma articulação macro-institucional mais forte, ampliando as perspectivas relacionadas às questões relacionadas com financiamento, organização e gestão de áreas metropolitanas e cidades-região (Lei dos Consórcios Públicos, contratos de gestão). O mundo acadêmico acompanha este novo desenvolvimento criando novas linhas de estu-do e pesquisas focadas em regiões metropolitanas. Dessa forma, à promoção do diálogo entre as entidades envolvidas no gerenciamento metropolitano se alia a criação de um cenário fértil para incentivar os agentes públicos na formação de sua consciência regional, instrumentando-os para o enfrentamento dos desafios colocados pelas dinâmicas complexas das regiões metropolitanas. O curso Governança Metropolitana Colaborativa faz parte do projeto internacional “Novos Consórcios Públicos para Governança Metropolitana no Brasil”, desenvolvido pela Universidade de British Columbia, Canadá e pelo Ministério das Cidades, Brasil,com apoio de universidades brasileiras, instituições governamentais e não governamentais que atuam em regiões metropolitanas brasileiras. Desde o início de 2009, o projeto vem promovendo a criação de uma rede de instituições com interesse na questão da Governança Metropolitana Colaborativa que promova a inclusão social. As instituições que integram esta rede desenvolvem atividades, encontros, seminários, cursos de capacitação e formação, bem como projetos que tratam da temática da cooperação entre os municípios e os desafios da governança regional colaborativa. Atualmente, esta rede é composta pelas seguintes instituições: OPUR – PROEX/PUC Minas; Rede Nacional Observatório das Metrópoles; Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da PUC Minas; Programa de Pós-graduação em Direito/NUJUP da PUC Minas; Universidade federal do ABC, Universidade São Judas e o Centro de Assentamentos Humanos/University of Britsh Columbia. Este curso tem como objetivos: a) elevar o nível de consciência regional dos gestores públicos, a partir de conceitos, princípios e metodologias vinculados ao novo papel das cidades-região e áreas metropolitanas na realidade nacional; b) capacitar profissionais para a governança regional e metropolitana colaborativa, buscando melhorar a eficiência e efetividade da organização e gestão das regiões metropolitanas; c) vincular políticas públicas setoriais de interesse local à perspectiva regional; e d) mapear os processos da colaboração inter-institucional. Esta apostila se estrutura a partir de textos e apresentações de professores que vêm ministrando os cursos oferecidos. Para o presente curso, oferecido em Belém, os textos são refenrcias para os seguintes módulos: 1) Cooperação interinstitucional e governança colaborativa; 2)oficina sobre Ocnsorcios Publicos; 3) A participação da sociedade civil em arrnjos interinstitucionais; 4) Discussão sobre Planos Diretores e Planos Complementares; 5) e 6) Laboratório de Simlação: cooperação interfederativa e Moradia Social. Esperamos que o presente curso traga novos conhecimentos e venha de encontro às expectativas de todos os participantes. Organização do Curso ÍNDICE Currículo dos Professores do curso Governança Metropolitana Colaborativa ................................. 2 Descrição dos Módulos do Curso..................................................................................................... 4 CONTEÚDO.................................................................................................................................... 5 MÓDULO 1: Artigos Referenciais: ............................................................................................... 6 A Coordenação Federativa no Brasil: A Experiência do Período FHC e os Desafios do Governo Lula................................................................................................................................................ 6 Federalismo, Relações Intergovernamentais e Gestão Metropolitana no Brasil......................... 29 MÓDULO 2: Artigos Referenciais: ............................................................................................. 42 Experiência de Aplicação da Lei de Consórcios Públicos no Município de Belo Horizonte: O Consórcio Regional de Promoção da Cidadania – “Mulheres das Gerais”................................. 42 Custos de Transação na Governança Metropolitana na RMBH e no Grande ABC Paulista ...... 54 MÓDULO 3: Artigos Referenciais: ............................................................................................. 91 Democracia e Cidadania.............................................................................................................. 91 A Democracia e Suas Dificuldades Contemporâneas ................................................................. 98 MÓDULOS 4, 5 e 6: Artigos Referenciais: ............................................................................... 108 Habitação, Inclusão Social e Governança Urbana Colaborativa............................................... 108 A Questão Habitacional na Região Metropolitana de Belem ................................................... 118 Em Defesa da Locação Social................................................................................................... 146 Monitorando o Direito à Moradia no Brasil (1992-2004)......................................................... 148 1 Currículo dos Professores do curso Governança Metropolitana Colaborativa Módulo 1: Carlos Aurélio Pimenta de Faria Possui graduação em História, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990), mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ (1992) e doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ (1997). Foi pesquisador visitante da Universidade de UMEAc, na Suécia, onde cumpriu parte de sua pesquisa de doutoramento. Atualmente é Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sendo Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma Universidade. Módulo 2: Marina Esteves Lopes Mestre em Ciências Juridicas pela Universidae de Lisboa/Portugal. Especialista em Direito Municipal pelo IEC/PUCMinas, professora no curso de Direito da PUC Minas na disciplina de Contratos. Advogada sócia da Ribeiro de Oliveira Advogados Associados. Assessora Juridica da Procuradoria Geral do municipio de Belo Horizonte junto à Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Informação, responsavel pela equipe técnico-jurídica por Belo Horizonte na implementação do Consorcio Público “Mulheres das Gerais.” Módulo 3: Elena Maria Rezende Educadora Social com experiência em Desenvolvimento Comunitário. Atuação em Núcleos Habitacionais, com foco no diálogo com comunidades para ações conjuntas com o governo municipal; Planejamento urbano e acompanhamento em políticas públicas em projetos de urbanização; Desenvolvimento de Projeto Internacional de Recuperação Ambiental em Reassentamento Humano (GEPAM: Gerenciamento Participativo em Áreas de Mananciais) com enfoque em gênero e economia solidária; Participação no Conselho Municipal de Gestão Ambiental (COMUGESAN), órgão formulador e deliberativo da Política Pública de Saneamento Ambiental da cidade; Coordenação de oOficinas de formação para a cidadania: sobre o Estatuto da Cidade e Plano Diretor; Desenvolvimento de programas de formação de lideranças comunitárias locais, na constituição de Conselhos de Representantes locais como fóruns de participação cidadã que facilitem a interlocução com concessionárias de serviços públicos. Recentemente atua como coordenadora do projeto no Pará na implantação e desenvolvimento de projeto de cunho sócioeducativo, esportivo e cultural com foco no planejamento, avaliação e acompanhamento à gestão em unidades descentralizadas. Módulo 4: Simaia do Socorro Sales das Mercês Doutora e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), Brasil, em 1999 e 2005, respectivamente; Especialista em Planejamento e Administração de Transporte Urbano pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil, em 1988; graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPA, Brasil, em 1983. Desempenhou funções de coordenação, técnicas e de consultoria em órgãos públicos, no período 1985-2006. Atualmente é professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da UFPA. Tem experiência técnica e acadêmica nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional e Planejamento de Transporte, com ênfase em gestão urbana e políticas públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: produção do espaço urbano, habitação, mercado imobiliário; atores sociais; desigualdades sócio-espaciais; planejamento urbano e transporte urbano. 2 Módulos 5 e 6: Fernando Bruno Filho Graduado pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Atualmente é professor da Universidade Sao Judas Tadeu. Foi Secretario Adjunto de Desenvolvimento Urbano na Prefeitura de Santo Andre (2000-2006). Tem experiência no planejamento e na gestão da política urbana, bem como na área de ensino, pesquisa e produção acadêmica em direito, com ênfase em direito urbanístico, constitucional e administrativo. Módulos 5 e 6: Francisoc Comaru Possui Doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (2004), Mestrado em Engenharia pela Universidade de São Paulo (1998) e Graduação em Engenharia Civil pela Escola de Engenharia Mauá (1992). É Professor Doutor da Universidade Federal do ABC, membro do programa de pós graduação interdisciplinar em Energia da mesma universidade. É colaborador do Cepedoc/FSPUSP - Centro de Estudos, Pesquisa e Doc. Cidades Saudáveis - FSPUSP e do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP. Tem experiência em desenvolvimento urbano, habitacão, gestão de cidades e energia, planejamento urbano e ambiental. Vem atuando principalmente nos seguintes temas: promoção da saúde, áreas centrais metropolitanas e inclusão, políticas públicas territoriais. 3 Descrição dos Módulos do Curso Horario e Palestrante 16 de novembro (manhã) Carlos Aurélio Pimenta PUC Minas, Belo Horizonte 16 novembro (tarde) Marina Esteves Lopes, Prefeitura de Belo Horizonte 17 novembro (manhã) Elena Rezende, Prefeitura de Santo André Nome do Módulo O quadro institucional federativo brasileiro e o processo de descentralização das últimas décadas produziram poucos incentivos à ação cooperativa no âmbito regional. No Cooperação entanto, percebe-se hoje no país uma interinstitucional multiplicação de experimentos de para Governança cooperação intergovernamental e Colaborativa interinstitucional, a partir do reconhecimento da impossibilidade de resolução de determinados problemas compartilhados com base apenas na ação isolada de atores governamentais ou societários O objetivo deste módulo é debater o papel dos consórcios públicos, apresentando a diversidade de experiências no país, sua Oficina sobre sustentação legal e financeira, sua estrutura consórcios organizacional e os desafios que elas públicos enfrentam na provisão de serviços. O caso do Consórcio Mulheres das Gerais será discutido. Hoje em dia, as regiões metropolitanas concentram grandes disparidades de direitos e serviços entre as camadas sociais. A Participação da Desde 1988 e com a reforma urbana, o Sociedade Civil quadro institucional teve alguns avanços e em Arranjos retrocessos para garantir o direito à cidade. Interinstitucionais A essência do direito à cidade é a igualdade democrática entre os cidadãos. 17 de agosto (tarde) Discussão sobre Professora da Planos Diretores UFP e membro da e Planos FASE, Belém do Complementares Pará 18 de novembro (manhã e tarde) Fernando Bruno, U. São Judas Tadeu, SP Francisco Comaru, UFABC, Santo André. Descrição Laboratório de Simulação – Cooperação Interfederativa e Moradia Social A região metropolitana atual é marcada tanto pela implantação de grandes projetos de desenvolvimento em territórios estratégicos quanto pelos recentes planos diretores municipais. Serão discutidas as interfaces e superposições na definição da política urbana e a relação entre os sistemas de gestão democrática a nivel estadual, regional e municipal. A leitura dos Planos Diretores Municipais permite constatar que há grandes dificuldades para viabilizar propostas conjuntas e integradas de desenvolvimento urbano e regional de forma cooperada, democrática e participativa. A simulação será baseada em um estudo de caso que representa uma realidade metropolitana hipotética. O objetivo será examinar os desafios específicos relacionados aos processos, dificuldades e oportunidades de harmonizar políticas públicas entre diferentes entes federativos em um contexto regional. O tema adotado para essa simulação é a Moradia Social. Carga Horária: 8 horas. Professores: Fernando Bruno, Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, e Francisco Comaru, Universidade Federal do ABC, Santo André. 4 Conceitos Chaves Federalismo; relações intergovernamentais; centralização/descentralização; cooperação interinstitucional; governança regional; cooperação intragovernamental; desenvolvimento local e inclusão social. Associação de Municípios vs. Consórcio Público Consórcios Públicos e Desenvolvimento Local Espaços de participação da sociedade civil nos consórcios A formação de um consórcio público: Fluxograma Participação da sociedade civil nos processos de governança; Políticas públicas participativas; Inclusão social; Cidadania regional: direitos e responsabilidades; Conselhos de representação popular O Planejamento do Desenvolvimento Metropolitano e os Planos Diretores Participativos Municipais A Gestão Democrática das Cidades e a integração entre as políticas de desenvolvimento urbano Os Instrumentos de acesso a terra urbanizada previstos e o seu grau de auto-aplicabilidade Desafios para a implementação e a efetividade dos Planos Diretores Municipais e sua integração com o desenvolvimento regional. Cooperação intermunicipal; Avaliação de desafios e oportunidades em empreendimentos cooperativos; Benefícios e limites de moradia/ aluguel social; Mecanismos cooperativos de finaciamenteo regional para moradia/aluguel social; Negociação entre stakeholders CONTEÚDO MÓDULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DA GOVERNANÇA METROPOLITANA Carlos Aurélio Pimenta de Faria, PUC-Minas Artigos Referenciais: • Fernando Luiz Abrucio. A Coordenação Federativa no Brasil: A experiência do Período FHC e os Desafios do Governo Lula. Revista Social Política, Curitiba 24 p. 41-67, jun. 2005. • Carlos Alberto de Vasconcelos Rocha e Carlos Aurélio Pimenta de Faria:Federalismo, Relações intergovernamentais e Gestão Metropolitana no Brasil; paper apresentado durante a Mesa Redonda NPC, BH, setembro 2009. MÓDULO 2 – OFICINA SOBRE CONSÓRCIOS PÚBLICOS Marina Estevez Lopes. Prefeitura de BH Artigos Referenciais: • Marina E. Lopes: Experiência da Aplicação da Lei de Consorcios Públicos no Municipio de Belo Horizonte: O Consórcio Regional de Promoção da Cidadania “Mulheres das Gerais”; paper apresentado durante a Mesa Redonda NPC, BH, setembro 2009. • Gustavo Machado: Custos de Transação na Governança Metropolitana e no Grande ABC Paulista. Texto baseado em dissertação de mestrado entitulada “O Ente Metropolitano, Custos de transação na gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte e no Consórcio do Grande ABC – os modelos compulsório e voluntário comparados.”, apresentada na PUC Minas, em março de 2007. MÓDULO 3 – A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM ARRANJOS INTERINSTITUCIONAIS Elena Rezende Artigos Referenciais • Orlando Santos. Democracia e Cidadania: Texto retirado de: Santos Junior, Orlando Alves dos...[et al.]. (organizadores). Políticas Públicas e Gerstão Local: programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003. • Celso Antônio Bandeira de Mello. A Democracia E Suas Dificuldades Contemporâneas – Salvador, Bahia 2001 MÓDULO 4 – DISCUSSÃO DE PLANOS DIRETORES E PLANOS COMPLEMENTARES) Simaia do Socorro Sales das Mercês (mesmos artigos referenciais para os Módulos 4, 5 e 6) MÓDULO 5 E 6 - LABORATORIO DE SIMULAÇÃO: COOPERAÇÃO INTERFEDERATIVA E MORADIA SOCIAL Fernando Bruno Filho e Francisco Comaru Artigos Referenciais • Rosana Denaldi, Jeroen J. Klink, Claudia de Souza: Habitação, Inlcusão Social e Governança Urban Colaborativa; paper apresentado durante a Mesa Redonda NPC, BH, setembro 2009. • Andréa Pinheiro, José Júlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de Sá, Maria Vitória Paracampo: A questão habitacional na região metropolitana de Belém Coleção Habitare - Habitação Social nas Metrópoles Brasileiras - Uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX • Maria da Piedade Morais, Bruno de Oliveira Cruz: Em defesa da locação social; IPEA 42 Desenvolvimento junho de 2009 • Maria da Piedade Morais, George A. Guia, Rubem de Paula: Monitorando o direito à moradia no Brasil – 1992-2004, IPEA políticas sociais − acompanhamento e análise, 12 , fev. 2006 5 MÓDULO 1: Artigos Referenciais: A Coordenação Federativa no Brasil: A Experiência do Período FHC e os Desafios do Governo Lula1 Fernando Luiz Abrucio O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigo concentra-se basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir desta análise, procura-se, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o governo Lula. PALAVRAS-CHAVE: federação; centralização; descentralização; governo FHC; governo Lula. I. INTRODUÇÃO A estrutura federativa é um dos balizadores mais importantes do processo político no Brasil. Ela tem afetado a dinâmica partidário-eleitoral, o desenho das políticas sociais e o processo de reforma do Estado. Além de sua destacada influência, a federação vem passando por intensas modificações desde a redemocratização do país. É possível dizer, tendo como base a experiência comparada recente, que o federalismo brasileiro é atualmente um dos casos mais ricos e complexos entre os sistemas federais existentes. Diante de tudo isso, cresce o número de pesquisas sobre o assunto, de estudiosos brasileiros e estrangeiros. Embora esses trabalhos comportem abordagens de campos científicos diferentes, diversidades de temas e divergências de interpretação, há um elemento comum à maioria deles. Grosso modo, os estudos sobre o federalismo brasileiro privilegiam a análise do embate, hoje e ao longo da história, entre o governo federal e os entes subnacionais, por meio de suas elites políticas e estruturas de poder. As oposições descentralização versus centralização (ou recentralização) e o poder dos governadores frente à força das instâncias nacionais – os partidos e/ou o Presidente da República – dominam boa parte do debate. Esse foco analítico é uma peça-chave na investigação das relações intergovernamentais, mas ele não esgota o seu entendimento e, pior, não leva sozinho à compreensão do funcionamento dos sistemas federais. É preciso acrescentar outro vetor analítico, pouco explorado no Brasil, bem como no estudo de outros países. Trata-se da análise do problema da coordenação intergovernamental, isto é, das formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presentes nas federações. Essa questão torna-se bastante importante com a complexificação das relações intergovernamentais ocorrida em todo o mundo nos últimos anos. Isso se deveu à convivência de tendências conflituosas e de intrincada solução, entre as quais se destacam três: 1 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 41-67 JUN. 2005 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 41-67, jun. 2005. Este artigo baseia-se em duas pesquisas. A primeira foi feita em 2002, para o Ministério do Planejamento e o Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que resultou na publicação O Estado em uma era de reformas: os anos FHC. A segunda chama-se Reforma do Estado, federalismo e elites políticas: o governo Lula em perspectiva comparada e está em andamento, tendo como financiador o Núcleo de Publicação e Pesquisas (NPP) da Fundação Getúlio Vargas. 6 a) há hoje expansão ou, no mínimo, manutenção do Welfare State convivendo com maior escassez relativa de recursos. Tal situação exige melhor desempenho governamental, com fortes pressões por economia (cortar gastos e cus-tos), eficiência (fazer mais com menos) e efetividade (ter impacto sobre as causas dos problemas sociais) – três tópicos que dependem, em países federativos, de maior coordenação entre as esferas político-administrativas na gestão das políticas públicas; b) houve um aumento das demandas por maior autonomia de governos locais e/ou grupos étnicos, levando à luta contra a uniformização e a excessiva centralização, o que acontece ao mesmo tempo em que governos e coalizões nacionais tentam evitar problemas causados pela fragmentação, como a elevação da desigualdade social, o descontrole das contas públicas de entes subnacionais – como ocorreu na Argentina e no Brasil –, a guerra fiscal entre os níveis de governo e, no piores casos, o surgimento de focos de secessão, como na Rússia e c) se, por um lado, é cada vez maior a interconexão dos governos locais com outras estruturas de poder que não os governos centrais, tais como os relacionamentos com forças transnacionais – como empresas e organismos internacionais – e as parcerias com a sociedade civil, por outro lado, há simultaneamente uma necessidade de reforço das instâncias nacionais para organizar melhor a inserção internacional do país e reduzir os aspectos negativos da globalização, inclusive para as comunidades locais e seus hábitos socioculturais. Conflitos e dilemas como esses revelam, em suma, que a temática da coordenação federativa tem como intuito ir além da dicotomia centralização versus descentralização. Em recente estudo feito pela Organization for the Economic Cooperation and development (OECD), com base em diversas federações, concluiu-se que “Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização. Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções – descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países” (OECD, 1997, p. 13). O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigo concentrase basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). A partir desta análise, procurase, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o governo Lula. II. O SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO FEDERATIVA A temática da descentralização ganhou força nos últimos 30 anos em todo o mundo. Sua implementação diferencia-se, no entanto, de país a país, de acordo com especificidades históricas, coalizões sociais e arranjos institucionais. Dentre estes últimos, a adoção de uma forma federativa de Estado é a que tem maior impacto. O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a organização político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial da soberania e não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR, 1987, p. 37). O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análise de sua natureza, de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente, toda federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993). Duas condições conformam esse cenário. Uma é a existência de heterogeneidades que dividem 7 uma determinada nação, de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico, sócio-econômico (desigualdades regionais), cultural e político diferenças no processo de constituição das elites dentro de um país e/ou uma forte rivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim instituído para dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país desse tipo não constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de fragmentação. Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma prática defensores da unidade na diversidade, resguardando a autonomia local, mas procurando formas de manter a integridade territorial em um país marcado por heterogeneidades. A coexistência dessas duas condições é essencial para montar-se um pacto federativo. Mas que é uma federação? Segundo Daniel Elazar, “O termo ‘federal’ é derivado do latim foedus, que [...] significa pacto. Em essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimento mútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidade especial entre eles” (ELAZAR, 1987, p. 5). O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos governos e a interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel Elazar: selfrule plus shared rule. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis intermediários e locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processo de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da federação reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-territorial. Ressalte-se que na federação o poder nacional deriva de um acordo entre as partes, em vez de constituí-las. Assim, a descentralização em estados unitários pode até repassar um efetivo poder político, mas esse processo sempre provém do centro e não constitui direitos de soberania aos entes subnacionais. Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para defender seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existência de cortes constitucionais, que garantem a integridade contratual do pacto originário; uma segunda casa legislativa representante dos interesses regionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional dos estados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na câmara baixa e o grande poder de limitar mudanças na Constituição, criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas e, em muitos casos, é necessária a aprovação dos legislativos estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios básicos da federação não podem ser emendados em hipótese alguma. Como bem constatou Alfred Stepan, toda federação restringe o poder da maioria (“demos constraining”), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa igualmente responder à questão da interdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendências centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos do plano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquer experiência federativa, sob o risco de enfraquecerse a unidade político-territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a “tragédia dos comuns” típica do federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fato é que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do tempo caso estabeleça-se uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pactuantes e sua interdependência. 8 A interdependência federativa não pode ser alcançada pela mera ação impositiva e piramidal de um governo central, tal qual em um Estado unitário, pois uma federação supõe uma estrutura mais matricial, sustentada por uma soberania compartilhada. É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, seja em virtude do auxílio e do financiamento às outras unidades governamentais. O governo federal tem prerrogativas específicas para manter o equilíbrio federativo e os governos intermediários igualmente detêm forte grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Mas a singularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre os entes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua capacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos de barganha afetam decisivamente as relações verticais em um sistema federal. O compartilhamento de poder e decisão em uma federação, desde a sua invenção nos Estados Unidos, pressupõe a existência de controles mútuos entre os níveis de governo – trata-se dos checks and balances4. O objetivo desse mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para que nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe com a autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependência em uma federação democrática tem de ser feita conjuntamente com o controle mútuo. Mas, além da garantia da autoridade nacional sem retirar a autonomia local e da necessidade de checks and balances entre os níveis de governo, um novo aspecto torna mais complexo o funcionamento das federações. É que o desenvolvimento recente dos estados modernos levou ao crescimento do papel dos governos centrais, especialmente no que se refere à expansão das políticas sociais. No caso dos sistemas federais, em que vigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de compartilhamento de decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o problema da coordenação das ações de níveis de governo autônomos, aspecto-chave para entender a produção de políticas públicas em uma estrutura federativa contemporânea. Em seu trabalho sobre os estados de Bem-estar Social em países unitários e federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo as ações governamentais são divididas entre unidades políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, devido à nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa de governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision making surge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativos que, por natureza, só entram nesse esquema conjunto se assim o desejarem. Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativos é bem mais complexa, envolvendo jogos de cooperação e competição, acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O desafio posto por essa questão foi bem resumido por Pierson: “No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de modo freqüente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995, p. 451). Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as federações devem, primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição existentes, levando em conta que o federalismo é intrinsecamente conflitivo. Seguindo essa linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das relações intergovernamentais no federalismo: “Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e 9 acomodação” (idem, p. 458). Daí toda federação ter de combinar formas benignas de cooperação e competição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de instaurar mecanismos de parceria que sejam aprovados pelos entes federativos. O modus operandi cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nas questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de uma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas e para integrar melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas, evitando o jogo de empurra entre os entes. Ainda é peçachave no ataque a comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também na distribuição de informação sobre as fórmulas administrativas bem-sucedidas, incentivando o associativismo intergovernamental. Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui para elevar a esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fator fundamental para o equilíbrio de uma federação. No entanto, fórmulas cooperativas mal-dosadas trazem problemas. Isso ocorre quando a cooperação confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordinação do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade latino-americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa a montagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap (armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, mas que se repete igualmente em outras experiências. Nessa estrutura, todas as decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuência de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos de racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas, processo que pode diminuir o ímpeto inovador dos níveis de governo, enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e dificultar a responsabilização da administração pública. As federações requerem determinadas formas de competição entre os níveis de governo. Primeiro, devido à importância dos controles mútuos como instrumento contra a dominância (ou tirania, nos termos de Madison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a competição federativa pode favorecer a busca pela inovação e pelo melhor desempenho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar o desempenho dos vários governantes, uma das vantagens de ter-se uma multiplicidade de governos. A concorrência e a independência dos níveis de governo, por fim, tendem a evitar os excessos contidos na “armadilha da decisão conjunta”, bem como o paternalismo e o parasitismo causados por certa dependência em relação às esferas superiores de poder. Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O primeiro refere-se ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedade entre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo. Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou sócio-econômicos, mais complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federalismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evitar uma disputa desregrada entre os entes. A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais particularmente no terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism, 1995) sobre a experiência recente dos governos estaduais norte-americanos. O autor percebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de que os cidadãos “votam com os pés”, ou seja, podem escolher o lugar que otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diante disso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápio amplo de 10 proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é, mais pessoas, sobretudo as mais pobres, morariam nesses lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividade econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam constituir uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com isso a afluência dos mais pobres àquela região e, novamente em tese, elevando a competitividade econômica e a oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via – é o que Peterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnets e o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo a segunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompanhado da redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, o modelo competitivo levado ao extremo piora a questão redistributiva. O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerra fiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e mais isenções às empresas, em que cada governo subnacional procura oferecer mais do que o outro, geralmente sem se preocupar com a forma de custear esse processo. Ao fim e ao cabo, a resolução financeira dessa questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas gerações, seja repassando tais custos para o nível federal e, por tabela, para a nação como um todo. O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação entre competição e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar: “[...] todo sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolver um equilíbrio adequado entre cooperação e competição e entre o governo central e seus componentes” (ELAZAR, 1993, p. 193; Sem grifos no original). A coordenação federativa pode realizar-se, em primeiro lugar, por meio de regras legais que obriguem os atores a compartilhar decisões e tarefas – definição de competências no terreno das políticas públicas, por exemplo. Além disso, podem existir fóruns federativos, com a participação dos próprios entes – como os senados em geral – ou que eles possam acionar na defesa de seus direitos – como as cortes constitucionais. A construção de uma cultura política baseada no respeito mútuo e na negociação no plano intergovernamental é outro elemento importante. A forma de funcionamento das instituições representativas, tais como os partidos e o Parlamento, pode favorecer certos resultados intergovernamentais (ARRETCHE, 2004). O governo federal também pode ter um papel coordenador e/ou indutor. Por um lado, porque em vários países os governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que dificultam a assunção de encargos. Por outro, porque a União tem por vezes a capacidade de arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das políticas públicas. A atuação coordenadora do governo federal ou de outras instâncias federativas não pode ferir os princípios básicos do federalismo, como a autonomia e os direitos originários dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamento intergovernamental e os controles mútuos. É preciso, portanto, que haja processos decisórios com participação das esferas de poder e estabelecer redes federativas (ABRUCIO & SOARES, 2001) e não hierarquias centralizadoras. Definido o conceito de federalismo e a importância da coordenação intergovernamental dentro dele, o propósito central deste texto é analisar o caso brasileiro, centrando o foco no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Mais especificamente, o objetivo primordial é mostrar como o governo federal, na Era FHC, lidou com a questão da 11 coordenação entre os níveis de governo. As ações de outras instâncias que podem lidar com esse tema não serão negligenciadas, mas deverão ser entendidas a partir da estratégia adotada pelo poder Executivo federal. III. A REDEMOCRATIZAÇÃO E O NOVO FEDERALISMO BRASILEIRO A história federativa brasileira foi marcada por sérios desequilíbrios entre os níveis de governo. No período inicial, na República Velha, predominou um modelo centrífugo, com estados tendo ampla autonomia, pouca cooperação entre si e um governo federal bastante fraco. Nos anos Vargas, o Estado nacional fortaleceu-se, mas os governos estaduais, particularmente no Estado Novo, perderam a autonomia. O interregno 1946-1964 foi o primeiro momento de maior equilíbrio em nossa federação, tanto do ponto de vista da relação entre as esferas de poder como da prática democrática. Mas o golpe militar acabou com esse padrão e por cerca de 20 anos manteve um modelo unionista autoritário (ABRUCIO, 1998), com grande centralização política, administrativa e financeira. A redemocratização do país marcou um novo momento no federalismo. As elites regionais, particularmente os governadores, foram fundamentais para o desfecho da transição democrática, desde as eleições estaduais de 1982, passando pela vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – ele próprio, não coincidentemente, um governador de estado – até chegar à Nova República e à Constituinte. Além disso, lideranças de discurso municipalista associavam o tema da descentralização à democracia e também participaram ativamente na formulação de diversos pontos da Constituição de 1988. Um novo federalismo nascia no Brasil. Ele foi resultado da união entre forças descentralizadoras democráticas com grupos regionais tradicionais que se aproveitaram do enfraquecimento do governo federal em um contexto de esgotamento do modelo varguista e do Estado nacionaldesenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto básico era fortalecer os governos subnacionais e, para uma parte desses atores, democratizar o plano local. Preocupações com a fragilidade dos instrumentos nacionais de atuação e com coordenação federativa ficaram em segundo plano. Dois fenômenos destacam-se nesse novo federalismo brasileiro, desenhado na década de 1980 e com reflexos ao longo dos anos 1990. Primeiro, o estabelecimento de um amplo processo de descentralização, tanto em termos financeiros como políticos. Em segundo lugar, a criação de um modelo predatório e não-cooperativo de relações intergovernamentais, com predomínio do componente estadualista. Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório, visto que ele teve um impacto enorme nos primórdios do novo federalismo brasileiro. De 1982 a 1994, vigorou um federalismo estadualista, não-cooperativo e muitas vezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa reviravolta na federação brasileira só pôde efetivar-se, em primeiro lugar, porque a União e a própria Presidência da República entraram em uma séria crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise abarcava o modelo de financiamento estatal do desenvolvimento, o equilíbrio das contas públicas nacionais e a burocracia federal – enfim, os instrumentos de poder do Executivo federal. Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro características do sistema político também contribuíram para aumentar o poderio dos estados e de seus governadores. A primeira delas foi a vigência de um sistema ultrapresidencial nos estados – que em grande medida ainda vigora –, que fortaleceu sobremaneira os governadores no processo decisório e praticamente eliminou o controle institucional e social sobre o seu poder (idem, cap. 3). A segunda diz respeito 12 aos padrões hegemônicos da carreira política brasileira, cuja reprodução dá-se pela lealdade às bases locais e pela obtenção de cargos executivos no plano subnacional ou então aqueles no nível nacional que possam trazer recursos aos “distritos” dos políticos. Em ambos os casos, o Executivo estadual é peça fundamental, seja no monitoramento das bases para os deputados, seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administração pública federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997). Os caciques regionais tiveram uma posição destacada de liderança no Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes a despeito dos partidos, por outras tornando-se grandes proprietários de parcelas dos condomínios partidários. Por fim, os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrativos que os fortaleciam no sistema de poder, como bancos estaduais e empresas estatais estratégicas. O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração de um federalismo estadualista e predatório. Estadualista porque o pêndulo federativo esteve a favor das unidades estaduais em termos políticos e financeiros, pelo menos até 1994, quando se implementou o Plano Real. Esse aspecto estava igualmente presente no comportamento atomizado e individualista dos governadores, cujo fortalecimento não resultou em uma coalizão nacional em torno de um projeto de hegemonia nacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter o status quo. O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão de competição não- cooperativa que predominava nas relações dos estados com a União e deles entre si. Desde o final do regime militar, as relações intergovernamentais verticais tinham sido marcadas pela capacidade de os estados repassarem seus custos e dívidas ao governo federal e, ainda por cima, não se responsabilizarem por este processo, mesmo quando assinavam contratos federativos. Caso clássico disso foram os bancos estaduais. A partir de 1982, as instituições financeiras estaduais foram utilizadas pelos governadores como instrumento de atuação política. Foram criadas verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos deletérios para a inflação e para o endividamento global. No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório teve sua principal manifestação na guerra fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de 1988 e ainda continua vigorosa nas práticas federativas. O fato é que o estadualismo predatório acabou sendo ele próprio um dos elementos geradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante. Esse contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização: o intento de reforçar os governos subnacionais, obtendo-se uma autonomia inédita. A federação tornou-se uma cláusula pétrea e sua extinção ou medidas que alterem profundamente seus princípios não podem ser objetos de emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4 da Constituição Federal de 1988). Os estados ganharam maior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação no plano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs), extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA, 1999, p. 55). Pela primeira vez na história, os municípios transformaram-se em entes federativos, constitucionalmente com o mesmo status jurídico que os estados e a União. Não obstante essa autonomia, os governos locais respeitam uma linha hierárquica quanto à sua capacidade jurídica – a Lei Orgânica, por exemplo, não pode contrariar frontalmente a Constituição estadual –, e são, no mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores de governo no que tange às questões políticas, financeiras e administrativas. 13 A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medida das conquistas tributárias, iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983, e consolidadas na constituição de 1988, o que faz do Brasil o país em desenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal (SOUZA, 1998, p. 8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a maior elevação relativa na participação do bolo tributário, apesar de grande parte deles depender muito dos recursos econômicos e administrativos das demais esferas de governo. O fato é que os constituintes reverteram a lógica centralizadora do modelo unionista-autoritário e mesmo as recentes alterações que beneficiaram a União não modificaram a essência descentralizadora das finanças públicas brasileiras. A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de democratizar o plano local. Embora esse processo seja desigual na sua distribuição pelo país e tenha um longo caminho pela frente, ele redundou em uma pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformando um fenômeno sem paralelo em nossa história federativa. Daí surgiram novos atores, como os conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que não tinham acesso real à competição pelo poder – o crescimento gradativo da esquerda nas eleições municipais, em particular o Partido dos Trabalhadores (PT), demonstra isso. Também surgiram formas inovadoras de gestão, como o orçamento participativo e a bolsa-Escola, para ficar com dois casos famosos. As conquistas da descentralização não apagam os problemas dos governos locais brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocam obstáculos ao bom desempenho dos municípios do país: a desigualdade de condições econômicas e administrativas; o discurso do “municipalismo autárquico”; a “metropolização” acelerada; os resquícios ainda existentes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam a accountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais. Desde a fundação da federação, o Brasil é historicamente marcado por fortes desigualdades regionais, inclusive em comparação com outros países. A disparidade de condições econômicas é reforçada, ademais, pela existência de um contingente enorme de municípios pequenos, com baixa capacidade de sobreviver apenas com recursos próprios. A média por região é de 75% dos municípios com até 50 mil habitantes, ao passo que no universo total há 91% dos poderes locais com esse contingente populacional (ARRETCHE, 2000, p. 247). A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maior sob o ponto de v vista comparado. Segundo estudo realizado por José Roberto Afonso e Érica Araújo (2000, p. 48), os governos locais brasileiros estavam em 15º lugar em termos de base de arrecadação própria em um universo de 19 países. Mas, além da fragilidade financeira, a maior parcela das municipalidades detém uma máquina administrativa precária. Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento da descentralização no Brasil foi prejudicado pelo municipalismo autárquico, visão que prega a idéia de que os governos locais poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletiva colocados às suas populações. Essa definição foi elaborada por Celso Daniel, ex-Prefeito de Santo André (em 2001), um dos grandes defensores da bandeira municipalista, além de um inovador administrativo e um democratizador das relações entre Estado e sociedade, mas que também sabia dos limites do poder local no país. O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a “prefeiturização”, tornando os prefeitos atores por excelência do jogo local e intergovernamental. Cada qual defende seu município como uma unidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relação aos problemas comuns em termos “micro” e macrorregionais. Ademais, há poucos incentivos para que 14 os municípios consorciem-se, dado que não existe nenhuma figura jurídica de direito público que dê segurança política para os governos locais que buscam criar mecanismos de cooperação. Mesmo assim, em algumas áreas, os consórcios desenvolveram-se mais, como em meio ambiente e na saúde, porém ainda em uma proporção insuficiente para a dinâmica dos problemas intermunicipais. Ao invés de uma visão cooperativa, predomina um jogo em que os municípios concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis de governo, lutam predatoriamente por investimentos privados e, ainda, muitas vezes repassam custos a outros entes, como é o caso de muitas prefeituras que compram ambulâncias para que seus moradores utilizem os hospitais de outros municípios, sem que seja feita uma cotização para pagar as despesas. Nesse aspecto, a questão da coordenação federativa é chave. Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi a intensa metropolização do país. Não só houve um crescimento das áreas metropolitanas, em número de pessoas e de organizações administrativas, como também os problemas sociais cresceram gigantescamente nesses lugares. No entanto, a estrutura financeira e político-jurídica instituída pela Constituição de 1988 não favorece o equacionamento dessa questão. No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos constituintes foi por um sistema de repartição de rendas intergovernamentais com viés fortemente antimetropolitano, favorecendo inclusive a multiplicação de pequenas cidades (REZENDE, 2001). No que tange ao segundo ponto, o fato é que as regiões metropolitanas (RMs) enfraqueceram-se institucionalmente em comparação com a dimensão que tinham no regime militar. Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formas compartilhadas de gestão territorial. É dessa concepção que se originou a explosão dos problemas dos grandes centros urbanos brasileiros. A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de resquícios culturais e políticos anti-republicanos no plano local. A despeito dos avanços que houve, que foram muitos se os enxergarmos de uma perspectiva histórica, diversas municipalidades do país ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é fundamental para a combinação entre descentralização e democracia. É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poder local é continuar na trilha da descentralização. Porém, se não houver reformas das instituições políticas subnacionais, além de uma mudança da postura da sociedade em relação aos governantes, o processo descentralizador não leva necessariamente à democracia. No plano intergovernamental, não se constituiu uma coordenação capaz de estimular a descentralização ao longo da redemocratização. Na relação dos municípios com os estados, predominava a lógica de cooptação das elites locais, típica do ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a constituição de 1988, em um quadro de indefinição de suas competências e da maneira como se relacionariam com os outros níveis de governo. Esse vazio institucional favoreceu uma posição “flexível” dos governos estaduais: quando as políticas tinham financiamento da União, eles procuravam participar; caso contrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as atribuições para os governos locais. O avanço da descentralização encontrou a União em uma postura defensiva. Ao perder recursos tributários na Constituição e responsabilizar-se integralmente, em um primeiro momento, pela estabilidade econômica, o governo federal procurou transformar a descentralização em um jogo de mero repasse de funções, intitulado à época de “operação desmonte”. 15 Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opinião pública, grande parcela dos encargos foi, sim, assumida pelos municípios. Mas isso aconteceu de modo desorganizado na maioria das políticas – a grande exceção foi a área de saúde. Ademais, a inflação crônica tornava mais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção programada das atribuições por parte dos governos locais. Criou-se, em suma, uma situação de incerteza, de decisões e transferências de verbas em ritmos inconstantes e de ausência de mecanismos que garantissem a cooperação e a confiança mútua. Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conformado na redemocratização: a descentralização depende agora, diversamente do que ocorria no regime centralizador e autoritário, da adesão dos níveis de governo estadual e municipal. Por isso, o jogo federativo depende hoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superiores de poder, como é natural em uma federação democrática. Em suma, seu sucesso associa-se a processos de coordenação intergovernamental. O principal problema da descentralização ao longo da redemocratização foi a conformação de um federalismo compartimentalizado, em que cada nível de governo procurava encontrar o seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento de tarefas e a atuação consorciada. Disso decorre também um jogo de empurra entre as esferas de governo. O federalismo compartimentalizado é mais perverso no terreno das políticas públicas, já que em uma federação, como bem mostrou Paul Pierson, o entrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na produção e gerenciamento de programas públicos, especialmente na área social. A experiência internacional caminha nesse sentido. Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coordenação da descentralização foram atacados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com sucessos diferenciados, maiores na primeira questão, mais irregulares na segunda. Antes de analisar as políticas em si, é preciso compreender as condições que permitiram as mudanças, bem como as que ainda criam obstáculos para a melhoria da coordenação federativa. IV. COORDENAÇÃO FEDERATIVA NA ERA FHC: AVANÇOS, DILEMAS E PROBLEMAS Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemos destacar sete mecanismos gerais adotados pelo governo federal para modificar e coordenar as relações intergovernamentais e o processo de descentralização. O primeiro deles refere-se ao fato de que o Brasil tinha iniciado o processo descentralizador antes de estabilizar a economia, o que tornou mais difícil a constituição de jogos mais coordenados e efetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a inconstância da transferência das verbas constitui um obstáculo em uma federação desigual como a brasileira. Ao reduzir a inflação, houve um impacto positivo para a regularização dos repasses de recursos aos governos subnacionais. Isso permitiu a abertura de uma nova rodada de negociação para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas públicas. Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e os objetivos de reformulação do Estado. Nesse sentido, o governo federal procurou, em primeiro lugar, reduzir todos os focos de criação de déficit público nos governos subnacionais, especialmente os de cunho predatório – isto é, que repassavam custos para a União. Para alcançar essas metas fiscais, houve uma atuação conjunta em prol da modernização da estrutura fazendária em vários estados – com recursos de 16 instituições internacionais – e, no segundo mandato, a aprovação de uma regra federativa de restrição orçamentária – a Lei de Responsabilidade Fiscal –, além da adoção de medidas de auxílio na área previdenciária. O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação estatal, ademais, incluiu a proposição de programas de demissão voluntária aos estados, com financiamento federal. Em um sentido mais institucional, o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) procurou ativar o Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, realizando reuniões mais constantes e cujo tema de debate era a modernização dasmáquinas públicas – isso durou apenas os primeiros quatro anos do período FHC. Por fim, destaca- se aqui o processo de privatização das empresas estaduais, no qual o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) teve um papel decisivo. O repasse de recursos condicionado à participação e à fiscalização da sociedade local foi um terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. De certo modo, houve uma continuidade da estratégia já prevista pela Constituição de 1988, particularmente na criação e ampliação do escopo dos conselhos de políticas públicas. Aprofundou-se essa concepção com a determinação de que certas transferências só seriam recebidas se existissem os Conselhos da área em questão. Além disso, o programa Comunidade Solidária optou pela produção de programas intrinsecamente vinculados à montagem de parcerias entre o Estado e a sociedade. O caráter democrático da descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a tônica dessa política. A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas de saúde e educação, com o PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef, respectivamente. Os mecanismos coordenadores aqui utilizados passaram pela combinação de repasse de recursos com o cumprimento de metas preestabelecidas ou a adoção de programas formulados para todo o território nacional. Trata-se de um modelo indutivo que transfere verbas segundo metas ou políticas-padrão estipuladas nacionalmente, procurando assim dar um perfil mais programado e uniforme à descentralização, sem retirar a autonomia dos governos subnacionais em termos de gestão pública. No caso do Fundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de recursos, experiência inédita na federação brasileira. A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foram adotadas políticas de distribuição de renda direta à população. O primeiro deles foi o PETI (Programa de erradicação do Trabalho Infantil), depois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o Programa BolsaEscola, a que se juntaram os programas Bolsa-Alimentação e o Vale-Gás. Buscou-se, com tais medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticas nacionais, as quais podem ser realizadas em parceria com outros instrumentos de gestão local, mas com a garantia de uma verba federal padronizada. O pressuposto dessas ações era que em problemas de origem redistributiva, particularmente em uma federação, é necessária a atuação do governo federal para evitar o agravamento das desigualdades. A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temática federativa foi outro mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com tais ações, ficou claro que o objetivo era fazer uma reforma institucional no federalismo brasileiro, mais do que implementar políticas de governo, embora o padrão de implementação dessas medidas não seja completamente coerente, além de responder a pressões políticas diferenciadas dentro do poder Executivo federal. Das 34 emendas constitucionais aprovadas de 1995 até junho de 2002, quinze delas afetavam diretamente o pacto federativo. Isso ocorreu nos seguintes terrenos: 17 a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e sua renovação posterior pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), como também pelas mudanças nas contribuições sociais, especialmente aquelas vinculadas à criação e à prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Foi por meio das Contribuições Sociais que a União aumentou suas receitas, sem precisar reparti-las com os outros níveis de governo. Também foram feitas modificações constitucionais que atingiram o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), garantindo sua progressividade, e no Imposto sobre Serviços (ISS), procurando efetuar aqui uma harmonização tributária entre os municípios; b) na organização político-administrativa, com a aprovação da “Emenda Jobim” (Emenda Constitucional n. 15), que tornou mais difícil a criação de municípios, com a aprovação de novos limites de gastos dos legislativos locais (Emenda Constitucional n. 25) e mesmo com a instituição da reeleição (Emenda Constitucional n. 16). Pouco se comentou acerca do impacto federativo da reeleição, mas o fato é que ela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um grande impacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, que antes passavam pela utilização dos legislativos, sobretudo a Assembléia Legislativa, como trampolim para postos executivos; c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatização nas áreas do gás canalizado e das telecomunicações, e a reformulação de vários artigos referentes à administração pública (Emenda Constitucional n. 19) e à previdência (Emenda Constitucional n. 20), com impacto enorme sobre a gestão governamental dos estados e municípios. Não por acaso, todas essas medidas passaram por intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf. ABRUCIO & COSTA, 1999; MELO, 2002) e d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda Constitucional n. 14), da chamada “PEC [Proposta de Emenda Constitucional] da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29) e do undo de Combate e Erradicação da Pobreza (Emenda Constitucional n. 31), que ajudou a modificar o padrão das políticas de distribuição de renda direta à população, tal como referido anteriormente. É interessante notar que tais reformulações constitucionais criam obrigações válidas não só para os próximos Presidentes, mas também para os futuros governantes de estados e municípios. Além das alterações constitucionais, várias leis complementares e ordinárias com impacto federativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei Kandir, que transformaram regras básicas das finanças públicas. Na verdade, essa nova legislação reordenou os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando as condições para que as relações intergovernamentais ganhem um sentido diferente do constituído na redemocratização, especificamente no que tange à convivência mais responsável entre os níveis de governo. A avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda de coordenação federativa do governo FHC. O Ministério da Educação (MEC) constituiu-se no principal agente dessa mudança, criando sistemas avaliadores que apresentam regularmente os resultados alcançados por essa política. Entretanto, esse vetor avaliador não se tornou uma regra geral do governo federal. Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos de ação na ordem federativa: 1) o combate à inflação e a respectiva regularização dos repasses, permitindo uma negociação mais estável e planejada com os outros entes; 2) a associação dos objetivos da reforma do Estado, como o ajuste fiscal e a modernização administrativa, com a descentralização; 3) condicionou a transferência de recursos à participação da sociedade na gestão local; 4) criou formas de 18 coordenação nacional das políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionais a assumirem encargos, mediante distribuição de verbas, cumprimento de metas e medidas de punição, também normalmente vinculadas à questão financeira, além de utilizar instrumentos de redistribuição horizontal no Fundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à população, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não se resolveria apenas com ações dos governos locais, dependendo do aporte da União; 6) aprovou um conjunto enorme de leis e emendas constitucionais, institucionalizando as mudanças feitas na federação, dando-lhes, assim, maior força em relação às pressões conjunturais e 7) estabeleceu instrumentos de avaliação das políticas realizadas no nível descentralizado, especialmente na área educacional. Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso também teve problemas gerais de funcionamento. Entre eles, estão a fragmentação de uma mesma política em vários órgãos e ministérios, como é o caso do saneamento básico; a pulverização das políticas de renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a falta de uma avaliação consistente na maior parte das áreas descentralizadas; a existência de poucos ou fracos fóruns intergovernamentais, a partir dos quais as políticas nacionais poderiam ser melhor controladas e legitimadas; a adoção de uma visão tributária perversa do ponto de vista federativo, seja pela recentralização de recursos, seja pela negligência em relação à harmonização tributária do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); a deterioração das políticas regionais, levada às últimas conseqüências com o fim da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o fracasso das políticas urbanas, afetando setores como habitação, saneamento, segurança pública e transportes metropolitanos. Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de três áreas de coordenação federativa contempladas nos anos FHC. O propósito não é avaliar substantivamente tais ações; o intuito desta parte do trabalho é entender do papel do governo federal em tais questões ou setores. IV.1. Coordenação federativa na área social: alguns exemplos A área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeada no espaço deste artigo. Por essa razão, escolhemos três de suas políticas, analisando como se deu a relação entre descentralização e coordenação federativa, sem fazer uma avaliação substantiva dos resultados alcançados. A saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaque no quadro federativo desde a Constituição de 1988. O modelo de descentralização proposto foi construído por muitos anos de lutas contra a centralização dos programas e da gestão dos recursos, com destaque para a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que constituíram, junto com lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que alguns denominam de “partido da saúde” – a que hoje se somam a burocracia setorial e diversos políticos, muitos com origem na área. A reforma desse setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e o estabelecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicos são a universalidade, a integralidade e a igualdade de assistência garantida a todos os brasileiros; preconizava ainda a descentralização da gestão do sistema e a participação da comunidade, com um tom fortemente municipalista. Na década de 1990, surgiram também as NOBs (Normas Operativas Básicas), que representaram um esforço de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios, além da criação de instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Elas tentavam definir, com a maior clareza possível, os custos e benefícios resultantes do cumprimento ou não das regras e critérios de repasse de recursos (principalmente no que se refere às condições 19 necessárias e suficientes ao repasse de recursos financeiros entre União, estados e municípios), prestação de contas e acompanhamentos das ações de saúde. A partir da NOB-96, o SUS procurou estruturar-se pela responsabilização de cada instância de governo. Estabeleceu-se que os gestores federal e estadual são os promotores da harmonização, modernização e integração do SUS. Essa tarefa acontece, especialmente, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no âmbito estadual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no âmbito nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas não cria incentivos financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999, p. 78). Foi nesse contexto de maior consistência da descentralização que o governo FHC estabeleceu suas políticas de saúde. Os problemas iniciais estavam vinculados mais à regularidade dos repasses e à garantia de fonte seguras e permanentes de recursos. Com a resolução destes últimos, a partir do fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos “carimbados” para a saúde, a descentralização aprofundou-se ainda mais. Entre 1995 e 1999, sem contabilizar as transferências, os gastos dos níveis de governo eram de 58% para a União, 16% para os estados e 26% para os municípios; após contabilizarmos as transferências, as cifras mudam substancialmente: 23% para a União, 25% para os estados e 52% para os municípios. Além disso, segundo dados de dezembro de 2001, 99% dos municípios estavam habilitados a uma das condições de gestão, sendo 89% em Gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão Plena do Sistema Municipal (MELO, 2002, p. 4). No campo da saúde, a descentralização e a coordenação federativa estiveram presentes em três questões. A primeira diz respeito ao fortalecimento das atividades intrinsecamente acionais. A primeira delas é a organização administrativa do Ministério da Saúde, que se reforçou com a melhoria dos sistemas de informação, em especial o Datasus. Houve também uma reorganização administrativa, com aperfeiçoamento de pessoal e constituição de duas agências reguladoras essenciais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Cabe reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à capacidade burocrática do governo federal. A política de saúde do governo FHC adotou iniciativas para reforçar as funções redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões mais pobres e menos populosas (COSTA, SILVA & RIBEIRO, 1999). A principal medida nesse sentido foi a criação, em dezembro de 1997, do PAB. Ao mesmo tempo em que procura reduzir as desigualdades de recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização, pois somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos. O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeira destina-se à atenção básica da saúde e garante a transferência automática, fundo a fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/ ano para todos os municípios brasileiros. A idéia era reduzir as desigualdades existentes entre as municipalidades, uma vez que aquelas com maior “capacidade produtiva” tendiam a receber mais recursos, ao passo que as pequenas, com rede incipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde, pouco recebiam. A parte variável do PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nos anos FHC. Sua distribuição de recursos só ocorria se os governos locais aderissem aos programas nacionais definidos como prioritários. Além disso, para receber tais recursos era preciso passar por todo o sistema de conselhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos. Foram seis os programas nacionais incluídos no PAB variável: Saúde da Família-Agentes Comunitários e Saúde, Saúde Bucal, Assistência Financeira Básica, Combate às arências Nutricionais, Combate a 20 Endemias e Vigilância Sanitária. A característica básica dessas políticas era a ênfase na prevenção e não na cura, lema histórico do movimento sanitarista. O município podia aderir a quantos quisesse e recebia os recursos de acordo com o estipulado em cada programa. Tais ações governamentais, ademais, envolvem capacitação dos gestores locais e a avaliação dos resultados, seja pelo sistema federal, seja pelo controle social ligado aos mecanismos de accountability intrínsecos ao SUS. Os resultados foram bastante satisfatórios no que se refere à adesão e, conseqüentemente, ao número de pessoas atingidas. No caso do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30% na população coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002, p. 517). A terceira medida foi a aprovação da chamada “PEC da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29), que determinou a elevação gradativa da porcentagem de recursos destinados a essa área nos três níveis de governo. Com isso, o problema que o governo Fernando Henrique Cardoso encontrou no início do seu primeiro mandato de instabilidade nos gastos com saúde foi, em boa medida, resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação, pois ele “engessa” mais o orçamento e os próprios governantes, que devem subordinar sua agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos constitucionais. Talvez tivéssemos de combinar melhor as regras intertemporais que orientam a ação dos entes federativos com mecanismos de negociação contínua de metas e resultados – e, nesse sentido, o Fundef está mais adequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez que tem metas e prazo para esgotar-se, ao mesmo tempo em que suas diretrizes ultrapassam o período de mais de um governante. Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à saúde. A coordenação intergovernamental, a despeito da força integradora do SUS e do “partido da saúde”, vez ou outra revela sua fragilidade, como ficou bem claro no episódio da dengue, em 2002, em que a briga dos governantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual ou federal. A maior lacuna desse sistema é a indefinição do papel das unidades estaduais. Nesse tópico, o governo federal precisa criar formas de indução à participação e à cooperação da mesma maneira que o PAB fê-lo em relação aos municípios. O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de consórcios entre os municípios, como forma de melhorar a prestação do serviço segundo problemas que são regionais e/ou porque a maioria dos governos locais não tem condições de resolver todos os seus problemas nessa área. fato é que a saúde é uma das áreas com maior número de consórcios. Em 2000, havia 141 consórcios de saúde, em 13 estados e 1 168 municípios e abrangendo uma população de 25.362.735 habitantes, segundo estudo da Organização Panamericana de Saúde e do Ministério da Saúde. Trata-se de um dado impressionante comparado ao que acontece nas outras políticas públicas. Porém, os mesmos números mostravam que no bloco das municipalidades que têm entre 10 mil a 20 mil habitantes a porcentagem de consórcios era de 23,5%, enquanto no estrato que vai de 20 mil a 50 mil, o contingente atingido era de 12,4%. Além do mais, nenhuma capital tinha consórcio, o que é um absurdo, sabendo que as regiões metropolitana sofrem freqüentemente do problema do “carona” – habitantes de cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais e não pagam nada por isso. Esse retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de indução à criação dos consórcios, na mesma linha do PAB. Mas, nesse caso, há um problema estrutural, revelado anteriormente: o 21 federalismo compartimentalizado, o municipalismo autárquico e a fragilidade jurídica desse instrumento dificultam a adesão a essa união intermunicipal. Na área de educação, uma política destacouse nos anos FHC como forma de coordenação federativa. Trata-se do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso Nacional em 1997, ele obriga os governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes da receita de impostos e transferências na educação, sendo que não menos de 60% deverão ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua implantação, em nível nacional, iniciou-se em 1o de janeiro de 1998. Dos recursos do Fundef, pelo menos 60% devem ser aplicados na remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no Ensino Fundamental público. Ademais, são definidas metas que balizam a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar que os estados, o Distrito Federal e os municípios devem dispor de um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério. O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculados na respectiva rede de ensino.Com isso, a distribuição de recursos obedece a um critério mais justo, vinculado à assunção efetiva de encargos. Ocorre aqui uma adequação melhor das transferências às atribuições, algo fundamental em uma federação, especialmente a nossa, em que a desigualdade e a politização dos critérios foram regularmente empecilhos à efetividade das políticas. O objetivo do governo federal com o Fundef foi corrigir a má distribuição de recursos entre as diversas regiões e dentro dos próprios estados, diminuindo as desigualdades presentes na rede pública de ensino. Trata-se, nesse sentido, de uma política vertical e horizontal de redistribuição de recursos, o que a faz única no federalismo brasileiro. Para assegurar o seu cumprimento, a lei exige a criação dos conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em cada esfera de governo, que têm por atribuição acompanhar e controlar a repartição, a transferência e a aplicação dos recursos do Fundo. O Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundef deve ser composto de, pelo menos, quatro membros, representando a Secretaria Municipal de Educação ou órgão equivalente; os professores e diretores das escolas públicas de ensino fundamental; os pais de alunos e os servidores das escolas públicas de ensino fundamental. Em comparação com a saúde, em que o papel do governo federal sempre foi muito forte, a ação da União na educação foi prejudicada pela forma confusa e movediça de distribuição de responsabilidades e competências. Nessa “torre de Babel”, a União cumpria as tarefas mais variadas, em todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionar a contento seus esforços para o Ensino Fundamental. Desse modo, seu comprometimento era mais voluntarista ou discricionário do que fruto de um plano de cooperação federativa na area educacional. Isso apesar de a Constituição definir expressamente a missão do governo federal: promover prioritariamente a universalização e a eqüidade no ensino público, incentivando, financiando e fornecendo assistência técnica a estados e municípios. O Fundef conseguiu reorganizar com sucesso a ação federal. Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de alunos matriculados como da municipalização do Ensino Fundamental, tarefas que não avançavam satisfatoriamente no período anterior. Em 1996, antes da implantação do Fundo, 63% das matrículas estavam na rede estadual, enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano depois de iniciado esse programa, já houve uma reversão significativa: 51% dos alunos pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal. 22 Outro dado revelador da mudança: em 1998 os governos municipais detinham 38,2% das verbas do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2% (GARSON & ARAÚJO, 2001, p. 2-3). Em resumo, o Fundef foi bem-sucedido no que se refere à questão federativa por ter melhorado a redistribuição de recursos (em termos verticais e horizontais), aumentado a esperança por simetria entre os níveis de governo, além de impulsionar uma municipalização mais planejada e a colaboração intergovernamental. Contudo, existem dois dilemas federativos não equacionados. O primeiro é o da fragilidade do controle, perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de corrupção em vários estados. Para tanto, é necessário estabelecer formas articuladas de fiscalização institucional entre o TCU, os tribunais de Contas do plano subnacional, o Conselho vinculado à política e o poder Legislativo. O Fundef, ademais, não foi montado sobre um aparato institucional capaz de discutir e revisar sua implantação tal qual há na área de saúde, em que a rede federativa é mais forte e legitimadora. Em termos democráticos, é essa rede que permite a continuidade e as alterações da política ao longo do tempo. Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacamos as políticas de transferência de renda à população. Iniciado com o PETI, passando pelo mal definido Programa de Renda Mínima até chegar ao bolsa-escola, o governo FHC gastou sete anos de seu mandato para construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na verdade, ao longo desse aprendizado, percebeuse que problemas redistributivos em uma federação, como já apontaram Paul Peterson (1995) e Paul Pierson (1995), só podem ser resolvidos com a intervenção ativa de políticas nacionais. A maior novidade em termos substantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a certos objetivos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasão escolar. A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprovação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Além disso, a partir de 2001, essa distribuição de renda diretamente à população foi mais bem coordenada pelo Projeto Alvorada, que estabeleceu uma focalização melhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo de utilização do índice de desenvolvimento humano (IDH) dos municípios. Todavia, o Projeto Alvorada e a noção mais coordenada de políticas de transferência de renda foram atropelados pelo ciclo eleitoral. Com a proximidade do pleito presidencial, o Presidente Fernando Henrique Cardoso também permitiu a proliferação de “bolsas” ou “vales” por vários ministérios, de modo que mais programas dividiram o bolo, muitas vezes com ausência de comunicação entre eles, o que levou ao desperdício e à dificuldade de avaliarem-se os resultados. IV.2. As políticas urbanas e de desenvolvimento Várias ações do governo FHC poderiam ser criticadas sob o prisma federativo, mas duas delas precisam ser comentadas devido ao enorme impacto que têm. A primeira diz respeito às políticas de desenvolvimento, analisadas pelo viés do federalismo. A estrutura institucional federal montada para tratar desses problemas foi bastante débil. O Ministério da Integração Regional constituiu-se apenas em um lugar para o fisiologismo político da pior espécie, afora ter tido uma grande instabilidade no seu comando, com trocas freqüentes de titulares, muitas delas derivadas de algum escândalo. Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimento regional, a Sudam e a Sudene. O Presidente Fernando Henrique Cardoso poderá dizer que foi ele quem desvelou toda uma estrutura profunda, construída por décadas,de corrupção. É óbvio que essa obra deve ser creditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensa participação da imprensa 23 e das instituições de controle, em particular aqui o Ministério Público Federal. Mas o fato cabal é que o governo FHC não teve um projeto claro de desenvolvimento regional. Ao contrário, desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmentou políticas para esta área e não propôs uma alternativa ao modelo anterior. O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa da Era FHC. O uso dessa forma de competição federativa é comprovadamente inócuo, pois a adoção dessas medidas não tem alterado a redistribuição regional dos recursos e, como mostrou o estudo de Sérgio Ferreira (2000), do Bndes, dos sete estados que mais utilizaram os instrumentos de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Bahia e Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na sua participação no PIB nacional entre 1985 e 1998. Sem dúvida, há fatores que fogem da alçada da União, como o comportamento estadualista das governadorias e os elementos da crise financeira dos estados causados por eles mesmos, resultantes do uso indiscriminado dos instrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o que os levou a procurar atrair empresas para angariar empregos e impostos futuros. Fica a pergunta: como o governo federal poderia ter atuado nessa questão? Primeiro, realizando políticas de desenvolvimento, a partir de decisões que sejam tomadas em fóruns nacionais, em nome da transparência, da justiça redistributiva e da igualdade entre os pactuantes. Em segundo lugar, faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma tributária. Porém, se partirmos da hipótese de que a reformulação do sistema de tributo é quase impossível de ser realizada, o papel do presidente Fernando Henrique deveria ter sido o de colocar no debate público esse problema e condená-lo. Em vez disso, concedeu empréstimo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, em uma batalha entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano em razão da pressão do grande cacique regional, Antônio Carlos Magalhães. Nesse caso, FHC perdeu para o legado oligárquico e patrimonialista do federalismo brasileiro. A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausência de políticas urbanas. É bem verdade que desde o governo Sarney elas não são prioritárias e na Era Collor houve um desmantelamento daquilo que havia. Mas o fato é que o Brasil dos anos 1990 assistiu a um processo de metropolização dos problemas, com a elevação do desemprego urbano, a piora no sistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da desigualdade e da pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo do que o vivido no meio rural), bem como o aumento da violência nas periferias. O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo momento em que não há políticas ou instituições capazes de dar conta dessa questão. A Constituição de 1988 foi movida por uma concepção descentralizadora municipalista, por um modelo federativo compartimentalizado e por uma aversão ao centralismo, justificável pelo impacto negativo que teve o “unionismo-autoritário” desenvolvido pelo regime militar. Contudo, quando os problemas não podem ser resolvidos sozinhos pelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisam também da intervenção ativa de uma política nacional, o desenho institucional e a cultura política federalista predominante não têm respostas adequadas. O resultado disso torna-se claro no modelo de região metropolitana (RM) concebido na Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foram esvaziadas e sua conformação legal, transferida para os estados, os quais, conforme trabalho realizado por Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000), não priorizaram essa questão no seu desenho político- administrativo. Sem uma instância metropolitana e/ou formas que levem à formação de colegiados metropolitanos – com os municípios envolvidos, mais os governos estadual e federal, além da sociedade civil local –, será muito difícil resolver os dilemas dos grandes centros urbanos. Uma ação nacional passaria pela 24 revisão da legislação sobre as regiões metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O governo federal não tratou deste assunto nos anos FHC. Para além da questão mais geral, o fato é que a União não constituiu políticas adequadas para a grande maioria dos problemas metropolitanos. Isso fica claro ao observarmos o desenho institucional do poder Executivo federal em relação a essa temática. Primeiro, repassou tal preocupação à Secretaria de Políticas Urbanas, fraca institucional e politicamente, destinada a obter apoios clientelistas no Congresso Nacional. Some-se a isso o fato de que a maioria das políticas urbanas dividia-se por vários ministérios – só o saneamento estava presente em sete deles, mais a Secretaria de Políticas Urbanas. A fragmentação excessiva inviabilizou o alcance de resultados satisfatórios. As principais políticas de cunho urbanometropolitano fracassaram. Poderíamos citar a segurança pública, em que o governo federal descobriu tarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveria atuar em rede na coordenação das polícias. No caso do saneamento, houve um problema regulatório, com a crise das empresas do setor e a errática (e equivocada) trajetória de privatização e, em termos de investimentos, embora eles tenham-se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer mais no momento seguinte devido às restrições de acordo feito com o Fundo Monetário Internacional FMI). Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Federal, principal financiadora de infra-estrutura urbana, não firmou nenhum contrato de financiamento na área de saneamento entre 1999 e 2000 (MELO, 2002, p. 8). Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências e atribuições dos três níveis de governo, a coordenação federativa teria que passar, como foi feito na saúde e com o Fundef, pela elaboração de políticas federais indutoras, a partir das quais os governos subnacionais fossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e resultados. Além disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticas públicas tem sido maior conquanto consigam desenvolver suas características intersetoriais, como ocorre no bolsa-escola, por exemplo. Isso é válido para vários setores do desenvolvimento urbano, em particular o Saneamento, que poderia articular-se mais com a saúde, fortalecendo os programas desta área (idem, p. 25). O Presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem de um mandato a outro, que sua política urbana ia de mal a pior. Por isso cogitou de criar um ministério específico e forte para essa área, mas não teve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a pena citar a descrição de Caco de Paula a respeito desse processo: “Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardoso hegou a anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano, uma superpasta que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de recursos da Caixa Econômica Federal e que, com acordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater os grandes déficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicos em urbanismo como por empresários do setor imobiliário esse ‘Ministério da Moradia’ – ou ‘Ministério da Cidade’ – passou a ser visto como uma possibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como já acontecera outras vezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo de muitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados do Palácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrez ministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso abandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado desde o fim dos governos militares, de fazer da questão urbana a grande prioridade da ação federal, novamente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002, p. 419). 25 V. OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA A Era FHC teve um papel importante na mudança de alguns padrões federativos construídos ao longo da redemocratização. Em especial, teve grande êxito no ataque ao modelo predatório vinculado ao estadualismo, reduzindo as formas de repasse de custos financeiros entre os entes e colocando fortes limites à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos. Destaque deve ser dado também para outros quatro elementos positivos: o reforço do controle social vinculado à descentralização; a adoção de políticas de coordenação intergovernamental nas políticas de saúde (com o PAB) e de educação (com o Fundef); criação de programas nacionais de transferência direta de renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, montou programas de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das políticas, fornecendo um feedback essencial à União para coordenar a descentralização. Os limites e os fracassos do período Fernando Henrique Cardoso são pensados aqui como o universo que compõe os desafios federativos do governo Lula. Cabe assinalar, primeiramente, três ações institucionais positivas tomadas pelo novo Presidente: o revigoramento da Secretaria de Assuntos Federativos, que nunca teve o devido poder nos anos FHC, a criação do Ministério das Cidades, unificando todas as políticas urbanas em um só local, além da reestruturação da política regional, com o Ministério da Integração Nacional. Duas medidas legislativas também apontaram para o rumo certo. Uma foi a continuação da reforma da previdência, agora mais focada no setor público, com impacto favorável à modernização dos governos estaduais – e a forma cooperativa pela qual Lula atuou junto aos governadores foi um dos pontos altos de sua gestão. A outra medida revela a assunção de uma nova visão das relações intergovernamentais. Trata-se do projeto que regulamenta os consórcios públicos, que diminuirá substancialmente os efeitos perversos do municipalismo autárquico. Permanece uma lista longa de problemas de coordenação federativa para o governo Lula. Entre os principais, destacamos: 1) mudanças no sistema tributário, principalmente na lógica de cobrança do ICMS, a fim de neutralizar os efeitos perversos da guerra fiscal; 2) o fortalecimento dos mecanismos nacionais de avaliação de políticas públicas, tarefa bastante atrasada no atual momento; 3) auxílio na reformulação e criação de capacidades administrativas de estados e municípios, processo que teve um bom impulso no campo dos estados, com a criação do Programa Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do Distrito Federal (Pnage). Além disso, é preciso estabelecer redes e interconexões de longo prazo entre as burocracias federal, estaduais e municipais, o que favorecerá um planejamento melhor das políticas nacionais e regionais; 4) montagem de uma nova ordem regulatória e coordenadora das principais políticas urbanas, com destaque para o saneamento, a segurança pública, a habitação e o transporte. Mais uma vez, o governo Lula tem andado lentamente, quando não erraticamente, na formulação e negociação dessas políticas. Vale frisar aqui que a discussão sobre o papel e o funcionamento das regiões metropolitanas precisa estar ligada a esses assuntos; 5) ampliação e reforço dos mecanismos coordenadores nas áreas de educação – com a elaboração e aprovação do Fundeb – e saúde – com a indução para ações mais regionalizadas; 6) aprimoramento das políticas nacionais de transferência de renda, vinculando e controlando mais o repasse de recursos a políticas de capacitação para a cidadania plena; 26 7) adoção de políticas de desenvolvimento que reduzam, efetivamente, as disparidades regionais do país. As boas intenções iniciais, inclusive no campo institucional, não tiveram ainda resultados palpáveis e por fim 8) o fortalecimento dos fóruns federativos de discussão e negociação entre os níveis de governo. Decerto que os anos FHC trouxeram muitos avanços para o nosso federalismo, mas eles ocorreram em uma ação direta, informal e por vezes fragmentada do governo federal junto aos entes subnacionais. O aumento da consciência da importância da temática da coordenação federativa só ocorrerá com maior sustentabilidade quando instituições como o Senado, o Conselho de Gestão Fiscal e governos metropolitanos devem ser ativados para evitar o reforço perverso da dicotomia entre descentralização e centralização. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANCHES, S. 1988. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-34. ABRUCIO, F. L. 1998. Os barões da federação : os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo : Hucitec. _____. 2000. Os laços federativos brasileiros : avanços, obstáculos e dilemas no processo de coordenação intergovernamental. São Paulo. Tese (Doutorado em Ciência Política). Universidade de São Paulo. _____. 2004. 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Para tanto, o trabalho está estruturado da seguinte maneira: na primeira seção, discutimos o conceito de “federalismo”, apresentamos as suas características e algumas formas de classificação das distintas experiências internacionais. Na segunda, apresentamos, brevemente, a evolução do modelo federalista brasileiro. Na terceira e última seção, analisamos algumas maneiras de se periodizar a experiência de gestão metropolitana no país, desde o modelo implantado no início da década de 1970, classificando os distintos modelos e dando destaque às modalidades de relações intergovernamentais prevalecentes e aos seus impactos. Nas breves considerações finais, é resgatada a inescapável interdependência entre gestão metropolitana e o padrão de relações intergovernamentais vigente hoje no país. 1 -Federalismo: o que é. Em décadas recentes, os estudos sobre o federalismo ganharam relevo na agenda de pesquisa da ciência política. Apesar da considerável produção de trabalhos realizados até o momento, essa área de pesquisa ainda se defronta com desafios que podemos caracterizar como básicos. Um desses desafios – talvez o mais fundamental, mas nem por isto o menos problemático – é estabelecer um consenso minimamente razoável sobre o próprio significado de federalismo. Como exemplo do grau de dificuldade envolvido nessa definição conceitual, Stewart listou 497 concepções diferentes para o termo (apud Wrigth, 1997: 103). É evidente que delimitar um campo de estudo com tal imprecisão torna-se bastante complicado. Feita essa ressalva inicial, discutiremos, nesta seção, o significado de federalismo, apontando alguns de seus dilemas. Etimologicamente, a palavra federalismo vem do latim faedus, que significa contrato. Em sua dimensão histórica, o termo diz respeito a contratos estabelecidos por unidades políticas para diversos fins. Especificamente, as primeiras experiências federativas do mundo moderno tinham como objetivo aumentar a capacidade de defesa militar e potencializar as condições de concorrência econômica de determinadas sociedades políticas. Esses contratos procuram viabilizar a convivência de unidades políticas, sendo constituídos por uma diversidade de motivos, como identidade cultural, lingüística, étnica e regional. Esses acordos coletivos estabelecem obrigações mútuas entre os seus componentes. Em seu sentido mais contemporâneo, o federalismo envolve a articulação de partes em “uma forma de organização territorial do poder, de articulação do poder central com os poderes regional e local”, que consiste em “um conjunto de complexas alianças, que buscam a compatibilização de valores e interesses entre atores políticos” (Afonso e Barros, 1995: 57). Montesquieu, referindo-se às “repúblicas federativas” de seu tempo, afirma que o federalismo é uma “sociedade de sociedades”, que pressupõe “uma convenção pela qual vários corpos políticos consentem em tornar-se cidadãos de um Estado maior que querem formar.” (1979: 125). Tal definição enfatiza a possibilidade de expressão das vontades dos participantes envolvidos no 29 acordo federalista. Em outras palavras, o federalismo envolve a partilha de poder entre os níveis de governo. Nesse aspecto, o federalismo se relaciona positivamente com uma idéia específica de democracia, pois visa garantir a expressão e a autonomia de vontades e interesses não do povo genericamente, mas de grupos parciais. Como muitos desses grupos podem ser minoritários no contexto de uma unidade política, a adoção do critério das decisões por maioria deixa de ser adequada, já que implicaria a submissão dessas minorias aos interesses e vontades dos grupos majoritários. Os arranjos federalistas têm, nesse sentido, características consociativas, pois adotam certos mecanismos que limitam o poder das maiorias e protegem os interesses das minorias. (Lijphart, 1982) Uma característica central do federalismo é garantir simultaneamente a unidade e a diversidade. Ao mesmo tempo em que envolve uma unidade de partes que pactuam uma ação comum, estabelece um espaço para a afirmação dos valores e interesses de cada uma delas. Nesse sentido, o federalismo é fundado em uma ambigüidade, já que a dimensão da unidade se estabelece no contexto da diversidade. São dois processos que se desenvolvem simultaneamente: a disposição de se unir para propósitos comuns, mantendo simultaneamente a integridade das partes. Para Elazar, essa ambigüidade significa “querer ter um bolo e comê-lo ao mesmo tempo” (1987: 64). Conduzindo a discussão para um enfoque menos abstrato, há uma dimensão formal do fenômeno, expressa no desenho das instituições, e uma dimensão sociológica, que se refere à diferenciação real de uma sociedade por critérios de cultura, língua, identidades regionais ou outros aspectos. Relacionar a existência de identidades sociais, culturais e políticas específicas com as características institucionais de um sistema é algo complexo, pois dessas identidades podem derivar arranjos institucionais diferenciados. Uma sociedade diversa em termos de identidades, por exemplo, pode expressar ou não essas diferenças em termos institucionais. Como afirma Baldi, o “federalismo é um exercício de criatividade institucional e não é necessariamente reprodução de um desenho institucional” (1999: 6). Essa diversidade de formatos que podem assumir os arranjos federais é, em grande medida, responsável pela ambigüidade do conceito. Se não há divergências na afirmação de que federação envolve um contrato que visa manter simultaneamente diversidade e unidade, a controvérsia torna-se evidente com a existência de uma grande variedade de arranjos institucionais denominados de federação, independente das suas diferenças. Essa falta de consenso sobre a definição dos traços caracterizadores de um modelo federal leva diversos autores a contrastar federalismo com conceitos afins. Para alcançar alguma unidade conceitual, esses autores adotam a estratégia de definir o significado de federação através da demarcação de sua diferença com fenômenos afins. Essa forma de conceituar federalismo trabalha com as distinções entre os modelos unitário, federativo e confederativo. O Estado unitário diferencia-se do federalismo por se caracterizar pelo poder concentrado, que se impõe como única referência de uma sociedade política, excluindo a existência de focos parciais de poder. O Estado federal, ao contrário, pressupõe a existência de partes com poder de decisão. Por outro lado, a confederação compartilha com o federalismo a característica de que ambas fazem referência a um contrato entre unidades políticas para lograr objetivos comuns. Na federação, no entanto, uma parte da soberania é repassada ao órgão central, ao passo que na confederação a soberania das unidades é plena e o órgão comum representa a soma das vontades das partes, sem o reconhecimento da existência de qualquer poder superior sobre elas. Segue-se que numa confederação é possível a renúncia das partes ao pacto, conforme seus interesses momentâneos. Ao contrário, no federalismo nenhum membro tem o direito de renunciar unilateralmente ao pacto político inicial e seguir o seu caminho individualmente, pois a unidade não pode ser questionada pelas partes. 30 O problema dessa forma relacional de definir o federalismo é que não existem critérios que estabeleçam com maior precisão os limites entre um modelo e outro. Essa dificuldade de definir com precisão as características de cada um dos modelos aumenta em tempos recentes, pois os processos políticos contemporâneos impactam, em graus variados, esses modelos, no sentido de tornar ainda mais confusas suas características básicas. Atualmente, a distribuição territorial do poder tem configurado sistemas federais com tendências de fortalecimento do centro e, ao mesmo tempo, sistemas unitários que abrem espaços para a expressão de autonomias parciais. Como aponta Stepan (1999), a distinção entre sistemas unitário e federal tem perdido capacidade de descrever e classificar a complexidade que o fenômeno do federalismo tem assumido. Uma proposta de processar esse conjunto de dificuldades foi fornecida por Baldi (1999) e Stepan (1999), que tratam o federalismo no contexto de um continuum que vai dos sistemas que contêm restrições mínimas ao centro de poder (least center-constraining) aos que contêm restrições máximas (most center-constraining). Um continuum que em um extremo é representado pelo sistema unitário, passa pelo sistema federal e termina, no outro pólo, representado pela confederação. Essa idéia de continuum permite contemplar as diversas variações institucionais entre os sistemas unitário, federal e confederal, a partir de um critério que, de alguma forma, permite ultrapassar formulações rígidas dos modelos, baseadas em definições de suas instituições características. A idéia de center-constraining permite avaliar em que medida as instituições garantem a autonomia das partes, pela restrição do poder do centro. Apesar do amplo leque de instituições que podem ser consideradas como características de um sistema federal, há pelo menos um consenso considerável sobre os seus aspectos mais característicos. Mesmo assim, a variedade de possibilidades de combinação desses traços institucionais e o resultado diversificado do seu funcionamento, em cada caso específico, relativizam o alcance desse acordo analítico inicial. Sem pretender desenvolver essas alternativas possíveis, vamos apresentar a seguir os principais traços institucionais considerados como caracterizadores do federalismo, dada a sua função de center-constraining: Um sistema federal tende a ser dotado de referência constitucional, tanto do governo central como dos outros níveis de governo, que proteja a soberania e a autonomia dos entes. As regras que definem o pacto devem ser garantidas por um poder Judiciário forte e independente, com a função de arbitrar a distribuição de poder definida constitucionalmente e dirimir os conflitos entre os entes. Deve haver uma distribuição de autoridade para legislar reservada tanto ao governo federal quanto às unidades federadas. Nem sempre essa distribuição das prerrogativas de tomada de decisão sobre políticas públicas, ou policy scope, é definida pela lei. Em vários casos, depende de negociações e barganhas ad hoc. Existência de bicameralismo, com a presença de uma câmara alta, com representação territorial, ao lado de uma câmara baixa representativa da população. Como se apontou anteriormente, o sistema federativo adota mecanismos de proteção das minorias, como sobre-representação das pequenas unidades e exigências de maiorias ou super-maiorias para efetuar amplas mudanças políticas que afetem a distribuição da autoridade política das partes. O pacto federal requer uma distribuição de recursos financeiros que contemple, de alguma forma, os interesses dos entes envolvidos, habilitando-os a decidir sobre a alocação de seus próprios 31 recursos. A questão fiscal é um aspecto central para a configuração de um sistema federal, na medida em que as alianças “são soldadas em grande parte por meio dos fundos públicos” (Afonso e Barros, 1995: 57). A definição desses aspectos institucionais é relevante, mas, de toda a forma, insuficiente. Como se disse, as definições que buscam captar o fenômeno pela sua dimensão formal, ou institucional, podem resultar em equívocos. Mais do que as características institucionais, os processos políticos devem ser considerados na caracterização de um sistema federal, pois “o federalismo não é uma distribuição particular de autoridade entre governos, mas sim um processo, estruturado por um conjunto de instituições, por meio do qual a autoridade é distribuída e redistribuída.” (Rodden, 2005: 17). De fato, a real distribuição do poder territorial vai além do desenho institucional e das regras constitucionais. Como aponta Elazar (1987), muitos países com estruturação institucional federal não o eram na realidade: essas estruturas formais mascaravam uma concentração de poder de fato. Assim, “no estudo dos governos federativos é sempre conveniente estudar as forças reais que estão por trás da ficção em um sistema político” (Ricker apud Stepan, 1999: 24). Em um esforço de fornecer uma definição mais abrangente e menos equívoca do objeto em exame, Wrigth (1997) propõe o abandono do termo federal e, em substituição, adota o termo Relações Intergovernamentais (RIGs). Sem pretender avaliar aqui o alcance de sua proposta, vale apresentar os três modelos de RIGs que ele propõe, já que contribuem para classificar os padrões de autoridade estabelecidos entre os entes governamentais. Em primeiro lugar, ele define a autoridade coordenada como caracterizada pela existência de limites claros e bem determinados separando o governo nacional dos governos subnacionais. No caso, os níveis de governo são independentes e autônomos, sendo unidos apenas tangencialmente, e as ações dos entes são separadas, reproduzindo o que se denomina de federalismo dual. Esse modelo estaria superado pelas condições sociais e políticas hoje existentes, já que a complexidade dos problemas sociais inviabiliza ações independentes e autônomas por parte dos entes governamentais. Em segundo lugar, outro padrão é o que ele chama de autoridade inclusiva, caracterizado por relações hierárquicas: os estados e localidades se submetem ao governo federal, que é quem governa. Envolve a idéia de uma sociedade nacional, que busca assegurar propósitos nacionais, através da formulação centralizada de seus objetivos. Os governos intermediários e locais dependem das decisões nacionais, caracterizando subordinação e atrofia de sua autonomia. Finalmente, Wrigth propõe o padrão que melhor descreve as relações de poder dos sistemas políticos atuais, caracterizados pela crescente complexidade. O modelo de autoridade superposta é caracterizado por interações negociadas entre os entes. Nesse caso, as áreas operacionais dos níveis de governo incluem simultaneamente unidades e funcionários nacionais, estaduais e locais, cuja autonomia ou independência individual é relativamente pequena, pois o poder de influência de cada ente é limitado e a autoridade é comumente negociada. Permanecem áreas modestas de autonomia, pois as políticas não são de uma só entidade governamental, mas envolvem relações de negociação e regateio entre múltiplas entidades governamentais. Assim, nesse caso as RIGs são caracterizadas pela busca de concertação: quem recebe ajuda deve também aceitar condições e prestar contas do seu desempenho. Isso não significa que fica estabelecida de antemão a preponderância de relações cooperativas ou competitivas, pois a preponderância de uma ou outra depende das condições de cada caso específico. Esse modelo envolve o intercâmbio de recursos e influência através dos limites governamentais, tornando possível alterar as relações de autoridade entre os participantes. O poder, portanto, é disperso e sua distribuição desigual. Reforçando a atualidade do modelo de autoridade superposta, Rodden (2005: 20), no mesmo sentido, nota que 32 as federações têm evoluído para contratos incompletos e em constante renegociação, pois na maioria dos casos o centro depende das províncias para implementar suas políticas e não pode efetuar mudanças sem o consentimento das unidades constituintes. 2- O Federalismo no Brasil A primeira experiência federal do mundo moderno se desenvolveu no contexto do surgimento dos Estados Unidos da América, no final do século XVIII. Desde então, esse modelo vem sendo adotado progressivamente em diversas partes do mundo. Elazar, por exemplo, calcula que 40% da população mundial vivem em países federais (1987: 6). Inspirando-se na experiência norteamericana, o Brasil adotou a forma federativa de distribuição de poder territorial com a proclamação da República, em 1889. O federalismo, no Brasil, significou assumir no plano das instituições a efetiva fragmentação do seu poder territorial, que contrastava com as intenções de centralização política e administrativa do poder central desde o período colonial. Num território das dimensões do brasileiro, com uma grande dispersão populacional, o desejo do centro de exercer o controle político sobre o território sempre apresentou dificuldades para ser concretizado. Se o federalismo brasileiro não reflete clivagens étnicas, lingüísticas e religiosas, é inegável a importância do papel das elites regionais para o entendimento da política brasileira: as regiões, os estados e os municípios formam, historicamente, sistemas de poder que, dependendo do momento, são reconhecidos ou não pelas instituições governamentais formais. Sendo assim, ao longo do tempo, a distribuição territorial do poder no Brasil vai configurando momentos de maior autonomia dos entes frente ao governo central e momentos de afirmação deste frente aos estados e municípios. O federalismo brasileiro surgiu como resultado das pressões de elites regionais para o reconhecimento da sua autonomia. Ao contrário do caso clássico dos EUA, cujo federalismo resulta da associação de unidades políticas antes independentes entre si (come together type ou processo centrípeto), no caso do Brasil o federalismo resulta da adequação dos interesses do centro aos interesses regionais, como forma de manter a integridade do Estado nacional, ameaçada pelas reivindicações de autonomia das regiões (hold together type ou processo centrífugo). De 1889 a 1930, instaura-se no Brasil um período de “federalismo oligárquico”, em que oligarquias regionais, especialmente dos estados mais poderosos, afirmavam seu poder frente ao governo central. Com a Revolução de 1930, inicia-se um novo momento de tendências centralizadoras, que culmina com o golpe do Estado Novo, em 1937, que significou a centralização do poder no governo central e o fim do regime federativo. Nesse período, o Estado central brasileiro consolida-se, de fato, como o principal foco de poder sobre o território. Os estados funcionavam praticamente como agências administrativas do governo central. Em 1945, o regime federativo foi restabelecido, instaurando uma lógica de competição de elites políticas regionais pelo poder central, contrabalançada pelo grande poder de decisão das burocracias federais consolidadas no período anterior. Com o regime autoritário instaurado pelos militares em 1964, inaugura-se um novo período de centralização do poder, caracterizado pela existência de um federalismo “meramente nominal”, já que o poder do governo central passa a limitar fortemente a autonomia dos entes federados. Expressão dessa tendência centralizadora foi a reforma fiscal de 1966, que centralizou recursos públicos e políticos de maneira inédita, instaurando uma situação de forte dependência política e financeira dos governos subnacionais ao governo central. 33 Na década de 1980, um forte movimento pela democratização política do país instaura um período de tendências descentralizadoras, com implicações para a questão federativa e para a problemática da gestão metropolitana, como veremos na próxima seção do trabalho. As pressões pela democratização política do país incorporavam movimentos de afirmação de estados e municípios frente à característica hipertrofia do poder central do período autoritário. A demanda por democracia envolvia, como um dos seus aspectos centrais, a restauração de um federalismo de fato, através da descentralização política, fiscal e administrativa. A Constituição Federal de 1988, elaborada com ampla participação de diversos setores da sociedade, inclusive de prefeitos e governadores, consagra uma maior autonomia administrativa, fiscal e política para os estados e, principalmente, para municípios. O federalismo atual é, no Brasil, caracterizado pela existência de três níveis autônomos de governo, pois os municípios são considerados entes federativos com status similar à União e aos estados, configurando uma federação trina. São 26 estados, o Distrito Federal, e cerca de 5.560 municípios, todos com autonomia político-administrativa. Todos os Executivos e Legislativos estaduais e municipais são eleitos pelo voto direto do eleitorado, estabelecendo assim três níveis de governo legitimados pelo voto popular. Em termos institucionais, o federalismo brasileiro cumpre os requisitos tidos como característicos de uma federação. A Constituição de 1988 é a mais detalhada de todas as constituições brasileiras, tratando, entre outros aspectos, da distribuição territorial do poder. Os estados e municípios também elaboram as suas constituições (as Leis Orgânicas Municipais, no caso desses últimos). O Supremo Tribunal Federal funciona como um tribunal da federação, dirimindo conflitos sobre as prerrogativas dos níveis de governo. No plano central, o Brasil adota um sistema legislativo bicameral, com uma câmara territorial, o Senado, onde todos os estados elegem três representantes, independente da dimensão do seu eleitorado. Na Câmara dos deputados, que representa a população, há também sobre-representação dos estados menores, já que nenhum estado pode ter mais do que 70 e nem menos que 8 deputados federais. Tais regras buscam potencializar o poder de pressão dos entes mais fracos. Os legislativos estaduais e municipais, no entanto, são unicamerais. O sistema partidário funciona, em boa medida, como espaço de expressão dos interesses federativos, já que falta um sistema partidário forte e disciplinado e com orientação nacional. Os partidos, no geral, são fragmentados pelos interesses regionais. Definir o federalismo brasileiro como descentralizado ou centralizado pode levar a equívocos. As relações federativas no Brasil são hoje mais complexas, aproximando-se do modelo de autoridade superposta de Wrigth. Poucas competências exclusivas são alocadas para os estados e municípios. A Constituição de 1988 estipulou, por exemplo, um amplo leque de funções concorrentes entre as três esferas de governo (Souza, 2006a). Além disso, a descentralização, no Brasil, foi implementada de forma bastante diferenciada nos distintos setores de políticas públicas (Arretche, 2000; Almeida, 1995). Cada área de política, como saúde, educação, assistência social, habitação e etc., tem suas características próprias, em termos das relações federativas. Conforme aponta Souza (2006a), ao estabelecer as responsabilidades comuns aos três entes federativos, ficou nítida a opção por uma “divisão institucional do trabalho” compartilhada, que repercutiu num amplo e complexo sistema de relações intergovernamentais. A iniciativa indica que se buscava ampliar o caráter cooperativo do federalismo brasileiro. No entanto, ainda hoje predomina a competição, tendo em vista, de um lado, as desigualdades financeiras, técnicas e de gestão dos governos subnacionais, que possuem capacidades distintas de implementação de políticas públicas, e, de outro lado, certa fragilidade dos mecanismos constitucionais ou 34 institucionais que regulam as relações intergovernamentais e estimulam a cooperação. Na verdade, o federalismo tripartido brasileiro torna as relações intergovernamentais particularmente complexas, restando o desafio de ampliação de seu caráter cooperativo, o que fica evidente no caso da gestão metropolitana, como veremos a seguir. 3- Os três tempos da gestão metropolitana no Brasil e as mudanças no padrão de relações intergovernamentais na Federação O Brasil vive, hoje, um momento de busca de superação dos efeitos perversos da autonomização dos municípios, chancelada pela Constituição Federal de 1988, que redundou na cristalização de um “municipalismo autárquico” (Abrucio & Soares, 2001) ou de um “municipalismo a todo custo” (Fernandes, 2004). Iniciativas de busca de “desfragmentação” da gestão pública no país têm sido desenvolvidas em várias áreas, como, por exemplo, na constituição de uma diversidade de consórcios intermunicipais, de comitês de bacias hidrográficas, de fóruns regionais e metropolitanos de múltiplos propósitos, entre outras ações conjuntas, iniciadas pelos próprios municípios e/ou pelas demais esferas da Federação. Tal processo tem também levado à revalorização do planejamento metropolitano, na busca do desenvolvimento regional e/ou de solução para problemas comuns, que transcendem as fronteiras municipais. Alberto Lopes sintetiza com precisão o que se convencionou denominar como o “problema metropolitano”, que, certamente, longe está de ser exclusividade brasileira: “A especificidade do metropolitano decorre do fato de os elementos do espaço (meio ecológico, infra-estruturas, sujeitos sociais) guardarem uma interdependência estreita, sistemática e cotidiana, manifesta de forma concentrada em uma determinada fração do território que se encontra fragmentado pela divisão político-administrativa vigente” (Lopes, 2006:139). No Brasil, é cada vez mais perceptível o fato de as metrópoles terem passado a concentrar a chamada questão social, até porque 41,23% dos brasileiros viviam, em 2000, em áreas metropolitanas, sendo que tais áreas concentravam 43,51% da população economicamente ativa. Cabe destacar, também, que as taxas de desemprego nessas áreas são maiores que a média brasileira (Moura et al, 2003). No cerne da problemática metropolitana está o dilema da ação coletiva, no sentido da necessidade de promoção da cooperação inter e intra-governamental, bem como intersetorial, que requer a articulação entre interesses e preferências distintos, defendidos por atores e agências estatais, societais, semipúblicas e privadas, que desfrutam de variados graus de autonomia, mas atuam sobre o mesmo espaço territorial (Souza, 2006b). O objetivo maior das instituições encarregadas da gestão metropolitana é, portanto, a superação do dilema da ação coletiva. Desde 1973, quando foram instituídas as oito primeiras regiões metropolitanas (RMs) do Brasil, é necessário distinguir a vigência no país de três formas diferentes de institucionalização da cooperação intergovernamental, quais sejam: (a) o modelo compulsório altamente hierarquizado, imposto pelo governo federal no início da década de 1970, de forte viés “estadualista”; (b) o modelo do “hipermunicipalismo simétrico”, instituído após as Constituições Estaduais de 1989; e (c) o modelo de uma integração supostamente “negociada”, que está hoje em gestação ou em processo de implementação em algumas RMs do país, como a de Belo Horizonte. 35 No Brasil, as regiões metropolitanas foram instituídas através da Lei Complementar No. 14, de 1973, que, ao regulamentar disposições incorporadas ao texto constitucional pela Emenda No.1, de 1969, criou as oito primeiras RMs do país. Sob o signo do planejamento tecnocrático centralizado, a legislação que institucionalizaria as regiões metropolitanas no país, mesmo buscando priorizar a concertação dos atores estatais para a provisão de serviços comuns, tratava as RMs principalmente como regiões de desenvolvimento e não como regiões de serviços (Moraes, 2001). Para o regime militar instaurado em 1964, o território tinha uma dimensão estratégica (Lopes, 2006). A institucionalização das RMs naquele período deve ser vista como “parte da política nacional de desenvolvimento urbano, relacionada à expansão da produção industrial e à consolidação das metrópoles como lócus desse processo” (Moura et al, 2003:35). Nas palavras de Moraes, “a intenção do Estado ao institucionalizar as RMs não era partir de, mas construir uma mesma comunidade socioeconômica, do ponto de vista da criação de condições favoráveis ao desenvolvimento da relação capital/produção/trabalho em pontos estratégicos do território nacional” (2001:341). A Lei Complementar No.14, de 1973, logo em seu artigo 1º, determinou os municípios que fariam parte das RMs que eram instituídas, conformando o caráter compulsório do modelo de gestão metropolitana originariamente implantado. Tal determinação desconsiderou os distintos graus de comprometimento dos municípios-membros no processo de metropolização. Esse modelo de concertação compulsória, altamente hierarquizado, caracterizava-se por um forte viés “estadualista”, sendo por vezes caracterizado como “simétrico”, em função do mesmo tratamento dispensado às RMs instituídas, independentemente de suas singularidades. Diversas foram as críticas endereçadas a tal arcabouço legal, as quais enfatizavam: a ambigüidade e imprecisão de seus objetivos e instrumentos; a ausência de previsão dos recursos financeiros que viabilizariam a gestão metropolitana; a rigidez do modelo institucional a ser implantado em realidades heterogêneas; sua visão funcionalista e centralizadora, que não atentava para as desigualdades intra e inter-regionais, para as distintas vocações, potencialidades e políticas locais e para o impacto diferenciado das ações regionais sobre os municípios ou sobre parte deles; a excessiva tutela dos técnicos da administração federal sobre os estudos preliminares para a implantação de tal forma específica de regionalização; a desvalorização do papel dos municípios e a grande concentração do poder decisório em uma esfera estadual fortemente controlada pelo governo federal, entre outras (Pacheco, 1995, e Moraes, 2001). A despeito da pertinência de tais críticas, a razão principal do insucesso destas experiências pioneiras de gestão metropolitana deve ser buscada na precariedade do equacionamento das relações intergovernamentais no âmbito metropolitano, imprescindível para a garantia do comportamento cooperativo dos principais atores envolvidos. Ficaram patentes tanto os desequilíbrios na articulação entre os três níveis de governo (União, estados e municípios) quanto as dificuldades na ação cooperativa horizontal, entre os municípios de cada RM, bem como a incapacidade de se produzir a coordenação intragovernamental, entre órgãos de um mesmo nível de governo (Pacheco, 1995). A gestão metropolitana instituída pela LC 14/1973 estava ancorada no funcionamento de dois conselhos, um deliberativo e outro consultivo. O Conselho Deliberativo (CD) era composto por seis membros, nomeados pelo governador do estado, sendo um deles indicado a partir de lista tríplice articulada pelo prefeito da capital e outro pelos demais municípios-membro (Hotz, 2000). O CD era presidido pelo governador do estado, que indicava diretamente 4 de seus 6 membros, 36 sendo, assim, expressão cabal de seus interesses e prioridades. Cabe recordarmos que os governadores de estado eram indicados pelo Executivo federal. Por seu turno, o Conselho Consultivo, congregando os prefeitos dos municípios envolvidos ou seus representantes, tinha funções bastante periféricas. Nas palavras de Montoro, “os conselhos foram muito mais instâncias homologatórias de propostas técnicas levadas pelo governo estadual que foros de debates de problemas de interesse comum” (apud Pacheco, 1995:197). Ressalte-se que as entidades metropolitanas então instituídas foram pensadas como instâncias administrativas, sendo desprovidas de poder político (Moraes, 2001). Nos termos utilizados por Wrigth (1997) para a classificação das relações intergovernamentais, temos exemplificado, no caso da gestão metropolitana do regime militar, o padrão de autoridade inclusiva. Nos termos propostos por Stepan (1999), tínhamos no país, claramente, um federalismo com restrições mínimas ao centro de poder (least center-constraining). Pensando nas motivações para a ação metropolitana no Brasil e levando em consideração as fontes de coesão e sustentabilidade da ação concertada, Lopes afirma que este primeiro período, que iria da primeira metade da década de 1970 a meados da de 1980, caracterizou-se por uma “coerção simétrica” implementada pelo governo federal. Isso em função da “iniciativa, da vinculação institucional, da sustentação política e financeira e do repertório de ações metropolitanas empreendidas desde o governo federal” (2006:144). Como recorda o autor, foi criada à época, no âmbito federal, uma superestrutura de apoio técnico e financeiro ao desenvolvimento urbano e às RMs, composta pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau) e pela Comissão Nacional de Política Urbana e Regiões Metropolitanas (CNPU), que seria sucedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU). No que diz respeito à questão do financiamento, foram criados também os Fundos de Desenvolvimento Metropolitano, que priorizavam aqueles municípios que adotavam uma postura de maior colaboração em relação às iniciativas capitaneadas pelo governo federal e pelos estados. Em sintonia com as políticas macroeconômicas do regime militar, os investimentos nas áreas metropolitanas se concentraram na circulação, no transporte urbano e na construção civil, sendo as capitais dos estados, as cidades-pólo das RMs instituídas, tomadas como centros irradiadores do progresso para as periferias. No que concerne à prestação de serviços públicos como água e esgotamento sanitário, operou-se no período uma “centralização empresarial em concessionárias da esfera estadual de governo” (Lopes, 2006:146). Tal modelo de gestão metropolitana foi denominado por Machado (2007) de “modelo da tecnocracia esclarecida”, denominação essa que talvez merecesse um reparo, no sentido de se acrescentar o termo “supostamente”. Da articulação dos atores que se opunham ao regime militar e do repúdio generalizado ao centralismo que caracterizava o período de exceção, cristalizou-se no país, em resposta também à perda de dinamismo da gestão metropolitana no Brasil, na década de 1980, uma postura de “municipalismo a todo custo”. O “municipalismo autárquico”, que se consolidava então, redundaria em um tratamento muito genérico da questão metropolitana pela Constituição Federal de 1988, o qual encontraria reverberação em algumas das constituições estaduais promulgadas no ano subseqüente. O texto constitucional de 1988 transferiu a responsabilidade de criação das RMs para o âmbito estadual, reconhecendo a autonomia dos estados para a formulação de estratégias de gestão de seu 37 território e potencializando a diversificação dos modelos de gestão metropolitana no Brasil. Tal possibilidade redundou tanto na criação de novas RMs no país como na alteração dos limites daquelas existentes. Contudo, a força do municipalismo no país levaria a uma grande resistência em se priorizar a questão metropolitana, cujo enfrentamento demanda ação cooperativa por parte dos atores envolvidos e, como uma das alternativas então cogitadas, até mesmo a cessão de parcela da autonomia que se concedia aos municípios. Tais embates explicam o tratamento genérico da questão pela nova Carta Magna. Cabe notarmos, aqui, que, a despeito do trabalho de advocacy de alguns atores, o processo constituinte de 1986 a 1988 acabou redundando na refutação de soluções mais ousadas à problemática metropolitana. Naquela época, oito das nove RMs do Brasil prepararam um documento que, a partir de sua experiência de 15 anos de gestão metropolitana, propunha que o pacto federativo do país incorporasse uma nova instância, ou um quarto nível da Federação, o metropolitano. A proposta baseava-se na constatação que uma RM não se constitui apenas como uma região de serviços comuns, socioeconômica, administrativa ou de planejamento do uso do solo, sendo, fundamentalmente, uma instância política. Tal proposta chegou a ser apresentada à Assembléia Constituinte, mas não foi votada (Fernandes, 2004). Ao contrário de outras experiências de governança metropolitana, sem dúvida menos numerosas, calcadas no “modelo de coordenação supramunicipal”, como é o caso das RMs de Londres e de Toronto, por exemplo, a “segunda geração” de entidades metropolitanas no Brasil estava, então, fadada a se constituir como variações do “modelo intermunicipal”. Na verdade, a partir de um modelo intermunicipal orquestrado pelos estados federados. Segundo Rodríguez e Oviedo (2001), o “modelo intermunicipal” corresponde a um tipo de governo cuja legitimidade é indireta, posto que assentada na autoridade de seus membros, os municípios, tendo baixa autonomia financeira, uma vez que os recursos são oriundos de seus membros e/ou de subsídios dos níveis superiores de governo. Suas competências são definidas a partir de acordos entre os municípios-membros, correspondendo a concessões de poder predefinidas e limitadas. As diversas constituições estaduais, datadas de 1989, deram tratamento muito diferenciado à problemática metropolitana, tanto no que diz respeito à abrangência da regulação como aos distintos fatores privilegiados. Cabe ressaltarmos que apenas os estados do Ceará e de São Paulo enfatizaram a importância estratégica da participação estadual (Azevedo & Mares Guia, 2000). Nas palavras de Azevedo e Mares Guia, “a experiência brasileira posta em prática a partir dos anos 1970 evolui, durante as últimas décadas, de uma gestão metropolitana altamente padronizada, imposta aos municípios pelo governo federal, para modelos mais flexíveis peculiares a cada estado da Federação, combinando formas compulsórias e voluntárias de associação que, constitucionalmente, se caracterizam por uma maior participação dos governos locais” (2004:98). Em função do papel central dado às municipalidades nos arranjos institucionais característicos deste segundo momento de institucionalização das RMs no país, parece-nos pertinente denominar o modelo instituído pelas Constituições Estaduais de 1989 como o de um “hipermunicipalismo simétrico”, uma vez que a tendência, no âmbito estadual, foi a de não discriminação de papéis diferenciados para os municípios-membros, segundo as suas particularidades econômicas e demográficas e o seu tipo de inserção na dinâmica metropolitana. Neste segundo momento, o que se verifica, no que toca a gestão metropolitana, é uma aproximação, nos termos de Stepan (1999), ao modelo de restrições máximas ao centro de poder, a União. Talvez se possa dizer, também, que 38 essa segunda geração do experimentalismo metropolitano no Brasil tenha sido uma expressão do modelo de relações intergovernamentais segundo o padrão da autoridade coordenada, em função da existência de limites claros e bem determinados separando o governo nacional dos governos estaduais, em um contexto em que os níveis de subnacionais governo teriam maior independência e autonomia (Wright, 1997). Vale ressaltar que o processo que se inicia com a promulgação das constituições estaduais é derivado de um cenário não apenas de repúdio ao centralismo que havia caracterizado o regime militar, sendo também pautado pela crise de financiamento do Estado e pelo desmonte da superestrutura de apoio do governo federal ao desenvolvimento urbano. Nesse segundo momento de (re)organização da gestão metropolitana no país, caberia distinguir, de acordo com Lopes, a coexistência de dois conjuntos de experiências de gestão metropolitana, quais sejam: “aquelas remanescentes, ainda que renovadas, da matriz estadualista do passado e as novas, identificadas com um protagonismo voluntarista cujo projeto veio sendo construído local e regionalmente” (2006:148). Segundo a periodização proposta por Machado (2007), após o reconhecimento das dificuldades desta forma exacerbada de municipalismo e com a crise, muitas vezes aguda, das instituições metropolitanas instituídasi, se seguiria um terceiro momento, de “integração negociada”, no qual, porém, a questão do financiamento para as ações metropolitanas continua enfrentando obstáculos políticos, institucionais e legais (Ver Rezende & Garson, 2006). Nesse terceiro momento de (re)organização da gestão metropolitana no país, em que proliferam as iniciativas de “desfragmentação” da gestão pública, ganha destaque o experimento institucional que se consolida hoje no estado de Minas Gerais, que não será discutido aqui em maiores detalhes, mas que busca reequilibrar o papel dos principais interessados, não apenas dando voz à sociedade civil, mas revalorizando o governo estadual e dando um peso diferenciado aos municípios do eixo econômico da RM de Belo Horizonte (Faria, 2008). Quando se recorda que, atualmente, o governo federal brasileiro volta a pensar a necessidade de se fomentar a ação cooperativa de escopo metropolitano, talvez o que se projeta para o futuro seja uma maior possibilidade de as relações intergovernamentais, também nesse âmbito, se aproximarem do modelo de autoridade superposta, que é caracterizado por interações negociadas entre os entes, não apenas interações horizontais, mas também verticais (Wright, 1997). 4- Brevíssimas considerações finais Em trabalho recente, Celina Souza (2006b) discute os “principais constrangimentos às ações cooperativas nas RMs brasileiras”. São listados e analisados quatro grandes constrangimentos: o federalismo competitivo do país; o fato de o sistema tributário brasileiro promover a competição intergovernamental; os efeitos perversos da descentralização promovida no Brasil, que resultou no “neolocalismo” ou no “municipalismo a todo custo”; e, por fim, o peso da própria trajetória de institucionalização das RMs no país. Qualquer consideração acerca do impacto esperado da implantação, ainda em curso, de uma forma supostamente mais equilibrada, dita “negociada”, de busca de concertação e cooperação entre os atores governamentais no âmbito de algumas das RMs do país deve, assim, partir da constatação de que são particularmente agudos os constrangimentos impostos pelo próprio pacto federativo do Brasil. Qualquer solução autárquica, no âmbito estadual, estará necessariamente pressionada pelas forças estruturantes do conjunto das relações intergovernamentais do país. 39 O impacto do experimentalismo institucional no âmbito metropolitano, que hoje volta a ganhar intensidade no Brasil, fica, por certo, condicionado ao reconhecimento, explicitação e negociação da interdependência, conforme as características do modelo de autoridade superposta proposto por Wrigth. Afinal, como sugerido por Pressman há mais de trinta anos, as relações intergovernamentais irão sempre gerar “doadores” e “receptores”, que dependem um do outro em um cenário em que nenhum deles tem completo controle sobre a interação. Por isso são importantes os instrumentos de apoio mútuo, construídos pela via de negociações que serão, necessariamente, parcialmente cooperativas e parcialmente antagônicas (apud Souza, 2006b:178). A mudança no modelo institucional, ainda que não possa ser vista como panacéia, parece necessária, contudo, para que os impasses verificados nos modelos de gestão metropolitana de segunda geração possam ser superados. Bibliografia ABRUCIO, F.L. & SOARES, M.M. (2001). Redes Federativas no Brasil: Cooperação Intermunicipal no Grande ABC. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer. AFONSO, R. e BARROS SILVA, P. L. (1995). A federação em perspectiva. SP, Fundap. ALMEIDA, M.H.T. (1995). Federalismo e Políticas Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, No. 28. ARRETCHE, M. (2000). Estado Federativo e Políticas Sociais: Determinantes da Descentralização. Rio de Janeiro, Revan, São Paulo, FAPESP. AZEVEDO, S. & MARES GUIA, V. R. (2000). “Governança metropolitana e reforma do Estado: o caso de Belo Horizonte”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Ano 2, No.3, pp.131-146. __________ (2004). “Os dilemas institucionais da gestão metropolitana no Brasil”. 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Fondo de Cultura Económica. 41 MÓDULO 2: Artigos Referenciais: Experiência de Aplicação da Lei de Consórcios Públicos no Município de Belo Horizonte: O Consórcio Regional de Promoção da Cidadania – “Mulheres das Gerais” Marina Esteves Lopes Resumo: A partir da publicação da Lei 11.107/05, os arranjos cooperativos entre os entes federados tomaram um novo rumo. A região metropolitana de Belo Horizonte, foi escolhida no âmbito do projeto Novos Consórcios Públicos para Governança Metropolitana (NCP), financiado pela Agência Canandense de Desenvolvimento Internacional (CIDA), para implantar um consórcio público e testar os limites, dificuladades e aplicações da Lei de Consórcios. O tema escolhido foi o enfrentamento da violência contra a mulher, um grave problema mundial caracterizado como violação aos direitos humanos. O objetivo deste trabalho é fazer o relato da experiência de implementação do referido Consórcio Público, apresentando as dificuldades e as opções feitas, especialmente na seara jurídica, ao longo de mais de dois anos de desenvolvimento, que culminaram na assinatura e aprovação pelos Poderes Legislativos municipais, do Protocolo de Intenções do Consórcio, do estatuto e contrato de rateio, fazendo uma avaliação dos resultados obtidos até agora e dos projetados para o futuro. Em especial discute-se a definição da temática e o enfretamento da violência contra a mulher como interesse passível de consorciamento. As finalidades específicas do Consórcio, os modelos de gestão associada, cooperada e coordenada e a estrutura organizacional do Consórcio, além da opção pelo consenso. Palavras-Chaves: Direito Público; Consórcio Público; Federalismo Cooperativo; Violência contra a mulher. 1. INTRODUÇÃO Na estrutura da Constituição de 1988 (BRASIL,1988), o município foi reconhecido como ente federado, com grande aumento de suas competências e responsabilidades, através de intensa descentralização de políticas públicas, pelo fortalecimento do poder local e por mecanismos (pouco) coordenados de relação vertical e horizontal entre os demais entes federativos. Ao mesmo tempo, a ausência de políticas de desenvolvimento regional acentuou as desigualdades locais e regionais observadas historicamente no país. Ocorre que, muitos municípios não têm condições técnicas ou financeiras para, sozinhos, executarem as competências que lhe são atribuídas. Nas regiões metropolitanas a situação é agravada pela característica da ocupação que faz com que os problemas de um município afetem diretamente o município vizinho, não sendo possível pensar em soluções realmente eficazes e permanentes que não passem por uma ação regional. Mesmo um município rico, com alta capacidade técnica e política para atuar, não consegue blindar suas fronteiras e trabalhar solucionando seus problemas locais, pois a população regional necessariamente se movimenta entre territórios vizinhos transportando problemas e soluções entre eles. Assim, em muitos casos, o enfrentamento de problemas ou a apresentação de soluções para temas de interesse comum entre os municípios, estado e União, deve ser trabalhado aplicando-se o modelo de federalismo cooperativo festejado em nossa Constituição de 1988 (BRASIL,1988) que prevê a atuação concertada entre os entes da federação como um meio de se concretizar a democracia. 42 Segundo Odete Medauar e Gustavo Justino de Oliveira (2006), “são evidentes as vantagens da cooperação entre os entes federados, podendo ser citadas: (a) a racionalização do uso dos recursos existentes, destinados ao planejamento, programação e execução de objetivos de interesses comuns, (b) a criação de vínculos ou fortalecimento dos vínculos preexistentes, com a formação ou consolidação de uma identidade regional, (c) a instrumentalização da promoção do desenvolvimento local, regional e nacional e (d) a conjugação de esforços para atender as necessidades da população, as quais não poderiam ser atendidas de outro modo diante de um quadro de escassez de recursos.” Em verdade, ações conjuntas, convênios e consórcios entre entes federados, especialmente consórcios intermunicipais, não são novidade em nosso país, mas em virtude da prática política e do entendimento jurídico sobre a natureza destes institutos, estas iniciativas sempre sofreram com a fragilidade do ajuste estabelecido. Os consórcios intermunicipais, com natureza jurídica de associações privadas, para a realização de finalidades amplas ou especificas, sem qualquer traço obrigacional entre os entes de mesma espécie, padecia de um vínculo mais forte e levava a uma situação de incerteza e de falta de perspectiva para além do prazo de um mandato, ou do interesse do chefe do poder executivo. As limitações institucionais e jurídicas da repartição de competências constitucionais entre os entes federados e principalmente a precariedade dos arranjos utilizados pelos municípios levaram à aprovação da Emenda Constitucional nº 19 de 1998 (BRASIL,1998), que alterou a redação do art. 2412 e passou a prever expressamente os consórcios públicos, os convênios de cooperação e a gestão associada de serviços públicos. Apesar da mudança no art. 241, foi mantida a prática de se criar consórcios públicos como associações civis que não cumpriam com os preceitos de direito público. O principal motivo para isso é que, apesar de previsto na Constituição (BRASIL, 1988), a figura do consórcio público não havia regulamentação na legislação infraconstitucional. Alguns órgãos de controle e parte da doutrina jurídica também não se adequaram à inovação defendendo o entendimento histórico, de que os consórcios públicos eram meros pactos de cooperação, celebrados entre entidades estatais de mesma espécie ou do mesmo nível, de natureza precária e sem personalidade jurídica – tal como os convênios. Para que a mudança instituída pela Emenda Constitucional nº 19/1998 (BRASIL, 1988) fosse aplicável, o Governo Federal propôs a Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005 (BRASIL, 2005), dispondo sobre normas gerais de consórcios públicos, abrangendo igualmente os convênios de cooperação e os contratos de programa. Ao editar normas gerais de contratação, fazendo uso de sua competência privativa exposta no art. 22, inc. XXVII, a União fixa diretrizes para si própria e para todos os outros entes da Federação, não excluindo a competência legislativa destes para suplementar tais preceitos, como dispõe o §2º do art. 24 da também da Constituição de 1988 (BRASIL,1988). 2 “Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.” 43 A Lei dos Consórcios Públicos (BRASIL,2005), como ficou conhecida, inovou em diversos pontos, principalmente ao estabelecer que o consórcio seja criado e extinto por lei, de natureza publica ou privada e tenha personalidade jurídica própria, reduzindo a precariedade e conferindo, em tese, mais chance de perenidade ao vínculo (FORTINI, 2007). A Lei de Consórcios foi regulamentada em fevereiro de 2007 pelo Decreto nº 6.017 (BRASIL, 2007). A partir daí as ações visando sua implementação começaram a surgir com mais força no cenário nacional. O governo brasileiro, por meio do Ministério das Cidades, firmou, em 2006, com a Universidade de British Columbia, do Canadá, acordo de cooperação em torno da implementação do Projeto Melhorando a Governança Metropolitana através de Consórcios Públicos (Projeto Governança). O projeto, financiado pela Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional – CIDA, tem como com objetivo desenvolver e aplicar o modelo de consorciamento público na resolução de problemas regionais, à partir do marco regulatório estabelecido pela Lei 11.107/05, testar os limites e instrumentos criados pela lei, fornecer suporte técnico e financeiro para fomentar a constituição de consórcios, com vistas a compartilhar responsabilidades, recursos e conhecimentos para o enfrentamento dos problemas urbanos locais e regionais, com base na larga experiência do Canadá em governança através do consorciamento. Foram selecionados e convidados por Belo Horizonte, a desenvolver e compor um consórcio os municípios de Sabará, Betim e Contagem, integrantes da região metropolitana de Belo Horizonte, através de aferição de dados objetivos bem como o grau de interesse e desenvolvimento na área de atuação escolhida para consorciamento, qual seja enfrentamento da violência contra a mulher. Em 10 de outubro de 2007 aqueles municípios assinaram o Protocolo de Intenções para constituição do Consórcio Regional de Promoção da Cidadania – “Mulheres das Gerais” (Consórcio). Em dezembro do mesmo ano o Protocolo de Intenções foi enviado e aprovado, sem ressalvas, pelas Câmaras Municipais com o lançamento oficial ocorrido 27 de março de 2008, em comemoração ao Mês Internacional da Mulher. Em linhas gerais, o Consórcio é pessoa jurídica de direito público interno, do tipo associação pública, com personalidade jurídica própria, que integra a administração direta de todos os municípios consorciados como autarquia. Como veremos com mais detalhes, a finalidade é o enfrentamento da violência contra a mulher, sendo repassado ao Consórcio a gestão dos equipamento urbanos afetos ao serviço de abrigamento da mulher em situação de risco. As despesas com o Consórcio serão, inicialmente, repartidas entre os municípios de acordo com a utilização (nº de vagas) do equipamento público de gestão associada Casa Abrigo. O repasse de recursos dos municípios para o Consorcio se dá anualmente através de um Contrato de Rateio. Espera-se que com o tempo o Consorcio consiga ter independência financeira com captação e geração próprias de recursos para seu sustento, deixando de depender dos municípios consorciados. Optou-se por se trabalhar preferencialmente com servidores cedidos dos entes consorciados, como uma forma de diminuir o custo, entretanto há previsão de que eventuais novos funcionários sejam empregados públicos, regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas. O objetivo deste trabalho é fazer um breve relato da experiência de implementação do Projeto Governança, pela Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Informação da Prefeitura de Belo Horizonte, apresentando as dificuldades e as opções feitas, especialmente na seara jurídica, ao longo de mais de dois anos de desenvolvimento, que culminaram na assinatura e aprovação do 44 Protocolo de Intenções do Consórcio, aprovação de seu Estatuto e Contrato de Rateio, fazendo uma avaliação dos resultados obtidos até agora e dos projetados para o futuro. 2. DESENVOLVIMENTO DO PROJETO O desenvolvimento do Projeto Governança para construção do Consórcio exigiu a conjugação de esforços dos gestores públicos, da equipe técnica temática e jurídica, pois se tratava de legislação recentíssima e praticamente desconhecida. A necessidade inicial formou um modo de trabalho muito bem sucedido, que foi, posteriormente adotado pelos outros municípios consorciados, sendo formalizado através de um ato do Chefe do Executivo de cada município que destacava os componentes do projeto na área técnica, na área jurídica e na área política, responsabilizando cada qual por sua atuação. 2.1. A definição da temática, a questão de gênero e a violência contra a mulher Dentre diversas possibilidades estudadas para ser objeto do Consórcio, o tema escolhido pelo município de Belo Horizonte foi o enfrentamento da violência contra a mulher. Anteriormente a iniciativa de criação do Consórcio Regional, os municípios de Belo Horizonte, Betim, Contagem e Sabará, já desenvolviam, de forma isolada, ações destinadas ao enfrentamento da violência contra à mulher que geravam resultados tímidos, de limitada abrangência e recursos aplicados de formas descontinuadas. Belo Horizonte e Betim já contavam até com uma parceria informal que envolvia repasses de recursos para custeio de ações de abrigamento de mulheres em risco residentes em Betim na Casa Abrigo de Belo Horizonte. Entretanto, havia dúvida sobre a possibilidade jurídica de se utilizar o instituto do consórcio para esta finalidade. A dúvida era fundada em dois pontos principais: (i) o art 241 da Constituição da República (BRASIL, 1988) institui o consórcio público e menciona a gestão associada de serviços públicos, por sua vez o Decreto nº 6.017/2007 que regulamentou a Lei de Consórcios definiu em seu art 2º, inc. XIV, serviço público como “atividade ou comodidade material fruível diretamente pelo usuário, que possa se remunerado por meio de taxa, tarifa ou preço público”. Os serviços públicos, de suma relevância, que seriam prestados pelo Consórcio, no âmbito do enfrentamento a violência contra a mulher, não cabiam na estreita definição dada pelo Decreto, não havia caráter de universalidade em sua prestação e muito menos ele poderia ser remunerado por meio de taxa, tarifa ou preço público. Reforçava este entendimento o fato de que, embora a Lei de Consórcio não estabelecesse em sua ementa a função de regulamentar o art 241 da Constituição da República, a assimilação era imediata, fazendo com que a primeira reação dos juristas fosse de acusar de inconstitucional o uso do instituto para aquela temática. (ii) piorava a situação a mens legislatoris que colocou como foco da Lei de Consórcios o fomento a ações e projetos de infraestrutura, meio ambiente e saneamento básico, fazendo com que a equipe da Casa Civil, que havia trabalhado na formulação da lei, não reconhecesse como objeto de consórcio o compartilhamento de ações para a execução de uma política pública, por exemplo. Contra todas as oposições e firmemente apoiado pelos parceiros canadenses, Belo Horizonte assumiu a escolha da temática de enfrentamento a violência entendendo ser este um relevante objetivo de interesse comum dos municípios consorciados. Tendo em vista que a doutrina brasileira não é uniforme, nos filiamos a corrente que entende que o conceito de serviço público, referido no art. 241 da Constituição da República, deve ser entendido de maneira extensiva, contemplando não apenas serviços públicos strictu sensu (conforme 45 conceitua o decreto regulamentador), mas também outras atividades administrativas de interesse comum. Além do mais, a redação do art. 1º, caput da Lei de Consórcios não determina um elenco exaustivo de objetivos de interesse comum e não condiciona a prestação de serviço público, desde que atendidos os limites constitucionais referidos no art. 2º, caput. Assim, embora não se confundam as competências constitucionais comuns com os objetivos de interesse comum dos entes consorciados, entendemos que o objetivo do Consorcio é executar as competências comuns arroladas nos incisos II e X do art. 23, sem ultrapassar suas competências definidas no art 30, todos da Constituição da República. 2.1.1 A relevância da questão de gênero e a violência contra a mulher A Constituição Federal de 1988 instituiu e consolidou importantes avanços na ampliação dos direitos das mulheres e no estabelecimento de relações de gênero mais igualitárias. No mesmo sentido seguem as normas jurídicas que asseguram direitos às mulheres, aprovadas após a promulgação desta Constituição. Do ponto de vista da construção e implementação de políticas públicas, os dados demográficos oferecem referências básicas para a identificação e projeção de demandas sociais. No combate às desigualdades vinculadas ao gênero e à pobreza, consolida-se o reconhecimento de que as iniciativas serão mais eficazes se planejadas com base nestes dados. Assim, importa verificar alguns levantamentos que dão suporte à iniciativa de constituição do Consórcio com o tema escolhido. As mulheres representam 51,2% da população brasileira, sendo 46% pretas e pardas. São aproximadamente 89 milhões, das quais, 85,4% vivem em áreas urbanas. Amplia-se o segmento de mulheres em idade reprodutiva, ou seja, entre 15 e 49 anos, que em 2003, já representava 54,7 % da população feminina (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004). Admitindo-se a ampliação desse intervalo para as idades entre 10 e 49 anos, em virtude da incidência elevada de casos de gravidez precoce, este percentual corresponderia a 63,7% (PNAD/IBGE 2003). Um dos pontos de maior disparidades entre homens e mulheres diz respeito à participação na economia. A participação das mulheres na faixa de População Economicamente Ativa (PEA) tem crescido, mas, embora o grau de escolaridade média das mulheres sejam maior que o dos homens, as funções ocupadas no mercado de trabalho e a proporção entre o rendimento médio das mulheres em relação ao rendimento médio dos homens é gritante. Segundo o censo demográfico 2000 do IBGE, em Belo Horizonte, embora as mulheres tenham em média 9,3 anos de estudo contra em média de 8,7 dos homens, o rendimento médio das mulheres ocupadas representa 63,70% daqueles relativos à população masculina (SNIG - Censos de 1991 e 2000). A violência de gênero afeta constantemente a probabilidade geral de uma mulher conseguir um emprego, tem influencia no salário e na sua capacidade de manter o emprego. A violência contra a mulher é um dos principais indicadores da discriminação de gênero e o seu enfrentamento, em suas diferentes formas de expressão, variando do assédio moral e da violência psicológica até as manifestações extremas da agressão física e sexual, é um desafio para o Poder Público. O Relatório Mundial da Organização das Nações Unidas sobre Violência, publicado em 2002, destaca: visível custo humano; elevado custo à rede de saúde pública, relativo às internações e ao atendimento físico e psicológico; e repercussões no mercado de trabalho, em razão dos prejuízos ao desempenho profissional da vítima. 46 A violência contra a mulher acontece no mundo inteiro e atinge mulheres de todas as idades, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. Qualquer que seja o tipo, física, sexual, psicológica, ou patrimonial, a violência está vinculada ao poder e à desigualdade das relações de gênero, onde impera o domínio dos homens, e está ligada à ideologia dominante que lhe dá sustentação. As mulheres brasileiras são duplamente vítimas de situações violentas: como cidadãs se defrontam com as diversas formas de violência que atingem a sociedade brasileira; como cidadãs e mulheres, com a violência de gênero. Esta forma de violência ocorre, fundamentalmente, no ambiente doméstico, sendo praticada, quase sempre, por homens da família. Protegidos pelos laços afetivos, eles podem levar ao extremo as relações de dominação originadas na cultura patriarcal, centrada na idéia de sujeição das mulheres ao exercício do poder masculino, e se necessário pelo uso da força. São muitas as formas de violência contra a mulher: desigualdades salariais; assédio sexual; uso do corpo como objeto; agressões sexuais; assédio moral, tráfico nacional e internacional de mulheres e meninas. Informações recentes, resultantes de pesquisas e dos atendimentos em serviços especializados, tais como Delegacias Especializadas, Centros de Referência e Casas-Abrigo, demonstram a magnitude do problema. Os dados sobre Belo Horizonte estão disponíveis no relatório preliminar do Perfil dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, com pergunta estimulada 43% das mulheres admitem terem sofrido alguma forma de violência, contrastando com a resposta espontânea quando apenas 19% admitem terem sido submetidas a alguma forma de violência. Esta pesquisa mostra que cerca de uma, em cada cinco mulheres brasileiras, sofreu algum tipo de violência por parte de algum homem. “A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez”. Projeta-se no mínimo 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano, ou seja, uma em cada 15 segundos”(PERSEU ABRAMO, 2001). O relatório nacional da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil, coordenada pelo CECRIA (2002), comprova que no tráfico para fins sexuais predominam as mulheres e adolescentes afro-descendentes, com idade entre 15 e 25 anos. A pesquisa mostra que das 131 rotas internacionais, 102 lidam com tráfico de mulheres, 60 são utilizadas para transportar “somente mulheres” e das 78 rotas interestaduais, 62 envolvem adolescentes. As mulheres adultas são preferencialmente traficadas para outros países. Outro fato grave é o abuso sexual de jovens. A partir da pesquisa Juventude e Sexualidade (UNESCO, 2004), estima-se que uma em cada três ou quatro meninas jovens é abusada sexualmente antes de completar 18 anos. O Ministério da Justiça registra anualmente cerca de 50.000 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. A efetividade das ações de prevenção e redução da violência doméstica e sexual depende da reunião de recursos públicos e comunitários e do envolvimento do Estado e da sociedade em seu conjunto. É preciso que estejam envolvidos os poderes legislativo, judiciário e executivo, os movimentos sociais, e a comunidade, guardadas as competências e responsabilidades, estabelecendo uma rede de atendimento e proteção. 47 Grande avanço no campo legislativo se deu com a entrada em vigor da Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha3, que visa coibir a violência domestica e domiciliar contra a mulher. Foram muitas as mudanças estabelecidas pelo novo diploma legal, tanto na tipificação dos crimes de violência contra a mulher, quanto nos procedimentos judiciais e da autoridade policial. Ela tipifica a violência domestica como uma das formas de violação dos direitos humanos. Altera o Código Penal e possibilita que agressores sejam presos em flagrante, ou tenham sua prisão decretada, quando ameaçarem a integridade física da mulher. Prevê, ainda, inéditas medidas de proteção para a mulher que corre risco de vida, como o afastamento do agressor do domicilio e a proibição de sua aproximação física da mulher agredida e de seus filhos (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006). Cabe ao Estado adotar uma política sistemática e continuada em diferentes áreas. A intervenção deve se caracterizar pela promoção e implementação de políticas públicas de responsabilidade dos governos federal, estaduais e municipais, constituindo uma rede de ações e serviços. As redes devem articular assistência jurídica, social, serviços de saúde, segurança, educação e trabalho. Os serviços e organizações que compõem as redes incluem: Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, delegacias comuns, Centro de Referencia, Defensorias Públicas da Mulher, Defensorias Públicas, Instituto Médico Legal, Serviços de Saúde, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Casas Abrigos e Casas de Passagem. As informações disponíveis atestam que a violência contra a mulher é um fenômeno transversal que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridades ou raças. Isto justifica a adoção de políticas de caráter universal, acessíveis a todas as mulheres, que englobem as diferentes modalidades pelas quais ela se expressa. Entretanto, as mulheres mais pobres e com menor grau de independência financeira, com menores perspectivas de sobrevivência fora da casa do agressor, obviamente estão mais vulneráveis. Especificamente para estas mulheres para as quais a violência já se instalou e estão em situação de limite de vulnerabilidade é que os equipamentos de atendimento Casa Abrigo4 e a Casa de Passagem5, ambas previstas como equipamentos de gestão associada pelo Consórcio, passam a ser primordiais para a proteção da vida. Por outro lado, como a violência contra a mulher está vinculada ao poder e a desigualdade das relações de gênero é necessário pensar ações desenvolvidas tanto no âmbito da prevenção quanto no âmbito do atendimento. Desta forma, outros eixos de atuação preventiva do Consórcio tais como os projetos de educação não sexista, promotoras legais populares e do protagonismo juvenil, 3 Maria da Penha protagonizou um caso simbólico de violência domestica e familiar contra a mulher. Em 1983, por duas vezes, seu marido tentou assassina-la. Na primeira vez por arma de fogo e na segunda, com requintes de crueldade e tortura, por eletrocussão e afogamento. As lesões foram irreversíveis a sua saúde com paraplegia e outras seqüelas, mas Maria da Penha transformou a dor em luta e ajudou a consolidar os avanços obtidos até hoje. 4 Equipamento público, atualmente pertencente ao município de Belo Horizonte, que atende mulheres e seus filhos menores de 18 anos, que vivem situação de violência cronificada de gênero com risco de morte, sem alternativas de proteção, por um período médio de 30 a 90 dias. Está previsto para o primeiro ano do Consórcio a ampliação e qualificação do atendimento da Casa, de 10 para 20 vagas para as mulheres e 60 vagas para os filhos menores. 5 Equipamento público, que tem como público alvo, exclusivamente, mulheres em situação de violência de gênero e seus filhos menores de 18 anos que necessitam sair do lar em caso de emergência, por medida de segurança e proteção, necessitando de um abrigo temporário, para que nesse período possam ser tomadas as devidas providências para o andamento do caso. Sua implementação está prevista para o segundo ano de funcionamento do Consórcio. 48 visam desconstruir os estereótipos de gênero que contribuem para a manutenção da violência contra as mulheres. Este é o fundamento para o delineamento das políticas publicas a serem implementadas pelos municípios consorciados que viabilizou a criação do Consorcio. 2.2. Finalidades Gerais e Específicas do Consórcio: Da Gestão Associada, Gestão Cooperadas e Coordenada Para Vital Moreira (1997, p. 360), a característica básica do consórcio (público ou privado) “é a de que ele visa realizar interesses comuns aos entes consorciados, mas com respeito da titularidade deles pelos seus membros. O consórcio é um instrumento de realização de interesses próprios dos consorciados. São, portanto, essencialmente formas de cooperação e não de fusão, integração ou absorção.” Desde logo entendemos que a formação do consórcio público não poderia ferir a autonomia dos entes federativos consorciados, em especial no campo das decisões quanto às políticas públicas a serem adotadas ou priorizadas por cada município. Segundo Odete Medauar e Gustavo Justino de Oliveira (2006, p.36) “embora seja inerente à formação e à constituição dos consórcios públicos a delegação de atividades decorrentes das competências constitucionais, isso não significa que um ente consorciado renuncie a suas competências em favor de outro ente ou do próprio consórcio.” Por outro lado, um dos objetivos da formação do consórcio era retirar da responsabilidade exclusiva de Belo Horizonte6 e transferir exclusivamente para o Consórcio a competência pelo planejamento e gestão associada dos equipamentos urbanos Casa Abrigo e Casa de Passagem. Para contemplar todas as expectativas, foi desenvolvida uma definição geral da finalidade do Consórcio, que exigiu a distinção entre ações que serão desenvolvidas no exclusivamente âmbito do Consórcio - chamadas de gestão associada - e as chamadas de gestão cooperada e coordenada que se desenvolvem no âmbito municipal, com intuito de preservar a autonomia dos entes federativos consorciados e a esfera de decisões políticas dos gestores públicos.7 O Consorcio foi autorizado a realizar a gestão associada dos equipamentos públicos Casa Abrigo e Casa de Passagem. Sendo reservada aos municípios a gestão cooperada e coordenada das ações de enfrentamento e prevenção à violência e discriminação contra a mulher8. 6 Atualmente, embora mulheres de outros municípios sejam atendidas pela Casa Abrigo Sempre Viva, só Belo Horizonte sustenta o equipamento com previsão orçamentária para 2008 de gastos operacionais aproximadamente de R$ 121.896,00. Com o Consorcio há previsão de se dobrar a capacidade de abrigamento pelo mesmo custo. 7 CLAUSULA QUARTA. (Dos Conceitos) (...) XXII. Gestão associada: conjunto de ações de responsabilidade exclusiva do consórcio, conforme as condições estabelecidas neste Protocolo de Intenções. XXIII. Gestão cooperada e coordenada: conjunto de ações baseada em consenso que, a critério dos entes consorciados, podem ter seu planejamento, monitoramento ou implementação delegados ao consórcio para trabalhar em conjunto com os entes consorciados, com objetivo de ampliar o alcance e aumentar a efetividade das políticas e da aplicação de recursos públicos. 8 CLÁUSULA OITAVA. (Das finalidades). O presente Consórcio Público é constituído como instrumento viabilizador de ações associadas, cooperadas e coordenadas entre os entes federativos, para ampliar o alcance, aumentar a efetividade da aplicação de recursos públicos, alavancando assim o impacto das políticas públicas de responsabilidade partilhada entre os entes consorciados. Assim, o objetivo de interesse comum a ser realizado pelo 49 2.3. A Estrutura Organizacional do Consórcio A estrutura organizacional do Consórcio é enxuta, e – esperamos – eficiente. Ela é composta de Presidência, Assembléia Geral, Diretoria Executiva, Conselho Fiscal, Conselho de Gestão e Superintendência. Por imposição legal, o Presidente(a) do Consórcio será sempre um dos Chefes do Executivo dos entes consorciados. Ele(a) representa o Consórcio judicial e extrajudicialmente, ordena as despesas e responsabiliza-se pela prestação de contas, alem de nomear e exonerar “ad nutum” o Superintendente do Consórcio. O Presidente(a) é eleito pela Assembléia Geral. O Superintendente é um cargo chave pois irá exercer a atividade executiva, uma vez que o Presidente, por motivos óbvios, não poderá se dedicar integralmente ao Consórcio. Sua relação com o Presidente deve ser de total confiança, pois, afinal, o Superintendente vai executar, mas o Presidente é quem irá se responsabilizar pessoalmente pela gestão do Consórcio. A contribuição do Projeto Governança foi importantíssima durante todo o processo, mas foi fundamental para a construção do perfil de Superintendente que será adotado pelo Consorcio. A experiência canadense levou à incorporação do mecanismo de tomada de decisão através do consenso9 que, substitui o debate e a votação por maioria pelo processo de diálogo e negociação, para que a tomada de decisão se dê da forma mais informada possível.10 O Superintendente é o catalizador deste processo, cabe a ele centralizar e repassar as informações ao Presidente, aos membros dos Conselhos e Diretoria com fins de promover o diálogo e negociação sobre as decisões a serem tomadas. O Superintendente, assim como outros eventuais servidores do Consócio, serão empregados públicos, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. A opção pela adoção do regime celetista se deu, mormente, pela dificuldade de se justificar servidores públicos estatutários em uma entidade composta por diversos entes. No caso dos empregos públicos a extinção do Consórcio automaticamente extingue a relação de emprego e, após pagas as devidas verbas rescisórias, nada mais pode ser exigido dos municípios consorciados. Consórcio é a prevenção e enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, entendido como uma das formas de violação dos direitos humanos. Para a efetivação deste, são finalidades do Consórcio: I – Planejar, fomentar e implementar a gestão associada e compartilhamento dos seguintes equipamentos públicos: Casa de Passagem e Casa Abrigo; II - Planejar, fomentar e implementar ações cooperadas e coordenadas, de caráter emancipatório e inclusivo, para a prevenção e enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres; III - Planejar, fomentar e implementar ações cooperadas e coordenadas para combater todas as formas de discriminação contra as mulheres; IV – Promover a educação, formação e capacitação na perspectiva de gênero nas diversas esferas públicas e privadas; V – Promover a capacitação técnica do pessoal encarregado da prestação dos serviços voltados à prevenção e ao combate da violência contra as mulheres nos entes consorciados; VI – Promover a prestação de serviços à administração direta ou indireta dos entes consorciados; VII – Adquirir ou administrar bens para o uso compartilhado dos entes consorciados. 9 CLAUSULA QUARTA. (Dos Conceitos) (...) XII. Consenso: processo de tomada de decisões que abre oportunidade para todos os consorciados trabalharem como iguais para alcançarem resultados aceitáveis sem posição de pontos de vista e autoridade de um grupo sobre outro. 10 Os parceiros canadenses organizaram treinamentos com a participação do Diretor executivo do Conselho da Bacia do Rio Fraser no Canadá. Esta instituição de vanguarda na elaboração de mecanismos de tomada de decisão através do consenso, foi reconhecida pelo Banco Mundial com o melhor modelo de governança regional especialmente pela eficácia na solução de desafios usando mecanismos de consenso. 50 Apesar de serem empregados públicos, o ingresso se dará mediante processo de seleção pública de provas ou de provas e títulos, com exceção do Superintendente que é de livre nomeação. Mas há previsão de que o Consórcio funcionará, preferencialmente, com servidores cedidos dos entes consorciados. A Assembléia Geral, instância máxima do Consórcio, é órgão colegiado composto pelos Chefes do Poder Executivo de todos os entes consorciados. A Diretoria Executiva é composta por um membro de cada ente consorciado, indicado pelos Chefes do Poder Executivo, e pelo Superintendente do Consórcio. O Conselho Fiscal é composto por cinco conselheiros eleitos pela Assembléia Geral dentre os indicados pelos Poderes Executivo e Legislativo de cada ente consorciado. O Conselho de gestão é órgão de natureza consultiva e será composto pelos membros da Diretoria Executiva, e garante a participação da sociedade civil organizada através de representantes do Poder Legislativo dos entes consorciados e por representantes dos Conselhos Municipais dos Direitos das Mulheres ou órgãos correspondentes, assegurando-se a estes últimos pelo menos a metade de sua composição. Ressalta-se que as atividades da Presidência, Diretoria Executiva, Conselho Fiscal, Conselho de Gestão, de outros órgãos diretivos que sejam criados pelos estatutos, bem como a participação dos representantes dos entes consorciados na Assembléia Geral e em outras atividades do Consórcio não será remunerada, sendo consideradas trabalho público relevante. O funcionamento interno do Consorcio está regulado por seu Estatuto, consensualmente construído e aprovado em meados de 2008. 3. CONCLUSÕES Após este longo processo de desenvolvimento, onde forma tomadas as decisões possíveis dentro da legalidade, das opções políticas e das limitações impostas, concluímos que: A abordagem consorciada dos quatro municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte dá maior segurança jurídica aos entes consorciados na execução de ações compartilhadas para o enfrentamento da violência contra mulher pois fortalece o efeito de vinculação dos acordos de cooperação inter-governamentais entre os entes consorciados, tanto no ato da formação, como no cumprimento das responsabilidades assumidas. De um lado a natureza contratual do consórcio garante o cumprimento de responsabilidades administrativas, técnicas e orçamentárias de cada município consorciado. Do outro lado a natureza jurídica do consórcio permite ganhos de escala na prestação de serviços, racionaliza a aplicação de recursos públicos e facilita a captação de recursos por transferências intergovernamentais e outras fontes não governamentais. O Consórcio representa um avanço significativo na consolidação de políticas para mulheres, uma vez que, potencializadas pela ação consorciadas, elas tendem a impactar significativamente nos quadros de violência e combate à pobreza e na melhoria da qualidade de vida daqueles que residem nas áreas urbanas. 51 Sob o olhar institucional, um grande ganho foi o reconhecimento pelos gestores públicos que a problemática da violência contra a mulher é um desafio comum que extrapola as fronteiras municipais. Chegando-se a conclusão de que a abordagem regional é primordial para a construção participativa de mecanismos e implementação de ações mais eficientes e eficazes no enfrentamento da violência contra mulher. Por sua vez, o cuidado de distinguir, já no Protocolo de Intenções as ações e competências que são melhor executadas no âmbito do Consórcio e as que devem continuar no âmbito dos municípios, deixou os gestores públicos mais confortáveis com a não interferência em sua esfera de decisão política. Estabelecendo-se uma relação mútua entre os governos locais e o Consórcio, respeitando a autonomia e realidade orçamentária de cada ente. Como método de trabalho e consolidação da colaboração intermunicipal, com garantia da sustentabilidade das ações, observamos ser necessário um arcabouço jurídico robusto, estruturas multidisciplinares e intersetoriais e envolvimento de esferas decisórias dentro dos órgãos governamentais. Apesar dos enormes avanços alcançados e das excelentes perspectivas, o Consórcio ainda terá uma fase de implementação quando prevemos diversos tipos de adaptações que serão necessárias em virtude da própria realidade, mas estamos confiantes de que o principal já foi feito e que os resultados positivos logo estarão visíveis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei n.11.107, de 06 abr. 2005. Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providencias. Diário Oficial, Brasília, 07 abr. 2005. p.9. BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional n.19, de 19 de dezembro de 2003. Modifica os arts.37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 2003. BRASIL. Decreto n.6.017, de 17 jan. 2007. Regulamenta a Lei n.11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos. Diário Oficial, Brasília, 19 jan. 2007. p.7. BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. – Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004. 104 p. BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Texto Contribuição para as Conferências Estaduais Documento Base, p.23. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004. BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Brochura sobre Lei Maria da Penha, p.7. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006. CECRIA. Relatório nacional da pesquisa: Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual. Brasília: Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, dezembro 2002. Fonte SNIG (Censos de 1991 e 2000) BRASIL. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfil dos Municípios Brasileiros: gestão pública 2001. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. CARVALHO FILHO, José dos Santos (2006) Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Lúmen júris. FORTINI, Cristiana. (2007) Consórcios Públicos e Outorga Onerosa Do Direito De Construir. Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, ano 8, n 25, p. 31-44, jul/set. 2007. MAFRA FILHO, Francisco de Salles Almeida. (2005) Consórcios Públicos: Comentários aos Artigos da Lei 11.107 de 06.04.2005. Fórum de Contratação e Gestão Publica - FCGP, Belo Horizonte, ano 4, n.40, p.5305-5311, abril 2005. MEDAUAR, Odete; OLIVEIRA, Gustavo Justino (2006) Consórcios Públicos: Comentários à Lei 11.107/2005. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais. MOREIRA, Vital (1997) Administração autónoma e associações públicas. Coimbra, Coimbra Editores. 52 PERSEU ABRAMO, Fundação. A mulher brasileira nos espaços público e privado. Como vivem e o que pensam os brasileiros no início do século XXI – Síntese dos resultados. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, outubro 2001 (www.fpa.org.br/nop). PIRES, Maria Coeli Simões (coordenadora) (2008) Consórcios Públicos Instrumento do Federalismo Cooperativo. Belo Horizonte, Editora Fórum. UNESCO. Juventudes e Sexualidade. Brasília: UNESCO, março 2004. 53 Custos de Transação na Governança Metropolitana na RMBH e no Grande ABC Paulista Gustavo Gomes Machado Organização territorial do poder e gestão metropolitana em países federativos As discussões em torno da organização territorial do poder estatal figuram como um dos temas centrais que movimentam a ciência política na atualidade. A importância dessa temática se deve em parte ao fato dessa discussão afetar outros problemas de pesquisa nevrálgicos para a ciência política contemporânea como, por exemplo, a crise da democracia representativa, os sistemas eleitorais, a reforma do Estado e a implementação de políticas públicas. Também a questão metropolitana guarda estreita relação com os debates em torno da organização territorial do poder. Afinal, o atributo principal, que a define, é exatamente o hiato existente entre a organização do território na forma de municípios e a cidade-metrópole real que extrapola esses limites institucionais. Portanto, uma reflexão sobre a organização territorial do poder faz-se mister para os objetivos desse trabalho. Primeiramente, iremos estudá-la com base nos pressupostos teóricos do federalismo e de sua evolução. Depois será desenvolvida uma análise comparativa de três regimes federativos distintos, cujo critério diferenciador é o tema da autonomia municipal. Essa discussão será pautada pela premissa de que as instituições reguladoras dos conflitos federativos decorrentes da metropolização são determinantes para os custos de transação relacionados à gestão metropolitana. No fim do capítulo, são discutidos os aspectos específicos do federalismo brasileiro que condicionam a questão metropolitana no país. Nesse instante, são introduzidos alguns dos dilemas gerais que afetam a eficácia das instituições compulsórias e voluntárias de gestão metropolitana no Brasil. Aspectos teóricos do federalismo Denomina-se federação a forma de Estado composta pela reunião de Estados-membros que conservam, cada um, certo nível de independência e autonomia, mas que se submetem a uma única Carta Magna, a Constituição, a qual prescreve a existência de um governo central representante, perante Estados estrangeiros, da União federal. O Estado federal foi uma criação das treze colônias inglesas da América do Norte que, ao proclamarem sua independência da Inglaterra em 1776, uniram-se para adotar a forma federativa de organização estatal. Em um movimento de forças claramente centrípetas, os recém emancipados Estados da América do Norte aprovaram, em 1787, a Constituição Federal, documento escrito que definiu as regras do pacto federativo dos Estados Unidos da América. Surgiu, então, uma forma de organização do poder estatal distinta daquela concebida na Europa absolutista, já que, na federação, o conceito de soberania adquire novos contornos. (Baracho, 1986) Como marco zero do federalismo, a experiência norte-americana fornece os elementos básicos para um estudo analítico do chamado pacto federativo. O federalismo puro, contudo, tal como foi idealizado por Hamilton, Madison e Jay, os intelectuais da federação, não existe mais. (Baracho, 54 1986) Grosso modo, o federalismo ganhou novas cores, inclusive em decorrência das variantes de modelos de federação surgidos à medida que a experiência norte-americana influenciou diversos países a adotarem o federalismo de acordo com suas especificidades, como é o caso do próprio Brasil. De fato, o cenário mundial apresenta, atualmente, 22 federações, abrangendo 56% da população mundial. Múltiplos arranjos institucionais são encontrados nesses regimes federativos.(Camargo, 2003) Uma das discussões mais recorrentes da literatura aborda a transição do chamado federalismo competitivo para o padrão contemporâneo: competitivo/cooperativo, conforme se explicará a seguir. Tal abordagem surgiu com base nas transformações do federalismo norte-americano e são um ponto de partida interessante para se problematizar a importância das instituições para a sustentabilidade e equilíbrio do pacto entre os membros de uma federação. Segundo análise de Abrúcio e Costa (1999), o federalismo norte-americano atual pressupõe, para se manter em equilíbrio, um continuum de competição e cooperação. Por um lado, os Estadosmembros acatam a idéia de transferir parte de sua autonomia para um poder unificador, porque, com a soma das forças, mediante um pacto de cooperação, garantir-se-ia, em tese, um jogo de soma positiva para as partes. Por outro lado, a garantia de eficácia para essa cooperação passaria pelo estabelecimento de um contrato escrito entre os entes subnacionais, ou seja, a constituição. A própria origem etimológica do termo federal, que deriva da expressão latina foedus(pacto), ressalta a importância da idéia de encontro de vontades subjacente à federação. A Constituição Federal representa as regras para a interação federativa e remete ao viés transacional do federalismo. Teoricamente, uma federação é uma sociedade perpétua de Estados. É sociedade, porque pressupõe acordo de vontades para fins comuns dos entes federados. É perpétua, porque o Estado federado tende a não admitir sua própria dissolução, porquanto as Constituições Escritas de países que adotam o federalismo definem restrições ou mesmo impedem mudanças constitucionais tendentes a abolir a federação. Ao se comportarem como organizações que se associam os entes subnacionais estão sujeitos a um estatuto comum, a constituição federal. O estabelecimento de normas para a preservação do direito dos entes, garantidos por um sistema de controle mútuo dos poderes (checks and balances11), está na base de um desenho institucional propiciador da sustentabilidadde da federação. No entanto, essa abordagem contemporânea do federalismo aponta uma condição fundamental para o equilíbrio federal: a existência de um razoável nível de simetria entre os entes, ou seja, deve haver um consenso quanto à necessidade da maior proporcionalidade de forças possível entre as organizações. Os sócios da federação devem manter nível de esperança quanto à simetria de força e evitar um estimulo à competição não-cooperativa entre eles. (Abrúcio e Costa, 1999) A ausência do equilíbrio de forças, no pacto federativo, se argumenta, deturpa o Estado federal. Isso historicamente ocorreu nos regimes federais da América Latina, com forte tendência à centralização. Baracho comenta acerca da forte relação existente entre federação e democracia: O federalismo convive melhor com os sistemas democráticos, pelo que é incompatível com formas autocráticas. As características do federalismo demonstram a 11 O “Checks na Balances” representa o controle mutuamente exercido pelos poderes executivo, legislativo e judiciário entre si. 55 impossibilidade de sua aceitação pelos processos autoritários, que tendem à centralização política e, muitas vezes, administrativa. Os autoritarismos dificultam salvaguardar a estrutura federal. Os regimes autocráticos tendem à centralização, pelo que se torna incompatível com formas federativas que dão autonomia aos Estados e às suas comunidades componentes, daí que reduzem os elementos inerentes ao Federalismo. (Baracho, 1986: 66) O federalismo clássico na forma dual (União e Estados-membros) se assenta em interessante pacto federativo em que a competição entre os atores pode propiciar o equilíbrio. Dentre os autores que enfatizam a importância da competição para a sustentação da federação destaca-se Thomas Dye, que , citado por Abrúcio e Costa, considera que o estimulo à competição entre os entes federados favorece tanto o controle do poder central, como também melhora as condições da execução de políticas públicas. Argumenta-se que, assim como nos cheks and balances, poderes controlam poderes, no federalismo competitivo, governos controlam governos. (Abrúcio e Costa, 1999:27) Nesse sentido, Thomas Dye visualiza na centralização e na falta de competição, condições favoráveis à tirania, ou seja, ao abuso de poder. Ainda para o mesmo autor, existe uma condição indispensável para o funcionamento do federalismo competitivo: a autonomia financeira dos entes federados. Segundo ele, os custos para prestação de serviços públicos devem ser cobertos pelo próprio prestador, já que a dependência de recursos repassados por outro ente comprometeria o equilíbrio federativo. A simples competição entre os entes federados, contudo, como o próprio Dye reconhece, pode não gerar resultados ótimos. Em primeiro lugar, porque a competição generalizada poderia desestimular a cooperação e gerar distorções quanto à questão da equidade. Se uma parte dos entes federados possuir condições mais vantajosas (maior poderio econômico), haverá uma tendência de os estados mais fracos abandonarem o jogo federativo Talvez isso explique, porque, durante a República Velha, quando era vigente a Constituição Brasileira mais próxima do modelo norte-americano, dois grandes estados comandavam o país: São Paulo e Minas Gerais. Durante trinta anos, a política no Brasil girou em torno dessas duas potências da federação brasileira. Outro problema, que pode ocorrer no federalismo, competitivo, é observado quando um dos jogadores não adere efetivamente às transações federativas. Ao invés de competir com os outros, adota uma postura de free rider(carona), aproveitando-se do esforço dos demais entes federados. Sabendo que o ente concorrente oferece um serviço público melhor, o free rider não se preocupa em alcançá-lo, optando, por exemplo, por estimular seus próprios cidadãos a utilizarem os equipamentos públicos do vizinho.(Ribeiro, 2004) Um caso típico do federalismo brasileiro exemplificador desse dilema é o que ocorre na área da saúde em regiões metropolitanas. Os municípios mais pobres preferem comprar ambulâncias e mandar seus doentes para serem tratados em outros municípios metropolitanos, do que eles próprios constituírem seus equipamentos de saúde. Opção esta que, na maioria dos casos, é a única disponível, diante da fragilidade financeira da maior parte dos municípios brasileiros. Tal situação caracterizaria uma disfunção do pacto federativo brasileiro. O modelo do federalismo competitivo está inserido no contexto da vigência da concepção puramente liberal de Estado. No momento histórico em que se passou a legitimar a intervenção do 56 Estado para a correção das falhas de mercado, bem como a promoção do desenvolvimento econômico, o federalismo nos Estados Unidos começou a se modificar no sentido de uma expansão das atribuições da União na federação. Essa tendência se acelerou após a grande depressão de 1929, quando, durante o governo Franklin D. Roosevelt (1933-1945), foi posto em prática o New Deal. O New Deal ensejou uma maior concentração de recursos e competências no âmbito do governo federal, veio acompanhado de importantes mudanças institucionais no pacto federativo norteamericano,12 e destacou o viés cooperativo dos jogos federativos. De acordo com essa corrente, o governo federal cumpre papel de grande relevância para o equilíbrio da federação, que é compatibilizar as diversas funções públicas dos níveis de governo. Assim, enquanto Thomas Dye enxerga de forma negativa a posição da União da federação, a vertente da cooperação federativa defende a União federal como mediadora por excelência do jogo federativo. Uma evolução mais recente da teoria do federalismo cooperativo proposta por Elazar, citado por Abrúcio e Costa, agrega em um único modelo tanto o viés da competição quanto o da cooperação. Essa versão contemporânea do pacto federativo recomenda o misto de competição e cooperação entre os entes federados, disciplinados por uma constituição escrita tida como garantia à solidez do Estado. Aliada a essa perspectiva, está a defesa do pluralismo, entendido, segundo Abrúcio e Costa sob dois ângulos: “o da defesa do autogoverno, valorizando as potencialidades criativas dos governos subnacionais; e o da função positiva da parceria, enfatizando conceitos como tolerância, compromisso, barganha e reconhecimento mútuo entre os entes federativos.”(Abrúcio e Costa, 1999:30-31) Dessa forma, no modelo competitivo/cooperativo, os entes federados, visualizam no pacto federativo, um jogo de soma positiva para todos. A garantia de autonomia entre os entes federados, que se manifesta pela competição, vinculada a valores de cooperação intergovernamental, propícia a própria sobrevivência da federação. Faz-se necessária, no entanto, uma condição para o êxito da competição/cooperação: a existência de instituições estimuladoras do pluralismo. Tal modelo analítico de federalismo pressupõe mecanismos institucionais e contratuais que vão além do conteúdo escrito da constituição, os quais são construídos a cada negociação e barganha entre os entes federativos. Esse modelo analítico enfatiza o aspecto das transações presentes no federalismo. Nesse sentido, as relações entre entes federados devem ser pautadas por instituições capazes de garantir aos atores o maior nível possível de autonomia, simetria, União estimulando a pluralidade, e controlada por esta última, e, por fim, proteção institucional aos direitos e posições assumidas pelos jogadores. Dessa forma, o continuum competição/cooperação ofereceria os elementos de sustentação de uma federação. O lugar dos municípios e das regiões metropolitanas em algumas federações: comparação com o caso brasileiro Tradicionalmente, as discussões, em torno do federalismo, repousam sobre o formato dual das federações, figurando nas análises as relações que se estabelecem entre os Estados-membros e a União Federal. 12 Uma das mudanças institucionais mais significativas no pacto federativo norte americano, que estavam sintonizadas com o New Deal, foram as reformas das regras para a eleição de Senadores, que até então eram eleitos pelos legislativos estaduais, e passaram a ser eleitos diretamente pela população, enfraquecendo assim o poder das elites políticas estaduais na federação. 57 No estudo dos desafios da governança e da governabilidade metropolitana em países federativos, é necessário também conhecermos a posição dos governos locais na federação. Apesar de os municípios, em regra, não serem considerados entes integrantes da federação (exceto o Brasil), normalmente, os problemas de gestão metropolitana repousam com maior vigor nas relações intergovernamentais entre governos locais, embora em algumas situações, a ocorrência de regiões metropolitanas interestaduais(por exemplo, Nova Iorque e a Ride13 de Brasília) imponha dilemas que afetam também as transações entre Estados-membros. Importa notar que o problema da gestão metropolitana é, ao menos em tese, mais complexo em países federativos do que em Estados unitários, pois conforme a observação de Paranhos: A questão em debate é: como fazer a dimensão legal-institucional desse fenômeno [metropolitano] acompanhar a sua realidade territorial, socioeconômica e funcionalprodutiva? De modo mais específico, o problema está em que, nos Estados Unitários, apesar da autonomia municipal assegurada nas Constituições, o Governo Central tem poder suficiente para constituir entidades supramunicipais. Já nos Estados Federativos, a criação de entidades supramunicipais implica uma renegociação de poderes, competências e recursos, a partir do que já estiver garantido na Constituição Federal. Será necessário repactuar esses atributos, pensando em aperfeiçoar a relação custo-benefício da administração pública, dentro do objetivo geral de prover bens e serviços à população para satisfazer suas necessidades básicas e melhorar progresivamente a qualidade de suas condições de vida, homogeneizando e universalizando o "direito à cidade" para toda a população metropolitana. (Paranhos, 2005:141) O padrão institucional do município na federação é fator determinante para a medição dos custos de transação envoltos aos problemas de governança e governabilidade metropolitana. Uma das questões-chave a esse respeito se refere ao nível de autonomia que os municípios possuem nos regimes, e esse é um fator importante a ser considerado nas transações intergovernamentais no complexo metropolitano. Processos de gestão metropolitana são reconhecidos como tensos, principalmente, quando são preservados níveis locais de administração. Ao comentar as experiências latino-americanas de gestão metropolitana, Paranhos ressalta: “como a autonomia municipal é essencial para a gestão local, é muito compreensível uma resistência natural para a aceitação de uma outra esfera de territorialização da federação, principalmente quando se pretende uma autoridade metropolitana controlada pelo estado federado ou pela União.” (Paranhos, 2005: 33) A coexistência entre governos locais e metropolitanos remete a uma tensão entre processos que buscam conferir maior governabilidade regional mediante reconhecimento legal-institucional da área metropolitana. (Fernandes, 2004) 13 A sigla Ride significa Região Integrada de Desenvolvimento. 58 Dessa forma, os impasses existentes, entre a gestão metropolitana e os governos locais, remetem à importância do estudo das instituições que regulam a coexistência de desses dois níveis de poder. Ao tomarmos como critério o nível de autonomia dos governos locais, podemos classificar as federações em três grupos, de acordo com experiências concretas de federalismo. No primeiro grupo, encontram-se as federações que definem o governo local como mera instância administrativa, que, embora dotada de personalidade jurídica própria, pode ser modificado a qualquer momento pelo poder legislativo de esferas superiores de governo. No segundo grupo, posicionamos as federações em que o nível de autonomia dos municípios é maior, podendo estes se autogovernarem em determinados assuntos, independentemente, dos entes governamentais superiores, mantendo, porém, algum nível de subordinação formal em relação aos entes federados superiores. No terceiro grupo, temos as federações em que os municípios são extremamente autônomos, com manifestações formais dessa condição a ampla autonomia para a auto-organização administrativa, legislativa e financeira, assim como restrições constitucionais para os entes governamentais superiores mitigarem essa auto-regulação dos governos locais. Para problematizar essa classificação das federações em três grupos, iremos abordar três casos. Cada um é representativo desses três níveis de autonomia municipal: o Canadá, os Estados Unidos e o Brasil. Municípios e regiões metropolitanas na federação canadense No primeiro grupo, caracterizado pela autonomia restrita dos governos locais, está o caso do Canadá. Nessa federação, a municipalidade é uma jurisdição governamental criada, estruturada, e passível de modificação legal pela instância de governo, imediatamente, superior à província. De acordo com Daniel Burns (2005), a Constituição do Canadá inspira-se na tradição britânica, com algumas partes expressas por escrito e outras não. Enquanto, na Grã-Bretanha, a soberania nacional é baseada no Parlamento e na Coroa, no Canadá é compartilhada entre o Parlamento Nacional e os poderes legislativos das dez províncias. Na divisão de poderes entre o governo central e as províncias, estas são responsáveis por legislar sobre o governo local. Portanto, na federação canadense, as municipalidades não configuram uma esfera de governo e não possuem status constitucional. Como se definem e o que podem fazer dependem dos poderes legislativos ou dos governos das províncias. A província, normalmente, edita legislação que organiza o governo local, estabelecendo detalhadamente os deveres e poderes dos municípios. A restrita autonomia e a ausência de status constitucional do município, no Canadá, reduzem custos de transação para mudanças institucionais relativas à organização do território, como no caso das regiões metropolitanas. As escolhas institucionais para organização das regiões metropolitanas variam de acordo com a legislação própria de cada província e com especificidades do processo histórico local. Entretanto, 59 pode ser identificado um padrão no Canadá de constantes reformulações das fronteiras municipais para melhor adequação ao processo de metropolização.(Burns, 2005) Com exceção da província de Vancouver, onde o organismo regional da área metropolitana se dedica apenas a atividades de planejamento regional e de trânsito, houve reformas municipais profundas em regiões metropolitanas de províncias como Nova Scotia, Quebéc e Ontário. Burns (2005) revela que as cidades de Halifax, Québec, Hull e todos os municípios na ilha de Montreal, que antes estavam organizadas em numerosos governos em suas regiões, cada qual contando também com alguma forma de organismo regional, foram transformadas em municípios singulares englobando toda a extensão geográfica metropolitana. Tais reformas foram orientadas por diretrizes de maior convergência entre a capacidade fiscal e técnica dos municípios e suas responsabilidades, em um momento de “restrições substanciais de gastos em todo o setor público.” (Burns, 2005:169). A autonomia municipal é bastante restrita na província de Ontário, e têm uma explicação histórica. Durante os anos da grande depressão, boa parte dos municípios de Ontário foi à falência e eles foram submetidos ao controle do governo da província. Foram editadas novas normas para garantir que os municípios assegurassem uma situação financeira equilibrada. Segundo Burns (2005), desde então, “os municípios não podem apresentar déficit operacional e, caso este ocorra ao longo do ano, tem de ser retificado no ano seguinte. Além disso, qualquer plano de empréstimo de capital desenvolvido por um governo local precisa ser aprovado pelo Conselho Municipal de Ontário. Os municípios não podem pedir empréstimos de capital, se isto comprometer sua eficácia operacional. O resultado deste sistema, e de sistemas similares aplicados nas outras províncias, é que o setor municipal canadense apresenta superávit todos os anos na prestação de contas em nível nacional.” (Burns, 2005: ) Em Ontário, a legislação provincial prevê um interessante expediente por meio do qual os próprios municípios podem ampliar suas fronteiras geográficas e negociar entre si fusões e anexações. Nessa província, um município pode propor a anexação territorial a outro, que pode aceitar ou rejeitar a proposta. Se a transação não for bem sucedida, o município responsável pela proposta poderá apelar ao Conselho Municipal de Ontário, que, como um magistrado, detém poderes para impor legalmente sua decisão às partes. Segundo Burns (2005:170), “ao longo da maior parte da história de Ontário, esta tem sido a forma pela qual as cidades ampliam suas fronteiras.” O método mais freqüente de reorganização municipal, em Ontário, tem sido a aprovação de leis provinciais. O mais representativo desses casos foi a criação por lei de governos regionais: a começar pelo município da Região Metropolitana de Toronto, na década de 1950. Até 1970, foram criados municípios regionais em todas as localidades que sofreram processo de metropolização na província, englobando todas as áreas adjacentes a Toronto e também a Ottawa e a Hamilton. Tais governos constituíam uma nova esfera administrativa, possuindo geralmente Câmaras Municipais com uma combinação de representantes eleitos, anteriormente, na esfera inferior e outros eleitos diretamente pela população. Normalmente, a criação desses governos regionais, em áreas metropolitanas, fundamentou-se em três ordens de fatores: a administração do crescimento, a obtenção de maior equidade nas finanças 60 públicas e a organização dos serviços de policiamento em áreas geográficas maiores e mais eficazes. Burns ressalta que a metropolização “gerou a necessidade de se mobilizar uma soma significativa de capital e de se criar organizações prestadoras de serviços públicos com capacidade técnica e profissional para administrar a maior demanda. A equidade nas finanças públicas significava que esses custos poderiam ser distribuídos pela base de impostos de toda a região, e não apenas das áreas em crescimento acelerado. Depois, pelo mesmo motivo, a base de impostos regional foi utilizada para financiar a educação e a quota de serviços sociais em escala local.”(Burns, 2005:170) Mais recentemente, na década de 1990, a reorganização dos municípios foi bastante pautada pela agenda de reformas do setor público canadense, com particular ênfase na melhoria da qualidade do gasto governamental. Muitos municípios desapareceram do mapa, por serem considerados de menor escala. Foram incentivadas fusões de governos locais. Nas três principais áreas metropolitanas, a fusão foi imposta por lei. O foco das mudanças foi o alcance da escala correta para a gestão, o controle de custos, o aperfeiçoamento da prestação de contas e a simplificação geral da governança e da oferta de serviços públicos. (Burns, 2005) Como se pode notar, o federalismo canadense oferece custos de transação vigorosamente baixos para a implantação vertical e compulsória de sistemas de gestão metropolitana. Municípios e regiões metropolitanas na federação brasileira Em nossa classificação das federações segundo o grau de autonomia dos governos locais, chegamos finalmente ao terceiro grupo, cujo modelo federativo que ilustrará nossa análise é exatamente o brasileiro. O Brasil foi a primeira federação do mundo a definir o município como ente federativo expressamente em sua constituição escrita (Camargo, 2003). Mais que mero discurso retórico do texto constitucional, existem três argumentos básicos que tornam o Brasil virtualmente incomparável no que se refere à autonomia formal dos governos locais. O primeiro argumento enfatiza que o município no Brasil edita leis próprias pelo seu poder legislativo, a Câmara Municipal. Nas palavras de Paranhos (2005:146), “a autonomia política é um fato, já que as autoridades locais são todas elas eleitas sufrágio universal”.As leis federais e estaduais não valem mais nem menos que as leis municipais aprovadas. São três níveis diferentes de produção legislativa, e cada nível é responsável pela regulação de assuntos estipulados diretamente na Constituição Federal. O segundo argumento salienta que os municípios elaboram e aprovam de maneira autônoma sua Lei Orgânica e é desnecessária a consulta aos entes federativos superiores. Logo, os governos locais se auto-organizam pelas normas gerais da Constituição Federal e por meio das Leis Orgânicas, aprovadas pelas Câmaras Municipais. O terceiro argumento ressalta que a autonomia financeira local é formalmente definida, e os municípios detêm poderes para estabelecer e arrecadar tributos de forma autônoma, nos 61 limites da constituição. Para Paranhos (2005) a autonomia financeira dos municípios brasileiros “é mais duvidosa em alguns casos, apesar de que todas têm recursos próprios, mas estes geralmente não são suficientes para cobrir todas as necessidades operacionais e de investimentos. Estes recursos são geralmente complementados por transferências da esfera nacional e intermediária, que nem sempre são programadas. De um certo tamanho populacional para baixo, os municípios dependem cada vez mais dessas transferências para poder realizar seus programas de ação.”(Paranhos, 2005:146) Ademais, vigora no Brasil um formato institucional padrão de município, não havendo distinções de espécies e escalas de governos locais, tal como ocorre nos Estados Unidos. Todos os municípios são presumidamente iguais no jogo federativo. A força do poder local na federação brasileira sugere custos de transação mais complexos para gestão metropolitana em relação aos Estados Unidos, e, principalmente, em relação ao Canadá. Esse formato singular do município brasileiro guarda sua origem no processo histórico de colonização e recrudesceu com o retorno da democracia em 1988. Desde o período colonial, as instâncias locais de poder surgiram como organizações de primeira grandeza no relacionamento entre governo e sociedade. Na administração colonial, havia lugar de destaque para o governo local, que, durante muito tempo, foi atribuição das Câmaras Municipais. Estas freqüentemente comunicavam-se diretamente com o rei de Portugal, indiferentemente à hierarquia administrativa superior da colônia. Castro (2001) relata que o primeiro município do Brasil foi a Vila de São Vicente, fundada por Martim Afonso, em 1532, tendo se constituído primeiro governo autônomo das Américas.14 Acrescenta ainda que: A distância da metrópole, as preocupações da Coroa com a Guerra da Espanha e as Índias, a vastidão territorial da colônia, tudo isso, aliado, ao sentimento nativista do povo que se formava e se expandia, está a explicar a vitalidade das instituições municipais.( Castro, 2001:39). Assim, o grande realce dado pela Constituição Federal de 1988, é, na verdade, o cume de um processo histórico de origem secular. Na edição da Constituição Imperial de 1824, o poder das Câmaras Municipais era tão expressivo que o imperador Dom Pedro I submeteu o texto constitucional às aprovações dos legislativos municipais. A primeira Constituição da República de 1891, por sua vez, já se referia expressamente à autonomia municipal. A autonomia municipal sofreu refluxo durante o governo no período conhecido como Estado Novo. Nos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1946, insurgiu um grupo de parlamentares que pregavam a restauração da autonomia municipal, diminuída pela Constituição de 1937. Desde uma 14 Um aspecto interessante da Constituição de 1824 era a existência de espécies diferentes de municípios. Essa tradição de distinção de governos locais, de acordo com a escala, foi suprimida com o advento da República. 62 época ficaram conhecidas como municipalistas as lideranças que pugnavam pela autonomia municipal. (Dallari, 1977: 443). Os municipalistas tiveram forte influência na confecção da Constituição de 1988, que apostou no fortalecimento municipal para fazer contraposto a uma maior centralização federativa, ocorrida durante o regime militar. O movimento municipalista está corporificado em inúmeras associações de municípios, e seu principal pleito, atualmente, é a redefinição dos mecanismos de distribuição das receitas públicas, de maneira que os governos locais aumentem seu percentual no cômputo total das arrecadações na federação. Como menor unidade político-administrativa da federação brasileira, o município se posiciona logo abaixo dos Estados-membros. Todavia, os governos locais não são hierarquicamente inferiores aos estados segundo a Constituição de 1988, de maneira que só em condições muito especiais, definidas na Constituição, o município estará sujeito a uma intervenção compulsória do Estado-membro. Os municípios podem ser subdivididos em distritos ou subprefeituras, mas essas circunscrições são órgãos criados e vinculados pelo poder executivo e político concentrados na pessoa do prefeito, o único membro do governo local eleito por sufrágio universal. Os ocupantes de cargos dessas subdivisões administrativas dos municípios são de livre nomeação e exoneração dos prefeitos. Os membros do poder legislativo municipal, os vereadores, são eleitos por sufrágio universal. As Câmaras Municipais editam leis que regulam assuntos como impostos sobre a prestação de serviços e propriedade imobiliária urbana, sobre a já mencionada organização administrativa, assim como sobre uso e ocupação do solo, meio ambiente, patrimônio histórico, posturas, entre outras questões. Na federação brasileira, a divisão de responsabilidades é baseada em uma regra constitucional segundo a qual as competências da União e dos municípios são definidas expressamente na constituição, restando aos Estados-membros as chamadas competências residuais, ou seja, as responsabilidades não expressamente escritas na constituição. Essa regra se mostra pouco clara nas áreas metropolitanas, onde a sobreposição de circunscrições governamentais tende a ser a regra e não exceção. Ademais, como o grosso das receitas fiscais brasileiras se baseia na arrecadação de tributos sobre patrimônio e circulação de riquezas, os grandes centros industriais e de serviços são beneficiados com mais recursos, ao passo que os municípios menores e as cidades-dormitório são sobremodo dependentes de transferências financeiras do Estado-membro e da União. As negociações de interesses comuns e a promoção da equidade entre as cidades por iniciativa própria são dificultadas por uma regra legal segundo a qual uma cidade não pode realizar investimentos em outra, salvo em casos excepcionais. 15 15 Um exemplo excepcional que ilustra essa questão são as iniciativas de cidades ricas construírem aterros sanitários em municípios periféricos para disposição final de lixo nessas localidades. Em tais situações, as câmaras municipais têm autorizado por lei suas respectivas prefeituras a realizarem esse tipo de investimento na medida em que o município-beneficiário é, na prática, o próprio investidor. 63 Nas áreas em que os problemas decorrentes da escala regional se sobressaem, sobram evidências de que a questão da governança metropolitana, no Brasil, constitui um grande impasse institucional. Embora os municípios possuam autonomia para estabelecerem entre si acordos formais e informais para a resolução de problemas comuns, as experiências de cooperação entre municípios colecionam muitos fracassos, em geral, decorrentes de razões como a falta de interesse das lideranças locais, de recursos específicos, de apoio dos governos federal estadual e também a ausência de sintonia entre as organizações supramunicipais e as máquinas administrativas de cada município.(Krell, 2003) Assim, a experiência empírica da evolução recente dos municípios, na década de 1990, revela que preponderam forças competitivas sobre as cooperativas entre os municípios. São relativamente rarefeitas as experiências de pactuação de organizações horizontal-voluntária de municípios para a gestão de problemas comuns. Em geral, os casos mais expressivos de cooperação intermunicipal que alcançaram relativo sucesso, são fundadas em políticas de incentivos seletivos implementadas pelas instâncias estadual e federal. É o caso, por exemplo, da experiência dos Consórcios Intermunicpais de Saúde em Minas Gerais, que, de acordo com Faria e Vasconcelos (2004), dependeram da decisiva articulação estadual dos Consórcios Intermunicipais. Os estados e a União podem estabelecer mecanismos de incentivos seletivos para a indução de práticas de cooperação intermunicipal, mas não podem fazê-lo de maneira formalmente compulsória. Krell salienta que, ao contrário de países como Portugal e Alemanha, “a autonomia jurídica dos municípios do Brasil é tão abrangente que União e Estados não são capazes de obrigar os municípios, por lei, a formar associações, consórcios ou colaborar entre si para executar determinadas funções públicas em conjunto.”(Krell, 2003:69) O único dispositivo da Constituição Federal de 1988 que pode sugerir algum nível de possibilidade de se obrigar os municípios a se integrarem para a administração de interesses comuns é exatamente o que disciplina a criação de regiões metropolitanas e outras formas de organização regional: “CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS Art. 25. (...) § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.” (Brasil, 1988) Essa possibilidade de integração compulsória de municípios integrantes de regiões metropolitanas pelo estado é combatida, veementemente, por algumas lideranças municipalistas e da sociedade civil organizada, como no caso da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental – FNSA16, que faz 16 A Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental é composta pelas seguintes entidades: FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento FNU/CUT – Federação Nacional dos Urbanitários/CUT FISENGE – Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores REBRIP – Rede Brasileira pela Integração dos Povos CMP – 64 oposição à organização pelos governos estaduais dos serviços de saneamento em regiões metropolitanas, conforme se verifica em documento divulgado pela entidade: “Os itens que queremos preservar na Política Nacional de Saneamento são os seguintes: (...) A manutenção da titularidade municipal, em qualquer situação, dos serviços de saneamento e repudia qualquer tentativa de ter tais competências subtraídas. Em regiões metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões, aonde hoje já ocorrem o fornecimento de água no atacado ou o tratamento de esgotos conjunto; com a respectiva distribuição de água e coleta de esgotos no “varejo” é necessária a instituição legal de contratos de fornecimento entre prestadores de entes federados diferentes que definam as condições em que tais serviços devem ser prestados.”(FNSA, 2005) Os estados que tentaram implementar legislações mais restritivas da autonomia municipal em matéria de organização de serviços metropolitanos, como no caso do Rio de Janeiro, iniciaram batalhas judiciais com os municípios. O que se depreende desse contexto nada favorável para transações metropolitanas é que as lideranças dos Estados-membros, em geral, podem tender a serem negligentes com a organização compulsória das regiões metropolitanas em nome da preservação de boas relações políticas com os governantes locais. As possibilidades da organização vertical-compulsórias das regiões metropolitanas tendem, portanto, a oferecer custos de transação elevados para os governos estaduais. Disso resulta que as regiões metropolitanas formalmente instituídas, segundo análise de Moura e outros, “não se ancoram em um arcabouço institucional que efetivamente estruture sua complexa dinâmica. Reconhecidamente, são espaços de expressão econômica e social, porém não de direito, pois não circunscrevem territórios aptos a normatizar, decidir ou exercer o poder, situando-se num hiato entre a autonomia do município – reforçada na Constituição de 1988 – e a competência da União quanto à gestão para o desenvolvimento. (...) A realização de pactos social e territorial esbarra na fragilidade do complexo ambiente jurídico-institucional das regiões, sob pressão de hegemonias e poder político, e de disputas político-partidárias, que prejudicam a tomada de decisões de âmbito regional.” (Moura e outros, 2003:52 e 53) Diante das limitações que as experiências de gestão metropolitana organizadas de forma vertical têm apresentado no Brasil, a alternativa da organização horizontal das áreas metropolitanas tem sido defendida por operadores de políticas públicas, como por exemplo, o governo federal, por meio do Ministério das Cidades. Os principais instrumentos jurídicos desses formatos voluntários de cooperação intergovernamental são os convênios e os consórcios. Os primeiros destinam-se ao estabelecimento de acordos mais precários, com prazo de validade curto e atrelado ao desenvolvimento de um programa ou projeto específico. Central de Movimentos Populares; MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Instituto PÓLIS ONG Água e Vida União Nacional de Moradia Popular Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor. 65 O segundo instrumento, o consórcio público, tem por função a articulação intergovernamental em bases mais duráveis, tendo sido bastante reforçado recentemente com emenda constitucional n.º19, de 1998, a qual criou o conceito de “gestão associada de serviços” através de consórcios públicos., e com a recém publicada Lei Federal n.º 11.107 de 2005, que regulamentou a matéria. Uma grande questão que está na agenda dos consórcios intermunicipais existentes no Brasil é exatamente a sua adaptação a esse novo modelo jurídico de cooperação horizontal estipulado pela lei federal. Esse incentivo em direção à cooperação inter-governamental voluntária nas áreas metropolitanas ocorre ora consoante à legislação estadual ora à sua revelia, orientado pela tentativa de se superar as limitações do poder municipal em responder a questões que ultrapassam os limites políticoadministrativos dos municípios. Tais experiências, no entanto, de acordo com Moura e outros, enfrentam o que o ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, uma das principais lideranças do Consórcio Intermunicipal do ABC paulista: “chamava de “forças centrífugas”, quais sejam, forças contrárias ao processo de integração regional e que provêem de diferentes origens e interesses, sejam político-partidários, sejam de lideranças de instituições da sociedade civil, além dos conflitos municipais decorrentes de diferentes objetivos, dada a diferente problemática enfrentada, e aqueles, não desprezíveis, de natureza simbólica.” (MOURA e Outros, 2003: 54) A título de síntese, o que se pode extrai dessa análise introdutória é que, seja ela compulsória ou voluntária, a gestão das regiões metropolitanas é pautada por elevados custos de transação, em boa medida, por conta da fragilidade das instituições regulatórias das relações intergovernamentais no Brasil. Custos de transação comparados na gestão da RMBH no Grande ABC Até aqui, esse estudo fez o uso do método comparativo para pontuar aspectos singulares do federalismo e das relações intergovernamentais brasileiros cuja contribuição foi um apoio à construção do argumento de que os problemas de gestão metropolitana no Brasil podem ser explicados pelos custos de transação a que estão sujeitos a governança e a governabilidade metropolitana no Brasil. Do ponto de vista metodológico, o exercício investigativo desenvolvido até o momento analisou as constantes que afetam tanto a RMBH e o Grande ABC, as instituições federativas brasileiras. Exerceremos, agora, o estudo comparado das variáveis dessas duas experiências de gestão metropolitana. O estudo comparado das experiências da Região Metropolitana de Belo Horizonte, RMBH, e do Consórcio do Grande ABC com base conceito de custos de transação permite-nos, em uma análise geral, propor quatro períodos distintos para a trajetória da gestão das regiões metropolitanas nos casos estudados. O primeiro período, designado tecnocracia esclarecida, coincide com o apogeu do regime militar no Brasil. A União federal constituiu nove regiões metropolitanas (dentre elas a RMBH) fortemente controladas pelos governos estaduais, e as dotou de canais de financiamento tais como o Banco Nacional de Habitação(BNH) e o Plano Nacional de Saneamento(PLANASA). Nesse período os custos de transação na gestão metropolitana eram baixos, uma vez que favorecidos pela 66 repressão aos movimentos sociais, pela ausência de eleições diretas para governador do estado e prefeito de Belo Horizonte (governador e prefeitos biônicos) e pela dependência financeira dos municípios de transferências de recursos da União e do estado. O segundo está relacionado ao início do processo de redemocratização, e fica singularizado pela influência que a crise fiscal da União e a reedição de eleições diretas para a escolha do governador e dos prefeitos de cidades antes definidas como de segurança nacional teve no funcionamento da gestão metropolitana. Nesse momento ocorre o surgimento de novos atores na gestão metropolitana, e tais mudanças sinalizaram uma elevação dos custos de transação. O terceiro período tem como marco zero a constituinte de 1988, que elevou o status do município na federação brasileira. Nesse período, observa-se o fenômeno do “municipalismo a todo custo”, termo cunhado por Fernandes (2005) para se referir ao processo de descentralização observado no Brasil após a constituinte.17 Na RMBH, os atores que criaram seu espaço, no período anterior, fortalecem-se, concebem, na constituinte mineira de 1989, um modelo de gestão sintetizado na Assembléia Metropolitana (AMBEL), cuja principal característica é a ampliação formal do poder dos municípios no processo decisório metropolitano. O Grande ABC paulista como objeto de nossa análise, surge paralelamente à terceira fase temporal da RMBH, quando foi criado, em 1990, o Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings. O municipalismo a todo custo, entretanto, também mostra sua força na região em 1992, quando as eleições municipais arrefecem a articulação regional. O quarto período, ainda em curso, refere-se ao aparente ressurgimento da questão metropolitana na agenda política, cujos sinais, como se verá, já tem produzido decisões de caráter recentralizador dos arranjos metropolitanos. Nesse período, alguns setores da sociedade civil organizada já internalizam a questão metropolitana, e se posicionam como novos atores na dinâmica das transações metropolitanas. Aparentemente, o aprendizado proporcionado pelo municipalismo a todo custo na década de 1990, favorece uma compreensão pelos atores da interdependência real dos municípios na área metropolitana e da necessidade de maior presença do Estado e da União no planejamento metropolitano. Esse período se inicia mais precocemente no Grande ABC, onde a articulação regional se fortalece e se torna menos vulnerável à sazonalidade do processo político-eleitoral, e também com a participação do governo estadual e da sociedade civil nos mecanismos de cooperação voluntária. No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, esse período é mais recente e é marcado pela retomada da agenda metropolitana pelo governo estadual, pelo arrefecimento do processo de municipalização de serviços de interesse comum e pela reforma da legislação metropolitana da RMBH. 17 O termo município autárquico, apresentado por Abrúcio e Soares(2001) é expressão alternativa que, grosso modo, define o mesmo fenômeno nomeado municipalismo a todo custo por Fernandes(2004) 67 A trajetória da Região Metropolitana de Belo Horizonte O período da tecnocracia esclarecida na RMBH18 Fenômeno associado ao processo de desenvolvimento industrial brasileiro, a metropolização configurou determinadas áreas no território nacional, notadamente em torno das capitais estaduais, onde estavam presentes grandes manchas urbanas divorciadas da multiplicidade de municípios sobre os quais estas se expandiam. Os dilemas da metropolização induziram experiências interessantes de envolvimento de municípios no sentido de eles potencializarem acordos de gestão integrada de seus interesses comuns. 19 No campo técnico, a idéia de gestão metropolitana consolida-se no Seminário do Quitandinha, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em 1963. Nesse encontro técnico, a questão metropolitana foi amplamente debatida e nele surgiram propostas que convergiam para a necessidade de institucionalização de um aparato jurídico-administrativo específico para o planejamento e administração integrados das regiões metropolitanas.(Machado, 2002) A Constituição de 1967, marco jurídico do regime autoritário estabelecido em 1964, incorporou em seu texto uma preocupação com a questão metropolitana, permitindo à União criar, por lei complementar, regiões metropolitanas constituídas por municípios pertencentes à mesma comunidade sócio-econômica, para a realização de serviços comuns. A mesma constituição, entretanto, sugere a permanência da titularidade desses serviços comuns com os municípios, ao lhes facultarem a possibilidade de celebrarem convênios para a exploração de serviços públicos de interesse comum.(Jobim, 2006) A Constituição de 1967 foi regulamentada pela lei complementar n.º 14, de 1973, que definiu o modelo de gestão e também criou oito regiões metropolitanas no Brasil, dentre elas a de Belo Horizonte. Basicamente, esse modelo pode ser caracterizado como “estadualista”, ou seja, controlado pelos governos estaduais correspondentes, na medida em que o comando da gestão de cada região metropolitana foi atribuído a um conselho deliberativo composto por cinco membros nomeados pelo governador do estado. Um deles deveria figurar em lista tríplice que era elaborada pelo prefeito da capital, outro mediante indicação dos demais municípios integrantes da região metropolitana, e os três restantes de livre indicação do governador. A lei complementar n.º14/73 estabeleceu confusão jurídica quanto à titularidade de serviços de interesse comum ao atribuir ao conselho deliberativo metropolitano a competência para conceder a prestação de serviço de interesse comum a entidade estadual. O modelo de gestão recebeu críticas de juristas tais como Grau(1983), pelo fato de a legislação brasileira não ter resolvido o problema fundamental da questão metropolitana, que é o de estabelecer com clareza a titularidade dos serviços de interesse comum em regiões metropolitanas, ou seja, definir a qual ente de governo compete a execução de funções públicas tais como o transporte, o saneamento e o controle do uso e ocupação do solo. 18 O nome dado a esse período da gestão na Região Metropolitana de Belo Horizonte se inspira, ainda que de maneira lúdica, no período conhecido como “”despotismo esclarecido” vivenciado pela Europa no Século XVIII, quando as indisposições geradas pelo confronto dos Estados Absolutistas de então com as idéias iluministas fez muitos monarcas da época buscarem justificativas para seu poder absoluto assentadas(...) Os historiadores denominam tais monarcas de “déspotas esclarecidos”. 19 Citamos os casos da área metropolitana de Porto Alegre e São Paulo, que possuíam já na década de 1960 experiências embrionárias de gestão metropolitana. 68 O ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, ao julgar recente controvérsia a respeito da titularidade de serviços em regiões metropolitanas, fez este comentário sobre essa legislação federal: “Não se sabia de quem era a competência executória ou administrativa da unidade regional, ou seja, quem seria o titular da competência de prestar os serviços de natureza comum. Diante da confusão trazida pela legislação e pelo total descaso com a nova organização intermunicipal por parte da União, na prática, os Estados acabaram estruturando o funcionamento das Regiões Metropolitanas, muitas vezes obtendo a concessão municipal do serviço de maneira informal. É dessa época a criação de empresas e autarquias estaduais também para conferir aplicação e execução aos serviços das Regiões Metropolitanas...(Jobim, 2006:17) Ao optar por esse modelo de organização das regiões metropolitanas de maneira compulsória, porém confusa do ponto de vista jurídico, o governo federal estabeleceu um modelo de gestão propenso a tensões, que, entretanto, foram amortecidas até o momento em que o contexto vigente reunia um conjunto de condições favoráveis, principalmente: • a presença de governadores e prefeitos biônicos como atores de peso nas regiões metropolitanas. Os prefeitos e o governador biônicos eram aqueles nomeados pela União para assumir a chefia do poder executivo em municípios ou estados caracterizados como de segurança nacional. Essa determinação garantia maior controle do governo central sobre essas regiões e tendia a reduzir a influência da população e de políticos locais no processo de gestão, reduzindo assim custos de transação para a implementação de diretrizes nacionais na administração das regiões metropolitanas. • A dependência financeira dos municípios de transferências da União. Essa situação permitiu ao governo central vincular a liberação de recursos à adesão voluntária dos municípios às diretrizes da política nacional de desenvolvimento urbano, principalmente, nas áreas de habitação, saneamento e transportes. O governo federal, então, estruturou uma política nacional para as regiões metropolitanas que se baseou no tripé recursos financeiros, centralização decisória e tecnocracia (Machado, 2002) , efetivando um conjunto de medidas que, em linhas gerais, amortizaram os custos de transação para a gestão metropolitana naquele período. No eixo centralização decisória, a União definiu na Lei Complementar n.º 14, de 1973, um modelo de gestão padronizado para as regiões metropolitanas criadas à época, em que o controle do poder decisório ficava nas mãos dos governos estaduais, com uma participação formalmente simbólica dos governos locais na gestão metropolitana. No eixo recursos financeiros, o governo federal estabeleceu uma farta carteira de recursos com destinação vinculada à gestão metropolitana. Com uma minirreforma tributária, o governo federal vinculou parcelas dos recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (IUCLG) e da Taxa Rodoviária Única aos sistemas estaduais de gestão metropolitana. No caso do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos, o Decreto-lei Nº 1.555, de 27 de maio de 1977, ao estabelecer normas para a distribuição e aplicação dos recursos arrecadados, determinou: “Art. 3º Os Estados onde existem regiões metropolitanas 69 aplicarão, no mínimo 50% (cinqüenta por cento) das parcelas que lhes competirem em projetos e programas específicos dessas regiões.”(Brasil, 1977) Outra medida nesse sentido foi a criação de incentivos seletivos para os municípios colaborarem com a gestão metropolitana. Dessa maneira, colaborar com os programas federais e estaduais de gestão metropolitana passou a ser requisito técnico para os governos locais acessarem recursos de fontes como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), o Banco Nacional da Habitação(BNH), a Empresa Brasileira de Transportes urbanos e do Plano Nacional de Saneamento Básico(PLANASA). Dentro dessa diretriz, a Lei Complementar n. º 14, de 1973, determinou em seu artigo sexto que “os Municípios da região metropolitana, que participarem da execução do planejamento integrado e dos serviços comuns, terão preferência na obtenção de recursos federais e estaduais, inclusive sob a forma de financiamentos, bem como de garantias para empréstimos.” (Brasil, 1973) No eixo tecnocracia, algumas evidências do apego a essa diretriz para a gestão das regiões metropolitanas foram a ênfase da lei federal n.º 14/73 a uma gestão metropolitana mais técnica, e menos política. Além de induzir a criação pelos estados de uma entidade da administração indireta, portanto, dotada de maior autonomia, para ser responsável pela “unificação da execução dos serviços comuns”, a mesma lei definiu como critério para ser membro do Conselho Deliberativo Metropolitano, possuir “reconhecida capacidade técnica ou administrativa”.(Brasil, 1973) Outro indicativo da ênfase na técnica da política metropolitana nacional foi o programa de repasses para o planejamento urbano, que antecedeu a própria instituição das regiões metropolitanas. Nesse sentido, foi instituído o Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo (SERFHAU), responsável pela elaboração da política nacional de desenvolvimento urbano e principal financiador de planos diretores para as grandes cidades do país.(Azevedo, 2002). Com esses recursos, até 1975, foram elaborados Planos Metropolitanos de Desenvolvimento Integrado para Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Fortaleza. (Steinberguer, Marília. Apud: Azevedo, 2002:10). Esse período é denominado, por Ribeiro e Cardoso, como tecnoburocratismo desenvolvimentista, época em que o planejamento urbano é entendido como instrumento de racionalização administrativa, em sincronia com a concepção desenvolvimentista de Estado, formulada pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). (Ribeiro e Cardoso, 1990 Apud: Azevedo, 2002) O que se percebe é que a robusta estrutura institucional-burocrática federal, para a implementação de políticas urbanas, é um atestado da prioridade que os militares deram à temática urbana e metropolitana. Definidas com objetivos e instrumentos no nível federal, as diretrizes da política nacional para as regiões metropolitanas reproduziram-se de maneira diferente em cada estado da federação. Minas Gerais foi um estado que definiu como prioridade a questão metropolitana. Antes mesmo da instituição da RMBH em 1973, o governo mineiro já havia constituído grupo de trabalho específico para desenvolver o Plano Metropolitano de Belo Horizonte com recursos do SERFHAU (Machado, 2002). Desse grupo se originou uma autarquia em 1974, a Superintendência de Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), que comandou o processo de gestão da RMBH ao longo da década de setenta. 70 No mesmo período foram constituídas também: a Companhia Estadual de Habitação, COHAB, a Companhia Estadual de Saneamento, COPASA e a Companhia Metropolitana de Transportes, METROBEL, abastecidas com recursos dos fundos e entidades federais de desenvolvimento urbano que descrevemos anteriormente. Uma vez criada a rede de incentivos seletivos federais para os municípios aderirem a essas entidades estatuais, os custos de transação para a o planejamento e execução de programas dimensionados sob a ótica regional encontravam-se baixos. O momento propício às transações metropolitanas pode ser exemplificado pelo fato dos principais municípios da RMBH terem concedido por trinta anos à COPASA, em 1973, a execução dos serviços de saneamento básico. Outro exemplo foi a delegação pelos governos locais do gerenciamento do transporte e do trânsito urbanos à METROBEL. Essa companhia, de caráter interfederativo20, se destacou por ter efetuado uma completa reestruturação do sistema metropolitano de transportes e pela criação do mecanismo redistributivo denominado Câmara de Compensação Tarifária (CCT), segundo o qual foram subsidiados os transportes que atendiam os municípios da periferia. Conforme revelam a Fundação João Pinheiro (2006), Mares Guia(1994), Moraes (1997), Gouvêa(2005), entre outros autores, parte significativa das diretrizes e projetos desenvolvidos naquele período nas áreas de transportes, expansão do sistema viário e uso do solo na RMBH foram definidos pelo PLAMBEL. A participação dos governos locais na formulação do planejamento da RMBH era restrita, por força de uma visão prevalecente no staff metropolitano do estado segundo a qual os agentes políticos, de uma forma geral, tenderiam a criar obstáculos ao planejamento regional. Centralismo decisório e tecnocracia estavam plenamente associados ao planejamento metropolitano na década de 1970. O caráter determinista do planejamento, então desenvolvido na RMBH, era alheio a um maior envolvimento da sociedade civil e das instâncias municipais na gestão da região, e uma das principais conseqüências disso foi a associação direta da gestão metropolitana com o regime ditatorial. Tal associação traria dificuldades para o sistema estadual de gestão metropolitana manter seu espaço no contexto de redemocratização ocorrido na década de 1980. Curiosamente, foi uma política estadual de incentivo ao associativismo voluntário de municípios que fez surgir no período o principal espaço institucional por meio do qual se veicularam manifestações da insatisfação municipalista em relação ao sistema de gestão metropolitana: a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (GRANBEL), criada em 1975. Na época, o então governador Rondon Pacheco assinou o Decreto n.º 15.374 de 15/02/73, criando a Superintendência de Articulação com os Municípios - SUPAM, órgão da Secretaria do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN-MG), com o objetivo específico de articular o planejamento em nível municipal e microrregional com o planejamento estadual. A SUPAM investiu em políticas de incentivo à criação de associações microrregionais com o intuito de despertar nas lideranças políticas municipais o interesse pela identificação e a solução 20 A União, o estado e os 14 municípios da RMBH possuíam ações da METROBEL. 71 de problemas regionais. O saldo dessa iniciativa foi a criação de 39 associações microrregionais no Estado de Minas Gerais, ainda hoje existentes, dentre elas a GRANBEL. O primeiro presidente da GRANBEL foi o então prefeito de Contagem (segundo maior município da RMBH) Newton Cardoso, que assumiu a bandeira da defesa da autonomia municipal. A herança dessa contestação à gestão metropolitana teria um efeito marcante para a trajetória da gestão da RMBH, na década seguinte, especialmente a partir de 1986, quando o líder municipalista Newton Cardoso é eleito governador de Minas Gerais. 1982: Abertura política, crise fiscal e novos atores na RMBH O modelo de gestão da RMBH, programado para operar mesmo sem respaldo das lideranças locais, demonstrou-se incapaz de conviver com as mudanças decorrentes da abertura política e da crise fiscal no início da década de 1980. Um novo contexto de custos de transação metropolitana se estabeleceu. Isso ficou nítido logo que se realizaram as eleições diretas para governador, deputados federais, deputados estaduais, prefeitos e vereadores em 1982. Uma das conseqüências do retorno do processo político-eleitoral foi o reestreitamento das relações entre líderes estaduais e municipais, e isso teve reflexo no funcionamento dos órgãos de planejamento metropolitano. Laços de lealdade e coligações se ampliaram entre os agentes políticos, e, por conseqüência, as boas relações entre estes atores metropolitanos se tornaram mais importantes. Nesse processo, fortaleceram-se líderes dos governos municipais, antes alijados do processo de gestão metropolitana. Outro fator determinante para os rumos da gestão metropolitana em Belo Horizonte foi a redução do fluxo de recursos do governo federal para programas e projetos na área de desenvolvimento urbano, redução esta vinculada à crise do planejamento governamental verificada no início da década e 1980. Para Haddad (1996) entre alguns motivos que condicionaram a desarticulação dos sistemas de planejamento no país naquele período está a diminuição na disponibilidade global de recursos financeiros, a perda de capacidade de captação de financiamentos externos e a opção por decisões de curto prazo em detrimento das decisões de médio e de longo prazo típicas de um processo de planejamento. No bojo desse processo, os recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos e da Taxa Rodoviária Única deixaram, em 1984, de serem vinculados às regiões metropolitanas. Além disso, em um contexto de crise fiscal e contingenciamento de gastos públicos, houve cortes nas áreas de habitação, transportes e saneamento.(Azevedo, 2002) O fortalecimento dos líderes políticos municipais, somado à crise fiscal elevou custos de transação na gestão da RMBH, uma vez que o sistema de planejamento metropolitano, já criticado pelo seu caráter tecnocrático, teve que incorporar em sua rotina a habilidade para negociar junto a novos atores a implementação de programas e projetos. Em 1983, ocorreu a primeira mudança institucional no aparato de planejamento metropolitano do Estado, desde 1977. Essa reformulação incorporou novos atores no processo de planejamento metropolitano. Por força do art. 3º do Decreto nº 22.781/83, o PLAMBEL voltou a estar vinculado ao Conselho Deliberativo da Região Metropolitana, que, por sua vez, passou a estar vinculado à Secretaria de Estado do Governo e Coordenação Política. 72 Com essa mudança institucional, o planejamento metropolitano em Minas Gerais foi retirado do âmbito estritamente técnico e subordinado à coordenação política do governo, aproximando assim lideranças políticas locais do processo decisório metropolitano. Outra mudança importante foi a desvinculação do repasse dos recursos federais aos municípios metropolitanos à anuência do PLAMBEL. Dessa maneira, a autarquia havia perdido um de seus principais instrumentos de barganha junto aos prefeitos. Ao acarretar a criação de novas regras para o jogo entre os órgãos metropolitanos e os governos locais, essa disposição minou a possibilidade da gestão metropolitana vincular incentivos seletivos à execução pelas prefeituras de projetos afinados com as diretrizes do planejamento metropolitano, elevando, portanto, os custos de transação para o estado. Os órgãos de planejamento metropolitano, de raízes pouco porosas à sociedade, teriam que redefinir sua atuação em um contexto nada favorável: queda dos repasses de recursos federais e internacionais para a região metropolitana, distanciamento do Sistema Estadual de Planejamento e forte desgaste junto a lideranças municipais. Vale destacar que se consolidou, entre alguns líderes políticos, um sentimento de que gestão metropolitana significava a priori intervenção estadual na autonomia municipal. (Machado, 2002) Tal argumento, paulatinamente, sobrepôs-se ao de se enfrentar de forma integrada os problemas comuns dos municípios. À medida que avançava o processo de redemocratização, a gestão metropolitana em Minas Gerais, perdeu espaço, culminando, como se verá, em um quase completo afastamento do governo estadual da questão metropolitana a partir de 1989. A insolvência da gestão da RMBH, logo nos primeiros anos da redemocratização, retrata a força da dinâmica de poder envolvendo profissionais da política local, estadual e federal nas relações intergovernamentais. Os elos formados entre esses atores são um condicionante fundamental dos custos de transação da gestão metropolitana. O dimensionamento destes elos entre chefes políticos municipais, estaduais e federais é um fator que pode demonstrar valor heurístico importante na investigação da relação entre os custos de transação e a trajetória das experiências de gestão metropolitana. Diferentemente do PLAMBEL, em outros estados da federação, as entidades de planejamento metropolitano tiveram que enfrentar um cenário mais favorável para transações, durante a redemocratização, o que determinou, sob diferentes níveis, melhor capacidade de adaptação a “tempos democráticos” e renovação de sua atuação na década de 1990. Foi o que ocorreu, exemplarmente, com a CONDER, Companhia de Desenvolvimento do Recôncavo Baiano, responsável pelo planejamento na Região Metropolitana de Salvador, e que foi prestigiada pelo governo estadual durante a gestão na prefeitura da capital por partido que fazia oposição ao grupo político que governava o Estado, sob a liderança de Antônio Carlos Magalhães. (Souza, 2004) Na mesma época em que a CONDER e outras entidades de planejamento metropolitano lograram alguma capacidade de negociar mudanças para se adaptarem e sobreviverem ao contexto democrático, Minas Gerais era governada por Newton Cardoso, um dos principais líderes do movimento municipalista, que contestou a gestão metropolitana durante o período militar. Cardoso, durante sua campanha ao governo do estado, defendeu diversas propostas que se opunham a gestão da RMBH, como, por exemplo, a extinção da METROBEL. Ao assumir o 73 governo, em 1987, Cardoso, dentre outras ações, extinguiu a companhia de transportes metropolitanos e demitiu cerca de 70% da equipe técnica do PLAMBEL. (Machado, 2002). No caso de Minas Gerais, o fenômeno denominado por Fernandes(2004) de municipalismo a todo custo teve lugar num contexto em que os insulados grupos pró-gestão metropolitana já estavam enfraquecidos por disputas políticas, pela crise fiscal, pela crise do planejamento governamental e por uma marcante submissão ä trajetória, na qual os grupos municipalistas dos quais o sistema de gestão metropolitana era adversário, de repente, assumiram o poder, e passou a dar as cartas. O ”municipalismo a todo custo” na RMBH No período em que se consolidou a redemocratização no Brasil, entre 1986 e 1988, foi elaborada e votada a nova Constituição da República, que, sob a orientação de emendas individuais de alguns poucos constituintes (Tabela 3, no anexo), atribuiu aos estados a competência para a organização destas. Essas propostas, contudo, não foram discutidas com profundidade na Assembléia Constituinte. De acordo com Fernandes: “nos anais da Constituinte de 1986 a 1988 pode-se notar que não houve discussão séria em relação à questão metropolitana. O momento era do que chamo de municipalismo a todo custo, quer dizer, compensar a balança que, por tanto tempo, estava tão desigualmente pendente para o lado dos governos centrais e com total exclusão tributária, política, financeira e institucional dos municípios. O pêndulo foi para o outro lado, de forma a afirmar a autonomia municipal.” Fernandes ( 2004: 82) A Constituição de 1988 dispõe uma única vez sobre a questão metropolitana e diz que os estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução das funções públicas de interesse comum, sem, contudo, distinguir interesse comum de interesse local. Essa omissão fez prevalecer entendimento, no início da década de 1990, de que as questões urbanas sempre são de preponderante interesse local, e, portanto, competências exclusivas dos municípios, esvaziando o apelo do estado instituir regiões metropolitanas para organizar a gestão regional integrada e comprometendo em parte a legitimidade política da gestão metropolitana no formato vertical ou compulsório.21 Ademais, um traço marcante da nova Constituição foi a valorização do poder local no contexto federativo, conforme foi analisado no capítulo 2. O município foi elevado à categoria de ente integrante da federação, tornando o Brasil um país organizado na forma de um federalismo tripartite – União, estados e municípios. Além disso, os governos locais adquiriram autonomia para se auto-organizar e administrar, bem como para estabelecer seus tributos. Houve, de outra parte, um tratamento superficial da questão metropolitana na Carta de 1998, tendo esta merecido apenas uma única menção no texto constitucional. Grosso modo, essa timidez da Constituição de 1988 em relação à questão metropolitana foi coerente com o momento político em que foi elaborada a Magna Carta. A forma adotada pelo governo federal para organizar as regiões metropolitanas foi tida como centralizada pelos atores. O Estado centralizado é, por certo, recorrentemente relacionado a governos autoritários. Vista como uma contra-medida ao regime ditatorial que se esfacelou no início da década de 1980, a 74 descentralização e a valorização do poder local foram, ao lado da garantia das liberdades individuais e dos direitos humanos, as principais bandeiras que dominaram o processo de elaboração da nova Constituição do Brasil.22 Nesse aspecto, a questão metropolitana se colocava naturalmente na contramão da onda de descentralização, pois, além de estar politicamente associada ao centralismo tecnocrático do período anterior, devido ao fato de pressupor processos de recentralização da gestão das áreas conurbadas, entrava em choque com uma das premissas capitais da descentralização, que pressupunha o “empoderamento” dos governos locais.23 Se em nível federal, o tratamento da questão metropolitana foi tímido, na constituinte do Estado de Minas Gerais, o tema foi alvo de vários artigos cujo sentido transparece o interesse de alguns atores em afastar a possibilidade do governo do estado assumir com o mesmo vigor de outrora a liderança da gestão metropolitana. A virada observada no início da década de 1980 e aprofundada, em 1988, com a elevação do status constitucional do município consubstanciou na Constituição de Minas Gerais, de 1989, um modelo de gestão da RMBH entregue à liderança dos municípios e com uma participação simbólica do governo estadual. Dando lugar ao Conselho Deliberativo Metropolitano, foi concebida a Assembléia Metropolitana de Belo Horizonte, AMBEL, órgão colegiado onde todos os prefeitos e representantes das Câmaras Municipais dos municípios metropolitanos tinham assento. Enquanto o conselho deliberativo metropolitano possuía cinco membros, com três do estado, um de Belo Horizonte e um dos demais municípios, na Assembléia Metropolitana, considerando os atuais 34 municípios integrantes da RMBH, mais de oitenta assembleístas participavam. Interessante notar que considerada mais democrática que o conselho deliberativo metropolitano, a Assembléia Metropolitana não incorporou, em seu plenário, representantes da sociedade civil. De outra parte, esse rebaixamento estadual, em termos de poder decisório na AMBEL, supõe-se, tenha gerado maiores custos de transação para o estado executar políticas metropolitanas. Isso porque mais que minoritário, o Estado-membro tornou-se mero observador nas discussões na AMBEL, e, paradoxalmente, como competente constitucional pela organização vertical da região metropolitana, teria que arcar com boa parte dos custos financeiros desse modelo. O que um rápido ensaio de teoria dos jogos poderia prever se efetivou: o esvaziamento da Assembléia Metropolitana pelos atores mais importantes – o governo do estado, e as prefeituras de Belo Horizonte, Betim e Contagem, responsáveis por cerca de 87% da riqueza regional (Machado, 2002). Diante de uma situação claramente desvantajosa, o que se viu foi um progressivo afastamento do estado do modelo de gestão representado pela AMBEL. 23 Os argumentos a favor da descentralização comumente se alinham à questão da democratização e da eficiência. Segundo Arretche (2000) e Peters (2004) os que defendem a descentralização argumentam que ela é uma condição para a democratização uma vez que aproxima governo e cidadãos, potencializando o controle social e participação pública no processo decisório. Peters salienta ainda que parte significativa das experiências de reforma do setor público de perfil descentralizante foram justificadas sob o princípio da eficiência, propugnada pela chamada gerência pública nova ou managerialism. Uma noção fundamental desta corrente é a de que organizações autônomas descentralizadas, dirigidas por gerentes públicos hábeis e próximos da população, serão mais capazes de alcançar os objetivos da política pública do que departamentos ministeriais grandes e afastados dos cidadãos. 75 O estado, paulatinamente, desmontou as instituições metropolitanas criadas na década de 1970 ainda sobreviventes. O PLAMBEL e a câmara de compensação tarifária dos transportes foram algumas delas. Os grandes municípios, por sua vez, deram as costas para a AMBEL, e trataram de organizar individualmente serviços, em tese, de caráter metropolitano. Já a Assembléia Metropolitana foi sucessivamente controlada por alianças dos pequenos municípios da RMBH e a atividade decisória dela ficou restrita a poucas reuniões anuais, quase sempre para deliberar sobre o aumento de tarifas do sistema de transportes administrado pelo estado.(FJP, 1998) Formalmente poderosa, na prática, a AMBEL não conseguiu legitimar sua autoridade perante as diversas instâncias governamentais atuantes na RMBH, conforme reconhece um dos prefeitos que ocupou a presidência da Mesa Diretora da AMBEL: "o que existe é um desencontro muito grande. Faltam informações, faltam condições para que a AMBEL se imponha e até para fazer solicitações " e cada um desses órgãos "... continuam no caminho deles, (...) fazem o que acham que é certo, e nós ficamos com o poder na mão e sem condições de fazer nada ".(FJP, 1998:135) Na esteira desse processo, ocorreu a municipalização da prestação de serviços ou funções públicas antes executadas em escala regional por entidades estaduais de planejamento metropolitano, especialmente a gestão dos transportes públicos. Em outras palavras, as reformas de cunho descentralizante, então implementadas, desbarataram o sistema de planejamento metropolitano da RMBH e comprometeram a articulação estadual dos interesses regionais em torno de uma proposta comum. Ao canto do cisne do modelo vertical de gestão da RMBH implementado na década de 1970, simbolizado pela extinção do PLAMBEL em 1996, seguiram-se tentativas de restabelecimento de novas formas institucionais de gestão. Desses movimentos, os principais foram as articulações promovidas por técnicos da Prefeitura de Belo Horizonte, da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Estadual de Planejamento para a elaboração do plano diretor metropolitano e uma proposta de emenda à Constituição do Estado redefinindo o modelo de gestão instituído em 1989. Ambas as propostas de transação foram malsucedidas. Na onda da consolidação do processo de municipalização de serviços e políticas públicas na RMBH, a agenda metropolitana parecia pouco atraente aos atores que detinham poder decisório de peso no momento. O insucesso dessas tentativas de mudança institucional, na gestão da RMBH movidas por grupos técnicos principalmente, não logrou apoio político suficiente para a sua implementação. Uma evidência de ineficácia da estrutura legal-formal de gestão da RMBH foi a insistente aprovação de leis complementares integrando novos municípios à Região Metropolitana de Belo Horizonte. Alguns destes municípios estão distantes dezenas de quilômetros do pólo metropolitano e sem qualquer tendência à conurbação ou responsabilidade por funções publicas de interesse comum. Entre 1988 e 2002, foram inseridos na RMBH 20 municípios, ora por força de leis aprovadas na Assembléia Legislativa, ora em virtude de emancipações de distritos antes pertencentes a municípios já integrantes da RMBH. (Machado, 2002) A última incorporação de municípios à RMBH ocorreu em 2002, consolidando a sua composição atual: 34 municípios. A ausência de uma estrutura de incentivos para mover os atores a realizar transações metropolitanas ajuda a explicar a baixa performance no modelo compulsório estabelecido de 76 gestão prescrito para a RMBH. Em termos de gestão metropolitana, o pouco de mais concreto que se observou na RMBH, no final da década de 1990, veio de organizações com claros incentivos para apoiarem, de acordo com seus interesses, a governance regional. Foi o caso da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, operadora do metrô de superfície que liga Belo Horizonte a Contagem. A CBTU, uma das poucas entidades remanescentes do arcabouçoinstitucional criado pelos militares para a área de desenvolvimento urbano, tornou-se uma organização pública muito interessada na retomada do planejamento metropolitano na RMBH, por uma razão muito lógica. A fragmentação institucional no funcionamento dos transportes na região metropolitana, acarreta uma situação de concorrência predatória entre os sistemas gerenciados pelas prefeituras, pelo DER e pela CBTU. Como resultado imediato da desintegração dos transportes na RMBH, o metrô de Belo Horizonte acusava um das mais baixas taxas de participação no total de usuários de transporte público do país; apenas 3,5% do total de passageiros. O prejuízo operacional do metrô de Belo Horizonte é brutal, de maneira que o seu funcionamento depende drasticamente de subsídios do governo federal. Com o esvaziamento da Assembléia Metropolitana, a GRANBEL, se consolidou como espaço de articulação dos prefeitos da RMBH para o encaminhamento de reinvidicações junto a órgãos setoriais do governo estadual. (FJP, 1998) Outra função assumida pela GRANBEL foi a da promoção de troca informações de interesse dos municípios, com propósito, segundo o prefeito de Nova Lima de tentar "um entrosamento maior para que a política não venha a prejudicar ainda mais a Região Metropolitana". (FJP, 1998:129) A GRANBEL buscava induzir consensos entre as cidades da região metropolitana, "mas que sempre dependem de acordos com o governo Estadual e com a Assembléia Legislativa”, acrescentou o então prefeito de Nova Lima (FJP, 1998:129). Outra função desempenhada pela entidade consistia na assessoria administrativa aos municípios nas áreas contábil, financeira e tributária. Tais atividades se mostravam de especial valor para os pequenos municípios da RMBH, cuja frágil capacidade institucional tornava-as dependentes desse tipo de auxílio. Para o custeio financeiro de suas atividades, a GRANBEL recebe recursos dos municípios associados, os quais lhe proporcionam uma sede em Belo Horizonte, infra-estrutura e quadro próprio de funcionários. A função executada pela GRANBEL na década de 1970, de ser um anteparo ao assim considerado intervencionismo da gestão metropolitana, tornara-se obsoleta, afinal, agora, todo o poder estava formalmente com os municípios com a emergência da AMBEL. Entretanto, a GRANBEL se readaptou, de maneira a capitalizar para si novos papéis perante os municípios que representava. A associação logrou se consolidar como instrumento para o aumento do poder de barganha dos municípios da RMBH para a negociação de pleitos junto aos governos estadual e federal. Um exemplo da função de lobista dos municípios assumida pela GRANBEL foi a iniciativa da associação de convocar os deputados da bancada mineira no Congresso Nacional, no primeiro semestre de 1998, buscando garantir recursos no orçamento da União para investimentos de caráter metropolitano na região. Segundo o prefeito de Nova Lima à época, “o dinheiro está saindo agora [no segundo semestre de 1998]. Não foi o valor que queríamos - que era bem maior - mas é fruto de um trabalho de união de 26 municípios. Mas isso deveria ter sido conduzido através da AMBEL!"(FJP, 1998: 119) 77 Com essa mudança de perfil, revela o já citado estudo da Fundação João Pinheiro: “a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte GRANBEL-, acaba por ocupar e exercer um papel político que caberia à AMBEL. Criada em meados da década de 1970 pêlos prefeitos da RMBH para fazer frente ao autoritarismo do Conselho Deliberativo, a GRANBEL tem se posicionado como espaço da negociação, onde têm sido celebrados acordos entre os municípios e entre esses e os órgãos setoriais da administração estadual, funcionando como um fórum de lobby dos prefeitos metropolitanos no encaminhamento dos seus pleitos ao governo do Estado(FJP, 1998: 118) Conforme iremos analisar posteriormente, a GRANBEL, além de ter a mesma natureza jurídica sob o aspecto formal, desenvolve funções semelhantes a algumas atividades do Consórcio do Grande ABC. Lamentavelmente, ao contrário do Consórcio do Grande ABC, a GRANBEL tem despertado pouca atenção de pesquisadores da temática metropolitana. Essa indiferença inviabiliza uma análise mais detalhada desse importante player que atua na RMBH a mais de 30 anos. Fica aqui a sugestão de uma linha de pesquisa futura que possa evidenciar aspectos interessantes ao tema da cooperação inter-municipal em áreas metropolitanas. A integração negociada na RMBH Na década de 1990, em que preponderou o municipalismo a todo custo na RMBH, ocorreu os desbaratamento do sistema vertical de planejamento metropolitano, sem que os municípios conseguissem implementar um modelo alternativo de governança regional. Os efeitos diretos para a população dessa “década perdida” em termos de gestão metropolitana são de difícil mensuração, não só devido à complexidade dessa investigação, como também face à ausência de estudos mais sistemáticos sobre os resultados dessa não-política-metropolitana. Um dos parcos estudos sobre o tema foi uma pesquisa elaborara pela Universidade Federal de Minas Gerais que teve como foco principal a cidade de Belo Horizonte. Segundo essa pesquisa, ocorreu na década de 1990 o esgotamento de capacidade de crescimento diferenciado da RMBH, ou seja, o diferencial de crescimento em relação à média do crescimento econômico nacional e do pólo econômico líder, a Região Metropolitana de São Paulo (Lemos, 2004:31). Essa perda de dinamismo da RMBH, segundo esse estudo da UFMG, deve-se à falta de competitividade da área metropolitana em eixos nevrálgicos para o desenvolvimento econômico como o dos transportes. Nesse contexto adverso, entretanto, decantaram-se discussões e debates que têm feito ressurgir novas propostas para a questão metropolitana, algumas por iniciativa, inclusive, da sociedade civil organizada. Surgem experiências incipientes de organização da sociedade visando especificamente a questão metropolitana. São exemplos dessa conscientização da sociedade civil acerca da relação dos problemas urbanos com a questão metropolitana: a criação da organização não-governamental Instituto Horizontes24, e também as discussões travadas na II Conferência Municipal de Política 24 O Instituto Horizontes é uma organização não-governamental formada por profissionais liberais, empresários, notadamente da área de construção civil, e pessoas de diversos segmentos da sociedade, que, segundo seu estatuto, se propõe a contribuir na definição das prioridades de desenvolvimento da RMBH. A entidade elaborou e tentou implementar nos últimos anos, sem sucesso, o “Plano Estratégico da Grande BH,” com forte inspiração na experiência de Barcelona de Planejamento Estratégico. 78 Urbana de Belo Horizonte, quando ficou evidenciado que o problema a ser solucionado na gestão do sistema de transporte do município de Belo Horizonte remete-se à questão metropolitana. 25 Tal como se verá no caso do Grande ABC, a emergência de atores originários da sociedade civil nessa temática parece influenciar a dinâmica dos custos de transação metropolitana na RMBH. Essa conjuntura de um embrionário envolvimento da sociedade civil quanto à questão metropolitana, somada à experiência vivida dos excessos da municipalização parece cimentar novas percepções perante os atores na região metropolitana. Uma das percepções que parecem estar consolidando-se é a da necessidade de o estado retomar um papel relevante nas atividades de planejamento metropolitano, desde que o faça de maneira negociada. Nossa hipótese é a de que novos constructos mentais pró-gestão metropolitana, tem matizado os atores a perceberem vantagens na consideração da questão metropolitana, reduzindo assim os custos de transação nas negociações. Para corroborar nossa hipótese acerca do surgimento de construtos mentais pró-gestão metropolitana entre os atores, citamos algumas evidências: o aparecimento de propostas próquestão metropolitana nas eleições ao governo do estado, em 2002, e para a PBH em 2004; a criação de um órgão estadual específico para lidar com assuntos urbanos e metropolitanos; a defesa pela GRANBEL da elaboração de um Plano Diretor Metropolitano definidor de diretrizes para os planos municipais, a transação entre o Governo de Minas Gerais e o município de Belo Horizonte que culminou em 2003 com renovação do contrato da prefeitura com a COPASA; e, por fim, a reforma da legislação metropolitana ocorrida na Assmebléia Legislativa estadual Um primeiro indício que constatamos foi o aparecimento de propostas de resgate da questão metropolitana nos planos de governo do então candidato ao Governo do estado, Aécio Neves, em 2002, e no plano do então candidato à reeleição em Belo Horizonte, Fernando Pimentel, em 2004. Sinalizações públicas semelhantes foram externadas por outros prefeitos em eventos da GRANBEL com relação ao planejamento territorial metropolitano. As propostas veiculadas nos referidos planos de governo e as colocações dos prefeitos teriam pouco valor probatório, se não fossem constatadas decisões importantes em favor da questão metropolitana nos anos seguintes. Em janeiro de 2003, o Governo do Estado promoveu uma reforma administrativa que incluiu a criação da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional e Política Urbana, SEDRU, com competência similar as do Ministério das Cidades, instituído pelo governo federal na mesma época. A nova secretaria, aparelhada com uma Superintendência de Assuntos Metropolitanos, reestabeleceu a política urbana na agenda governamental, e desencadeou tentativas voltadas para a retomada do planejamento metropolitano. Uma dessas iniciativas foram reuniões técnicas que emulavam os líderes municipais a elaborarem planos diretores municipais sob uma perspectiva de desenvolvimento regional integrado. Um indicador expressivo dos novos constructos mentais dos atores municipais em torno das transações 25 Nesse sentido, ver: Costa, Marco Aurélio. Projeto PBH Século XXI: Avaliação do Sistema de Transportes Coletivos de Belo Horizonte – 1993/2003. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento e Regional da Universidade Federal de Minas Gerais. (CEDEPLAR/UFMG), 2004 79 metropolitanas foi a grande aceitabilidade pelos municípios da proposta estadual de compatibilização do planejamento municipal com o metropolitano. A própria GRANBEL, realizou diversas reuniões de municípios incentivando-os a absorverem preocupações supramunicipais em seus planos diretores municipais. Outra iniciativa da SEDRU foi a realização de concurso de projetos para a contratação de uma organização da sociedade civil para lhe fornecer subsídios para o planejamento metropolitano e a contratação da Fundação João Pinheiro, com objetivos semelhantes. A negociação entre a Prefeitura de Belo Horizonte e a Companhia Estadual de Saneamento que culminou, em 2003, com a manutenção da gestão regional do serviço de saneamento no município é outro elemento que remete ao arrefecimento do municipalismo a todo custo. Pelo acordo, o município adquiriu participação acionária na empresa, transferindo toda a sua infra-estrutura de saneamento e esgoto à COPASA. Em contrapartida, Belo Horizonte obteve 13,7% do capital da companhia de saneamento, enquanto o Estado manteve ainda 86%. As demais prefeituras da RMBH renovaram nos anos seguintes seus respectivos contratos de concessão com a COPASA, o que praticamente assegurou uma gestão regional do serviço público de saneamento na região metropolitana. Essas transações contrastam com o quadro problemático que tem pautado renegociações com companhias estaduais de saneamento e municípios em outros estados da federação, as quais, recorrentemente, acarretam disputas judiciais.26 Um exemplo-final de um ambiente mais favorável a transações metropolitanas foi a aprovação de uma reforma na legislação metropolitana do Estado na Assembléia Legislativa de grandes proporções. Elas foram precedidas pelo Seminário Legislativo “Regiões Metropolitanas”, em 2003, quando foi promovida uma discussão pública da questão metropolitana. Os trabalhos envolveram discussões que duraram três meses, com considerável participação da sociedade civil. As reformas da legislação metropolitana foram aprovadas em 2004 e em 2005, de maneira consensual na Assembléia Legislativa – todos os deputados votaram a favor das mudanças – contendo determinações que seriam inconcebíveis a época da constituinte mineira em 1989. O novo sistema de gestão da RMBH apresenta os seguintes pontos fundamentais: paridade decisória entre o estado e o conjunto de municípios na gestão; representação dos municípios mais populosos e mais ricos diferenciada no órgão deliberativa da gestão metropolitana; definição da titularidade estadual das funções publicas de interesse comum; participação da sociedade civil no conselho deliberativo da região metropolitana; e, a criação de uma agência de desenvolvimento metropolitano, de caráter técnico e executivo. Não podem ser desconsideradas como importante fator redutor dos custos de transação para que essa reforma fosse implementada as boas relações entre Governador Aécio Neves(PSDB) e o Prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT). Embora de partidos políticos adversários em nível nacional, ambos são bem relacionados e tem demonstrado publicamente afinidade para o desenvolvimento de projetos de interesse comum. Há que se fazer referência também à grande aceitação do governador entre os demais prefeitos da RMBH: na campanha de reeleição de Aécio Neves, em 2006, este recebeu, publicamente, o apoio de 30 dos 34 prefeitos da região. 26 Nesse sentido, reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, de Luciana Nanci: “Estados e municípios brigam por gestão do saneamento”, disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/32413,1 80 De outra parte, o governo do estado, com o intuito de cultivar boas relações com as prefeituras da região metropolitana, tem procurado alinhavar a adesão a projetos de impacto na regional, como por exemplo, o aeroporto industrial de Confins, o novo centro administrativo estadual e a Linha Verde. Esse movimento de pêndulo do planejamento na RMBH, dessa vez no sentido uma re-integração pautada por acordos, ainda está em curso, mas, considerando sua característica de adesão voluntária dos municípios até momento aos projetos estaduais, aponta para um período novo de negociações, diferentemente da gestão metropolitana observada na década de 1970. A Trajetória do Grande ABC paulista A experiência de articulação regional da Região do Grande ABC envolve sete municípios da Região Metropolitana de São Paulo: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Rio Grande da Serra, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires e engloba três estruturas institucionais: o Consórcio Intermunicipal, a Câmara Regional e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC (GABC). Seu marco zero é a fundação, em 1990, do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings. Importa salientar que a experiência de articulação regional se desenvolveu em uma fração do território da maior conurbação da América do Sul, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que foi institucionalizada, em 1973, juntamente com a Região Metropolitana de Belo Horizonte. A título de introdução, essa seção merece breve comentário sobre o sistema de gestão verticalcompulsório estabelecido para a RMSP, de maneira que possa ser desenvolvida uma análise contextualizada do Consórcio do Grande ABC nesse aglomerado maior composto de 39 municípios. O sistema de gestão da região metropolitana de São Paulo criado na década de 1970 foi bastante atuante, comparável em termos de capacidade de implementação de programas e projetos à RMBH. Houve também um refluxo da gestão da RMSP com a redemocratização, embora, aparentemente, esse processo tenha sido menos drástico que na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Não obstante os antigos órgãos colegiados da década de 1970 - Conselho Consultivo e Deliberativo - não tenham sido mais convocados após a redemocratização(Azevedo, 2002), o governo estadual manteve funcionando alguns órgãos próprios de vocação metropolitana, como a Secretaria de Transportes Metropolitanos, a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano(EMPLASA), a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo(EMTU) e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Permanece atuante, também, tal como na RMBH, a Companhia Estadual de Saneamento criada em São Paulo por incentivo do PLANASA, a SABESP. A legislação sobre a gestão metropolitana do estado, a Lei Complementar n.º 760/94, também não foi antiestadualista como a legislação metropolitana da RMBH de 1989. De fato, a organização da RMSP criou um conselho de desenvolvimento com composição paritária entre estado e municípios, diferentemente da RMBH, onde prevalecia uma Assembléia Metropolitana essencialmente municipalista. 81 A manutenção pelo estado de uma estrutura institucional de gestão metropolitana na década de 1990 não deteve, contudo, um amplo processo de municipalização de diversas funções públicas, condizente com o municipalismo a todo custo desencadeado pela diretriz de descentralização de políticas públicas definida na Constituição Federal. Houve também tendência à ação mais setorial e menos global do estado na região metropolitana. (Azevedo, 2002) Estão presentes, na RMSP, diversas tensões entre o estado e os municípios que acusam tentativas de emancipação dos governos locais em relação aos órgãos e mecanismos estaduais de gestão metropolitana. As disputas mais nítidas estão nas áreas de saneamento básico e transportes. 27 No que toca ao tema do saneamento, alguns municípios romperam contratos de concessão de serviço com a SABESP, em contextos normalmente permeados por disputas na esfera judicial. Recentemente, o município de São Paulo, sob a administração Marta Suplicy(PT), tentou assumir o controle dos recursos hídricos hoje administrados pela SABESP. A EMPLASA desenvolve atividades de planejamento metropolitano e não se envolve explicitamente na implementação de políticas públicas. Presta assessoria técnica aos municípios para a elaboração de planos diretores municipais, regionais e elabora estudos de caracterização de uso e ocupação do solo. A RMSP conta ainda com um plano metropolitano desde 1994, elaborado com a finalidade de detectar as carências e potencialidades da região até 2010.(Azevedo, 2002). Esse plano foi revisado nos últimos anos pela EMPLASA. Dentre os obstáculos atuais da gestão metropolitana vertical da RMSP, Azevedo enumera: a não implantação da estrutura prevista na lei; a ausência de uma política regional; a escassez de recursos financeiros; as disputas político-partidárias; os conflitos de jurisdição em relação à legislação federal, estadual e municipal e a desigualdade econômica inter-regional. (Azevedo, 2002:188). Todos esses obstáculos à efetivação da gestão metropolitana têm feito surgir espaços e alternativas setoriais ou de menor escala para organização de interesses comuns na RMSP. São casos emblemáticos dessa dinâmica o sistema de proteção aos mananciais sob a tutela da Secretaria de Recursos Hídricos do estado de São Paulo e a estruturação sub-regional do Grande ABC, que serve de exemplo para o surgimento de outras experiências de articulação em menor escala de municípios da região metropolitana.28 O impulso inicial da formação do Consórcio do Grande ABC está relacionado exatamente à proteção dos mananciais localizados na região. O fato de a formação da articulação intergovernamental no ABC estar relacionada originalmente à gestão de recursos hídricos - os sete territórios abrigam um grande manancial para abastecimento da Grande São Paulo – chama a atenção para a importância que a existência de um elemento físico comum aos municípios teve para a sua integração em um projeto de cooperação. Esse foi, todavia, apenas o ímpeto inicial: o consórcio em curto espaço de tempo ocupou-se de outros assuntos de interesse comum dos municípios. 27 Entrevistas com Klink e Minciotti.(2006) Tramita na Assembléia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que reformula o sistema de gestão da RMSP, no qual uma das novidades é a criação de sub-regiões dentro da região Metropolitana. 28 82 O adensamento de responsabilidades do consórcio, incomum no repertório das experiências de relações intermunicipais no Brasil29, faz-nos supor a existência de custos de transação aceitáveis que permitiram a essa experiência não apenas ampliar seu campo de atuação, como também se manter vivo após dezesseis anos da sua criação. É o que passaremos a analisar nas seções seguintes. O municipalismo a todo custo no Grande ABC O Consórcio do Grande ABC foi entronizado como experiência de administração metropolitana voluntária, em 19 de dezembro de 1990, com a criação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings.e a instalação do Conselho de Municípios, situado em Santo André. O Consórcio foi registrado como sociedade civil de direito privado, cujos sócios são os sete municípios da região do GABC. Segundo (Reis, 2005) o Consórcio Intermunicipal foi criado com o objetivo de representar os sete municípios em assuntos de interesse comum, além de defender políticas consensuais para o desenvolvimento da região, independentemente, em tese, das diferenças político-partidárias. O Consórcio Intermunicipal do GABC se estrutura basicamente por meio de uma organização administrativa formada por: Conselho de Municípios, Conselho Fiscal, Conselho Consultivo e Secretaria Executiva. A presidência do consórcio foi concebida originalmente para ser rotativa e ser exercida por um dos prefeitos dos sete municípios, eleito entre seus pares para um mandato de um ano. Os seus recursos financeiros são definidos de acordo com cotas de contribuição anual dos municípios integrantes, proporcionalmente às receitas de cada prefeitura30. A natureza jurídica de direito privado limitou o consórcio a funcionar, sobretudo, como um fórum de debates e de articulação dos municípios do Grande ABC, impedindo-o de promover a execução direta de programas e projetos de interesse comum, salvo a contratação de estudos técnicos para subsidiar acordos e negociações promovidas pela associação. Sintomático dessa limitação foi a tentativa realizada pelo consórcio de obter financiamento externo, com aval do governo federal. A solicitação foi negada, segundo Reis sob essa justificativa: “o consórcio não satisfazia os critérios necessários, por não possuir as exigências legais para ser tomador do empréstimo para financiamento de projetos. O governo federal não poderia ser avalista porque o Consórcio Intermunicipal não poderia ser executor dos projetos por não possuir personalidade jurídica que permitisse dar garantias de crédito, ou seja, por não possuir em caixa recursos para contrapartida também não poderia responder pelo orçamento das sete prefeituras.” (Reis, 2005:55) Em seu primeiro ciclo de vida, o consórcio firmou-se como entidade de articulação de políticas públicas integradas, abrigando grupos temáticos formados por técnicos das sete prefeituras, utilizando-se de recursos próprios dos municípios bem como de outras fontes de financiamento. São ilustrativas as iniciativas da entidade em provocar o governo estadual a viabilizar projetos de interesse comum dos municípios. O consórcio ainda tentou encaminhar emendas ao orçamento da União, focando questões regionais. Ademais, tentou, sem sucesso, influir no processo de elaboração da lei de organização regional do estado. Reis (2005) 29 Os Consórcios Intermunicipais adotam, em geral, finalidade monotemática, e os mais comuns são os de saúde, por força da legislação do Sistema Único de Saúde, SUS, que incentiva o associativismo municipal. 30 Esse modelo institucional de funcionamento do Consórcio é muito semelhante ao da GRANBEL, na RMBH. 83 Não obstante sua consolidação como instância de articulação regional, o consórcio foi afetado negativamente pelas eleições municipais de 1992, uma vez que os novos prefeitos que assumiram os executivos municipais, em sua maioria, não estavam comprometidos com o projeto de integração regional. Ainda segundo Reis (2005), o esvaziamento do consórcio liga-se ao fato de boa parte dos novos prefeitos serem, segundo a autora, de perfil político conservador, contrapondo-se aos líderes progressistas que os antecederam. As eleições de 1992, como mencionado, trouxeram descontinuidade ao processo, fizeram-se sentir pelo esvaziamento, a ponto de 1994, terem ocorrido somente duas reuniões de prefeitos, com a presença de apenas três dos sete municípios consorciados. O arrefecimento da articulação no GABC corrobora o argumento de Moisés, que salienta: “o acordo de cavalheiros entre prefeitos, informal, comum em articulações políticas, é insuficiente quando se pretende implementar o compartilhamento de serviços de natureza continuada, pois não fornece a necessária segurança institucional exigida para o seu desenvolvimento.” Moisés ( 2001:125) A formalização de acordos entre as prefeituras, os chamados consórcios, visa a dar sustentação institucional a tais articulações entre prefeitos, mas não impede muitas vezes, que disputas políticas sazonais se reproduzam no relacionamento entre líderes no âmbito regional. A ausência de instituições sólidas e confiáveis para dar sustentação aos acordos intermunicipais parece ser elemento-chave que elevava custos de transação para efetivação da gestão compartilhada de serviços comuns mediante consórcios públicos naquele período. O vazio decorrente dessa desarticulação do consórcio deu-se, todavia, no mesmo momento em que o Grande ABC enfrentava uma crise econômica marcada pela evasão de empresas e queda das arrecadações municipais. Isso evidenciava a necessidade de um projeto comum de superação das adversidades da região. A crise parece ter aguçado a identidade regional do GABC e incentivou o envolvimento da sociedade civil à causa regional, em 1994, com a criação do Fórum da Cidadania do Grande ABC. Nas eleições de 1994, o Fórum da Cidadania lançou a campanha “vote no ABC”, conclamando a população a votar em candidatos a deputado federais e estaduais com origem na região, provocando assim uma espécie de voto distrital informal. Dessa maneira, a identidade regional, de origem histórica, passou a pautar com mais força a atuação dos atores políticos regionais, que, organizados na chamada “bancada do ABC”31, evocaram para si a função de serem representantes regionais nos parlamentos estadual e federal. A integração negociada no Grande ABC Na esteira da forte identidade regional, a articulação do Grande ABC ganhou fôlego novo com o maior envolvimento do governo do estado e da sociedade civil proporcionado pela criação, em 1997, da Câmara do Grande ABC, fórum intergovernamental e social de planejamento, formulação e implementação de políticas públicas. 31 Verificamos na imprensa da região o acompanhamento corriqueiro da atividade parlamentar dos membros da “bancada do ABC.” 84 Impulsionada inicialmente por um decreto do governo estadual que prevê a criação de câmaras regionais em todo o estado, a Câmara do Grande ABC consolidou-se a partir da grande rede governamental e social que aderiu à iniciativa. A câmara é constituída por um Conselho Deliberativo, uma Coordenadoria Executiva e por Grupos Temáticos. Em todas as instâncias, o processo decisório é pautado pela busca do consenso. O Conselho Deliberativo é composto pelo Governador do Estado (que é presidente de honra da câmara), por dois secretários de estaduais, pelos sete prefeitos da região, pelos Presidentes das Câmaras Municipais, pelos deputados estaduais e federais da Região (Bancada do GABC), por cinco representantes do Fórum da Cidadania do Grande ABC, por cinco representantes das organizações representativas de trabalhadores e por cinco representantes das organizações representativas do setor econômico. (Clemente, 1998) Ainda segundo Clemente (1998), a Coordenadoria Executiva é composta por um representante do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, pelo governo do estado, por um representante do Fórum da Cidadania do Grande ABC, um representante das organizações representativas de trabalhadores e por um representante das organizações representativas do setor econômico. Compete ao colegiado da Coordenadoria Executiva gerenciar os trabalhos temáticos e acompanhalos, viabilizando sua integração e divulgação, e garantindo o apoio logístico. Os grupos temáticos, interdisciplinares e inter-institucionais, são compostos de acordo com a matéria ser tratada buscando a formalização de termos de acordo integrados para cada tema. Sua composição é aberta aos interessados, com a representação de entidades comunitárias, trabalhadores, empresários, prefeituras e governo estadual. Um aspecto interessante, constatado nos levantamentos realizados no GABC, foi que muitas vezes os setores da sociedade civil que mais se envolveram na articulação regional tinham interesses específicos diretamente vinculados à cooperação. Exemplarmente, foi constatado o caso dos empresários e sindicalistas ligados ao setor petroquímico, que desde à época da Criação da Câmara do Grande ABC foi um dos setores mais motivados em participar das articulações regionais.32 Uma explicação para o envolvimento do setor petroquímico com a governança do Grande ABC é o fato de esses atores terem compreendido a estreita sintonia entre a cooperação inter-regional e os projetos de expansão da indústria petroquímica. A articulação regional beneficiou o setor de três maneiras. Em primeiro lugar, o consórcio liderou um lobby para que houvesse mudanças na legislação estadual de proteção dos mananciais na região, que era proibitiva a projetos de ampliação de plantas industriais. O consórcio atuou também como lobista junto ao governo federal, para que este forçasse a PETROBRÁS a realizar investimentos para ampliar o fornecimento de matérias-primas para as indústrias locais. Finalmente, a Agência de Desenvolvimento do Grande ABC desenvolve projetos que incentivam o fortalecimento da cadeia produtiva petroquímica na região, atendendo assim aos interesses dos empresários e sindicalistas. Outras categorias da sociedade civil também se envolveram com a experiência de articulação regional, recorrentemente, por razões muito lógicas, percebendo na integração regional, oportunidades. Um espelho dos setores da sociedade civil mais interessados na governança regional é a lista das empresas e de entidades que possuem cotas na Agência de Desenvolvimento do Grande ABC: empresas do pólo petroquímico, instituições de ensino superior e os principais sindicatos da região. Curiosamente, a indústria de automóveis, símbolo nacional do GABC, 32 Entrevistas com Reis e Romano(2006) 85 participa pouco da articulação regional.33 Se essa participação interessada da sociedade civil for um padrão, podemos sugerir, como uma explicação ao não envolvimento da industria automotiva, o fato de esse setor não ter visualizado benefícios na governança regional para seus interesses particulares. O processo de execução dos acordos na Câmara do GABC tem perfil caleidoscópio, na medida em que diversos atores, públicos ou privados, poderão ser os responsáveis pela implementação. Segundo Clemente: “A etapa mais difícil é a de obtenção do acordo. A implementação é conseqüência do acordo firmado. Cada termo de acordo implica uma despesa diferente, determinando a respectiva fonte de financiamento. Não há gasto orçamentário fixo, pois os integrantes não são remunerados pela Câmara, e os trabalhos de secretaria são fornecidos pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, patrocinado pelas prefeituras da região de acordo com a receita dos municípios envolvidos.” (Clemente, 1998:13) Dentre os acordos firmados na Câmara do Grande ABC está a criação da Agência de Desenvolvimento do Grande ABC34, incumbida de induzir formas de superação da crise econômica regional, e acordos formalizados com o governo estadual para a viabilização de projetos de interesse comum. Esta é uma evidência de que a articulação regional se consolidou como instrumento de aumento do poder de barganha dos sete municípios reunidos perante instâncias governamentais superiores. Outros acordos formalizados na Câmara do Grande ABC que foram concretizados foram: a) o plano de macrodrenagem a partir do qual o governo estadual viabilizou os recursos necessários para a construção de piscinões de contenção de enchentes e as prefeituras cederam os terrenos, além de se responsabilizarem pela manutenção deles; b) o planejamento do sistema viário dos municípios, em parceria com a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, EMPLASA; c) o plano de transportes de massa, que incluiu uma convênio com a EMTU – Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo – para melhoria do sistema de trolebus e outra parceria com a CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que visa a modernizar o sistema de transportes. (Lotta e Paulics, 2004) O que se depreende desses acordos é que a Câmara do Grande ABC logrou alguns resultados, reduziu custos de transações metropolitanas entre os atores e viabilizando o uso de estruturas de gestão metropolitana vertical ou compulsória do Governo do Estado de São Paulo para a sua execução. Entretanto, embora de desenho institucional inovador, a Câmara do Grande ABC demonstra resultados concretos aquém dos estabelecidos nos acordos, principalmente devido ao fato da Câmara não possuir recursos próprios nem poder hierárquico perante as diversas organizações e atores que deveriam ser os responsáveis pelo comprimento dos acordos. “Por não ter orçamento nem estrutura própria, as ações ficam dependentes de dotações específicas, provenientes de diferentes organizações, e que às vezes não são executada”, como salientam 33 Entrevistas com Klink e Romano(2006) A Agência de Desenvolvimento do Grande ABC foi criada a partir de um acordo regional em outubro de 1998 como uma Organização Não Governamental que possui como sócios e respectivas participações: Consórcio intermunicipal (49%), sindicatos de trabalhadores, associações, empresariais, SEBRAE, cadeias específicas, universidades (51%) 34 86 Lotta e Paulics (2004:2). Houve dissonâncias entre o combinado e o executado em função da ausência de autoridade efetiva das decisões definidas na Câmara. Reis ainda acrescenta: no início um grande projeto foi pensado e armado, mas logo depois se perdeu o controle, de modo que sua condução é atingida, em algum momento, pela complexidade das relações políticas entre sujeitos e projeto coletivo. Com relação às dificuldades internas, um dos um dos aspectos se refere ao fato de que a Câmara Regional deveria ter se constituído de fato a esfera acima das demais instituições. Neste espaço deveriam se dar todas as discussões e decisões sobre as ações prioritárias para a região, sendo que o planejamento estratégico regional deveria ser instrumento, no sentido de orientar todos os programas e ações estratégicas com vistas ao desenvolvimento da região. É possível supor que, do ponto de vista mais organizacional, a Câmara Regional não se impôs como esfera superior (Reis: 2005:198). O Grande ABC, de fato, acusa insucessos decorrentes de obstáculos à implementação de acordos. Desses, merecem ser comentadas as tentativas regionais de frear a guerra fiscal entre os municípios. Esse é um tema que ganha aliados entre os grandes municípios da região e também junto ao setor empresarial, mas os custos de transação, para a sua implementação, têm se mostrado elevados. Uma das principais razões da freqüência do tema tributário na agenda regional é a relação estabelecida pelos atores locais entre a crise econômica das sete cidades e o chamado “custo ABC”.35 Sob essa ótica, o GABC deve se unir para exigir o fim da guerra fiscal praticada por outras cidades da Região Metropolitana de São Paulo e do próprio estado, que, ao promovê-la, conseguem “roubar” empresas do Grande ABC. Essa união pressupõe, obviamente, homogeneidade tributária no próprio GABC para legitimar o pleito de combate à guerra fiscal. Nesse sentido, são amplamente debatidas medidas políticas e jurídicas junto às instâncias competentes, cujo objetivo é frear a guerra fiscal prejudicial à competitividade do Grande ABC.36 Nesse campo, todavia, a regra jurídica da autonomia municipal e a assimetria de forças entre os municípios têm sido obstáculos ao estabelecimento de normas tributárias comuns mesmo entre os sete municípios do GABC. Bons exemplos são os acordos firmados no consórcio para ser estabelecido um padrão único de cobranças do Imposto Sobre Serviços (ISS) no Grande ABC, que não têm sido honrados por alguns municípios. O prefeito de Ribeirão Pires, um dos municípios mais pobres da região, é assumidamente arredio aos acordos relacionados à guerra fiscal e se defende: “Coloquei para os demais prefeitos do Grande ABC que seria uma questão de sobrevivência para a cidade. Teria que aumentar minha arrecadação porque na medida em que eles aumentam em progressão geométrica, aqui não é nem em progressão aritmética. E percebi que, de fato, nenhuma cidade foi afetada economicamente.” 35 O chamado“custo ABC” denota a existência de uma perspectiva de custos mais elevados para empresas se instalarem na região em decorrência, entre outros fatores, da sindicalização dos operários e dos salários mais elevados em relação a outras regiões brasileiras. 36 Entrevista com Jeroun Klink.(2006) 87 “Nós não fizemos campanha dentro de Santo André, São Bernardo. Não vou na empresa e digo 'olha, vem para cá, que eu te dou isso, aquilo'. Nós ainda não sentimos um efeito muito grande, mas posso dizer que melhoramos um pouco a nossa arrecadação. Faço sempre uma analogia: se tivéssemos só mais R$ 10 milhões de arrecadação por ano, que para Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá, é troco, resolveríamos o nosso problema. Então, não preciso ficar buscando muito, vou esperar esse crescimento gradativo. Nosso resultado aparecerá em 2007.”(Diário do Grande ABC, 2005) Se por um lado a política de guerra fiscal empreendida pelo município de Ribeirão Pires é indicador da recorrentemente lembrada fragilidade das práticas de cooperação intermunicipais entre o municípios no Brasil, em outro giro, demonstra também que as instituições federativas brasileiras incentivam, com vigor, as práticas de competição e de não-cooperação. Um balanço da arrecadação total dos municípios do Grande ABC, no ano de 2005, revela queda na arrecadação em 4 municípios e elevação das receitas em três cidades, dentre elas, o rebelde Ribeirão Pires.37 A guerra fiscal desencadeada pelo prefeito do município mais pobre do GABC pode ser considerada desleal por seus pares na região, mas, certamente, pode ser bem-vista pelos eleitores de Ribeirão Pires, e são eles que elegem o prefeito. O Diário do Grande ABC de 23 de dezembro de 2005 noticiava: “Guerra fiscal beneficia contas de Ribeirão Pires.” No federalismo fiscal, no curto prazo, parece ser melhor aos olhos do prefeito competir do que cooperar. A presença da guerra fiscal em uma região brasileira dotada de notáveis e singulares mecanismos de articulação entre governamental evidencia, portando, que, do ponto de vista do pacto federativo, as instituições que incentivam o municipalismo a todo custo são mais e vigorosas que aquelas sobre as quais repousam práticas de cooperação intermunicipal. Embora não tenha adotado práticas de guerra fiscal strictu sensu, o prefeito de São Bernardo do Campo adota outras estratégias para competir pela atração de empresas para sua cidade, em uma clara evidência de que quando o interesse local confronta com regional, o primeiro tende a prevalecer. No cerne da dificuldade de o consórcio alinhavar uma política fiscal comum para a região, está o fato das instituições necessárias para a concretização dos acordos tributários estarem sob o comando exclusivo de cada município, ou seja, normas oriundas da prefeitura(decretos, resoluções) e das Câmaras Municipais(leis em geral). Além disso, permanecem ações atomizadas dos municípios em serviços de caráter metropolitano, conforme atestaram entrevistas com KIink, Reis e Minciotti(2006.) Os municípios mantém estruturas próprias para gestão de serviços de saneamento e transportes. Outra prática relacionada ao municipalismo a todo custo foi o fato dos governos locais e do próprio consórcio não terem avançado na elaboração de um planejamento do uso e ocupação do solo comum, de maneira a subsidiar da elaboração dos planos diretores municipais, exigidos pelo Estatuto das Cidades. Uma característica importante de se ressaltar do Consórcio do Grande ABC é que sua estrutura enxuta é claramente voltada para despesas de custeio administrativo do grande fórum de debates que representa para os prefeitos da região. Em outras palavras, o consórcio não tem um perfil de executor de políticas públicas, mas sim de interlocução dos municípios entre si e junto a outras esferas governamentais. 88 Essa característica pode ser observada na composição do orçamento do consórcio para 2006. O Consórcio Intermunicipal do Grande ABC consumiu nesse ano orçamento de R$ 1,793 milhão oriundo da contribuição de cada uma das sete cidades. A equipe da entidade é reduzida, com apenas 12 funcionários próprios. O orçamento do consórcio nem se compara em termos de volume aos custos dos programas e projetos dos governos e federal e estadual cuja obtenção é atribuída a negociações conduzidas pelo Consórcio Intermunicipal. De outro lado, um orçamento próprio tão baixo do Consórcio intermunicipal em relação aos programas e projetos que reivindica junto a esferas superiores de governo evidencia que os municípios parecem pouco propensos a dotar o Consórcio de uma estrutura administrativa capaz de assumir a gestão de algumas funções metropolitanas. O consórcio é mais um escritório de projetos do que gestor de políticas públicas. Consegue captar investimentos dos governos federal e estadual para a região, mas não executa tais projetos. Depende do aceite e das máquinas administrativas dessas instâncias superiores para lograr resultados satisfatórios. O limite de atuação do Consórcio é a própria autonomia municipal. Esse modelo de funcionamento do consórcio, que, embora seja organizado de maneira voluntária, é fortemente dependente dos níveis superiores de governo – os governos federal e estadual. Outro aspecto é que preponderam as relações pessoais no entendimento com os níveis superiores de governo, fortemente sujeito à laços subjetivos dos atores metropolitanos sobre as relações institucionais. A trajetória do Consórcio do Grande ABC corrobora esse argumento, na medida em que sua consolidação dependeu substancialmente da liderança pessoal e entusiasmada de Mario Covas(PSDB), e do prefeito de Santo André, Celso Daniel(PT), tanto no, primeiro mandato quanto no seu segundo, entre os anos de 1997 e 2001. Jeroen Klink(2006) revelou em entrevista que o entrosamento entre Celso Daniel e Mario Covas fortaleceu-se nas eleições estaduais de 1998, quando o prefeito de Santo André liderou uma frente de esquerda em apoio a Mario Covas no Grande ABC, contra seu opositor no segundo turno nas eleições, Paulo Maluf(PP). A lealdade entre Covas e Daniel, perseverou após as eleições, criando relações de confiança que diminuíram os custos de transação das negociações entre as partes. Klink(2006) sugere ainda na entrevista(2006) que os constrangimentos institucionais à efetivação da cooperação intergovernamental no Brasil, revelam que, em regra, as práticas cooperativas dependem de boas relações de natureza pessoal entre dirigentes políticos. Tanto que, comentando sobre as razões contextuais que favorecem as transações metropolitanas recentes na RMBH, Klink comparada a amizade que havia no Grande ABC entre o governador Mario Covas e o prefeito Celso Daniel à boa relação entre o governador de Minas Gerais Aécio Neves(PSDB) e o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT). Entretanto, o perfil de defensor dos interesses municipais parece ser o que os prefeitos querem para o Consórcio do Grande ABC, ou seja, uma arena para eles negociarem entre si políticas regionais supostamente de consenso e aumentarem o poder de barganha das sete cidades perante os governos estadual e federal. Desejam prejuízos mínimos à autonomia municipal. É um perfil muito semelhante ao da Associação de Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, a GRANBEL. 89 Acrescente-se a esse perfil a restrição que os prefeitos têm feito à participação de outros atores regionais das discussões do consórcio tais como deputados federais e estaduais, bem como a sociedade civil organizada. Sob esse aspecto, o Diário do Grande ABC fez o seguinte comentário: “(...) as reuniões entre os prefeitos são fechadas - sem permissão para a participação da imprensa, algo que era questionado até o ano passado pela atual diretoria. Também há reclamação de deputados estaduais e federais, que não têm acesso às informações tratadas pelos administradores e dessa forma se vêem impedidos de atuar - se é que desejam, porque raramente participam das reuniões abertas.(...) A participação pública na discussão regional fica restrita à Câmara Regional - um braço político do Consórcio Intermunicipal, em que vários agentes se inter-relacionam para formalizar acordos e parcerias.” À guisa de conclusão, o Consórcio do Grande ABC enfrenta atualmente grandes desafios e impasses. É uma experiência inovadora, mas novos avanços parecem estar contigenciados por alguns dilemas: o arrefecimento da participação da sociedade civil, a dependência de boas relações pessoais e político-partidárias entre os atores e o seu perfil mais de lobista que de gestor, são alguns dos principais. “Um salto de qualidade é necessário”, na opinião de Klink (2006) Uma aposta observada na articulação do Grande ABC, nos dias de hoje, é a possibilidade de dotála de instrumentos mais efetivos de planejamento e gestão regional a partir da edição da lei geral de consórcios públicos, em abril de 2005, pelo Congresso Nacional. Há uma expectativa de que a adaptação da articulação regional à lei impute-lhe instrumentos que, inclusive, possam traduzir uma certa autoridade consorcial em capacidade e garantia do cumprimento dos acordos pelos atores. No entanto, são ainda nebulosas as conseqüências da adaptação da integração regional. Em outras palavras, ainda não são claros os efeitos de uma possível adaptação do Grande ABC à nova legislação sobre os custos de transação regionais. A ênfase da nova lei, na gestão associada de serviços públicos, torna compulsória a execução dos objetivos definidos para o consórcio. O acordo, balizado em um contrato de consórcio aprovado pelas câmaras municipais e em contratos de rateio, vincula os orçamentos dos municípios à execução dos objetivos fixados para a entidade. Além disso, o consórcio, daqui em diante de natureza jurídica de direito público, seguirá todas as normas a que se sujeita a administração pública: licitações para compras, concurso público para contratação de pessoal e adequação à Lei de Responsabilidade Fiscal. É certo que, uma vez formalizado, será alto o custo de transação para os municípios romperem o contrato de consórcio público, pois isso acarretará multas rescisórias e indenizações por inadimplemento de contrato. As exigências da equipe técnica aprovada em concurso, o fluxo constante de recursos e restrições para a desativação irresponsável da associação poderão significar maior autonomia para o consórcio e menor para os municípios. Possivelmente, a celebração de acordos pelos municípios amparados na nova lei será mais pesada e sopesada na medida em que estes já não serão meros acordos de cavalheiros, pelo contrário, implicarão em obrigações contratuais para a prefeitura. Concordar com uma maior autonomia do consórcio: será esse um dilema para os prefeitos? 90 MÓDULO 3: Artigos Referenciais: Democracia e Cidadania38 Orlando Alves dos Santos Junior (Fase)* Será que o Brasil é um país democrático? Sob muitos aspectos não resta dúvida que sim, mas sob outros podemos levantar diversas dúvidas. Do ponto de vista histórico, a Constituição de 1988 pode ser considerada o marco não apenas da redemocratização brasileira, mas também da instituição das bases de um regime político no qual a população é chamada a participar e a ter papel ativo na gestão pública, especialmente no plano local. Há que indagar, porém, sobre os limites para a consolidação dessa nova ordem democrática, em razão das grandes distâncias sociais que separam as classes, as regiões, as cidades e até mesmo os bairros, em mundos contrastantes em termos de condições e qualidade de vida. Neste artigo, pretendemos discutir exatamente o problema da democracia a partir das condições para sua efetividade no contexto brasileiro. Para tanto, nos parece fundamental começar discutindo o próprio conceito de democracia e sua relação com a cidadania. O que é democracia? Tomemos como ponto de partida a concepção de Guillermo O’Donnell (Teoria Democrática e Política Comparada. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 42, n. 4, p. 577 – 654, 1999), na qual um regime democrático tem duas dimensões fundamentais: primeiro, é um regime representativo de governo, em que o único mecanismo de acesso às principais posições de governo ocorre por meio de eleições competitivas, resultado da aposta institucionalizada, universalista e includente que faz uma sociedade, implicando na garantia a todos os indivíduos dos direitos de votar e de ser votado. Segundo, é um regime em que o sistema legal garante as liberdades e os direitos considerados fundamentais ao exercício da cidadania política. Um regime democrático tem duas dimensões fundamentais: primeiro, é um regime representativo de governo, em que o único mecanismo de acesso às principais posições de governo ocorre por meio de eleições competitivas, implicando na garantia a todos os indivíduos dos direitos de votar e de ser votado. Segundo, é um regime em que o sistema legal garante as liberdades e os direitos considerados fundamentais ao exercício da cidadania política. Essa definição, para os autores que a adotam, pressupõe que para a efetividade do regime democrático não basta a realização de eleições; estas devem competitivas, regulares e institucionalizadas. Como sublinha o próprio O’Donnell (p. 589), as eleições são competitivas quando “reúnem as condições de ser livres, isentas, igualitárias, decisivas e includentes”. Ao mesmo tempo, essa definição tem o mérito de afirmar a necessidade de um conjunto de liberdades que assegura a realização de eleições com essas características (livres e isentas). O autor destaca, no entanto, que o reconhecimento exato e preciso dessas liberdades apresenta diversos problemas para a teoria democrática, pois sua determinação não encontraria bases teóricas suficientemente firmes e claras, já que tais liberdades se baseiam fundamentalmente em juízos de valor. Por 38 Texto retirado de: Santos Junior, Orlando Alves dos...[et al.]. (organizadores). Políticas Públicas e Gerstão Local: programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003. * Sociólogo, doutor em planejamento urbano, diretor da ONG FASE – Solidariedade e Educação, e integrante da coordenação do programa Observatório (IPPUR/UFRJ – FASE). 91 exemplo, sabemos que a liberdade de livre movimento ou a liberdade de expressão são essenciais porque entendemos que ambas são positivas e fundamentais para a vida dos indivíduos. Mas dificilmente alguém pode apontar com exatidão o conjunto de liberdades básicas e suficientes para garantir eleições livres. Apesar dessas dificuldades e dos elementos de imprecisão que envolvem esse debate, O’Donnell entende que a melhor perspectiva não é ignorar essas dificuldades nem tentar determiná-las artificialmente, mas, ao contrário, discutir as razões e as implicações desse enigma, para compreender por que certos países conseguem ter dinâmicas mais democráticas do que outros. Daí a preocupação do autor em estabelecer uma definição de democracia que não se restrinja ao acatamento das regras democráticas, como na visão institucional, chamada assim exatamente por se restringir à análise da mecânica democrática, ou seja, à dinâmica eleitoral. Em O’Donnell, estão intrinsecamente vinculadas e são inseparáveis a institucionalização do regime e as condições de sua efetividade, traduzidas pelas liberdades fundamentais que asseguram a cidadania política. O’Donnell afirma que os direitos de votar e de ser votado expressos em um sistema legal definem uma condição na qual cada agente é concebido como indivíduo “dotado de razão prática, ou seja, que faz uso de sua capacidade cognitiva e motivacional para tomar decisões racionais em termos da sua situação e dos seus objetivos, e dos quais, salvo conclusiva em contrário, é considerado o melhor juiz.” (p. 603). O’Donnell chama essa condição, em inglês, de agency, que poderíamos traduzir pela condição de agente portador de direitos, indivíduo autônomo. Essa condição, de agente portador de direitos, também é produto de uma decisão da sociedade, já que implica a institucionalização de “uma visão moral do indivíduo como ser autônomo, racional e responsável” (p. 615), ou seja, que concebe o indivíduo como “um sujeito jurídico dotado de direitos civis subjetivos” (p. 603). O que importa dizer que a cidadania política faz parte dos direitos civis, que historicamente a antecederam, como pode ser confirmado pela análise histórica dos países onde a democracia surgiu primeiro. A concepção de agente portador de direitos e a constatação do nexo orgânico e histórico entre direitos políticos e civis possibilitam afirmar que existe um vínculo entre as condições da efetividade da democracia e as desigualdades sociais existentes em uma dada sociedade. Ou dito de outra forma, é impossível a existência real da democracia sem o acesso e a garantia do exercício dos direitos fundamentais à existência humana, à medida que põe em risco a própria possibilidade de escolhas racionais fundadas na autonomia e na liberdade de ação dos indivíduos. O’Donnell identifica dois tipos de pobreza que impedem o exercício dos direitos fundamentais requeridos pela dinâmica democrática: a pobreza legal e a pobreza material. A primeira, marcada pela baixa efetividade do sistema legal, que ocorre não só em muitas regiões dos países em desenvolvimento, mas também nas periferias de muitas cidades. A segunda, evidentemente, marcada pelas situações de carências básicas para a sobrevivência humana, que decorre da ausência de oportunidades e de recursos materiais e educacionais. Assim, o autor destaca duas questões que devem ser enfrentadas pela democracia, por impedirem o exercício de aspectos essenciais da autonomia requerida pela condição de cidadania: uma, a questão da miséria; a outra, a questão do constante temor à violência, que marcam a vida de muitas pessoas pertencentes a grupos discriminados. Ou seja, pessoas ameaçadas fisicamente ou em situações de carência material extrema não têm condições de participar livremente do processo político e de exercer sua cidadania. 92 É impossível a existência real da democracia sem o acesso e a garantia do exercício dos direitos fundamentais à existência humana, à medida que põe em risco a própria possibilidade de escolhas racionais fundadas na autonomia e na liberdade de ação dos indivíduos. Dessa concepção, resultam quatro questões fundamentais para a nossa discussão. Primeiro, vemos que o exercício dos direitos está na base da concepção de cidadania, entendido na sua forma contemporânea, como direitos civis, políticos e sociais. Segundo, percebemos que a visão moral por trás da concepção de agentes portadores de direitos funda-se na visão do indivíduo como sujeito dotado de autonomia (capacidade de se reconhecer), de capacidade cognitiva (ser racional nas suas escolhas) e investido de integridade de existência (segurança física sem nenhuma forma de coerção). Terceiro, como o indivíduo não existe isoladamente, mas sua existência depende sempre dos vínculos sociais que ele estabelece, podemos dizer que a condição de agente portador de direitos é condição fundamental para a associação e as participações cívica e política na sociedade. Por fim, essa concepção de democracia subentende a admissão de uma noção de cidadania que incorpore não apenas o exercício de direitos, mas também a aceitação das idéias de divergências, conflitos e, por que não, de disputa pelo poder. A dinâmica democrática tem como característica singular exatamente a disputa em torno das dimensões que definem a cidadania, ou seja, em torno dos aspectos em que a condição de agente portador de direitos está em jogo. Como sublinha O’Donnell (p. 627), a condição de indeterminação das liberdades políticas, a permanente possibilidade de extensão ou retração dos direitos sociais e civis “constituem o campo no qual se realiza a competição política na democracia, e assim deverá continuar.” E apesar de todos os problemas referentes aos conflitos em torno dessas definições, concordamos com O’Donnell quando afirma que o regime democrático – a atribuição universalista de liberdades políticas e a aposta includente – gera “possibilidades de habilitação de que todos os outros tipos de regime político são deficientes.” (Ibid.) Nesses termos, O’Donnell aponta a necessidade de discutir a efetividade de um regime democrático, entendendo por efetividade “o grau em que esse sistema de fato ordena as relações sociais” (p. 620). É exatamente essa discussão que pode elucidar algumas das características da fragilidade da democracia brasileira. Analisando um regime democrático concretamente, podemos dizer que: (i) por um lado, sob o ponto de vista formal/legal, as dimensões de um regime democrático estão ancoradas em um sistema legal, definido pelo Estado Nacional enquanto entidade territorial, que estabelece os limites de quem é portador dos direitos de cidadania e que garante a atribuição universalista e includente desses direitos; (ii) por outro lado, sob o ponto de vista da efetividade, o regime democrático depende das condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania, das quais depende a constituição da condição de agentes portadores de direitos, ou seja, a habilitação dos cidadãos para participar da dinâmica democrática. Entendemos, dessa forma, que a habilitação dos cidadãos à dinâmica democrática está relacionada à concepção de agente portador de direito, como condição fundamental para a efetividade da democracia, e associada não apenas à existência dos direitos formais, mas às possibilidades de inclusão social dos indivíduos no conjunto de laços, de valores e de normas que expressam a aposta da sociedade na vida democrática. Ou seja, a habilitação diz respeito às condições necessárias ao exercício da autonomia requerida pela condição de sujeito dotado de razão, investido de integridade física e capaz de tomar decisões segundo seus interesses. 93 Democracia e Governo Local Considerando nossa concepção de democracia, interessa-nos agora discutir o papel e as possibilidades do governo local no aprofundamento da dinâmica democrática e no enfrentamento do quadro de desigualdades sociais. A importância dessa discussão é reforçada pelo fato de a relação do cidadão com o regime (de natureza nacional) ser mediada, em muitos aspectos, pelo município como entidade política e administrativa autônoma. Além disso, essa mediação cresce como resultado da descentralização política institucional em curso, que vem fortalecendo a esfera local de governo por meio da atribuição de novos papéis aos municípios e da municipalização de diversas políticas públicas, antes sob responsabilidade direta de âmbitos mais centralizados do governo. É verdade que, sob o ponto de vista formal/legal, é o Estado Nacional como entidade territorial que estabelece os limites de quem é portador dos direitos de cidadania, ou seja, que garante a atribuição universalista e includente desses direitos. No entanto, tendo em vista a relativa autonomia da esfera local de governo, o exercício efetivo da dinâmica democrática no plano municipal, por meio tanto da competição institucionalizada pelo poder (eleições para ocupação dos cargos de governo) quanto da garantia dos direitos de cidadania e da extensa participação política (liberdades associadas), depende da articulação do sistema legal (de caráter nacional) com o município em pelo menos dois aspectos: (i) condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania, e (ii) características locais do contexto social (a realidade concreta), em que se destacam duas questões, a cultura cívica e a conformação de esferas públicas. Vejamos cada uma dessas dimensões a seguir. Condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania. Apesar de o rol de direitos civis, sociais e políticos fundamentais ser definido pelo sistema legal em âmbito nacional, os municípios podem ter autonomia em certas esferas capazes de alargar, ou mesmo de restringir, o exercício efetivo desses direitos. Tomemos, por exemplo, o direito à informação. Um município pode ter autonomia para instituir formas mais democráticas de acesso às informações sobre sua realidade social ou sobre seu orçamento municipal – por meio, por exemplo, de bancos de dados informatizados ou da divulgação de planilhas orçamentárias de domínio público –, que podem ser decisivas para tornar a disputa pelos postos no governo mais competitiva entre os diferentes grupos sociais. E, principalmente quanto aos direitos sociais, os municípios podem desempenhar um papel terminante no exercício desses direitos, por meio da regulamentação das políticas urbanas, de educação, de saúde, dos transportes, referentes à criança e aos adolescentes etc. E na nossa concepção, como vimos anteriormente, a própria definição dos direitos políticos está associada ao campo mais amplo dos direitos civis e sociais. Portanto, o alargamento desses direitos pode ser essencial na habilitação dos cidadãos à participação na vida política da cidade, ou, dito de outra forma, pode ser essencial na constituição da condição de agentes portadores de direitos. Apesar de o rol de direitos civis, sociais e políticos fundamentais ser definido pelo sistema legal em âmbito nacional, os municípios podem ter autonomia em certas esferas capazes de alargar, ou mesmo de restringir, o exercício efetivo desses direitos. 94 Ao assumirmos a concepção de agentes portadores de direitos e ao trabalharmos com o nexo entre direitos políticos, civis e sociais, estabelecemos um vínculo indissociável entre a questão da democracia e a das desigualdades sociais, mesmo reconhecendo os limites de indeterminação que o cercam. Também aqui sabemos que existe um componente macroeconômico e político, de natureza nacional e internacional, mas o que queremos salientar é que a expressão dessas desigualdades no plano local pode variar segundo a autonomia e as opções dos municípios. No Brasil, são diversos os exemplos de inovações no plano local em torno da atribuição de novos direitos sociais. E concretamente percebemos que os municípios brasileiros têm-se diferenciado no enfrentamento dos problemas da pobreza e da miséria, por meio de políticas redistributivas da renda e da riqueza produzidas no espaço das cidades; por meio da inversão de prioridades na alocação de recursos públicos; de investimentos nas áreas da educação e da formação profissional; e de políticas de prevenção e combate à violência. Normalmente associados às políticas sociais, podemos distinguir alguns dos programas inovadores implementados por esses municípios: de renda mínima/bolsa escola; de habitação para a população de baixa renda; de urbanização de favelas; de regularização fundiária de áreas de especial interesse social; de aleitamento materno e de acompanhamento da saúde da ulher; de financiamento de empreendimentos econômicos populares através da criação de bancos do povo. No entanto, a questão da participação política não pode ser abordada somente pelo aspecto do acesso aos direitos de cidadania e do enfrentamento das desigualdades sociais. Há um componente ligado ao contexto social local que marca as possibilidades de participação dos cidadãos. Esta é, portanto, a segunda dimensão da articulação entre o sistema legal e o município, que expomos a seguir. Características do contexto social local. Essas caracterisiticas dizem respeito às duas questões – a cultura cívica e a conformação de esferas públicas – fundamentais para a participação dos cidadãos na dinâmica democrática das cidades. Para essa discussão, vamos utilizar como referência a abordagem de Robert Putnam (Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1996), para quem o contexto social está relacionado à natureza da vida cívica, que denomina de “comunidade cívica”, caracterizada “por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração” (p.61). Em uma comunidade cívica, sublinha o autor, a cidadania se caracteriza: (i) pelo interesse e pela participação na vida pública; (ii) pela igualdade política, o que implica direitos e deveres iguais para todos; (iii) pelo compartilhamento de valores de solidariedade, confiança e tolerância, sem negação da existência dos conflitos de interesses; e (iv) pela participação dos cidadãos em organizações cívicas, que incorporam e reforçam os valores e as regras de reciprocidade da comunidade cívica (p. 100-5). Na abordagem de Putnam, a cultura cívica é a expressão não apenas das regras de reciprocidade, mas da corporificação de sistemas de participação social, formados pelas associações da sociedade civil, que representam uma forma de capital social. Partindo desse ponto de vista, nosso entendimento é que o contexto social local está referido a uma realidade territorial definida histórica e culturalmente, muitas vezes de forma heterogênea no interior de cada país, que pode determinar a configuração de diferentes culturas cívicas e, por conseguinte, diferenças significativas entre distintas sociedades civis e esferas públicas. Em outras palavras, 95 argumentamos que diferenças históricas e culturais podem determinar culturas cívicas diferenciadas entre os municípios e estabelecer diferentes padrões de articulação entre o sistema legal e seu contexto social local, gerando, portanto, diferentes padrões de interação entre a sociedade e as instituições governamentais democráticas. Em nossa opinião, aqui se apresenta um dos aspectos singulares mais relevantes na dinâmica democrática municipal, formado pela conformação e pela mobilização de esferas públicas locais, e por diferentes padrões de interação entre a esfera governamental e a sociedade civil. De um lado, a sociedade civil se estrutura e se organiza de forma diferenciada em cada realidade local. Acontece que a estruturação e a organização das associações civis no plano local têm forte incidência na conformação das esferas públicas locais. Assim, o perfil da sociedade civil quanto à sua maior ou menor autonomia e quanto à sua maior ou menor mobilização é decisivo para a definição da dinâmica de participação cívica. Por outro lado, cabe reconhecer que a ação governamental também é decisiva na conformação da cultura cívica, através da instituição de arenas de interação entre o governo e as esferas públicas existentes, definindo padrões diferenciados de interação entre governo e sociedade. O perfil da sociedade civil quanto à sua maior ou menor autonomia e quanto à sua maior ou menor mobilização é decisivo para a definição da dinâmica de participação cívica. Assim, não obstante todas as determinações sobre a institucionalidade democrática de natureza nacional, podemos afirmar que há certas características da dinâmica democrática que estão relacionadas aos contextos locais que dizem respeito à articulação entre o sistema legal e os municípios e que determinam a efetividade da democracia. Dito de outra forma, se a institucionalidade democrática refere-se fundamentalmente ao sistema legal no plano nacional, o exercício efetivo da cidadania política refere-se em grande medida à dinâmica democrática municipal. Com essas considerações, levantamos duas assertivas referentes aos municípios brasileiros: • Os municípios diferem muito tanto na forma como são garantidos os direitos sociais, civis e políticos aos seus cidadãos – se de bloqueio ou de ampliação desses direitos –, como no grau de desigualdades socioeconômicas, em termos de renda, educação e acesso aos equipamentos e serviços urbanos. Essas diferenças provocam grandes conseqüências na proporção de pessoas habilitadas a participar das esferas públicas e, portanto, nas possibilidades de se constituírem governos locais com ampla participação na dinâmica política municipal. • Os municípios diferem muito no que respeita à cultura cívica, à dinâmica da sociedade civil e à constituição de esferas públicas. Não só o grau de associativismo da população é bastante diferenciado entre as regiões, e mesmo no interior das cidades brasileiras, como também há diferenças significativas entre os padrões associativos (tipos de associação), segundo os extratos sociais considerados. Com efeito, as possibilidades de constituição de esferas públicas e suas dinâmicas políticas são muito distintas consoante os diversos contextos sociais, heterogêneos e diversificados, da realidade brasileira. E aqui também percebemos que os municípios brasileiros têm inovado e se diferenciado entre si quanto à instituição de arenas de intermediação entre o governo e a sociedade civil, traduzidas em canais de participação dos cidadãos na vida política e social, possibilitando o alargamento da esfera pública local. Nesse sentido, os municípios – ao estabelecerem esses canais intermediários entre as associações e organizações de representação de interesses dos cidadãos e as instituições clássicas do sistema representativo de governo, na forma do Poder Executivo e do Poder Legislativo – têm desempenhado importante papel nas respostas à crise de representação das 96 instituições políticas, respostas que podem ser decisivas no grau de representatividade e na legitimidade do próprio governo local. A estrutura e o funcionamento dos Conselhos Municipais reforçam essa afirmação. Os Conselhos foram amplamente difundidos a partir da Constituição Brasileira de 1988, e constituem canais de participação e representação das organizações sociais na gestão de políticas públicas específicas. Obrigatórios por lei federal em diversos setores (saúde, educação, criança e adolescente, assistência social e trabalho), os Conselhos Municipais se diferenciam de acordo com o município: • pelo poder de decisão, deliberativo ou consultivo; • pelos critérios de representação dos diferentes segmentos sociais, amplos ou restritos; e • pela dinâmica e pelas condições de seu funcionamento, isto é, os instrumentos e a • estrutura à sua disposição. Nesse sentido, entendemos que os Conselhos Municipais são a maior expressão da instituição, pelo menos no plano legal, de novos canais de interação entre governo e sociedade no âmbito local. Para refletir: 1. Na sua opinião, qual a relação entre democracia e cidadania? 2. Como as desigualdades podem interferir na efetividade da democracia? 3. Como o governo local pode interferir na dinâmica democrática? Para ler mais: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Democracia e Governo Local: dilemas da reforma municipal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/FASE, 2001. 97 A Democracia e Suas Dificuldades Contemporâneas Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello I - Democracia formal e democracia substancial Independentemente dos desacordos possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde, resulta que Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados. Sem dúvida esta noção, tal como expendida, maneja também conceitos fluidos ou imprecisos (liberdade, igualdade, deliberações respeitosas destes valores, instituições armadas de maneira a concretizar determinados resultados). Sem embargo, é dela - ou de alguma outra que se ressinta de equivalentes problematizações - que se terá de partir para esboçar uma apresentação sumária de certas relações entre Estado e democracia, algumas das quais são visíveis e outras apenas se vão entremostrando a uma visão prospectiva. Seja como for - e até mesmo em razão da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noção de democracia – é conveniente distinguir entre Estados formalmente democráticos e Estados substancialmente democráticos, além de Estados em transição para a democracia, tendo-se presente, ainda assim, o caráter aproximativo destas categorizações. Estados apenas formalmente democráticos são os que, inobstante acolham nominalmente em suas Constituições modelos institucionais - hauridos dos países política, econômica e socialmente mais evoluídos - teoricamente aptos a desembocarem em resultados consonantes com os valores democráticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em decorrência de eleições, mediante sufrágio universal, para mandatos temporários; (b) consagrem uma distinção, quando menos material, entre as funções legislativa, executiva e judicial; (c) acolham, em tese, os princípios da legalidade e da independência dos órgãos jurisdicionais, nem por isto, seu arcabouço institucional consegue ultrapassar o caráter de simples fachada, de painel aparatoso, muito distinto da realidade efetiva. É que carecem das condições objetivas indispensáveis para que o instituído formalmente seja deveras levado ao plano concreto da realidade empírica e cumpra sua razão de existir. BISCARETTI DI RUFFÌA, em frase singela, mas lapidar, anotou que "a democracia exige, para seu funcionamento, um minimum de cultura política", que é precisamente o que falta nos países apenas formalmente democráticos. As instituições que proclamam adotar em suas Cartas Políticas não se viabilizam. Sucumbem ante a irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais dominantes, que as controlam, apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as instituições democráticas em si mesmas, isto é, não lhes devotam real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu uncionamento regular, procuram, em função das próprias conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas ora abertamente quando necessário, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvirtuamentos romovidos pelos governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais bem situadas. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer consciência de cidadania e correspondentes direitos, não oferece resistência espontânea a estas anobras. 98 Ademais, é presa fácil das articulações, mobilizações e aliciamento da opinião pública, quando necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que os segmentos dominantes detêm sobre a “mídia” 2, que não é senão um de seus braços. É que - como de outra feita o dissemos – as nstituições políticas destes países “não resultaram de uma maturação hstórica; não são o fruto de conquistas políticas forjadas sob o acicate de reivindicações em que o corpo social (ou os estratos a que mais aproveitariam) nelas estivesse consistentemente engajado; não são, em suma, o resultado de aspirações que hajam genuinamente germinado, crescido e tempestivamente desabrochado no seio da Sociedade”. Pelo contrário, suas instituições jurídico-políticas, de egra, “foram simplesmente adquiridas por importação, tal como se importa uma mercadoria pronta e acabada, supostamente disponível para proveitoso consumo imediato. Nestes Estados recepcionou-se um produto cultural, ou seja, o fruto de um processo evolutivo marcado por uma identidade própria, transplantando-o para um meio completamente distinto e caracterizado por outras circunstâncias e vicissitudes históricas. É dizer: instituições refletoras de uma dada realidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como se ossem irrelevantes as diversidades de solo e de enraizamento” Em suma: estes padrões de organização política não se impuseram à conta de autêntica resposta a conflitos ou pressões sociais que os tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos porque a elite dirigente de sociedades menos evoluídas, de olhos postos nas mais evoluídas, entendeu que se constituíam em um modelo natural, a ser incorporado como expressão de um desejável estágio civilizatório. Então, não lhes atribuem outra importância senão figurativa. Daí que, não estando cerceadas por uma consciência social democrática e correlata pressão, ou mesmo pelos eventuais entusiasmos de uma “opinião pública”, já que as modelam a seu talante, aceitam as instituições democráticas “apenas enquanto não interferentes com os amplos privilégios que conservam ou com a vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores, por detrás de uma máscara democrática, graças, justamente, ao precário estágio de desenvolvimento econômico, político e social de suas respectivas sociedades” De outra parte, esta situação inferior em que vivem os Estados apenas formalmente democráticos lhes confere, em todos os planos, um caráter de natural subalternidade em face dos países cêntricos, os quais, compreensivelmente, são os produtores de idéias, de “teorias” políticas ou econômicas, concebidas na conformidade dos respectivos interesses e que se impõem aos subdesenvolvidos, não apenas pelo prestígio da origem, mas também por toda a espécie de pressões. Sendo conveniente aos países desenvolvidos a persistência desta mesma situação, que lhes propicia, em estreita aliança com os segmentos dominantes de tais sociedades, manejar muito mais comodamente os governos dos países “pseudo democráticos” em prol de suas conveniências econômicas e políticas, é natural que existam entraves suplementares para superação deste estágio primário de evolução. Resulta deste quadro que as sociedades de incipiente cultura política para poderem vir a se configurar como Estados democráticos, demandariam mais do que apenas reproduzir em suas Constituições os traços especificadores de tal sistema de governo. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar suas instituições básicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanismos correntes de seu desnaturamento e, de outro - o que ainda seria mais importante - empenhar-se na transformação da realidade social buscando concorrer ativamente para produzir aquele mínimo de cultura política indispensável à prática efetiva da democracia, única forma de superar os entraves viscerais ao seu normal funcionamento: 99 (a) as de desfrutar de um padrão econômico-social acima da mera subsistência (sem o que seria vã qualquer expectativa de que suas preocupações transcendam as da mera rotina da sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso (b) à educação e cultura (para alcançarem ao menos o nível de discernimento político traduzido em consciência real de cidadania) e (c) à informação, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para não serem facilmente manipuláveis pelos detentores dos veículos de comunicação de massa)”. Uma vez reconhecido que nos Estados apenas formalmente democráticos o jogo espontâneo das forças sociais e econômicas não produziu, nem produz por si mesmo - ou ao menos não o faz em prazo aceitável - as transformações indispensáveis a uma real vivência democrática, resulta claro que, para eles, os ventos néo-liberais, soprados de países cujos estádios de desenvolvimento são muito superiores, não oferecem as soluções acaso prestantes nestes últimos. Valem, certamente, como advertência contra excessos de intervencionismo estatal ou contra a tentativa infrutífera de fazer do Estado um eficiente protagonista estelar do universo econômico. Sem embargo, nos países que ainda não alcançaram o estágio político cultural requerido para uma prática real da democracia, o Estado tem de ser muito mais que um árbitro de conflitos de interesses individuais. Cumpre ter presente que acentuadas disparidades econômicas entre as camadas sociais, que já foram superadas em outros países, inclusive mediante ação diligente do Estado, persistem em todos aqueles de insatisfatória realização democrática. Nestes, a péssima qualidade de vida de vastos segmentos da sociedade, bloqueia-lhes o acesso àquele "mínimo de cultura política" a que se reportava BISCARETTI DI RUFFÌA. Assim, seria descabido imaginar que o papel do Estado pode ser o mesmo em quaisquer deles. De fato, para engendrar os requisitos condicionais ao funcionamento normal da democracia ou promover-lhes a expansão, o Estado não tem alternativa senão a de se constituir em um decidido agente transformador, o que supõe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos países que já ultrapassaram esta fase, um desempenho muito mais participante, notadamente no suprimento dos recursos sociais básicos e no desenvolvimento de uma política promotora das camadas mais desfavorecidas. Na medida em que suas instituições e prática estejam votadas a este efeito transformador, caberia qualificá-los como Estados em transição para a democracia. Entretanto, se, em despeito do formal obséquio que lhe prestem através das correspondentes instituições clássicas, deixarem de consagrar-se à instauração das condições propiciatórias de uma real vivência e consciência de cidadania, não se lhes poderá reconhecer sequer este caráter. Demais disto, contrariamente ao que pode suceder e vem sucedendo nos Estados substancialmente democráticos, naquel'outros que ainda estão em caminho de sê-lo, quaisquer transigências com a rigidez do princípio da legalidade, quaisquer flexibilizações do monopólio legislativo parlamentar, seriam comprometedoras deste rumo. É que toda concentração de poder no Executivo, assim como qualquer indulgência em relação a suas pretensões normativas, constituem-se em substancial reforço ao autoritarismo tradicional, solidificam uma concepção paternalista do Estado identificado com a pessoa de um "Chefe" - e alimentam a tendência popular de receber com naturalidade e esperançoso entusiasmo soluções caudilhescas ou messiânicas. Em uma palavra: atribuir ao Executivo – órgão estruturado em torno de uma chefia unipessoal - poderes para disciplinar relações entre administração e administrados, é, nos países de democracia ainda imatura, comportamento que em nada concorreria para a formação de uma consciência 100 valorizadora da responsabilidade social de cada qual (que é a própria exaltação da cidadania) ou para encarecer a importância básica de instituições impersonalizadas como instrumento de progresso e bem estar de todos. Contrariamente, serviria apenas para reconfirmar a anacrônica relação soberano-súdito. Assim, em despeito da generalizada tendência mundial de transferir ao Executivo poderes substancialmente legislativos, ora de maneira explícita e sem rebuços, como se fez na França (e logo acomodada pelos téoricos em uma eufêmica reconstrução do princípio da legalidade), ora mediante os mais variados expedientes ou através de acrobáticas interpretações dos textos constitucionais, nos Estados que ainda carecem de uma experiência democrática sólida, a acolhida destas práticas não é compatível com a democracia, ainda que tal fenômeno haja sido suscitado reconheça-se - por razões objetivas poderosas, tanto que se impuseram generalizadamente. II - A crise dos instrumentos clássicos da democracia O tópico do fortalecimento do Poder Executivo e correlato declínio do Legislativo, suscita reflexões que concernem genericamente ao tema das relações entre Estado e democracia, extravasando em muito o âmbito das considerações feitas quanto à especificidade de suas repercussões imediatas nos países onde ainda é débil o enraizamento social da democracia. É sabido que, em despeito da importância atribuível ao Parlamento na história da democracia, importância esta correlata ao declínio do poder monárquico, o Executivo, sucessor do rei, cedo começou a recuperar, em detrimento óbvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da democracia clássica, os poderes normativos que lhe haviam sido retirados. É certo, sem dúvida, que, na presente quadra histórica, poderosas e objetivas razões vêm concorrendo crescentemente para isto. Desde que o Estado, por força da mudança de concepções políticas, deixou de encarar a realidade social e econômica como um dado, para considerá-la como um objeto de transformação, sua ação intervencionista operada por via da Administração e traduzida não só em aprofundamento, mas sobretudo em alargamento de suas missões tradicionais, provocaria, como tão bem observou ERNST FORSTHOFF, uma insuficiência das técnicas de proteção das liberdades e de controle jurídico, as quais haviam sido desenvolvidas sob o signo do Estado liberal. Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepções néo-liberais, nem por isto reduzir-se-á a intensificação de um controle do Estado sobre a atividade individual. É que o progressivo cerceamento da liberdade dos indivíduos, tanto como o fortalecimento do Poder Executivo, arrimam-se também em razões independentes das concepções ideológicas sobre as missões reputadas pertinentes ao Estado. Um outro fator, de extrema relevância - o progresso tecnológico – igualmente concorreu e concorre de modo inexorável para estes mesmos efeitos. Deveras, o extraordinário avanço tecnológico ocorrido neste século, a conseqüente complexidade da civilização por ele engendrada e, correlatamente, o caráter cada vez mais técnico das decisões governamentais, aliados à tendência recente da formação de grandes blocos político-econômicos formalizados, quais mega-Estados, conspiram simultaneamente contra o monopólio legislativo parlamentar e, possivelmente, a médio prazo, até mesmo contra as liberdades individuais. Senão, vejamos. 101 Sabidamente, como resultado da evolução tecnológica, as limitadas energias individuais se expandiram enormemente, com o que ampliou-se a repercussão coletiva da ação de cada qual, dantes modesta e ao depois potencialmente desastrosa (pelo simples fato de exponenciar-se). Em face disto, emergiu como imperativo inafastável uma ação reguladora e fiscalizadora do Estado muito mais extensa e intensa do que no passado. Notoriamente, o "braço tecnológico" propiciou gerar, em escala macroscópica, contaminação do ar, da água, poluição sobre todas as formas, inclusive sonora e visual, devastação do meio ambiente, além de ensejar saturação dos espaços, provocada por um adensamento populacional nos grandes conglomerados urbanos, evento, a um só tempo, impulsionado e tornado exeqüível pelos recursos conferidos pelo avanço tecnológico. Tornouse, pois, inelutável condicionar e conter a atuação das pessoas físicas e jurídicas dentro de pautas definidas e organizadas, seja para que não se fizessem socialmente predatórias, seja para acomodá-las a termos compatíveis com um convívio humano harmônico e produtivo. Em suma: como decorrência do progresso tecnológico engendrou-se um novo mundo, um novo sistema de vida e de organização social, consentâneos com esta realidade superveniente. Daí que o Estado, em conseqüência disto, teve que disciplinar os comportamentos individuais e sociais muito mais minuciosa e extensamente do que jamais o fizera, passando a imiscuir-se nos mais variados aspectos da vida individual e social. Este agigantamento estatal, manifestou-se sobretudo como um agigantamento da Administração, tornada omnipresente e beneficiária de uma concentração de poder decisório que desbalanceou, em seu proveito, os termos do anterior relacionamento entre Legislativo e Executivo. Com efeito, este último, por força de sua estrutura monolítica (chefia unipessoal e organização hierarquizada), é muito mais adaptado para responder com presteza às necessidades diuturnas de governo de uma sociedade que vive em ritmo veloz e cuja eficiência máxima depende disto. Ademais, instrumentado por uma legião de técnicos, dispõe dos meios hábeis para enfrentar questões complexas cada vez mais vinculadas a análises desta natureza e que, além disto, precisam ser formuladas com atenção a aspectos particularizados ante a diversidade dos problemas concretos ou de suas implicações polifacéticas, cujas soluções dependem de análises técnicas – e não apenas políticas. III - Tentativas de resposta à crise da democracia Estes fatores convulsionantes do quadro clássico da democracia (e não apenas da democracia liberal), suscitaram respostas tendentes, a neutralizar, ao menos parcialmente, os riscos oriundos da transferência de poderes do Legislativo para o Executivo e da maior exposição, individual ou coletiva dos cidadãos, a um progressivo cerceamento das liberdades. A disseminação do parlamentarismo terá sido, possivelmente, o meio de que as sociedades mais evoluídas lançaram mão, na esfera política, para minimizar as conseqüências do fortalecimento do Executivo. Os Estados Unidos da América do Norte constituem-se em exceção confirmadora da regra. Com efeito, ainda dentro dos quadros tradicionais de organização política, não havendo irrompido outras fórmulas de estruturação democrática do Poder e ante a presumida impossibilidade de deter utilmente a aludida transferência de atribuições do Legislativo para o Executivo, a solução terá sido transformar este último em delegado daquele. Ou seja: se o Executivo, armado agora de formidáveis poderes, atuar descomedidamente, em descompasso com o sentimento geral da coletividade, é simplesmente derrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento, acima de tudo, em um organismo dotado do mais formidável poder de veto: o veto geral; portanto, uma inversão radical, do modesto e provisório poder de veto típico do Executivo. 102 Na esfera administrativa, ganha relevo crescente o procedimento administrativo, obrigando-se a Administração a formalizar cuidadosamente todo o itinerário que conduz ao processo decisório. Passou-se a falar na "jurisdicionalização" do procedimento administrativo, (ou processo, como mais adequadamente o denominam outros), com a ampliação crescente da participação do administrado no “iter" preparatório das decisões que possam afetá-lo. Em suma: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do "modus procedendi" da Administração. Outrossim, no âmbito processual, mas com as mesmas preocupações substanciais de defesa dos membros da Sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteção dos chamados "interesses difusos" ou "direitos difusos", os quais, em última instância, ao nosso ver, não passam, quando menos em grande número de casos, de uma dimensão óbvia dos simples direitos subjetivos. De fato, não há sentido algum em conceber estes últimos com visão acanhada, presa à relações muito típicas do direito privado, inobstante categorizado como noção pertinente à teoria geral do direito. IV - Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos Os valiosos expedientes a que se vem de aludir, minimizaram, mas não elidiram, a debilitação dos indivíduos perante o Estado, assim como o enfraquecimento da interação entre os cidadão e o Poder Público. O certo é que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente invasivos de todos os campos (nada importando quanto a isto que hajam sido autorizados expressamente ou resultem da generalidade das expressões legais que os ensejam), há diferenças extremamente significativas que, no caso dos regulamentos, repercutem desfavoravelmente tanto no controle do poder estatal, quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas facções sociais. Estas diferenças, a seguir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade também encontradiças nos Regulamentos. Deveras, as leis provêm de um órgão colegial - o Parlamento - no qual se congregam várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este órgão do Poder se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica, termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei, são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento. Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à média do pensamento social predominante muito maior do que ocorre quando as normas produzidas correspondem à simples expressão unitária da vontade comandante do Executivo, ainda que este também seja representativo de uma das facções sociais, a majoritária. É que, afinal, como bem observou KELSEN, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma pluralidade de grupos, inclusive de minorias, é mais democrático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no caso do Parlamentarismo, como fruto da vitória eleitoral de um partido. Daí que os regulamentos 103 traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente ou das coalizões partidárias prevalentes. Além disto, o próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores. É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tempestivas alterações e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas, quanto propósitos de favorecimento ou, reversamente, tratamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos. Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconveniências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual. Já os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, ensancham as mazelas que resultariam da falta deles. Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em círculo restrito, fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, então, de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz em função da diretriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto por seus membros. Não necessita passar, portanto, pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim também pode ser alterado ou suprimido. Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer - e com muito maior razão - das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é, descompasso flagrante com seus pressupostos constitucionais e com a teratológica reiteração delas. V - Possível agravamento da crise da democracia Ao que foi dito cumpre acrescer - e é este possivelmente o aspecto mais importante - que, na atualidade, está ocorrendo um distanciamento cada vez maior entre os cidadãos e as instâncias decisórias que lhes afetam diretamente a vida. A claríssima tendência à formação de blocos de Estados, de que a Europa é a mais evidente demonstração, por exibir um estágio qualitativamente distinto das ainda prodrômicas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de fórmulas políticas organizatórias muito distintas das que vigoraram no período imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento, quase que inevitável entre o cidadão e o Poder. Com efeito, as decisões tomadas pelos Conselhos de Ministros Europeus (os quais não são investidos por eleições para este fim específico) possivelmente afetam de maneira mais profunda a vida de cada europeu do que as tomadas pelos respectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelos que 104 receberam mandato expresso para lhes regerem os comportamentos (O chamado “Parlamento Europeu”, distintamente do que o nome sugere não é um órgão legislativo). Procederia concluir que um número cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um número cada vez maior delas e que os modelos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou assegurar a democracia, estão se esgarçando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institucionais da democracia representativa) encontram-se, hoje, provavelmente, muito mais resguardados enquanto valores incorporados à cultura política do ocidente desenvolvido, do que, propriamente, pela eficiência dos vínculos formais das instituições jurídico-políticas. Dito de outro modo: a convicção generalizada de que liberdade e igualdade são bens inestimáveis atua como um freio natural sobre os governantes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda incólume, conquanto as instituições concebidas para assegurá-los já não possuam mais as mesmas condições de eficácia instrumental que possuíram. Para usar uma imagem exacerbada, é como se já houvesse se iniciado uma caminhada em direção a um “despotismo esclarecido”. Poder-se-ia entender que os valores próprios da democracia encontram-se tão profundamente enraizados na consciência coletiva de sociedades politicamente mais evoluídas que se constituiriam em estágio já definitivamente incorporado, tornando impensável a possibilidade de qualquer retrocesso, independentemente da intrínseca eficiência das instituições concebidas para lhes oferecer o máximo de respaldo. Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposição. Ainda permanece verdadeira a clássica asserção de MONTESQUIEU: “todo aquele que tem poder tende a abusar dele; o poder vai até onde encontra limites” 11. A História da humanidade, inobstante a progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito recentes, que a prevalência de idéias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as situações coletivas de bem estar e segurança. E duram tanto quanto duram estas. No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns à generalidade da esfera animal. Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo temor, também as coletividades humanas, quando ameaçadas pela presumida insegurança ou pelo risco ao seu bem estar, substituem suas convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já agora especificamente humanas) racionalizações e atacam com zoológica violência. Surtos de racismo, de rechaço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerbado, de inconformismo com as levas migratórias advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposição política, econômica ou social de outras sociedades - quaisquer deles já prenunciados nas tendências de grupos políticos ou sociais em algumas sociedades européias - tanto como o recente e devastador consórcio bélico dos principais Estados desenvolvidos contra um país árabe, o Iraque (cujo ditador, quanto a isto, em nada é diferente dos demais, distinguindo-se deles apenas em que se revela mais resistente aos interesses das grandes potências e mais preocupado na defesa dos pertinentes ao próprio País), demonstram exemplarmente a precariedade das idéias que não se encontrem alicerçadas, simultaneamente, em interesses e em instituições formais hábeis para mantê-las consolidadas. À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilidades dos países subdesenvolvidos acederem às condições propiciatórias de uma democracia substancial. É que os subdesenvolvidos têm sido e são, 105 naturalmente, meros piões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por definição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as peças. VI- Globalização e neo-liberalismo: novos obstáculos à democracia Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores substancialmente democráticos, como igualdade real e não apenas formal, segurança social, respeito à dignidade humana, valorização do trabalho, justiça social (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988), ficarão cada vez mais distantes à medida em que os Governos dos países subdesenvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de desenvolvimento - em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos se entreguem incondicionalmente à sedução do canto de sereia proclamador das excelências de um desenfreado néo-liberalismo e de pretensas imposições de uma idolatrada economia global. Embevecidos narcisisticamente com a própria "modernidade", surdos ao clamor de uma população de miseráveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico monocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos interessados. Diga-se de passagem que é incorreta a suposição de que tanto a chamada “globalização da economia” (com as feições que, indevidamente, se lhe quer atribuir como inerências), quanto o “neoliberalismo”, constituam-se simplesmente em um estágio evolutivo determinado tão só por transformações econômicas inevitáveis e, conseqüentemente, que encampá-las nada mais significa senão adotar uma atitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que há de incoercível no desenvolvimento histórico. Esta forma de “interpretar” o fenômeno presente é - como freqüentemente ocorre - apenas uma forma astuciosa de valorizar o próprio ideário e de desacreditar, por antecipação, as contestações que se lhes possam fazer. É que traz consigo, implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham, como ultrapassados (“dinossauros”). Em rigor, elas nada mais são que “teorizações” pobres, racionalizações, elaboradas para justificar interesses meramente políticos - e destarte contendíveis - dos países cêntricos e das camadas economicamente privilegiadas, em cujo bojo e proveito foram gestadas. Com efeito, o modesto acervo de idéias atualmente difundidas “sub color” de verdade científica universal nada mais é que o uso de nomenclaturas novas encobridoras de experiências velhas, destinadas a consagrar um simples movimento de retorno, quando menos parcial, ao século passado, ao “statu quo” precedente à emergência do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providência. Relembremos que a partir de meados do século XIX e sobretudo no início do atual irrompeu e expandiu-se um movimento de inconformismo das camadas sociais mais desfavorecidas cujas condições de vida, como é notório, eram extremamente difíceis. Fazendo eco a tais eventos, eclodiram, no campo das idéias e sucessivamente das realizações políticas, manifestações, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes - comunismo e social democracia - insurgentes ambas contra o quadro político social da época. O manifesto comunista (1848) e assim também ulteriormente Encíclicas papais (“Rerum Novarum”, 1891, “Quadragésimo Ano”, 1931) são expressivas de uma visão então crítica e renovadora. Os resultados concretos deste panorama de insurgência, em suas duas vertentes, foram, respectivamente, de um lado, a Revolução Comunista de 1917 e implantação de tal regime na Rússia e, de outro a expansão da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os “Direitos Sociais”, na 106 Constituição Mexicana, também de 1917 e ao depois na Constituição alemã, de Weimar, em 1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocupação em fazer do Estado um agente de melhoria das condições das camadas sociais mais desprotegidas expande-se ao longo de todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social de Direito ou Estado Providência. De outra parte, o regime comunista, ano a ano se alastrava, implantando-se em novos países. Paralelamente, o colonialismo e seu sucessor, o imperialismo das grandes potências do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas contínua, afligido também por censuras crescentes ao excessivo desequilíbrio entre as nações (Encíclicas “Mater er Magistra”, 1961, “Pacem in Terris”, 1963 e “Populorum Progressio”, 1967). Foi, desde o início, o temor de que se expandisse a concepção comunista - radicalmente antitética à sobrevivência do capitalismo - com sua capacidade de atrair as massas insatisfeitas, ou quando menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessário combustível para a implantação e disseminação do Estado Social de Direito. Com efeito, a História não registra gestos coletivos de generosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja pródiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio do comunismo propiciou a irrupção do Estado Providência, sua falência na União Soviética e no Leste Europeu e sinais precursores de seu declínio no Extremo Oriente - está a lhe determinar o fim. A simples cronologia dos eventos e das correlatas idéias o demonstram de modo incontendível. O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora “recautchutadas” com o rótulo de “néo”, propondo liminarmente a eliminação ou sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente técnica de “globalização”. Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interesse dos países dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente, empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes. No momento, parece que não há mais núcleo algum capaz de contender esta rebarbativa unaninimidade que se auto lisonjeia com o qualificativo de moderna, categorizando como ultrapassados quaisquer que ainda não hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamente. A bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a implosão da União Soviética), com o confronto de idéias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagônicas, ensejava, além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natural convite à crítica de ambas, na trilha da síntese resultante de tal dialética. A momentânea ausência das condições objetivas para um debate consistente possivelmente é, para os países subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milênio e um dos maiores obstáculos a que venham, finalmente, a abicar em regimes efetivamente democráticos. 107 MÓDULOS 4, 5 e 6: Artigos Referenciais: Habitação, Inclusão Social e Governança Urbana Colaborativa Rosana Denaldi, Jeroen J. Klink, Claudia de Souza Introdução O Brasil passou por acelerado processo de urbanização que acentuou as desigualdades regionais e gerou grande concentração urbana em algumas regiões. Cerca de 30% da população de 170 mil brasileiros mora em nove metrópoles. Em apenas três regiões metropolitanas -São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte - encontram-se cerca de 20% da população brasileira. (Censo IBGE/2000), A pobreza também se concentrou nesses territórios. O Ministério das Cidades, em parceria com o Observatório das Metrópoles e da FASE, desenvolveu um estudo acerca das carências habitacionais e de saneamento, que apontou 11 metrópoles em risco, as quais reúnem 209 municípios e concentram 32% da população brasileira, 1,6 milhão de domicílios com déficit de distribuição de água, 7,2 com déficit de coleta de esgotos e 12,6 milhões com déficit de tratamento de esgotos. Estas regiões concentram 33% do déficit habitacional, 90% do déficit na faixa de renda de até 3 salários mínimos e mais de 82 % dos domicílios em favela. A resolução das questões setoriais como transporte, infra-estrutura de saneamento, meio ambiente e habitação não se restringem aos limites de um município, particularmente nas regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, caracterizadas pelas intensas interdependências funcionais entre as cidades que as compõem. Na prática, a articulação inter/supra-municipal em torno da política habitacional, objeto da nossa discussão, é frágil. Os arranjos colaborativos no setor habitacional surgem de forma ad-hoc, via convênios intermunicipais, repasses negociados de recursos voluntários e programas específicos. Pouco avançamos na criação de novas governanças metropolitanas que aglutinem agentes, escalas e setores, e a ausência de uma estratégia territorial integrada vem gerando uma série de custos de oportunidade sócio-econômicos e ambientais nas metrópoles brasileiras. Este artigo trata da relação entre política habitacional e questão urbana metropolitana no Brasil e analisa as dificuldades da política urbano-habitacional à luz da fragilidade ou ausência de governança colaborativa. Arranjos colaborativos nas regiões metropolitanas brasileiras É frágil o arcabouço macro-institucional que norteia a gestão, organização e financiamento das regiões metropolitanas brasileiras, e este traço não mudou significativamente após o processo de democratização e descentralização que ocorreu a partir de meados dos anos 1980. Nos anos 1970, por legislação federal, foram criadas nove regiões metropolitanas no país. Essas regiões se constituíram em torno de capitais de estados que abrigaram o primeiro surto de industrialização e os conseqüentes fluxos migratórios. Este arranjo estadualizado, que se configurou em pleno regime autoritário, teve um viés tecnocrata e um alto grau de centralização 108 financeira e de tomada de decisões, com o principal órgão (o conselho deliberativo das regiões metropolitanas) dominado pelos representantes indicados pelos governos federal e estadual.39 Esse modelo de gestão metropolitana se esgota nos anos 1980, particularmente em função de fatores como a crise fiscal, a redemocratização e o surgimento de novos atores sociais. Podemos concluir que o modelo estadualizado não conseguiu desencadear inovação institucional e avançou pouco no que tange à execução efetiva de funções de interesse comum (Spink, 2005; Souza, 2003). Com poucas exceções, as estruturas institucionais montadas pelos estados nas regiões metropolitanas limitam-se à função de planejamento e articulação com pouca capacidade de alavancar a execução efetiva de funções de interesse comum. Ao mesmo tempo surge um conjunto de arranjos horizontais de associativismo intermunicipal, cuja escala cresceu no decorrer dos anos 1980 em função do processo de descentralização e democratização. A figura institucional do consórcio conheceu um crescimento expressivo nessa década. Nos anos 1980 os primeiros consórcios eram principalmente formas setoriais de articulação; já nos anos 1990, em algumas regiões, ocorreram inovações em torno de iniciativas territoriais e multissetoriais.40 Apesar da fragilidade macro-institucional que ainda caracteriza o cenário brasileiro, verificamos uma série de iniciativas recentes no âmbito do processo de repactuação da federação brasileira (Klink, 2009). A partir do ano de 2003, o governo nacional, por meio de uma articulação entre o Ministério das Cidades, o Ministério de Integração Nacional e a Sub-Chefia de Assuntos Federativos da Casa Civil da Presidência da República, reinseriu o tema da gestão metropolitana na pauta da agenda política do país. Por meio da retomada da discussão sobre a chamada Emenda 241 da Constituição Federal, no ano de 2005 o governo avançou, após várias discussões polêmicas, na criação e regulamentação da chamada Lei dos Consórcios Públicos (Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005). Referida lei representa um avanço significativo, principalmente em função da precariedade jurídica dos consórcios existentes (de direito privado). Antes da lei, os consórcios estavam impossibilitados de prestarem garantias, de assumirem obrigações em nome próprio ou de exercerem atividades de fiscalização, regulação e planejamento (Dias, 2006). A lei ainda permite processos de repactuação e consorciamento entre os vários entes federados. Isso quer dizer que o governo estadual pode fazer parte de um consórcio de municípios, desencadeando trajetórias de aprendizagem e propiciando um arranjo com elementos de coordenação vertical e horizontal entre entes federados.41 Além da retomada do tema pelo governo federal, presenciamos, também, um novo ativismo da esfera estadual em relação ao tema metropolitano, sob uma base metodológica diferente daquela dos anos 1970, buscando mais envolvimento dos atores locais. Esse protagonismo estadual refletese num conjunto de iniciativas promissoras em vários estados da federação, como Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraná, entre outros exemplos.42 39 Os municípios não dispunham de autonomia para deliberar sobre a decisão de entrar ou não no arranjo metropolitano. 40 Ver REIS (2009) 41Teoricamente o governo nacional pode participar de um consórcio intermunicipal, desde que a esfera estadual também participe do arranjo. Evitam-se, assim, problemas de coordenação em função de articulações diretas entre governos central e local. 42 Ver DENALDI et al (2009) 109 Conforme argumentam Denaldi, Klink e Souza (2009) não há modelo único de governança. No Quadro 1 seguinte, adaptamos a classificação de arranjos colaborativos nas áreas metropolitanas de Rodríguez e Oviedo (2001) para o cenário institucional brasileiro. Analisando esta figura percebemos que os consórcios públicos e as regiões metropolitanas somente representam dois instrumentos dentro de um caleidoscópio mais complexo de arranjos colaborativos existentes nas áreas metropolitanas brasileiras. Classificamos esses arranjos de acordo com o perfil da articulação governamental (se intermunicipal ou envolvendo várias escalas de poder), e seguinte o critério da presença de atores não governamentais, isto é, se o arranjo é predominantemente governamental ou se constitui um mecanismo de articulação com presença importante de atores não governamentais. Quadro 1 – Uma classificação de arranjos colaborativos nas áreas metropolitanas brasileiras Arranjo Arranjo governamental governamental de múltiplas escalas intermunicipal Arranjo predominamente governamental Setorial Consórcios públicos, convênios, contratos de gestão, financiamentos e repasse de recursos voluntários (transporte, habitação, saneamento etc.) Territorial Consórcio público, região Consórcios de direito metropolitana (regulamentada privado para planejamento regional, de acordo com as Consórcios públicos constituições estaduais) Consórcios de direito privado de saúde, educação, resíduos sólidos etc.; consórcios públicos; acordos e convênios intermuncipais Arranjo com presença importante de atores não governamentais Setorial Territorial Comitê de bacias, câmaras setorais, conselhos, fundos e fóruns setorais (SNHIS, SNHM etc.), grupo gestor setorial, unidades de esgotamento etc. Câmaras, conselhos e fóruns regionais de desenvolvimento, grupo gestor de monitoramento e fiscalização de mananciais e bacias hidrográficas etc. (*) Pouca presença no cenário institucional brasileiro. 110 Agências de desenvolvimento econômico Agências de reconversão territorial (*) Evidentemente, conforme também observam autores como Lefevre (2008), estes recortes são relativamente aleatórios e incompletos. No caso brasileiro outro critério importante se refere ao grau de formalização do mecanismo de colaboração. Vários arranjos informais podem desempenhar papel importante no processo de aprendizagem coletiva rumo às formas mais institucionalizadas de governança metropolitana. O Quadro anterior mostra que pode surgir uma agenda metropolitana mais promissora que aquela proporcionada pelo debate estritamente institucional. Essa nova agenda seria caracterizada pela busca dos limites e potencialidades com respeito ao aperfeiçoamento e ampliação dos atuais arranjos colaborativos imperfeitos (second best) nas áreas metropolitanas, pelo uso dos instrumentos novos e pela reinvenção dos existentes. Colaboração inter-federativa no setor habitacional Na área habitacional, a partir de meados da ultima década, vários acontecimentos abrem novas perspectivas, entre eles, destaca-se a aprovação do Estatuto da Cidade43, a organização institucional do setor habitacional e a ampliação do atendimento à população de menor renda. (Bonduki,2009; Brasil, 2004) A aprovação do Estatuto da Cidade, Lei Nº 10.257/2001, representa a possibilidade de ampliar o processo de acesso à terra urbanizada, fazendo com que a mesma cumpra sua função social. A criação do Ministério das Cidades, a formulação da nova Política Nacional de Habitação (PNH) e do Sistema Nacional de Habitação (SNH) podem contribuir para reunir esforços dos três entes federativos (União, estados e municípios). Várias iniciativas do Governo Lula, entre elas o lançamento do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), aumentaram a disponibilização de recursos para habitação. O investimento na área habitacional foi ampliado com aumento significativo também dos subsídios habitacionais, o que possibilitou ampliação do atendimento à população de menor renda. Em 2007, no segundo governo Lula, foi lançado o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento – objetivando um crescimento econômico de 5% ao ano no período 2007/2010. O programa foi dividido em três eixos de infra-estrutura: (1) logística, (2) energética, e (3) social e urbana. O terceiro eixo inclui, entre seus componentes, urbanização de favelas e de assentamentos precários, prevendo um significativo aumento dos investimentos e da ampliação do atendimento. Foram eleitas para atendimento 12 regiões metropolitanas, as capitais e os municípios com mais de 150 mil habitantes, selecionando-se 192 propostas que beneficiam 157 municípios, sendo previsto um investimento em urbanização de favelas, até 2010, da ordem de RS 8,3 bilhões. Entretanto, pouco se avançou na direção da construção de uma agenda de gestão metropolitana. O Estatuto da Cidade não trata da questão metropolitana e regional. Permanece a dificuldade de articular a elaboração e revisão dos planos diretores com as estratégias de âmbito regional. Na escala metropolitana verificamos um padrão de uso e ocupação do solo que fugiu largamente do controle e da capacidade de mediação dos planos diretores locais. Na prática os gestores locais não somente se depararam com desafios enormes de aplicar os novos instrumentos do Estatuto em prol 43 Lei Federal nº 10.257 de 10 de junho de 2001. 111 de inclusão sócio-espacial – principalmente em função da força histórica do capital imobiliário nas cidades brasileiras –, mas também não se mobilizaram para articulá-los em escala metropolitana. Conseqüentemente, na maior parte das áreas metropolitanas verificamos um verdadeiro caleidoscópio de planos diretores municipais, com nenhum denominador comum em termos de índices urbanísticos, instrumentos utilizados, metodologias de elaboração e formas de acompanhamento, monitoramento e adequação. (Freitas, 2007) O novo desenho institucional, em especial o SNH (Sistema Nacional de Habitação), não busca uma conexão mais direta com as novas institucionalidades de colaboração inter-federativa que surgiram nos últimos anos (e cuja expressão mais clara é a figura dos consórcios públicos). O PAC priorizou intervenções de caráter metropolitano, mas não estabeleceu como um de seus objetivos o fortalecimento das articulações regionais. O caráter do PAC requer, em muitos casos, a articulação de municípios e estado e, em outros, a articulação entre municípios. Paradoxalmente, a fragilidade dos arranjos institucionais regionais no Brasil impôs a necessidade do governo federal (Casa Civil, Ministério das Cidades e CEF) reunir municípios e estados para pactuar a definição das prioridades na fase de planejamento do programa. Coube ao governo federal acompanhar a execução dos projetos sem contar, na maioria das regiões, com os referidos arranjos regionais que possibilitariam consolidar os pactos e viabilizar o planejamento e execução regional desses projetos. Um dos obstáculos institucionais à execução do PAC é a inexistência de um instrumento de organização e gestão das regiões metropolitanas. Para viabilizar estas intervenções foram criados, no âmbito estadual, os GGI (Gabinetes de Gestão Integrada) com a participação de representantes do governo federal (CEF, Ministério das Cidades, Secretaria de Assuntos Federativos), governo estadual e outros tomadores de decisão. Também foi estimulada a cooperação institucional através dos grupos gestores (ou grupos de trabalho) que reúnem representantes dos governos municipais e estadual. Afirma-se que o objetivo principal é o de viabilizar a execução das obras e não o de fortalecer a articulação regional, mas que este ambiente de cooperação poderia ser capaz de gerar instâncias de caráter mais permanente dependendo da vontade e força política das lideranças locais e regionais. O caso da bacia de Beberibe, no Estado de Pernambuco, é um exemplo de articulação regional apoiada pelo governo federal para viabilizar o PAC. Em 2008 foi criado o ‘Grupo Gestor da Bacia do Rio Beberibe (GGBB),’ com a participação do Governo do Estado de Pernambuco, das prefeituras de Camaragibe, Olinda e Recife e entidades da sociedade civil,44 Tendo como principal motivação o lançamento do PAC no final de 2007 e a necessidade de equacionamento das sobreposições de obras e serviços na Bacia. Cada um dos três municípios da Bacia do Beberibe – Recife, Olinda e Camaragibe –, bem como o Governo do Estado pleiteavam recursos do PAC e, para viabilizar o projeto, o governo federal solicitou a compatibilização das várias intervenções. O reconhecimento da sobreposição e fragmentação de ações e agendas e da necessidade da participação de todos os atores envolvidos no programa de recuperação da bacia hidrográfica, impulsionaram a estruturação de um arranjo colaborativo inter-federativo com 44 O Grupo Gestor da Bacia do Rio Beberibe (GGBB) foi oficializado por meio da Portaria Conjunta Nº 013 ( 26 de agosto de 2008) e pautada por um acordo formal entre o Governo do Estado de Pernambuco, as Prefeituras de Camaragibe, Olinda e Recife e entidades da sociedade civil. 112 participação da sociedade civil. Apesar de suas vulnerabilidades, o caso da Bacia do Beberibe mostra um processo de aprendizagem institucional e social. Em outros casos projetos desenvolvidos com apoio e participação do governo federal não conseguiram desencadear esforços regionais e aconteceram à margem dos arranjos regionais. Os casos da ‘Favela Naval’, na Região do Grande ABC, e do ‘Rio do Bugre’, na Região da Baixada Santista, são exemplos. O caso da Favela Naval, localizada na divisa entre as cidades de Diadema e São Bernardo do Campo no Grande ABC Paulista e na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), trata-se de uma intervenção integrada que exigia a colaboração bilateral entre as referidas prefeituras para viabilizar a abertura de viário regional e promover a urbanização e recuperação da Favela Naval. A ausência (ou fragilidade) desta colaboração dificultou e paralisou a execução do projeto. A partir de 2009 as duas novas administrações municipais estabeleceram um canal de diálogo para que as intervenções viárias e habitacionais possam ser “casadas” não só espacialmente, mas também no tempo. No caso da recuperação do Rio do Bugre, que perfaz a divisa entre as cidades de Santos e São Vicente, fazia-se necessária a articulação destes dois municípios e do Governo do Estado. A ocupação habitacional às margens do Rio e que avança sobre ele em palafitas faz-se em condições de grande insalubridade e risco para os moradores, degradando o ambiente estuarino. A recuperação ambiental do Rio do Bugre e dos assentamentos localizados a sua margem exige ações articuladas e intermunicipais. As intervenções realizadas pelos municípios de Santos e São Vicente no território às margens desse mesmo curso d’água, em tempos diferentes e adotando metodologias distintas, resultou na irresolução do problema sócio-ambiental. As tensões e conflitos entre as cidades de Santos e São Vicente em torno da política habitacional, expõem a fragilidade do arranjo estadualizado das regiões metropolitanas que foi montado ao longo dos anos 1990. Apesar da existência de um arranjo de colaboração formalizado por meio da Agência Metropolitana de Baixada Santista (AGEM), a discussão e o planejamento desta intervenção não foram pautados por aquele organismo de gestão. A ausência de colaboração regional dificulta o enfrentamento do déficit habitacional e a recuperação ambiental dos assentamentos precários e das áreas ambientalmente sensíveis e, por extensão, da cidade como um todo, o que certamente contribui para aumentar a segregação sócioespacial e reforçar as desigualdades regionais. A ausência de uma estratégia territorial integrada pode comprometer o equacionamento do problema habitacional. No caso do município de Diadema a articulação regional é condição para o equacionamento desse problema. O município de Diadema, no Grande ABC Paulista, tem densidade demográfica das mais elevadas do Brasil - cerca de 12.898,3 hab/km², O déficit habitacional é de 9.499 habitações (IGBE/FJP-2000) e, de acordo com o Plano Municipal de Habitação de Diadema (2008), o déficit projetado para 2020 é de 18.368 habitações. Não há terra vazia, pública ou privada, adequada para atendimento desse déficit e a totalidade do estoque de terras disponível pode atender apenas 30% do total. Sendo assim, o déficit habitacional de Diadema terá que ser atendido em outras cidades da RMSP. O Município de Itapecerica da Serra, também na RMSP, localiza-se integralmente na bacia hidrográfica da Guarapiranga e a legislação ambiental impõe que a maior parcela de seu território seja preservada para cumprir função ambiental, de forma que parte do déficit habitacional acumulado (cerca de 6 milhões de 113 domicílios) e da demanda demográfica futura necessariamente, e da mesma forma que no caso de Diadema, terá que ser atendida em outro município da região. De forma geral a política habitacional impõe a necessidade premente de articulação e governança regional, uma vez que: • a política urbana praticada por um município pode atrair a demanda de outro município ou expulsar a população de menor renda para municípios vizinhos; • a dinâmica urbano-regional influencia a formação do preço da terra; • em regiões metropolitanas expressivo percentual da população mora e trabalha em diferentes municípios e a solução dos problemas de mobilidade regional relaciona-se à gestão do uso e da ocupação do solo e à oferta de moradia; • o estoque de terras adequadas para uso habitacional no município pode não ser suficiente para solucionar o déficit habitacional acumulado e a demanda demográfica futura e pode requerer que esta demanda seja atendida em outro município da região; • muitos setores da cidades e/ou assentamentos precários estão inseridos em áreas de mananciais ou em áreas de preservação permanente (APP),como mangues, rios e córregos, que não coincidem com os limites administrativos de uma cidade; • muitos projetos de recuperação de assentamentos precários tem interface com projetos viários e de drenagem urbana e requerem definições regionais. Governança colaborativa e ação regional no setor urbano-habitacional: um impasse produtivo? Constatamos que o tema da governança metropolitana voltou à pauta na agenda da política urbana no Brasil. Entretanto, como mostramos neste ensaio, os avanços ainda são embrionários e a questão metropolitana continua relativamente à margem dos grandes debates que pautam o rumo da sociedade brasileira. O arranjo que norteia a gestão, organização e financiamento das áreas metropolitanas é muito frágil. Não há um modelo único de governança metropolitana. Os consórcios públicos (o arranjo mais novo na estrutura de governança regional-metropolitana) e os arranjos estadualizados das regiões metropolitanas representam dois exemplos de um conjunto mais amplo de experiências de articulação inter-federativa. Os convênios, contratos de gestão, comitês de bacias, agências e câmaras de desenvolvimento inter-federativas, entre outros exemplos, são arranjos alternativos (e imperfeitos), cujo funcionamento, limites e potencialidades, com poucas exceções, não são explorados nas pesquisas sobre governança regional e metropolitana. Por exemplo, é possível vislumbrar processos dinâmicos de aprendizagem social, por meio dos quais os agentes desenham e executam uma série de programas colaborativos voltados à execução de serviços de interesse comum, enquanto, ao mesmo tempo, evoluem na direção de instituições e arranjos colaborativos enraizados numa cultura metropolitana mais forte. O debate sobre a coordenação da política habitacional e de urbanização de assentamentos precários em áreas metropolitanas no Brasil não pode ser dissociado desta fragilidade estrutural dos laços de cooperação entre os entes federativos em geral e da governança metropolitana em particular. Vale lembrar que o caso específico do tema urbano-habitacional se insere no contexto da autonomização da política habitacional e da descentralização por ausência. (Arretch,1996). Os avanços mais recentes que ocorreram no setor urbano e habitacional (aprovação do Estatuto da Cidade, criação do Sistema Nacional de Habitação , aumento dos investimentos) não 114 desencadearam avanços concretos no que se refere à articulação de um arranjo mais cooperativo para a política urbano-habitacional nas regiões metropolitanas. Apesar da aprovação do Estatuto da Cidade, a dinâmica do mercado imobiliário excludente e especulativo ainda foge largamente ao controle dos vários planos, normas e diretrizes que são elaborados pelo conjunto dos agentes, na maioria das vezes de forma desarticulada, com o intuito de nortear o desenvolvimento. A estruturação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social mobilizou governos locais e estaduais, além de representantes da sociedade civil, mas não fortaleceu a agenda metropolitana e, na prática, apresenta poucos incentivos para a negociação de arranjos colaborativos em escala metropolitana. O PAC certamente vai melhorar as condições de vida das populações mais vulneráveis das regiões metropolitanas, mas (não obstante ser um programa que prioriza intervenções de caráter metropolitano) não pode ser definido como um “programa metropolitano” no sentido de induzir um processo de pactuação de uma série de agentes e setores em torno de uma agenda metropolitana. Cabe destacar que os arranjos colaborativos existentes (consórcios, agências metropolitanas, etc.) não desempenharam papel relevante nem na operacionalização do PAC, nem na mobilização de governos municipais em torno da coordenação intermunicipal da política habitacional e urbana. À luz da análise anterior, quais são as perspectivas para uma governança colaborativa que beneficie as populações moradoras de assentamentos precários das áreas metropolitanas? Vale primeiramente ressaltar a necessidade de gerar um arcabouço teórico mais robusto e de produzir análises empíricas mais detalhadas sobre os limites, os entraves e as potencialidades que cercam a gama variada de arranjos colaborativos no setor urbano-habitacional. Nesse sentido, no âmbito da teoria institucional (path dependency/trajetórias e rotas dependentes) e da teoria política e estruturalista do federalismo (Fiori 1995; Oliveira, 1995) poderemos provavelmente gerar hipóteses mais detalhadas sobre as fragilidades que caracterizam as estruturas de governança nas regiões metropolitanas brasileiras. Lembramos que existe um verdadeiro caleidoscópio de arranjos colaborativos imperfeitos, com pontos de entrada diferentes (bacias hidrográficas, rios, favelas, sistemas de transporte, projetos de infra-estrutura com grande impacto,etc.). De acordo com esse prisma, o debate sobre o avanço na política habitacional de interesse social nas regiões metropolitanas passa pela questão de como aumentar a eficiência coletiva, o funcionamento e o controle social destes arranjos incompletos/second best. Não existem respostas fechadas a esta pergunta, mas cabe mencionar algumas hipóteses a serem exploradas em pesquisas posteriores. Em primeiro lugar, a União deveria voltar a desempenhar um papel-chave nas áreas metropolitanas e induzir e mobilizar os agentes em torno de uma agenda de ações articuladas. Nesse sentido, vale destaque para o tema do financiamento às regiões metropolitanas. Conforme já observado por vários autores (Rezende, Oliveira e Araújo, 2007), o cenário é pouco animador, pois as discussões mais recentes sobre a reforma tributária basicamente ignoraram as necessidades das regiões metropolitanas. E, para agravar a situação, desde a última reforma financeira de 1966, o federalismo fiscal evoluiu para um sistema relativamente rígido, com pouca margem de manobra dos governos sub-nacionais nas decisões de alocação dos recursos e com uma estrutura de transferências intergovernamentais de baixa capacidade de reação às mudanças no ciclo macro-econômico e em seus efeitos espaciais (Rezende 2009, mimeo: 2-3). 115 Mas, ao mesmo tempo, é inegável que o governo federal deixou de aproveitar um conjunto de instrumentos financeiros de fomento à pactuação metropolitana. Por exemplo, o governo poderia lançar mão de uma estratégia mais agressiva de indução de arranjos colaborativos, integrando atores, escalas e ações, tanto por meio do repasse de recursos voluntários e negociados, quanto a partir da utilização das carteiras dos bancos de fomento. Outro tema delicado é a relativa rigidez de acesso dos governos sub-nacionais aos recursos nacionais e internacionais. Não somente inexistem mecanismos financeiros específicos para incentivar o acesso ao crédito de arranjos colaborativos inter-federativos em geral, mas também a regulamentação desta questão para as novas instituições de governança em particular, como a dos consórcios públicos, deixou lacunas significativas.45 Em segundo lugar, a atuação da esfera federal na arena metropolitana não pode acentuar um processo de crescente esvaziamento do governo estadual no pacto federativo, em geral, e nas suas atribuições de organizar as áreas metropolitanas, em particular.46 Se, por um lado, o arranjo cooperativo estadualizado na forma tradicional de regiões metropolitanas representa certa fragilidade, por outro, é preciso reconhecer o papel chave reservado à esfera estadual na organização de arranjos colaborativos na área metropolitana. Neste sentido, e mesmo que timidamente, o PAC corretamente reforça o papel dos governos estaduais quando estimula a criação dos GGIs (Gabinetes de Gestão Integrada). Existem vários instrumentos alternativos para avançar neste processo de pactuação que re-insira a esfera estadual na agenda de organização e gestão territorial da área metropolitana. Por exemplo, nas várias áreas temáticas que são de responsabilidade compartilhada entre os entes federativos a própria União poderia estimular a cooperação inter-federativa em torno de programas e projetos de reconversão territorial de grande impacto territorial (portos, ferrovias, estradas, recuperação de bacias, programas de implantação de redes de infra-estrutura energética etc.). Nesse cenário, a re-inserção da esfera estadual na agenda metropolitana surgiria no âmbito de um processo mais complexo e aberto de aprendizagem institucional e social entre os agentes, cujo contorno não está pré-definido, mas que evoluiria a partir de uma agenda de negociação de conflitos e de execução de programas concretos. Bibliografia ARRETCHE, Marta T. Desarticulação do BNH e autonomização da política habitacional. 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Na época, as polêmicas em torno da aprovação e negociação da lei do consórcio público ilustraram a preocupação dos governos estaduais com a articulação direta entre união e governos locais. Ver Dias (2006). 46 116 MARICATO, E. Brasil, Cidades alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001. OLIVEIRA, Francisco de. A crise da federação: da oligarquia à globalização. In: Affonso, Rui de Britto Álvares e Silva, Pedro Luiz Barros (Organizadores), A federação em perspectiva. Ensaios selecionados, São Paulo, FUNDAP, 1995, pp 77 - 90. PERNAMBUCO, Governo do Estado . Bacia do Rio Beberibe: Recife, Olinda e Camaragibe: proposta de intervenção integrada. Maio de 2007. Mimeo. REIS, Regina Célia dos. Alternativa política no contexto federativo. Integração regional no Grande ABC Paulista. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2008. REZENDE, F.A. Financiamento Metropolitano- Propostas para o Brasil. Mimeo. Consultoria desenvolvida para o Banco Interamericano de Desenvolvimento. 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Lua Nova, 59, 137-158, 2003. 117 A Questão Habitacional na Região Metropolitana de Belem Coleção Habitare - Habitação Social nas Metrópoles Brasileiras - Uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX Andréa Pinheiro, José Júlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de Sá e Maria Vitória Paracampo 1. Apresentação Este texto é resultado do Workshop realizado em Belém no período de 10 a 11 de dezembro de 2001, com o objetivo de apresentar os resultados de levantamentos preliminares da pesquisa “Observatório de políticas urbanas e gestão municipal: rede nacional de avaliação e disseminação de experiências alternativas em habitação popular”, que contou com a participação de 22 pessoas, entre professores, alunos de graduação e pós-graduação, técnicos da Fase-Belém e o coordenador nacional da pesquisa. Os trabalhos apresentados no Workshop envolveram três áreas: primeiro, tecer um breve diagnóstico da Região Metropolitana de Belém (RMB), Pará (PA), mostrando as relações e a reconfiguração de conflitos/processos socioespaciais na questão habitacional; segundo, fazer uma retrospectiva dos programas habitacionais no Brasil e suas intervenções na RMB-PA; terceiro, apresentar alguns programas e projetos habitacionais considerados mais significativos das estratégias e conteúdos das intervenções públicas na RMB, compondo um quadro preliminar de mapeamento das experiências para estudo de casos da pesquisa. O Workshop buscou ainda mobilizar e consolidar as parcerias institucionais, identificar grupos e/ ou pessoas que já estavam desenvolvendo trabalhos acadêmicos ou relacionados às questões da habitação na RMB. As apresentações e debates permitiram uma maior aproximação da realidade local considerando as especificidades do contexto amazônico e as experiências para composição de tipologia específica a ser elaborada pela pesquisa Rede nacional de avaliação e disseminação de experiências alternativas em habitação popular. 2. Da questão social à questão habitacional na Região Metropolitana de Belém: a política de periferização/metropolização da pobreza 2.1. Belém, metrópole da Amazônia: breve histórico A Região Metropolitana de Belém foi constituída pela Lei Complementar federal n. 14, de 08/06/73, e seus Conselhos Deliberativo e Consultivo foram criados pela Lei estadual n. 4.496, de 03/12/73. Até a metade da década de 1990, estava composta somente pelos municípios de Belém e Ananindeua, quando houve a sua redefinição físico-espacial, sendo ampliada pela Lei Complementar n. 27 de 19/10/1995, com a inclusão dos municípios de Marituba, Benevides e Santa Bárbara. O município de Belém faz parte, juntamente com Ananindeua, Benevides e Barcarena da Microrregião Homogênea de Belém – MRH-37, segundo a divisão adotada pelo IBGE para o território paraense (Figura 1). O município de Belém é a capital do estado do Pará e ocupa a maior porção do território da RMB. A conurbação das sedes municipais de Ananindeua com Belém não se fez apenas pela proximidade físico-geográfica entre as duas cidades, mas foi também resultado do avanço das 118 áreas urbanas de Belém no sentido oeste-leste, isto é, no sentido de Ananindeua, por razões decorrentes da história econômica do Pará com reflexos sobre a capital, cuja síntese aqui vai exposta para melhor entendimento do conjunto urbano formado pelas duas cidades. Em 1616, os ingleses já estavam à margem esquerda do Rio Oiapoque; os holandeses possuíam fortificações e plantações de cana-de-açúcar no Amapá e no Xingu; e os franceses assentaram suas feitorias em várias ilhas da foz do Rio Amazonas. A colonização portuguesa na Amazônia se iniciou com a fundação da cidade de Belém em 1616, para se opor às tentativas dos ingleses, franceses e holandeses de se estabelecerem na região, ocorreu após a expulsão dos franceses do Maranhão, onde pretendiam instalar a França Equinocial. Com a construção do Forte do Presépio (depois denominado Forte do Castelo) – marco inicial de Belém – na confluência da Baía do Guajará com o Rio Guamá (parte meridional da foz do Rio Amazonas), a cidade recebeu, desde logo, a influência do rio. As primeiras ruas de Belém surgiram ao lado do Guamá e por ele se orientaram. Eram as ruas do Norte, Espírito Santo e dos Cavaleiros (estreitos caminhos), hoje, respectivamente, Rua Siqueira Campos e Rua Dr. Assis e Dr. Malcher. Tal como nos núcleos portugueses do litoral atlântico, a atividade econômica, na Amazônia, se iniciou com a lavoura da cana-de-açúcar, que, contudo, não progrediu devido às dificuldades naturais da mata e dos rios. Apesar disso, alguns engenhos reais foram construídos em Belém, localizados no atual bairro da Cidade Velha (antes chamado de Cidade), ao norte do Igarapé do Piri, que ia do Arsenal da Marinha até ao Ver-o-Peso, desembocando na Baía do Guajará, formando, antes, um imenso alagado no terreno onde hoje encontra-se a Praça Dom Pedro II em frente aos atuais Palácios do Governo e Antônio Lemos. O Piri e o alagado foram aterrados entre 1803 e 1823. Por dificuldades financeiras e escassez de mão-de-obra, os senhores de engenho foram levados a fabricar aguardente, de maior consumo e mais elevado preço, em “molinetes” (pequenos engenhos), instalados do outro lado do Igarapé do Piri, porque os mesmos eram proibidos de serem erguidos junto aos engenhos reais do bairro da Cidade. Assim, se formou, ao sul daquele igarapé e contornando a Baía do Guajará, o bairro da Campina, cuja divisa com o bairro da Cidade era a Travessa São Mateus (hoje, Padre Eutíquio). Verifica-se, pois, que Belém ficou inicialmente presa ao rio e à baía, sem nenhuma penetração para o interior (devido ainda à existência de igarapés e igapós). Essa influência se fez, inclusive, quando a cidade tomou a direção para a Ponta do Mel (depois Vila Pinheiro, hoje Vila de Icoaraci), pela orla da Baía do Guajará. Com o insucesso da lavoura da cana-de-açúcar, os colonizadores portugueses, especialmente os religiosos, com a ajuda dos índios (domestificados e aculturados, conhecedores dos rios e da floresta), estabeleceram a “coleta das drogas do sertão” (plantas medicinais e aromáticas, cacau, canela, cipós, raízes etc.), utilizando os rios como vias de acesso, em cujas margens surgiram os primeiros povoados e vilas da região, a partir das missões, quartéis e fortalezas. A atividade da coleta se estendeu até os meados do século XIX e seus resultados materiais e econômicos foram escassos, salvo o relativo progresso que toda a Amazônia, especialmente o Pará, teve no governo do Primeiro Ministro português Marquês de Pombal (1750-77), durante o reinado de D. José I. Pombal criou a Companhia de Comércio do Grão-Pará, com sede na cidade de Belém, incentivando o cultivo do café, fumo, cacau e a pecuária, bem como ampliou a utilização da mão-de-obra escrava africana47. 47 No Pará, governou Mendonça Furtado, irmão de Pombal, com muito autoritarismo 119 Durante o governo de Pombal, Belém teve um expressivo crescimento demográfico e avançou para o interior, rumo à mata, afastando-se do rio e da baía, bem como recebeu seus primeiros equipamentos urbanos. Esse avanço se fez nas partes mais altas do sítio, evitando-se os igarapés e igapós, do que resultou o perfil irregular da cidade. Alcançou, inicialmente, as áreas que formam hoje os bairros do Reduto, Batista Campos, Nazaré e Umarizal248, sendo a Avenida Nazaré (antes Estrada de Nazaré) o vetor que orientou, desde então, o crescimento de Belém rumo ao bairro do Marco, isto é, no sentido de Ananindeua, oesteleste, prolongando-se pela Estrada da Independência até São Brás e, daí, pela Estrada Real (depois, Estrada de Bragança; mais tarde, Avenida Tito Franco; hoje, Avenida Almirante Barroso) até o marco da 1ª Légua Patrimonial349. O governo de Pombal caiu em 1777 e, simultaneamente, foi extinta a Companhia de Comércio do Grão-Pará, coincidindo com a queda das vendas das especiarias amazônicas no mercado europeu, fatos que afetaram a economia do Pará, que se agravou mais ainda com a liberação da mão-de-obra escrava para a ociosidade. Na segunda metade do século XIX, começa a desenvolver-se na Amazônia, especialmente no Pará, a extração da borracha. De início, como prolongamento natural da “coleta das drogas”, depois de 1880, se fez mais intensamente, devido à demanda cada vez maior e à subida de seus preços nos Estados Unidos e na Europa, com o crescimento da indústria de artefatos de borracha50. No rush da borracha, Belém ganhou mais consistência, com a implantação de inúmeros serviços urbanos, principalmente no governo do Intendente Antônio Lemos (1897-1912): bondes eletrificados e iluminação pública, serviços de esgoto, limpeza urbana e forno crematório, corpo de bombeiros, calçamento de ruas e avenidas etc. Foi quando Belém consolidou seu rumo em direção ao bairro do Marco, a partir da Avenida Almirante Barroso e vias adjacentes. O bairro do Marco foi planejado dentro do limite da 1ª Légua Patrimonial, com abertura de suas avenidas e travessas, ocupadas desde logo por inúmeras chácaras. É também da fase da borracha o crescimento da Região Bragantina com o surgimento dos núcleos agrícolas, inclusive Ananindeua. Além da agricultura de autoconsumo e para abastecimento de Belém, floresceu também o cultivo de algodão, malva e fumo51. Como conseqüência da “camponesação” da Região Bragantina, surgiram, em Belém, indústrias de tecelagem, calçados, curtição de couro, fumo, doces, refrigerantes, sabão etc., que direcionaram a segregação para o bairro do Reduto, onde se instalaram algumas delas. A segregação também se deu em Nazaré, Umarizal e Batista Campos como bairros residenciais, com seus palacetes, que substituíram as antigas “rocinhas”. Até l943, Ananindeua pertencia, juntamente com Benevides, ao município de Belém. Inicialmente, chamava-se freguesia. Depois, esta foi transformada em distrito. Sua sede municipal 48 Neles predominaram as “rocinhas”, que eram casas térreas, com grande varanda, estilo campestre, em torno das quais eram executadas atividades rurais as mais diversas. 49 A 1ª Légua Patrimonial (4.110 ha) foi doada à Câmara de Belém em 1628, por carta de sesmaria, pelo Governador do Maranhão e Grão-Pará, Francisco Coelho de Carvalho. A medição e a demarcação só se fizeram, contudo, no século XVIII, ficando-se um “marco” (daí o nome do bairro do Marco) na extremidade leste da Estrada Real 50 O uso industrial da borracha é de 1770. Ma só em 1842 com o processo de vulcanização é que a borracha passou a ser usada na industria de instrumentos cirurgicos, laboratorios e pneus (Prado Jr, 1983) 51 A consolidação dessa região se deu graças à facilidade de escoamento da produção pela ferrovia recém-construída e também devido à chegada de migrantes nordestinos, chegando a se formar ali a maior densidade demográfica da Amazônia 120 surgiu de uma “parada” da extinta Estrada de Ferro de Bragança, que ligava Belém (Estação de São Brás) à Bragança, com 293 km de trilhos. A estrada foi construída entre 1883 e 1908 – com o primeiro trecho (Belém-Benevides) inaugurado em 1884 – e extinta em 196452. Pelo Decreto-Lei estadual 4.505, de 30/l2/43, foi criado o município de Ananindeua (abrangendo Ananindeua e Benevides), cuja instalação oficial deu-se em janeiro de 1944, sendo nomeado prefeito o Sr. Claudomiro Belém de Nazaré. Em dezembro de l96l, foi criado o município de Benevides, desmembrado de Ananindeua do qual era distrito. A sede municipal de Ananindeua dista de Belém 28 km pela BR-3l6. Essa estrada, em conexão com a BR-010 (Belém-Brasília), põe Ananindeua em acesso rodoviário com o leste e o sul do estado, através também da malha rodoviária estadual dessas regiões. Ananindeua limita-se com o município de Belém, ao norte e a oeste; com o de Benevides, a leste; e ainda com o de Belém, ao sul, tendo o Rio Guamá como divisor natural. Por muito tempo houve uma discussão sobre os limites entre os municípios de Belém e Ananindeua, fixados pela Lei estadual 158, de 31/12/48, depois reafirmados pela lei que reordenou os limites de todos os municípios paraenses (Lei estadual 2.460, de 19/12/61). Assim, nunca houve razões de ordem legal para essa discussão. A sede do município detém as seguintes coordenadas geográficas: 1º 23’ 00’’ de latitude sul e 48º 24’ 00’’ de longitude W.Gr. O município fica entre as coordenadas de 1º 10’ e 1º 30’ de latitude sul e 48º 10’ e 48º 30’ de longitude W. Gr. Sua altitude média é de l7 m acima do nível do mar (altitude da sede: 25 m), possuindo um clima equatorial superúmido, com chuvas abundantes de janeiro a maio, temperatura média compensada de 25,6ºC e umidade relativa do ar média de 90%. Na década de 1960, o estado do Pará sofreu influência da rodovia Belém-Brasília, construída entre 1958 e 1960. Essa rodovia aproximou a economia regional, em especial a do Pará, da economia do resto do país (Sul e Sudeste, principalmente) mas, em contrapartida, aumentou o fosso já existente entre as diferenças regionais e desagregou as frágeis indústrias de Belém, pela facilidade da entrada, na Amazônia, de manufaturados de outras regiões. Paralelamente, a Belém-Brasília favoreceu o aparecimento de novos núcleos urbanos e um acentuado crescimento demográfico da RMB, face ao intenso fluxo migratório. Constata-se um adensamento populacional nas décadas de 1960 e 1970 mais restrito ao município de Belém53. Até a década de 1960 o centro de Belém já estava consolidado, quando se acelera o processo de verticalização mais intensa, sendo os terrenos de terra firme concentrados nas mãos de pessoas com maior poder aquisitivo, com equipamentos e serviços urbanos acelerando o processo de valorização urbana e especulação imobiliária. Entre 1950 e 1990 as populações de Belém e da RMB cresceram respectivamente de 255 e 268 mil para 1.099.008 e 1.390.276 milhões de habitantes.. Cabe ainda acrescentar que cerca de 60 km² de áreas de terra firme da cidade estavam ocupadas por repartições civis e militares. Merece destaque na ocupação urbana da RMB as áreas de cotas mais baixas (abaixo de 4,0 metros) e que são sujeitas a inundações a maior parte do ano, as “baixadas”, são áreas próximas aos canais, hoje definitivamente incorporadas à paisagem da 52 A extinção da ferrovia se fez por causa do sucateamento e obsoletismo do seu equipamento, agravado, como ocorreu, de um modo geral, com toda a rede ferroviária brasileira, face à prioridade dada, pelo governo do presidente Juscelino, à expansão da indústria automobilística e conseqüente construção de estradas de rodagem em todo o país. 53 Fazem parte do município de Belém as localidades de Vila do Mosqueiro, Vila de Icoaracy, Outeiro, Val-de-Cans e Tenoné 121 cidade, onde se instalaram, depois, os migrantes das décadas de 1970 e 1980, junto com a população local de baixa renda e que se constituem objeto de ações de melhoria de saneamento e de habitação de baixa renda. 2.1.1. Das “baixadas” às “invasões”: a política de remoção e reassentamento e o processo de metropolização da pobreza O município de Belém possui um relevo similar ao da Região Amazônica, onde se verifica a presença do igarapé, várzea e terra firme. Toda a área urbana está coberta por uma extensa rede de cursos d’água, porque o município se localiza na confluência da Baía do Guajará com a foz do Rio Guamá. Esses fatores tiveram grande importância no processo de ocupação urbana da RBM, na medida em que as áreas de terra firme foram sendo ocupadas pelas camadas de maior renda, restando somente as áreas alagadas para a população pobre. Essas características geográficas têm papel fundamental na forma como as questões socioespaciais estão imbricadas nas questões habitacionais, bem como na forma como a população de baixa renda busca suprir suas necessidades de moradia na cidade. Entre os anos 1960 e 1990, podem-se indicar três grandes vetores de periferização/ metropolização da pobreza, intrinsecamente relacionados à questão da moradia, das lutas e mobilizações pelo direito de morar na RMB, das baixadas às invasões. Constata-se uma reprodução simultânea de subespaços físicos e sociais marcados pela segregação e pobreza urbana, entre os quais três se destacam: as baixadas, invasões de terras e conjuntos habitacionais. Historicamente podem-se indicar dois grandes eixos de ocupação urbana: a BR-316, em direção aos municípios de Anaindeua, Marituba, Benevides e Santa Bárbara, e a rodovia Augusto Montenegro, em direção aos distritos de Icoaraci, Outeiro, Val-de-Cans, Tenoné e Ilhas. As ocupações coletivas da população de baixa renda se articulam ao processo de periferização/metropolização da pobreza, com destaque para três vetores: • as ocupações coletivas na área central da RMB, basicamente nas chamadas áreas de baixadas restritas • ao município de Belém, nas décadas de 1960 e 1970 e, em menor volume, nas décadas de 1980 e 1990; • as ocupações na chamada área de transição após o centro expandido do município de Belém, formação de bairros com famílias removidas das áreas urbanizadas no centro de Belém; • a área de expansão urbana no sentido nordeste da RMB, envolvendo primeiramente os municípios • de Ananindeua e ilhas e, posteriormente, os demais municípios que compõem a RMB. Em Ananindeua e distritos de Belém (Icoaraci e Outeiro), destacam-se as invasões a conjuntos habitacionais. 2.1.2. As baixadas de Belém e a política de remoção e reassentamento À medida que os igarapés foram aterrados, surgiram outros bairros compondo a 1a Légua Patrimonial. As baixadas atingem cerca de 40% do município de Belém, aproximadamente 550 mil habitantes, quase 38% da população total. A rigor, as baixadas são várzeas, compondo cinco bacias hidrográficas: Una, Reduto, Armas, Comércio e Tuncunduba (Figura 3). São áreas constituídas por terras cujas curvas de nível não ultrapassam a cota de 4,00 metros. É também nessas áreas que ocorrem, nas décadas de 1960 e 1970, os maiores conflitos fundiários e as principais intervenções públicas da política habitacional marcada pelas estratégias de remoção e 122 reassentamento. Pode-se dizer que essas estratégias têm sido o principal objetivo das políticas habitacionais até os nossos dias. Surgem, então, nesses subespaços, movimentos populares, mobilizações, manifestações mais radicais, atos públicos, manifestos de todos os tipos. As principais reivindicações foram por urbanização, equipamentos coletivos e regularização fundiária. Dentro do município de Belém, os conflitos fundiários em torno da luta pela propriedade das áreas ocupadas sempre foi intensa. Ocupou-se um grande número de áreas alagadas: públicas e de particulares, da Igreja, principalmente áreas da Marinha e da Universidade Federal. As baixadas surgem como alternativa de moradia da população de baixa renda. Atingem uma extensão de 39,21% do município de Belém, com densidade demográfica de 159,51 (hab/ha), envolvendo uma população total de 765,476 habitantes (IBGE, 1991). São descritas pela prefeitura como áreas de habita ção subnormal, acumulando uma série de carências. A circulação e a acessibilidade dos moradores é feita por pontes de madeira, verdadeiras vias, quase sempre em mau estado de conservação devido às chuvas. Por isso, torna-se impossível a implantação de sistema de água e esgoto e de coleta de lixo e ainda de rede de energia elétrica. Com a impossibilidade da coleta de lixo, o mesmo é jogado nos canais, obstruindo-os e comprometendo cada vez mais a qualidade de vida dos moradores, expostos a diversas doenças. Ao lado disso, existe também a carência de equipamentos coletivos, escolas, postos de saúde, postos policiais etc. As baixadas ou terras alagáveis abrangem praticamente todo o sítio urbano da cidade de Belém. Apresentam uma tipologia originalmente bastante segregada, grande densidade demográfica com base na autoconstrução de moradias (tipo palafitas) em terrenos públicos e/ou impróprias para ocupação edificada. São 28 canais que cortam a cidade de Belém representando o primeiro vetor de periferização das camadas mais pobres da população. O saneamento básico é a principal carência desta área. A partir da década de 1980, com os projetos de macro e microdrenagem das bacias hidrográficas, avançou a intervenção das políticas públicas de saneamento e reestruturação urbana das baixadas, acarretando a remoção de seus moradores para áreas mais distantes do núcleo urbano e a oferta de novos espaços infra-estruturados ao mercado imobiliário. Com a falta de investimento em políticas de habitação popular, ampliam-se o déficit habitacional e os conflitos fundiários pela terra de morar. As famílias expulsas das baixadas e os imigrantes de outros municípios encontram na prática das ocupações coletivas terras ociosas, também chamadas de invasões, a alternativa para suprir a carência de moradia, indicando um segundo vetor de periferização da população pobre. A política de remoção e reassentamento, que permaneceu até o final da década de 1990, tem contribuído para mudar radicalmente a paisagem das baixadas. A intervenção do poder público, através de ações de macro e microdrenagem, em diferentes momentos históricos, contribui para a renovação urbana nestes subespaços. 2.1.3. As invasões em Belém e Ananindeua e a política de urbanização e regularização fundiária O crescimento urbano acelerado no município de Ananindeua, nas décadas de 1980 e 1990, deveu-se principalmente ao movimento organizado54 das ocupações coletivas, atingindo a maior 54 Não se trata de um movimento de ocupação espontâneo, família à família, como ocorreu com as baixadas de Belém nas décadas de 60 e 70. A prática de ocupações coletivas desenvolvida nas décadas de 80 e 90 se configuram como movimentos organizados 123 taxa de crescimento populacional da RMB, cerca de 16%, enquanto Belém cresceu somente 1,7%. Na década de 1990, a prática de ocupações coletivas se ampliou para os municípios próximos, levando à reconfiguração espacial da RMB, mas permanecendo a lógica de periferização e metropolização da pobreza. Das baixadas às invasões se reproduzem espaços de desigualdades socioespaciais, de segregação residencial da população pobre, assim como o agravamento do problema da falta de saneamento básico, com implicações na qualidade de vida dos seus moradores. Dentro da trajetória de ocupação urbana da RMB, as baixadas de Belém se destacaram como um dos primeiros vetores de apropriação do espaço urbano pelas classes populares para suprimento da necessidade de moradia. Os conflitos urbanos/fundiários, nos anos de autoritarismo das décadas de 1960 e 1970, emergiram, principalmente, das baixadas de Belém nos diversos bairros da 1ª Légua Patrimonial, onde começaram a ser organizados processos de mobilização coletiva pelo direito de morar, como parte da luta mais ampla pelo resgate da cidadania e da democracia. Constata-se, assim, um quadro geral de grande carência e de precariedade das condições de vida da população residente nas áreas de baixadas, caracterizando-se como subespaços de segregação sócioambiental. Embora o fluxo migratório relacionado à ocupação das baixadas tenha sido mais intenso nos anos 1960 e 1970, a produção do espaço urbano em Belém está estreitamente relacionado à ocupação dessas áreas pela população pobre. As áreas de baixadas estão restritas aos bairros da 1ª Légua Patrimonial, mais próximas ao centro da cidade e da RMB, onde há a maior concentração dos serviços e equipamentos coletivos, apresentando uma grande densidade populacional. As baixadas ocupam cerca de 40% da porção urbana do município de Belém e têm aproximadamente 550.000 habitantes, correspondente a 38% da população. Dentre esses, 34% moram em áreas alagadas, como pode ser verificado na Tabela 5, em que essas áreas aparecem distribuídas pelos bairros. Nota-se, no entanto, que a paisagem urbana das baixadas sofreu várias modificações nas últimas décadas, em função da ação das políticas públicas urbanas e dos movimentos de bairros e seus moradores. A partir do crescimento da cidade, houve a necessidade de criação de vias de transporte, acarretando a incorporação das áreas baixas ao conjunto urbano de Belém e a consolidação dos contrastes urbanos no município. Durante a década de 1980, ocorreu um maior adensamento populacional nas áreas centrais de Belém através da verticalização, um processo que se ampliou para as áreas de baixadas próximas, saneadas e valorizadas com os investimentos públicos e privados, garantindo maior estoque de terras infraestruturadas ao mercado imobiliário local. 3. Ações de política habitacional no setor formal da RMB 3.1. Política habitacional no Brasil A questão habitacional no Brasil remonta a uma trajetória problemática de razões estruturais, políticas e econômicas. Valença (2001) faz uma revisão histórica das políticas habitacionais por grupos sociais de diferentes interesses, políticos, especulativos ou necessidade de moradia. São áreas, na sua maioria, de propriedade do poder público, distante dos núcleos urbanos, acumulando praticamente as mesmas carências das baixadas. Em toda a RMB, são cerca de 400 áreas de ocupação atingindo quase 30% da população total. 124 desenvolvidas pelos sucessivos governos brasileiros desde o final do período militar até o final dos anos 1990, traçando observações classificadas como de dissolução do modelo nos finais dos anos 1970 ate o caos instalado na década de 1980. A partir de 1986 com o fechamento do BNH, alternam-se períodos de apatia e confusão. Com o fechamento do BNH, a política habitacional é deixada de lado, embora o SFH continue ainda operando minimamente, sendo criada a Secretaria Especial de Ação Comunitária, ligada diretamente à Presidência, numa demonstração de clientelismo e uma política habitacional acéfala e sem normas claras. Com o governo Collor, (1990-92) o confisco de valores depositados em cadernetas de poupança por 18 meses prejudica seriamente o SFH, e instala-se o que Valença chama de confusão. O Ministério da Ação Social, através da Secretaria Nacional de Habitação, torna-se o órgão operador a CAIXA, lança programa habitacional para a área social, mas, devido à grande participação da iniciativa privada, muitas unidades habitacionais produzidas não haviam sido comercializadas até 1994 (preço incompatível com público-alvo). A partir de 1992, recessão e comprometimento do FGTS, paralisam aprovações para projetos de habitação. A apatia volta com o governo Itamar Franco (1993-94), período marcado pela administração da crise e reforma da CAIXA No primeiro governo FHC (1995-98) ocorre a criação da Secretaria de Política Urbana (SEPURB), que, junto ao Ministério do Planejamento e Orçamento, propõe e administra a política habitacional, tendo como órgão executor a CAIXA, os principais programas são: Pró-Moradia, Pró-Credi e PAR (operação dos sistemas de caderneta de poupança e FGTS) cujas aplicações na RMB serão comentadas a seguir. Sobre os programas, Valença faz uma reflexão acerca da mudança de paradigma adotado pela política habitacional. As políticas anteriores tinham, como eixo principal da ação do governo, a produção de moradias; entretanto, o presidente FHC deixou de lado a produção e deu ênfase ao conceito de consumo de habitação. Desde o início do mandato, FHC privilegiou soluções de mercado em detrimento das políticas sociais. Na área habitacional, sua atuação se restringiu a operar, segundo as leis, os sistemas de cadernetas de poupança e FGTS. 3.2. Retrospectiva de ações da política habitacional na Região Metropolitana de Belém Entre 1966 e 1986, a Companhia de Habitação do Pará (Cohab/PA) construiu 19.190 casas para a população de baixa e média renda no estado – mercado popular. Em Ananindeua, as primeiras 118 unidades foram feitas em 1972, e o volume maior das construções, no período de 1977 a 1986. Daquele total, 16.004 casas (83%) foram construídas em Ananindeua. Depois de Ananindeua, Belém foi o município que mais se beneficiou com as construções da Cohab/PA, com 1.200 casas em Icoaraci e 1.542 na Marambaia. Por sua vez, a Caixa Econômica Federal – mercado econômico – construiu na RMB 8.672 unidades, sendo 3.566 casas (2.234 em Ananindeua) e 5.106 apartamentos (384 em Ananindeua). Nos períodos assinalados, das 31.921 unidades habitacionais construídas pela Cohab/PA e CAIXA, na RMB, 59% delas, isto é, 19.059 se localizaram em Ananindeua. Na mesma época, o Sistema Financeiro de Habitação (SFH)55 financiou em todo o Pará aproximadamente 100 mil unidades habitacionais, longe ainda de atender ao déficit habitacional do estado. Segundo estimativas levantadas pela Cohab/PA (1990), em 1994, o déficit total era de 1.430.000 unidades 55 O setor habitacional do Pará é atendido pela Cohab/PA (mercado popular), que atua na faixa de interesse social de famílias com renda entre um e 10 salários mínimos; pelo Instituto de Previdência de Estado do Pará e Caixa Econômica Federal (mercado econômico) e pelos agentes do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), tais como Econômico, Bradesco, Banpará e Socilar (mercado médio). 125 (890.000, déficit uantitativo, e 540.000, déficit qualitativo)56; de Belém, será de 170.000 unidades (115.000, déficit quantitativo, e 55.000, déficit qualitativo); de Ananindeua, de 31.000 unidades (20.000, déficit quantitativo, e 11, déficit qualitativo). 3.3. Programas implementados em Belém entre 1996 e 2001 Onde aparecem os resultados da coleta de dados efetuada nos órgãos responsáveis por ações na área habitacional, há registros de dois agentes principais, o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal de Belém. No nível estadual, destaca-se a Cohab, enquanto no nível local apenas a Prefeitura Municipal de Belém possui informações dentro de sua estrutura organizacional57, tendo inclusive diversos órgãos constituídos no período em estudo como parte de um processo inicial visando a municipalização da política habitacional. Em 1998, a estrutura e as responsabilidades dos órgãos da PMB relacionadas com o setor de habitação e desenvolvimento urbano foram estabelecidas em seis unidades administrativas com atuação mais direta: Sehab, Seurb, Sesan, Saaeb, Codem e Segep. E outras em que a ação habitacional aparece como componente de suas intervenções: Funverde, Cinbesa e Funpapa. A Codem é responsável pela urbanização de áreas mediante convênio com terceiros, e pela atuação como agente promotor no planejamento e execução de obras ou serviços financiados com recursos do FGTS/OGU. Essa atribuição deveria ser repassada à Sehab, como órgão responsável pela política habitacional. A Seurb e a Sesan elaboram os projetos de desenho urbano e/ou arquitetônicos e também realizam a fiscalização de obras. Caso o projeto envolva mais de um órgão, a fiscalização também se desdobra entre os órgãos envolvidos, ou de forma setorial. Com esta forma de trabalho, pode haver a sobreposição de ações, pois os projetos são acompanhados pela população através da Comissão de Fiscalização de Obras (Cofis). Segundo o Ibam (1999), com a inserção da Sehab em 1998, deveria ter havido uma revisão das funções entre os órgãos envolvidos, a fim de promover a readequação de competências. Devido a problemas de recursos humanos, de forma diferenciada pelas unidades administradoras (Segep, Cinbesa, Codem), muitas ações, especialmente nos setores habitacionais, de saneamento e de desenvolvimento urbano, são executadas em conjunto. No entanto, o desenvolvimento dos projetos é realizado através de contratações de terceiros, sob a forma de consultoria ou prestação de serviços, restando às unidades o cargo de coordenadora. Com isso, a Sehab possui o papel de coordenadora dos programas e estudos de caso. Dentre outros problemas, o trabalho do Ibam (1999) menciona dificuldades de atuação, principalmente na área de recursos humanos, organização de competências, aparelhos de 56 11Déficit quantitativo: necessidades de novas moradias para atender às famílias que não dispõem de habitações; déficit qualitativo: necessidades de substituição das moradias que estão em precárias condicões de habitabilidade, sem nenhum serviço básico (Cohab/PA, 1990). 57 A estrutura organizacional da Prefeitura Municipal de Belém (PMB) em 2001 era formada por dez secretarias, cinco fundações, três companhias, três autarquias, duas agências distritais e uma administração regional, além da chefia de Gabinete do Prefeito, a Guarda Municipal e a Coordenadoria de Comunicação Social. Em 1994, foi regulamentado o Sistema Municipal de Planejamento e Gestão, composto dos seguintes órgãos: 1) de planejamento: Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão (Segep), Núcleos Setoriais de Planejamento (Nusp) e Núcleos Regionais de Planejamento (Nurp); 2) de gestão: os órgãos setoriais da administração direta e indireta, as administrações regionais e os conselhos: Conduma, conselhos setoriais e conselho regionais (Ibam, 1999). 126 informática. Acrescenta ainda que o nível de informatização dos órgãos encontrava-se desatualizado e o acesso entre as próprias unidades era restrito, porém havia uma rede privativa visando ao controle financeiro (já existente na gestão anterior), que disponibilizava dados da execução orçamentário-financeira. As ações tomadas pela PMB, desde 1997, foram encaminhadas a partir do Congresso da Cidade, que procurava a integração das ações municipais com a participação popular. Em 2001 (primeiro ano do segundo mandato do Partido dos Trabalhadores – PT –em Belém), o Congresso da Cidade trouxe uma série de inovações para a administração local como forma de dar continuidade ao processo de participação popular iniciado no primeiro mandato com o orçamento participativo (Frente Belém Popular, 2000). Desse modo, com a criação de equipes interdisciplinares, surgiram alguns conflitos na execução destas ações, como a falta de conhecimento da legislação urbanística, ocasionando contratempos na realização dos projetos que geralmente precisavam ser reformulados para atenderem às regulações, além da falta de coordenação sobre as decisões tomadas no orçamento participativo. Outro problema destacado foi a falta de disponibilidade técnica dos órgãos que resultava em poucos técnicos em muitos programas, desqualificando o tratamento e o andamento dos projetos. 3.4. Ocupações ilegais Dadas as limitações de abrangência e de resolução do problema habitacional dentro do setor formal na RMB. O processo de ocupações coletivas visando a solução de moradia tornou-se bastante evidente na RMB durante a década de 1990. O problema da moradia se agravou em Belém, nas últimas décadas, face ao constante aumento dos preços das terras urbanas dos aluguéis e dos baixos salários e também pela falta de investimento público (setor habitacional) para a faixa salarial de até cinco salários mínimos. Assim, as classes populares foram, cada vez mais, levadas a ocupar áreas ociosas nas periferias de Belém, fato que, a partir do final da década de 1970, ganhou maior expressão, não só local, como nacional, porque essa ocupação não se fez mais de forma parcelada, passou a ocorrer em meio a choques com o aparato policial acionado pelos proprietários das terras urbanas. Essas ocupações coletivas de terras para moradia passaram a representar um foco de resistência da sociedade civil frente ao autoritarismo, envolvendo centenas de famílias, que, na época, de forma organizada e coletiva, ergueram suas casas e conquistaram o direito de morar. As ocupações coletivas de áreas não ocupadas e de conjuntos habitacionais se deram mais acentuadamente em Ananindeua, onde se localizam cerca de 77% das áreas de terras desapropriadas, no Estado, e ainda, aproximadamente 55% das áreas não desapropriadas (Figura 9). É preciso ressaltar que muitas dessas ocupações ocorreram próximo aos conjuntos habitacionais, cujas estruturas físicas e equipamentos urbanos, principalmente o transporte coletivo, motivaram essa preferência. Isso se deu, com mais intensidade, em Ananindeua. Também contribuiu para esse avanço, rumo a Ananindeua, a urbanização das baixadas de Belém, na década de 1980, resultando na valorização do solo urbano, através dos projetos de macrodrenagem, principalmente, os das Bacias do Una e Tucunduba bem como do projeto Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada (Cura)58. 58 O Cura é um projeto de serviço integrado de urbanização, incluindo sistema viário, calçamento, áreas de lazer, pequena parte de macrodrenagem etc., beneficiando 127 Em Belém, a prática de ocupações coletivas de terras para moradia se legitimou nas contradições do contexto da realidade urbana, imprimindo inúmeras transformações nas relações entre Estado e classes populares. As lutas pela moradia, que emergiram dessa prática de ocupações coletivas, se politizaram como fatores de reorganização no resgate da cidadania, colocando o urbano como espaço socialmente produzido na correlação de forças da sociedade e gerando mobilizações de diferentes atores sociais. A partir da metade da década de 1980, acelerou- se o movimento das ocupações coletivas, dirigindo-se em dois eixos básicos: via BR-316 e Rodovia Augusto Montenegro. As famílias expulsas das baixadas urbanizadas de Belém e os imigrantes de outros municípios e estalados passaram a ocupar áreas de terras ociosas na 2ª Légua Patrimonial da RMB. Intensificaram-se as ocupações de terras, e o poder público não removeu a população, nem investiu em desapropriações, o que resultou no agravamento das questões socioambientais]. Muitos dos conjuntos habitacionais construídos e não concluídos dentro da 2ª Légua Patrimonial foram ocupados por posseiros, que conseguiram permanecer em virtude da intermediação do Estado na desapropriação e negociação juntas às construtoras.Em 2001 havia registro de 21 conjuntos habitacionais ocupados por posseiros na RMB, todos com processos judiciais de desapropriação em andamento. Em 1993, quando ocorreu a ocupação dos conjuntos habitacionais, o processo de construção em alguns conjuntos encontrava-se em fase de conclusão e abandonado pelas construtoras. O primeiro conjunto ocupado foi o Verdejante. No ato da ocupação de alguns conjuntos, a polícia de choque foi acionada para retirar os ocupantes, havendo violência e repressão. A maioria dos conjuntos ocupados fazia parte do plano PAIH, ainda em conclusão em Ananindeua: (Tauari, Verdejante I, II, III, IV, Xapuri, Mururé, Xingu, Icui-Guajará e Oásis) e em Belém (Vila Sorriso I e II, Sevilha, Ana Fabiana, Zoe Mota Gueiros). Estavam concluídos: Carnaúba, Grajaú, Nova Marituba e Antônio Gueiros. O conjunto Sevilha, constituído de 960 apartamentos, encontrava-se desprovido de infra-estrutura e saneamento básico. A maioria dos blocos não possuía janelas, portas; as escadas eram improvisadas com madeira, com alto grau de periculosidade. A energia era suprida por “gatos”, com risco de acidentes devido ao emaranhado de fios elétricos. No caso da Vila Sorriso, praticamente, a própria população construiu algumas casas, passando pelas mesmas dificuldades do conjunto anteriormente citado. O conjunto Oásis, um empreendimento construído para a classe média alta, foi ocupado pela Polícia Militar, demonstrando, assim, que o poder público não paga um salário digno que permita a seus funcionários adquirir casa própria. A ocupação desse conjunto realizou-se de forma organizada e foi planejada seis meses antes pelos ocupantes. No caso do Nova Marituba e do Caranaúba, quando ocorreu a ocupação dos imóveis, os proprietários já residentes e outros que, embora não estivessem morando no conjunto, pagavam prestações abandonaram seus imóveis e ocuparam outros porque não achavam justo pagar mensalidades, enquanto outros ocupantes moravam de graça. os bairros do Marco e Pedreira 128 Constata-se que, quando ocorreu o processo de ocupação, algumas unidades em vários conjuntos já haviam sido comercializadas, conforme mostra a Tabela 6. O percentual de comercialização, em relação ao de ocupação, foi baixo – 19,45% foram comercializados e 80,55%, ocupados. Dentre os conjuntos comercializados, o Verdejante foi o que mais unidades vendeu, com um total de 16,58% e, conseqüentemente, por ser o conjunto com o maior número de unidades, foi também o de mais elevada ocupação. O Vila Sorriso foi o que menos unidades negociou:somente um. 4. Projetos habitacionais na RMB, estudos de caso 4.1. O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una é um empreendimento do governo do Estado, com a participação da prefeitura municipal, com a finalidade de recuperar as baixadas do Una, através “da execução de diversas obras de drenagem pluvial necessárias para solucionar os graves problemas de inundações que ocorrem numa área de 798 ha, correspondente à região alagada da bacia hidrográfica do Una, onde vivem atualmente cerca de 160.000 pessoas de baixa renda” (Projeto Una, 1999). Um dos principais objetivos do programa é eliminar o alagamento com a realização de obras de melhoramento e/ou abertura de sistemas de saneamento, vias e limpeza urbana, assegurando à população melhores condições de saúde, habitação, transporte e demais serviços de consumo coletivo. A bacia do Una ocupa uma área de 3.664 ha, que corresponde a 60% da área de Belém, ompreendendo uma porção de terra que se prolonga desde a Baía do Guajará até áreas de ocupações mais recentes próximas à Rodovia BR-316 e Av. Augusto Montenegro, o restante pertence às demais bacias. Além desses aspectos, as baixadas da Bacia do Una se constituem num espaço de precária qualificação urbana, entre outros fatores, por causa da ausência, em grande parte de suas áreas, dos principais serviços de consumo coletivo. A Bacia do Una compreende 11 bairros – Telégrafo, Umarizal, Nazaré, Sacramenta, Pedreira, Fátima (ex-Matinha), São Brás, Marco, Souza, Marambaia e Bengüi. Em sua área de influência vivem mais de 500 mil pessoas, 1/3 dos habitantes de Belém. Dos 11 bairros compreendidos pela bacia, nove já foram atingidos pelo projeto, com exceção dos bairros de Nazaré e São Brás. Ao final do projeto, 4.824 famílias serão desapropriadas e 2.780 serão remanejadas. Evidentemente que os 798 ha de área alagada não se apresentam de forma homogênea no interior da bacia. Os terrenos alagados são determinados, basicamente, pela localização dos cursos d’água (igarapés e canais). Desta forma, a recuperação dessas áreas requer obras específicas, de acordo com as características e natureza da região. De acordo com o Projeto Una (1999). Serão implementadas através do Projeto obras de retificação dos igarapés e revestimento de suas margens; obras de microdrenagem com execução de sarjetas, caixas captadoras de águas pluviais, redes coletoras e demais dispositivos; obras de implantação de sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário; ampliação da coleta e remoção de lixo; implantação de sistema viário compatível e equipamentos comunitários importantes e necessários, além de outras. O projeto tem como fonte de financiamento, além do governo do Estado, o Banco Interamericano 129 de Desenvolvimento (BID). O custo total para urbanizar a Bacia do Una está estimado em US$ 225 milhões, dos quais US$ 145 milhões equivalem aos recursos externos e US$ 80 milhões aos recursos adicionais. Institucionalmente o projeto de macrodrenagem dividiu suas responsabilidades de atuação entre o governo do Estado e a Prefeitura, cabendo ao Estado a gerência do projeto, além das subgerências financeira, jurídica, de água e esgoto. À PMB coube a subgerência de relocação, drenagem e sistema viário. Quanto à participação popular no projeto, estava vinculada ao momento de efervescência dos movimentos sociais, quando a mobilização pelo projeto agregou grupos da década de 1970. Na década de 1980, consolidou-se, a partir do Decreto Estadual 799 de 08/05/1992, tomando a forma institucionalizada de um comitê assessor, legitimamente constituído por membros do governo, PMB, sociedade civil organizada, representantes das sete sub-bacias e a empresa consultora do projeto (Souza, 1998). Ao comitê assessor cabia assessorar a gerência geral do projeto em relação às preocupações da comunidade, servir como órgão de consulta em relação ao desenho e urbanização dos lotes, verificar o cumprimento do código de normas mínimas de autoconstrução na produção das casas, escolas, parques e outra infra-estrutura, promover ações de educação ambiental e deliberar sobre outras matérias de interesse direto da comunidade. Cabia também ao comitê promover campanhas de conscientização dos moradores para evitar a especulação imobiliária, através do exame de informações relativas aos custos imobiliários na área do projeto, assim como aprovar o Plano de Reassentamento das famílias que deveriam ser remanejadas como resultado das obras do projeto. Para a execução do projeto, era necessário um número significativo de remanejamentos, estando prevista a indenização de todos os imóveis desapropriados. O valor das indenizações foi determinado por um levantamento socioeconômico e físico-territorial, através de visita às unidades habitacionais a serem remanejadas. Com o levantamento, os técnicos do projeto pretendiam conhecer a realidade social e econômica da população diretamente atingida, bem como identificar as características dos imóveis a serem remanejados. Assim, o valor real de cada unidade foi determinado “com base na determinação do custo de reprodução e fatores da depreciação representada pelo uso e pela deterioração decorrente da não conservação” (Projeto Una, 1999). Porém é importante ressaltar que, para determinar o valor da indenização, leva-se em conta, ainda, a natureza do remanejamento. Se for total, o valor da indenização é igual ao valor calculado do imóvel. Se parcial ou com a necessidade de recuo da edificação, o valor da indenização varia. Além da indenização e do lote, os usuários de imóveis remanejados totalmente teriam a opção de receber um lote de terra na bacia. Da mesma forma, lotes seriam viabilizados para serem ocupados por remanejados, que poderiam ainda dispor do material do imóvel demolido, ou parte deste. Para viabilizar o transporte do material para o novo lote, no caso do remanejamento total, os usuários receberiam “o apoio de entidades com caráter de ação social”, além de “acomodações para a família remanejada durante o período de reconstrução do imóvel, etc.” (ibid.). 4.1.1. O Plano de Reassentamento no Projeto de Macrodenagem da Bacia do Una A macrodrenagem prescindia de áreas infra-estruturadas para assentamentos de famílias. O maior 130 impacto causado, neste tipo de intervenção no espaço urbano, dá-se pelo processo, muitas vezes necessário, de remanejar famílias para possibilitar a execução das obras previstas. No projeto de macrodrenagem, os remanejamentos se fizeram necessários para as obras de retificação dos canais e aberturas de novas vias. A realização de remanejamentos estava sujeita a preocupações constantes de uma lista elaborada pelo Banco Mundial sobre os riscos de “pauperização, presentes em projetos que demandam remanejamento e reassentamento” (Gabriele, 1998, p. 317), listados a seguir: • desapropriação fundiária; • perda do trabalho remunerado; • perda da casa/moradia – principalmente os que são inquilinos; • marginalização – com a mudança pode ocorrer a inferiorização da situação econômica e do status social, devido à localização do novo assentamento; • aumento do nível de mortalidade – principalmente entre crianças e idosos, provocado por stress, traumas, separação e por doenças no novo local provocadas pelo nível de saneamento; • insegurança alimentar – até que se recomponha o sistema de produção; • perda do acesso a bens de domínio público (o que algumas vezes pode funcionar como fonte de renda) – como rio, área de bosque; • desarticulação social – destruição da coerção social e das relações informais de crédito. Baseado nestes pressupostos, elaborou-se o Plano de Reassentamento, cuja principal determinação foi que a distância máxima entre o local de origem e o destino seria de até 1,5 km. Isto, porém, acabou não se concretizando totalmente, em função do custo elevado que acarretava a desapropriação de áreas, cujas localizações atendiam a essa exigência, uma vez que os bairros da Bacia do Una fazem parte da borda do território mais urbanizado de Belém sujeito à acirrada disputa imobiliária. E também por outras razões de ordem técnica, principalmente quanto à necessidade de melhoramentos nos terrenos identificados dentro deste limite. Ao total foram definidas 25 áreas de reassentamento, destinadas às famílias remanejadas, sempre respeitando o distanciamento máximo de 1,5 km, entre a localização inicial da família e a área de reassentamento, destino final da família. Operacionalmente, o Plano de Reassentamento destinado às famílias atingidas pelas obras de macrodrenagem passa a ser sujeito aos princípios do Projeto de Qualificação Ambiental, utilizando-se, na prática, de uma definição do Plano Nacional de Habitação publicado em 1996. Adotou-se a forma autoconstrutiva no provimento habitacional, enquanto representação do abandono aos modelos padrão, amplamente difundidos nos conjuntos habitacionais. Havia também em acordo com o Crea, órgão de normatização profissional, a isenção de qualquer taxação para o projeto e a execução de residências com área construída menor ou igual a 60 m², sem laje (Ferreira, 1999). Na prática, o procedimento adotado para as áreas de reassentamento baseava-se na orientação técnica individualizada para cada família remanejada. Esta orientação era feita por dois engenheiros civis e um engenheiro chefe integrante da equipe do Projeto Uma, por intermédio de um escritório responsável pelo gerenciamento da obra, constituído por um subgerente, indicado pelo governador do Estado, assessoria jurídica, área técnica e área social, englobando orientação para planta baixa, planta de estrutura, instalação hidrossanitária e elétrica (Projeto Una, 1997). 131 No entanto, este procedimento vinha sendo comprometido pela operacionalização que se fazia necessária, em função das várias áreas de reassentamento, além do necessário deslocamento da família remanejada até o escritório do Projeto Una, para que a família ou chefe da família pudesse ser atendido. Além disso, fruto deste mesmo problema quantitativo, a fiscalização das obras se fazia de maneira muito descomprometida com o que havia sido definido pelos técnicos no nível de projeto arquitetônico, sanitário e construtivo, o que gerava uma baixa qualidade social das construções – entendida como melhores condições urbanísticas, de conforto e sanitárias (Ferreira, 2001), não caracterizando uma melhoria das condições de vida da população. Tendo em vista essas dificuldades de operacionalização e a necessidade de se delimitar uma área capaz de evidenciar todo o empenho do governo do Estado na realização das obras, é que uma das áreas destinadas ao assentamento, denominada à época de Loteamento CDP, atualmente identificada por Paraíso dos Pássaros, passou a assumir uma importância significativa para os diferentes órgãos e setores da sociedade participantes do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una. 4.2. O Loteamento CDP: Conjunto Paraíso dos Pássaros 4.2.1. Histórico Dadas as dificuldades iniciais para o reassentamento de famílias em loteamentos localizados segundo os critérios do projeto, optou-se pela concentração dos reassentamentos no loteamento hoje denominado Paraíso dos Pássaros, situado no bairro de Val-de-Cans, no Distrito Administrativo da Sacramenta (Dasac). A área está localizada nos limites da 1a Légua Patrimonial, limitada, ao norte, pelos conjuntos Promorar/Providência; ao sul, por uma ocupação ilegal sem identificação conhecida; a oeste por uma área pertencente à Tropigás e Paragás – que ainda preserva alguma vegetação originária, embora muito degradada pelas próprias empresas –; e a leste, pela ocupação denominada Santos Dumont. Este desloca mento atingiu cerca de 28,3% das famílias a serem remanejadas (Projeto Una, 197). O loteamento CDP, logo após o início dos remanejamentos, passou a ser conhecido como Conjunto Paraíso dos Pássaros. Os acessos se restringem a duas possibilidades: a mais utilizada atualmente é a partir da Júlio César, pela Rua Santo Amaro, originariamente uma via periférica, parte do sistema viário do Conjunto Providência. O outro acesso pode ser feito pela Rodovia Arthur Bernardes, passando por dentro do Promorar, até chegar à entrada do conjunto. A área destinada ao loteamento CDP era originariamente de propriedade de uma empresa de distribuição de combustíveis, a Petróleo Sabba, que tinha utilizado há muito tempo atrás o terreno como depósito do seu combustível. A desapropriação por parte do governo do Estado se deu pelo Decreto n. 901 de 08/05/1993, declarando a área de utilidade pública e interesse social para fins de desapropriação. Posteriormente, com o ajuizamento da ação de desapropriação, foi concedida pela Justiça a emissão de posse da área (Projeto Una, 1997). A desapropriação, no entanto, não correspondeu às expectativas geradas em torno do montante pretendido de terra para o reassentamento das famílias, embora o fato não tenha chegado a inviabilizar por completo o seu universo de atendimento das famílias. O primeiro embate ocorrido em torno do projeto a ser executado na área ocorreu antes mesmo de serem iniciados os serviços de terraplanagem, em função das modificações necessárias para 132 a adequação do desenho proposto, uma vez que não ocorreu a desapropriação de toda a área pretendida pelo governo do Estado. O primeiro projeto apresentado foi completamente rejeitado pelos movimentos populares representados no comitê assessor, principalmente pela falta de definição dos equipamentos que seriam construídos na área, pelo tamanho e adensamento dos lotes que seriam disponibilizados para as famílias. Os lotes tinham área média de 100 m², com 5 m de testada por 20 m de fundo. Tais medidas não possibilitam afastamentos laterais, o que inviabiliza o atendimento de condições de habitabilidade peculiares, como o melhor aproveitamento da ventilação natural para amenizar o desconforto natural gerado pelas características de clima quente-úmido da cidade de Belém (Hertz, 1998). Assim mesmo o governo do Estado ainda disponibilizou cerca de 142 lotes, formando a denominada CDP IV. Enquanto se resolvia o que fazer, as pessoas remanejadas estiveram completamente abandonadas pelo projeto, foram atendidas com uma péssima infra-estrutura instalada nesse setor do conjunto, o que redundou no abandono de lotes e na improvisação de construções que prejudicava muito as famílias remanejadas. Foi nesse mesmo período que o comitê assessor ao Programa de Apoio a Reforma Urbana (Paru), vinculado à Universidade Federal do Pará, fez o convite para que esta, utilizando-se do seu quadro técnico – basicamente professores e alunos de arquitetura e urbanismo, profissionais e estagiários de serviço social, direito e engenharia civil que prestavam assessoria em determinadas questões propusesse uma contra-proposta ao governo do Estado. Assim, surgiu uma proposta alternativa, desenvolvida por alunos como trabalho de conclusão de curso, que buscava traduzir para o desenho urbano as demandas levantadas pelo comitê assessor59. Este o aprovou e o levou até a Cohab, que, partindo desse trabalho, apresentou um terceiro projeto tentando consolidar as novas demandas com o que era prioritário para a própria empresa. A implementação do projeto aprovado e executado requer atendimento de demandas por equipamentos urbanos, como creches, feiras, posto de saúde, escolas e áreas de lazer. No caso das feiras e creches, a localização deveria ser de forma desconcentrada a fim de não dificultar o acesso das pessoas a esses locais. Outro problema constatado está relacionada à configuração morfológica dos projetos propostos para o conjunto, que, inicialmente, evidenciaram pouca consideração a questões referentes à densidade urbana pretendida pelos estudos. Até mesmo o projeto aprovado não apresentou um resultado satisfatório em comparação, por exemplo, a parâmetros desenvolvidos por Acioly e Davidson (1998) em outras experiências de assentamentos. Comparando-se o primeiro projeto proposto e o efetivamente implementado, percebem-se melhorias significativas na relação do morador com o espaço em que habita, capaz de atender às suas necessidades básicas, evidenciadas por dois fatores: o percentual de uso com fins habitacionais de 88% passou a 50%; o tamanho dos lotes de 96m² (5,00 m x 19,00 m) passa a 108 m² (6,00 m x 18,00m). Em meados de 1997, o projeto definitivo foi aprovado pelo comitê assessor, estabelecendo-se que a Cohab seria responsável pela elaboração de projetos arquitetônicos, pela assessoria na construção e na implantação, pelo gerenciamento das famílias na área, além de buscar a 59 Sobre o projeto alternativo, ver Rocha, Ribeiro e Pinheiro (1997) 133 participação da Universidade para que esta desempenhasse um papel crítico e reflexivo naquele cenário (UFPA, 1998). 4.2.2. O Convênio Cohab/UFPA-Paru/Fadesp: conceitos e princípios A partir do Paru, foi firmado o Convênio de Cooperação Técnica conhecido como Cohab/UFPAParu/Fadesp, em junho de 1998, com atuação prevista para seis meses, estendido até janeiro de 2000. Entre suas atribuições, houve uma nova estratégia de ação, em que buscou desenvolver e implementar novas práticas, baseadas numa interdisciplinaridade, com o objetivo de valorizar a identidade individual e coletiva das famílias na cidade. A atuação do convênio foi pautada na interdisciplinaridade sugerida como proposta de atuação apresentada pelo Paru para a gestão do provimento habitacional do conjunto Paraíso dos Pássaros, baseando-se num trabalho integrado entre professores, técnicos e estudantes de arquitetura e urbanismo, serviço social e engenharia civil. Para sua efetivação, foi constituído um escritório de atendimento na própria área do conjunto, com o intuito de dar a orientação necessária em cada especialidade aos moradores que vinham remanejados das áreas do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una. O objetivo geral era “orientar técnica e academicamente, a forma e a organização de espaços residenciais e de equipamentos urbanos, tendo em vista o aprimoramento e o desenvolvimento dos indivíduos e da comunidade em termos sociais, culturais, físicos e ambientais” (UFPA, 1998). Para isso, foram formulados subprojetos de atuação de cada especialidade, em que se especificou a responsabilidade de cada um na gestão do conjunto habitacional. A proposta de gestão apresentada e executada pela equipe do convênio buscou não se distanciar dos programas e dos objetivos gerais declarados tanto pelo BNH de 1996, no que tange, por exemplo, à questão participativa, à gestão descentralizada dos assentamentos humanos, ao abandono dos padrões preestabelecidos de habitação para estas áreas, à necessidade das parcerias, tampouco se dissociar do Programa Lote Urbanizado, que vinha sendo implementado pela Companhia de Habitação do Estado. A interação das especialidades, serviço social, arquitetura e engenharia civil, é outro fator que assume uma fundamental importância ao se dissociar da prática setorizada, ainda hoje muito observada na atuação pública. Mesmo com todas as discussões em torno da descentralização, não só nos assuntos urbanos, mas na própria gestão administrativa dos órgãos públicos, ainda é complicada essa cobrança no interior da estrutura administrativa existente, vista muito mais como um objetivo a ser alcançado, talvez o mais difícil, pelos vícios acumulados ao longo dos anos de atuação. 4.2.3. Projeto de Qualificação Espacial Interativo Para explicar a origem do conceito identificador do que seja o Projeto de Qualificação Espacial Interativo proposto pelo convênio, é necessário recorrer a alguns princípios assumidos pelo BNH, por ocasião da sua publicação, visando a demonstrar à sociedade que o governo federal estava em sintonia, no discurso, com as discussões ocorridas em Istambul, por ocasião da II Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos. Buscou-se, na aplicação do conceito e na metodologia implementada, utilizar princípios como o 134 abandono dos modelos preestabelecidos no atendimento à demanda por habitações sociais, o trabalho em parceria e a efetiva participação da população alvo nas decisões espaciais individuais e coletivas (UFPA, 1998). Na realidade, era necessário que se valorizasse a identidade da família remanejada com o ambiente de um conjunto habitacional, distante da realidade que estava acostumada a viver. Para que isso fosse conseguido, utilizava-se a efetiva participação da família no processo projetual da casa, partindo-se do pressuposto de que o atendimento individualizado A questão habitacional na Região Metropolitana de Belém com consulta a quadros esquemáticos representativos dos novos “padrões e subpadrões”, tipologicamente preestabelecidos pelos técnicos, deveria demonstrar mais claramente à população a possibilidade do reconhecimento dessas famílias da necessidade de legalidade urbanística (UFPA, 1998). A produção dos quadros esquemáticos, como parte constituinte do Projeto de Qualificação Espacial Interativo, serviu para melhor orientar a população no processo projetual das residências evidenciado por seis temas: legislação pertinente; ocupação dos lotes; conforto ambiental; instalações hidrossanitárias, elétricas e construtivas; tipologia arquitetônica e relação custo/benefício. À primeira vista, ou analisando-se de forma isolada os princípios envolvidos na base de atuação do Projeto de Qualificação Espacial Interativo, percebe-se a falta de correspondência ao contexto real da vida dessas pessoas, uma vez que é difícil, para uma população acostumada a traçar suas “normatizações” a partir de “acordos” ou de relações diretas de vizinhança, exigir-se uma adequação às novas normas ou novos conceitos de “qualidade espacial” que não partiram dessa produção espontânea de valores. O contato direto e efetivo entre os profissionais e a população assistida determina um maior comprometimento da equipe como um todo, com os resultados que poderão ser alcançados pela experiência, sejam eles positivos ou negativos. Isto só o tempo poderá dizer. Apesar deste condicionante, a gestão proposta é completamente distinta da gestão que vinha sendo implementada em outras áreas destinadas ao reassentamento das famílias, onde não poderia haver um comprometimento gerado pela vivência mais direta da realidade. 4.2.4. Intervenção social O trabalho social do convênio na assessoria às famílias remanejadas estava pautado na preocupação da equipe em despertar o sentimento de cidadania nos moradores ao se perceberem como sujeitos partícipes da construção de um espaço coletivo com equipamentos urbanos e sociais de qualidade e capacidade para atender as demandas sociais. O objetivo específico do segmento de atuação social seria contribuir com o processo de participação e organização social de famílias em área de reassentamento visando à sua melhor inserção no novo espaço de moradia e na cidade. O primeiro contato da equipe com as famílias em via de assentamento ocorria com a participação na Reunião de Sorteio de Lotes, promovida pela subgerência de Relocação do Projeto Una, com o objetivo de apresentar às famílias as atividades desenvolvidas pela equipe do Convênio Cohab/Fadesp/UFPA na área e as informações necessárias sobre o espaço físico do Loteamento 135 CDP, com os respectivos equipamentos e serviços existentes. Desta forma, reafirmava-se a disponibilidade da assessoria técnica da equipe no processo de produção de sua nova moradia. Nesse momento a equipe social destacava a importância da participação e organização comunitáriapara a garantia de uma moradia digna e com qualidade de vida. O acompanhamento das famílias no pós-assentamento se dava continuadamente no atendimento que a equipe prestava diariamente no barracão localizado na própria área, onde um plantão social registrava os mais variados conflitos, problemas e demandas do cotidiano dos moradores do Loteamento CDP. O Planejamento de Ação do Serviço Social da equipe social do convênio estava pautada numa proposta metodológica que congregava as principais demandas dos moradores, incluindo cinco eixos de intervenção, a saber: organização comunitária, educação formal e ambiental, geração de renda e esporte/ cultura/lazer. O estímulo à participação e à organização comunitária dos moradores configurava-se como o elemento dinamizador de todos os demais eixos de intervenção. As atividades desenvolvidas em função da organização social concretizavam-se principalmente em reuniões de base (por quadras), reuniões específicas com representantes de quadra e em reuniões ampliadas com entidades e organizações. As reuniões por quadra, coordenadas pela equipe social do convênio, visavam a fomentar o entrosamento, fortalecer os laços de vizinhança e despertar o sentido da co-responsabilidade coletiva na melhoria das condições de moradia, encaminhando-se o processo organizativo através da eleição dos representantes de quadra e suplentes. As reuniões objetivavam a continuidade do processo de organização comunitária, com o incentivo à responsabilidade dos assentados na formação de novas lideranças que pudessem construir coletivamente um ambiente saudável de moradia. Dando continuidade às etapas metodológicas, realizavam-se reuniões específicas (por bloco) com os representantes de quadras, garantindo assim o aspecto qualitativo da experiência, através da capacitação destas lideranças para o bom desempenho de seu papel no encaminhamento dos trabalhos coletivos da comunidade. A equipe social procurava assessorar a organização dos representantes de quadras, no sentido de garantir sua autonomia no encaminhamento das demandas comunitárias através de ações integradas e específicas. Nessa via eram realizadas reuniões por bloco de quadras para capacitação e definição de ações prioritárias. As reuniões gerais com toda a comunidade eram as mais variadas, principalmente no que se refere ao envolvimento da população no acompanhamento da instalação dos equipamentos sociais e urbanos na área, fazendo-se a articulação/parceria com os órgãos responsáveis para veicular informações e agilizar a instalação dos referidos equipamentos. Acompanhar a disposição desses serviços era uma das ações do trabalho social. Para isso, discutia-se com os moradores e representantes de quadra a implementação de comissões temáticas em torno de questões específicas, tais como geração de renda, segurança pública, transporte coletivo etc. A equipe também participava de reuniões relacionadasao acompanhamento citado, na qualidade 136 de convidada, como um dos atores presentes na dinâmica organizativa da área. Registrava-se a participação em eventos, tais como as reuniões com a Polícia Militar – para avaliação e proposição por parte da população quanto ao serviço de segurança pública – e as reuniões com a Secretaria de Economia da Prefeitura de Belém – para discutir com a população a instalação de um equipamento de feira na área. Além das demandas programadas e previstas pela equipe, as chamadas demandas espontâneas, ou seja, demandas já decorrentes da participação efetiva da comunidade de forma organizada, vislumbraram uma possibilidade concreta de sustentação do conjunto após a saída da equipe. Dentre as demandas levantadas, estiveram em pauta o movimento por taxas de energia elétrica e de água compatíveis com as condições socioeconômicas dos moradores, segurança pública, conflitos familiares e transporte coletivo (Instituição Selo de Mérito, 1999). Nessas situações, coube à equipe de Serviço Social, as devidas orientações para que, em contato com os órgãos responsáveis, encaminhassem suas reivindicações. Uma das ações mais importantes, e que certamente reflete o diferencial deste tipo de experiência, foi a realizada no âmbito da geração de emprego e renda. A partir da atuação do convênio, em julho de 1998, foi realizada uma pesquisa socioeconômica com o intuito de verificar a situação das famílias moradoras no conjunto. Os dados foram alarmantes, uma vez que, das 487 pessoas entrevistadas, apenas 150 tinham algum tipo de renda. Destas, apenas 88% possuíam uma renda na faixa de 0 a 3 salários mínimos, o que revelava a baixa qualidade de vida da população. A ação desempenhada pela equipe, na tentativa de minorar esta situação, foi esclarecer, ou melhor, informar sobre os órgãos existentes nas diferentes esferas de governo, que prestassem algum tipo de treinamento de baixo custo objetivando a qualificação profissional. A seguir, foi estabelecida uma parceria com a Secretaria de Estado do Trabalho e Promoção Social (Seteps)/Unidade Valde-Cans, para o encaminhamento de moradores do conjunto aos cursos oferecidos pela instituição. Além disso, a equipe também conseguiu articular a garantia de vagas em outros projetos desenvolvidos pela Seteps, como o Comunidade Solidária, destinada a jovens em situação de risco. Garantiu também a participação de moradores da área na seleção de candidatos ao Projeto Sem Choque, voltado para o conserto de eletrodomésticos, e no Projeto Indústria da Alegria, direcionado à criação e confecção de artigos relativos a uma Escola de Samba de Carnaval. Outro ponto positivo foi a constituição de um cadastro de mão-de-obra desenvolvido pela equipe de engenharia civil, em resposta a uma demanda levantada pelos representantes de quadra que, juntamente com a equipe social, foi levado até as empresas responsáveis pela implantação das infra-estruturas do conjunto que ainda estavam sendo realizadas, como o asfaltamento de ruas e a construção de sarjetas, para que estas viessem a aproveitar a mão-de-obra dos moradores da própria área. Neste sentido, foram procuradas duas empresas, a Andrade Gutierrez, que aceitou e se utilizou deste cadastro a partir de julho de 1999, e a Estacon Engenharia, que não quis nem conversar sobre o assunto. Mesmo que estas ações tenham um universo temporário de atuação, o que fica e é visto como um ponto positivo é a disposição dos próprios moradores em buscar uma solução para o problema, ressaltando- se a orientação dada pela equipe, uma vez que de nada valeria apenas a vontade em buscar soluções para os problemas, sem conhecer onde e como buscar, o que fica sempre mais difícil de se conseguir 137 4.3. Projeto de urbanização da área do Paracuri II A área do Paracuri II configura-se como resultado do processo de urbanização brasileira e, em particular, do processo de ocupação da Região Metropolitana de Belém. Dentre as 262 invasões registradas pela Cohab, a área do Paracuri II está localizada no Distrito de Icoaraci, tem uma superfície de 210.000 m², distante 13 km do centro de Belém, que se encontra habitada por 506 famílias (dados de 1996). Em janeiro de 1996 o terreno foi invadido, com imediata retirada dos ocupantes que logo depois voltaram ao local. Em março desse mesmo ano, o local foi destinado pela Cohab para o remanejamento das famílias que haviam ocupado uma área do entorno do Estádio Edgar Proença (Mangueirão). Em dezembro de 1996, a Cohab elaborou uma Proposta Social de Intervenção, com o objetivo geral de “contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população através da oferta de lotes e reorganização do espaço físico e ao mesmo tempo garantir o exercício da cidadania” (Cohab, 1999). O Projeto Paracuri II foi financiado com o orçamento geral da União, com contrapartida do governo do Estado. As obras iniciaram em abril de 1997 com o fim previsto para dezembro de 1998, no entanto, só foram concluídas em junho de 1999. A Cohab, através de convênio com a UFPA, disponibilizou equipes de engenheiros, arquitetos e assistentes sociais, para a viabilização do projeto. Além disso, a área do Paracuri II foi dotada de equipamentos, tais como delegacia, reservatório elevado, escola de pré-escolar, quadra poliesportiva e creche. A partir de um levantamento socioeconômico apresentado à Cohab, em forma de relatório elaborado pela assessoria do Serviço Social Paru/UFPA, onde se constatou alto índice de precariedade na área, em junho de 1997, propôs-se desenvolver alternativas tendo, como proposta básica, a oferta de lotes urbanizados para população com renda de 1 a 5 salários mínimos e outra proposta constando de lotes urbanizados com cestas básicas de material para a construção de casa em regime de autoconstrução para população com renda de 2,5 a 12 salários mínimos. Dentre estas alternativas, está presente o Projeto Integrado de Ações Governamentais na Urbanização da Área do Paracuri II . A situação atual é que os lotes já foram comercializados, houve a titulação provisória da terra, a construção do Centro Comunitário e de uma escola de ensino fundamental. A meta era implementar um Projeto Piloto de Assentamento de 506 famílias (2.530 habitantes), dotado de infra-estrutura física e social na Área do Paracuri II, no período de julho a dezembro de 1997. O objetivo geral do projeto era contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população, através da integralização das ações governamentais, garantindo o exercício da cidadania. O projeto tinha os seguintes objetivos específicos: • reordenar o espaço físico da área através da oferta de 506 lotes urbanizados e financiamento de cesta de material; • organizar as famílias para viabilizar a construção de moradia em regime de autoconstrução; 138 • • • proporcionar à comunidade contemplada pelo projeto ações para assegurar padrão satisfatório de saúde educação e segurança; viabilizar o reassentamento das famílias já residentes na área bem como daquelas que serão atendidas pelo projeto. 4.3.1. Dados socioeconômicos das famílias As famílias residentes na área são predominantemente constituídas de paraenses (72%) apresentam situação socioeconômica precária, com apenas 14% de empregados e 4% de aposentados ou pensionistas. Quanto à escolaridade, 60% dos moradores apresentam níveis variando entre ensino fundamental incompleto e ensino médio completo, sendo que 11% são declaradamente analfabetos. Quanto às moradias, verifica-se que 13% são de alvenaria, 70% de madeira e 17% de outras soluções improvisadas. Destas, 97% são ocupadas como residências; 52% possuem um cômodo, 18% dois cômodos e 6% três cômodos. As condições de saneamento são precárias, 93% das famílias possuem poços e apenas 22% tem fossa séptica. As necessidades básicas e as suas principais reclamações por ordem de importância são: segurança (91%); saúde (78%); educação (77%); transporte (74%); saneamento (72%); lazer (72%); vias de acesso (43%). Os seguintes órgãos, com as respectivas competências, estão envolvidos em parceria institucional no projeto: • Caixa Econômica Federal – viabilização de financiamento através de recursos do Programa Habitar Brasil. • Secretaria Estadual de Segurança Pública (Segup e Polícia Militar do Pará 4º CIPMIcoaraci – implementação do Projeto Povo, com policiamento ostensivo volante, bem como do Projeto S.A.C. (Serviço de Atendimento do Cidadão) pela Polícia Militar) • Secretaria Estadual de Educação (Seduc/DEN/DEAF) – implementação do Projeto Integração Escola/Comunidade. • Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Pará (Sespa) – ações dentro do Programa saúde Preventiva • Secretaria de Estado de Agricultura/Centrais de Abastecimento do Pará (Sagri/Ceasa) – Projeto Compras Associadas, Projeto Mercearia do Povo e Varejão Móvel, os quais deverão ser discutidos com a comunidade com vista à viabilidade de suas implementações. • Secretaria de Estado e Promoção Social (Seteps) – implementação do projeto de capacitação de recursos humanos da área visando à geração de renda – Seteps/Seju – Implementação do Projeto Cidadania/Justiça itinerante. • Companhia de Habitação do Estado do Pará (Cohab/PA) – responsável por toda a execução técnica e prática do projeto. • Ação Social Integrada ao Palácio do Governo (Asipag)– responsável por articular com as instituições governamentais, buscando parceria na execução do Projeto Piloto na Área do Paracuri II. • Universidade Federal do Pará – Programa de Apoio à Reforma Urbana (Paru/UFPA) – elaboração de diagnósticos na área inerentes aos aspectos socioeconômicos da população e de arquitetura e urbanismo. 139 4.4. A comunidade da Vila da Barca: caracterização geral A comunidade da Vila da Barca localiza-se às margens da Baía de Guajará, no bairro do Telégrafo, na cidade de Belém do Pará, compreendendo uma área de 50.100 m². Seu acesso principal é pela Rua de Belém, sendo limitada pela Travessa Padre Julião, pelas instalações da Companhia de Embarcações Jonasa e pela Baía do Guajará. Seguindo o levantamento realizado pela PMB, a comunidade possui uma população estimada para o ano de 1999 em 1.400 habitantes – dos quais aproximadamente 48% são constituídos pelo sexo feminino e 52% pelo sexo masculino. Apesar dos dados oficiais levantados, o Jornal Vila da Barca afirma existirem 3.000 moradores distribuídos em 600 domicílios. A Comunidade da Vila da Barca possui uma associação de moradores organizada há 17 anos. Segundo o Jornal Vila da Barca (2000), além da associação de moradores, encontram-se em funcionamento entidades comunitárias da Pastoral e um Centro Comunitário, bem como a Associação Carnavalesca Mocidade Unida da Vila da Barca, que existe há 11 anos. Há ainda pequenos templos religiosos, católicos e evangélicos. Ainda de acordo com o jornal da comunidade, há um pequeno comércio na comunidade caracterizado por alguns bares e pequenas mercearias, lojas de venda de frutas e outros alimentos que são comprados no mercado do Ver-o-Peso e levados para o consumo local da população. A questão habitacional na Região Metropolitana de Belém Entre as atividades desenvolvidas na comunidade, encontram-se a de cabeleireiro, venda de açaí e a pesca – a principal delas. O peixe é pescado na própria Baía de Guajará, onde alguns moradores lançam as redes de seus pequenos barcos, alimentam suas famílias e o vendem de forma itinerante ou por encomenda, tendo-se informações sobre a existência da prática da economia de escambo, em que o peixe é trocado por outros produtos, como arroz e feijão. Apesar das informações do Jornal da Vila da Barca apontarem para o uso comercial e de subsistência do rio, o levantamento da Prefeitura de Belém indica que o rio é destinado mais para o lazer e transporte, supondo-se então que a atividade pesqueira é realizada dentro deste primeiro objetivo, não excluindo, no entanto, seu destino econômico. Existe também a criação de pequenos animais, como aves e porcos, existindo inclusive um matadouro na Vila, no qual os suínos, assim como os peixes são trocados por outros produtos ou comercializados dentro e fora da Vila. Quanto à situação de trabalho, predomina o comércio informal, havendo poucos trabalhadores com vínculo empregatício. Segundo os dados da Prefeitura, há o predomínio do trabalho autônomo, a maioria relacionada com serviços gerais e domésticos e serviços de construção e reparos de residências, e um grande número de moradores classificados como “desocupados”, sendo que 45,6% da população tem renda mensal de somente um salário mínimo e 28% de um a dois salários mínimos. Os dados sobre os graus de escolaridade apontam para 75,2% da população com o ensino fundamental grau incompleto e 12,4% com ensino médio incompleto. A partir das análises das fotografias aéreas e da observação in locu sobre a morfologia urbana e tipologia habitacional do espaço da Vila da Barca, pode-se afirmar que este é caracterizado por um conjunto de habitações em sua grande maioria com tipologias palafíticas, situadas sobre uma área 140 alagada/alagável, que possui um sistema de circulação desenvolvido sobre estivas de madeira que conformam um traçado não regular. Utilizando como base o levantamento realizado pela PMB, verifica-se que 91,7% das habitações são construídas em madeira, 4,3% em madeira e alvenaria. O restante é construído com materiais mistos como zinco e madeira, taipa e madeira, plástico e madeira e somente 0,4% são construções exclusivamente em alvenaria. Em relação ao número de cômodos das habitações, 27,5% destas possuem mais de quatro cômodos, 17,6% quatro cômodos e 25% três cômodos. Este é um fator a ser aprofundado na pesquisa de campo, já que geralmente nessas áreas as habitações possuem um número menor de cômodos. A construção do sistema de circulação sobre estivas de madeira que permitem a localização das habitações cada vez mais distantes da terra firme e em direção da Baía de Guajará surpreende pela técnica e imprevisibilidade dos traçados, constituindo espaços de domínio da população habituada a tal solução e que já conhece os trajetos. 4.4.1. Origem e construção do espaço O jornal O Liberal (2000), em entrevistas com moradores antigos, cita que a Vila da Barca surgiu quando famílias de ribeirinhos e agricultores, em especial oriundos de Igarapé Mirim e Abaetetuba, buscaram morar próximos à estação de trem que existia na Avenida Pedro Álvares Cabral, há cerca de 60 anos, para comercializar frutas, verduras e legumes cultivados nas ilhas. Inicialmente, no local onde hoje se situa a comunidade, foram construídas barracas para a venda dos produtos e depois de algum tempo estas famílias deixaram de voltar para suas localidades de origem, construindo habitações próximo a uma “barca encalhada”, surgindo, então, a referência ao nome da comunidade. Porém, o Jornal Vila da Barca (2000) afirma que a Vila existe há 50 anos, citando a construção de habitações próximo a uma embarcação, que nunca foi encontrada, e que, segundo o jornal, existiria somente na imaginação dos moradores. O relato de alguns moradores contém informações que apontam para o vínculo existente entre a origem da Vila da Barca e as ilhas próximas. Das ilhas teria vindo o material construtivo utilizado pelos moradores para fazer as primeiras pontes de tronco de açaí e a cobertura das habitações. Na dinâmica do processo de ocupação da Vila da Barca, devem ser considerados não somente a atuação da comunidade na natureza, mas também os processos naturais ocorridos pela ação da maré em uma área de orla, ou seja, há uma tensão ou diálogo entre o avanço da comunidade em direção à água e o avanço da água em direção à área ocupada pela comunidade. Este seria um dos pontos a serem analisados nas condicionantes do processo de configuração espacial. 4.5. O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Tucunduba A Bacia do Tucunduba abrange a totalidade dos bairros de Canudos e Terra Firme, e se estende por parte dos bairros do Guamá, São Braz, Marco e Curió-Utinga, influenciando diretamente a qualidade de vida de parte significativa dos moradores do Distrito Administrativo do Guamá (Dagua), além de atingir o Distrito Administrativo do Entroncamento (Daent) e o Distrito Administrativo de Belém (Dabel). Possui uma área total de 10,55 km², dos quais 54% é alagável. É constituída de 13 canais que juntos somam 14.175 m; deste total, 6.040 m são naturais, 5.700 m já foram retificados de alguma forma, e apenas 1.823 m foram revestidos. A espinha dorsal da 141 Bacia é o Canal do Tucunduba, com uma extensão de 3.900 m, sendo 100% em estado natural, mesmo habitado por um contingente populacional significativo e influenciando na qualidade de vida desses cidadãos. Como o canal do Tucunduba é o principal da bacia, recebe efluentes dos demais para o lançamento final no Rio Guamá. No entanto, este lançamento está sendo prejudicado por obstruções, seja em decorrência de barreiras hídricas (movimento das marés), seja pela existência de moradias no leito do canal e/ou lançamentos de detritos no mesmo. Como conseqüência, devido também a precipitações pluviométricas, a bacia não oferece a vazão necessária para o rápido escoamento de todo o efluente captado na área de abrangência, causando alagamento de grandes áreas, provocando graves prejuízos na qualidade de vida dos moradores que habitam no leito e na faixa de domínio do canal. A questão habitacional na Região Metropolitana de Belém Segundo um levantamento inicial produzido por entidades populares que exercem atividades na área, e por técnicos do Dagua, foi constatada a existência de aproximadamente 1.400 domicílios localizados no leito e margens direita e esquerda do Canal. 4.5.1. O Processo de Remanejamento no Projeto Tucunduba O Projeto Tucunduba é um projeto de saneamento que contempla a execução de obras em aterro, drenagem e pavimentação do trecho da Avenida Perimetral até a Rua Celso Malcher. Atualmente está sendo executado o primeiro trecho que se estende da Avenida Perimetral à Rua São Domingos. A execução do projeto é financiada pela CAIXA em parceria com a PMB, tendo como órgão executor a Secretaria Municipal de Saneamento (Sesan). A Sesan, através de uma comissão de remanejamento, iniciou as negociações com as famílias a serem atingidas pelo projeto no ano de 1999, se estendendo até o ano atual. Em 1997 foram cadastradas pela Sesan 1.252 benfeitorias construídas na faixa de domínio de abrangência do projeto. Até o ano de 2001 foram indenizadas pela Prefeitura Municipal/Sesan um total de 468 benfeitorias localizadas na área de domínio do Projeto Tucunduba, estando assim distribuídas quanto à sua localização: Riacho Doce (Av: Perimetral à Rua da Paz) – 148 benfeitorias; Av. Barão de IgarapéMiri – 6 benfeitorias; R. José Priante à R. São Domingos: 95 benfeitorias; Ilha Pantanal – 163 benfeitorias e Passagem Tucunduba II – 56 benfeitorias. Do total das 468 benfeitorias indenizadas, foram atendidas 692 famílias aproximadamente. No que se refere ao destino das famílias remanejadas, a Comissão de Remanejamento destaca que há dificuldades em se obter o controle total dos novos endereços, pelo fato de que, após a assinatura do acordo e o recebimento da indenização no setor financeiro da Secretaria, perde-se o contato direto com o morador. Entretanto, há informações de que há preferência das famílias em permanecerem no mesmo bairro ou em bairros próximos da área ou, como em alguns casos, retornarem ao município de origem. Do total de benfeitorias indenizadas existe o controle apenas de 171, o que corresponde a 36,54% do universo total. No que diz respeito ao procedimento referente à forma como essas famílias foram indenizadas pelo Projeto Tucunduba, a Sesan utilizou inicialmente duas opões de remanejamento: primeira: as famílias optavam por receber um lote de 8,00 x1 2,00 m², mais uma unidade habitacional em 142 alvenaria construída pela PMB no Conjunto Eduardo Angelim, localizado na Rodovia Augusto Montenegro km 13; segunda: as famílias optavam por receber uma indenização de acordo com avaliação da sua benfeitoria para que pudessem comprar uma outra em um novo endereço. Esta segunda forma é a adotada atualmente pela Sesan. 4.5.2. O Plano de Desenvolvimento Local (PDL) As ações a serem executadas no projeto previstas para o período de janeiro 2002 a março 2004: • realização do processo de consultas sociais: visitas domiciliares, assembléias por rua e quadras; • composição do Conselho de Controle Social e das comissões de fiscalização; • implantação de infra-estrutura urbana: 3.120 m de vias públicas, 320 postes de concreto para iluminação pública; 4.976 m de rede coletora de esgoto; 4.370 m de rede de abastecimento de água; • 1.986,50 m de rede de drenagem urbana; 38.523 m³ de aterro de vias e miolos de quadra e terraplenagem do terreno destinado à construção das unidades habitacionais; • construção de 473 unidades unifamiliares, sendo 89 em autoconstrução, 15 unidades multifamiliares • com oito apartamentos e adaptação de oito benfeitorias já existentes; • remanejamento de 609 famílias em situação de risco ambiental, para área contígua ao local de origem; • construção de equipamentos urbanos e comunitários: dois centros comunitários, uma creche com capacidade para atender 150 crianças, um posto de saúde Casa Família, duas praças e cinco play-grounds; • recuperação de área degradada com implantação de área verde de 2 ha de revegetação com árvores • típicas da Amazônia; • execução do trabalho social por meio de cinco subprogramas; • mobilização, organização e controle social, geração de trabalho e renda, educação sanitária e ambiental, acompanhamento social às famílias remanejadas, serviços de atendimento e informação. 5. Conclusão Este texto busca traçar um panorama de ações habitacionais na RMB, levados a efeito entre 1996 e 2001. Na análise do contexto local, tanto do plano físico-estrutural como do setor políticoinstitucional, aspectos ligados à provisão do habitat social demonstram pontos que merecem destaque e crítica mais aprofundada. Percebe-se a existência de paralelos entre esquemas formais de solução do problema do déficit habitacional, construção de novas unidades ou de lotes infraestruturados, e políticas de provisão de representativo percentual para a solução de problemas em áreas ocupadas informalmente. As soluções urbanísticas, fundiárias ou financeiras, em última instância, institucionais, para não dizer políticas, ainda estão por serem pesquisadas com rigor capaz de mostrar pontos do estrangulamento, causas e conseqüências de má atuação pública no setor. Neste plano político-institucional, nota-se uma falta de coesão entre as unidades governamentais, necessitando uma readequação de competências e a restrição de suas atuações, que provêm da falta de articulação e de uma coordenação geral das operações realizadas. Outro problema 143 observado é a falta de capacitação técnica; não há verificação das qualificações; apenas são realizados, eventualmente, programas de atualização e treinamentos de equipes. Referências ACIOLY, Cláudio Jr.; DAVIDSON Forbes. Densidade Urbana: Um instrumento de planejamento e gestão urbana. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. BELÉM (Prefeitura Municipal - Secretaria Municipal de Saneamento - Núcleo Setorial de Planejamento – Comissão de Remanejamento). Relatório sócio-técnico. Belém, jan. 2002. CAIXA (Caixa Econômica Federal). Financiamentos habitacionais concedidos pela Caixa no Estado do Pará nos últimos 5 anos. Belém, [s.d.]. (Documento fornecido pela Gerência de Mercado da CAIXA). __________. 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São Paulo: Terceira Margem, 2001. 145 Em Defesa da Locação Social Maria da Piedade Morais e Bruno de Olivaria Cruz No Brasil, a exemplo do que ocorre em outros países latino-americanos, as políticas habitacionais governamentais têm enfatizado a promoção do acesso à casa própria como a melhor forma de satisfazer as necessidades habitacionais da população, atribuindo um status inferior à moradia de aluguel. Nos países desenvolvidos, vários estudos apregoam os impactos positivos da propriedade imobiliária sobre as crianças, as comunidades e a participação cívica da população. Também existe uma vasta literatura enfatizando a importância da autoconstrução para promover o acesso à casa própria entre os pobres urbanos das cidades da América Latina. A habitação possui o duplo caráter de bem de consumo (necessidade básica) e bem de investimento, correspondendo ao principal ativo das famílias em todo o mundo. Contudo, as condições de ocupação da moradia variam profundamente entre os países, independentemente dos padrões de renda, da região do globo e dos níveis de desenvolvimento. No Brasil a taxa de domicílios próprios em 2000 era de 74,4%, muito próxima das taxas da Argentina (74,9%) e da Bélgica (74%), mas muito atrás da Espanha, onde aproximadamente 83% da população é proprietária da moradia. Por outro lado, em países em estágios muito diferentes do desenvolvimento como a Alemanha e a Jamaica as taxas de domicílios próprios podem ser bastante similares (45%), mas muito abaixo das taxas na América Latina. Embora nos países desenvolvidos predominem o aluguel ou a propriedade nos mercados de habitação formais, analisando a escolha das condições de ocupação das moradias (tenure choice) nos países em desenvolvimento podemos encontrar uma multiplicidade de soluções habitacionais, que incluem a propriedade e o aluguel no mercado formal, a invasão e o aluguel em assentamentos informais até a coabitação e a ocupação de domicílios cedidos por parentes e empregadores. A literatura empírica mostra que a tenure choice depende do ciclo de vida das famílias, da renda, da riqueza, da disponibilidade de crédito, da política tributária e das expectativas inflacionárias, dentre outros. A baixa capacidade de pagamento e endividamento dos pobres restringe o seu acesso aos mercados de aluguel e propriedade formais, levando ao aumento dos assentamentos precários. No Brasil as despesas com a compra de moradias acabadas e empréstimos hipotecários são ainda mais desigualmente distribuídos do que a renda do trabalho, de acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), enquanto as despesas com a melhoria das condições habitacionais são bem distribuídas entre todas as classes de renda. Tal fato reflete o esforço das populações de baixa renda, que têm destinado uma parcela significativa de suas poupanças para a melhoria das suas condições habitacionais, e mostra a oportunidade para a implementação de programas de microfinancas para habitação progressiva. Estudo elaborado pelos autores analisando a tenure choice no Brasil mostrou que o nível de riqueza é um bom preditor para a propriedade formal e que a renda corrente tem impacto limitado sobre o regime de ocupação da moradia. Por outro lado, variáveis relacionadas ao ciclo de vida 146 tais como idade do chefe, estado civil e tamanho da família influenciam fortemente a probabilidade de ser proprietário. Tais resultados mostram que os policy makers brasileiros, que sempre criaram programas habitacionais baseados nas faixas de renda familiar corrente, deveriam levar explicitamente em conta o estágio das famílias no ciclo de vida no desenho dos programas, tais como o aluguel ou a propriedade para a população jovem ou programas habitacionais especiais para idosos, por exemplo. Os pobres, os negros e as mulheres com filhos pequenos apresentaram uma elevada probabilidade de morar em assentamentos informais, mostrando que eles possuem uma possibilidade de escolha limitada no mercado habitacional. O nível educacional aumenta a probabilidade de uma boa inserção nos mercados habitacionais formais, seja por meio de compra ou aluguel. Migrantes há menos de quatro anos no município de residência também possuem uma probabilidade menor de ser proprietários. Em suma, os resultados do estudo mostram que os policy makers não deveriam focar apenas no acesso à casa própria como a melhor solução habitacional, mas que uma maior gama de opções habitacionais com diferentes modalidades de acesso, preços, qualidades e localizações deveria estar disponível para as famílias brasileiras, dentre as quais elas pudessem escolher as soluções mais adequadas às suas necessidades habitacionais. Nesse sentido, a locação social pode-se configurar numa excelente solução habitacional para jovens em busca de oportunidades de emprego num mercado de trabalho crescentemente volátil, informal e disperso no espaço, bem como para migrantes recentes e idosos que não tem condições de contrair um empréstimo, com a importância dos mercados de aluguel para aliviar o déficit habitacional sendo maior nas regiões metropolitanas e nas áreas densamente povoadas e com elevado crescimento demográfico. Maria da Piedade Morais é técnica de Planejamento e Pesquisa e coordenadora de Estudos Setoriais Urbanos do Ipea. Bruno de Oliveira Cruz é técnico de Planejamento e Pesquisa e diretor-adjunto de Estudos Regionais e Urbanos do Ipea. A versão final do artigo pode ser encontrada em Lall, S. V; Freire, M.; Yuen, B.; Rajack, R.; Helluin, J.-J. (eds.)Urban Land markets: improving Land for Successful Urbanization. Elsevier, 2009. Uma versão preliminar do estudo pode ser encontrada no sítio do Fourth Urban Research Symposium disponível em http://www.worldbank.org/urban/symposium2007/papers/piedade.pdf 147 Monitorando o Direito à Moradia no Brasil (1992-2004) Maria da Piedade Morais, George Alex Da Guia e Rubem de Paula Introdução O objetivo do artigo é fornecer um panorama geral sobre o grau de implementação do direito à moradia no Brasil, destacando os principais avanços e retrocessos no alcance desse direito, bem como os grupos que se encontram em posição mais desfavorável no que se refere às condições de acesso à moradia e a serviços urbanos adequados. O artigo está estruturado em cinco seções, além desta introdução. A primeira seção discute os principais instrumentos legais de âmbito internacional, ratificados pelo Brasil que tratam do direito à moradia. Na segunda seção são analisados os direitos e principais instrumentos estabelecidos na Constituição Federal, no Estatuto das Cidades e legislações correlatas. A terceira seção apresenta uma breve resenha sobre indicadores de direito à moradia. A quarta seção fornece um quadro geral das condições de moradia da população brasileira para o período 1992-2004, com base em indicadores habitacionais e de desenvolvimento urbano construídos a partir dos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), segundo metodologia recomendada pelas Nações Unidas (ONU). Por fim, a seção 5 apresenta as principais conclusões do artigo. O direito à moradia nos instrumentos legais de âmbito internacional O Direito à Moradia foi citado inicialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, pela Assembléia Geral da ONU, tendo o Brasil como um dos seus signatários. A declaração estabelece que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (art. 25, §1o). O principal instrumento legal internacional que trata do direito à moradia, ratificado pelo Brasil e por mais 138 países, é o Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (Pidesc), adotado pela ONU em 1966. Pelo artigo 11, §1o, os Estados partes reconhecem o direito de toda pessoa à moradia adequada e comprometem-se a tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito. A conformidade dos países signatários com o Pacto é monitorada pelo Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (CESCR), que estabeleceu diretrizes gerais sobre a forma e o conteúdo dos relatórios enviados ao Comitê (E/C. 12/1991/1). O Pidesc foi aprovado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo no 226, de 1991) e pela Presidência da República (Decreto no 591, de 92), reforçando o compromisso brasileiro no cumprimento do conteúdo proposto pelo pacto. Além do Pidesc, o Brasil também ratificou as Convenções sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), os Direitos das Crianças (1989) e a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados (1951). Todas reafirmam a condenação de qualquer tipo de discriminação – de gênero, raça, idade e nível socioeconômico – relativo ao direito à moradia adequada. Os pactos e as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil têm força de lei e, desse modo, criam uma obrigação por parte do Estado brasileiro de fazer cumprir esse direito para todos os cidadãos. 148 Ainda no cenário internacional, a Primeira Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos, realizada em Vancouver, em 1976, criou o Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (Habitat) que consolidou a questão das cidades como nova estratégia de atuação da ONU, principalmente nos países em desenvolvimento. A Declaração de Vancouver reafirmou, em seu § 8o, o direito universal à moradia adequada, destacando a importância da eliminação da segregação social e racial, mediante a criação de comunidades melhor equilibradas, onde se combinem diferentes grupos sociais. A Agenda 21, adotada pela Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992, também destaca a importância da moradia adequada para o bem-estar das pessoas em seu capítulo 7. Em 1996, realizou-se em Istambul, a segunda Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos (2a Habitat), que aprovou a Agenda Habitat, adotada pelo Brasil. O documento tem como principais objetivos a moradia adequada para todos e o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos num mundo em urbanização. A Declaração de Istambul reafirmou o direito à moradia na seção III, item 8, que reitera o comprometimento da comunidade internacional com a realização completa e progressiva do direito à moradia adequada. Para esse fim, os Estados partes deveriam tomar providências para garantir a segurança legal da posse, a proteção contra a discriminação e a igualdade no acesso à moradia adequada e financeiramente acessível para todos. Em 2000, a Declaração do Milênio incorporou aos objetivos gerais da ONU, os direitos à moradia e ao saneamento adequados, por meio da campanha Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Em 2001, a Declaração das Cidades e outros Assentamentos no Novo Milênio, aprovada pela Sessão Especial das Nações Unidas Istambul+5, ocorrida em Nova York, reafirmou os compromissos assumidos na Habitat. O direito à moradia nos instrumentos legais de âmbito nacional No Brasil, o texto constitucional de 1988 determina a prerrogativa para a incorporação de novos direitos que, até então, não figuravam na Constituição Federal brasileira. O § 2o do art. 5o estabelece que os direitos expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos princípios por eles adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil tome parte. Ainda nesse artigo, a Emenda Constitucional no 45, de 2004, estabelece, em seu § 3o, que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados na Câmara e no Senado, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, são equivalentes às emendas constitucionais. Portanto, pode-se afirmar que a Constituição brasileira consubstancia no rol dos direitos sociais básicos aqueles enunciados nos tratados internacionais, incluindo aqueles relativos aos direitos humanos. O direito à moradia foi explicitamente incorporado à Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional no 26, de 10 de fevereiro de 2000, que estabelece no artigo 6o que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. A Constituição Federal estabelece ainda, que é dever do Estado, nas suas três esferas, promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (artigo 23, inciso IX). O direito à moradia também faz parte das necessidades básicas dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que devem ser atendidas pelo salário mínimo (artigo 7o, seção IV). 149 Os artigos 182 e 183 da Constituição Federal que tratam da política urbana condicionam a garantia dos direitos de propriedade ao cumprimento de sua função social. O princípio da função social da propriedade já vem sendo tratado desde a Constituição de 1934, quando se inseriu na esfera constitucional a restrição do direito de propriedade pelo interesse social da coletividade. As constituições que se seguiram consolidaram a função social como princípio básico da propriedade nas cidades (MASCARENHAS, 2005). Contudo, foi somente a partir da Constituição de 1988, que a função social da propriedade pode ser aplicada, ao ficar estabelecido no artigo 182, § 2° que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências de ordenação da cidade expressas no plano diretor.60 A regulamentação dos capítulos de política urbana pela Lei Federal no 10.257, de 2001, intitulada Estatuto da Cidade, estabeleceu os princípios e diretrizes para o ordenamento territorial e urbanístico, calcado no princípio da função social e ambiental da propriedade e na garantia do direito a cidades sustentáveis, “entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (artigo 2o). O Estatuto da Cidade define os instrumentos que o poder público pode utilizar para garantir o cumprimento da função social da propriedade61, da regularização fundiária62 e a gestão democrática e participativa da cidade.634 No amplo leque de instrumentos para garantir o direito à moradia, presentes no Estatuto das Cidades, destacam-se aqueles que tratam da segurança da posse (Usucapião Urbano, Concessão do Direito Real de Uso e Zonas Especiais de Interesse Social),64 considerada pelo UN-Habitat como prerrogativa básica contra despejos forçados.65 Outro instrumento para garantir a segurança da posse e a qualidade dos assentamentos informais está presente na Lei Federal no 9.785, de 1999, que prevê a possibilidade de o poder público assumir a regularização fundiária de loteamentos irregulares e clandestinos sem a observância dos procedimentos urbanísticos e administrativos previstos na Lei Federal no 6.766 de 1979, conhecida como Lei de Parcelamento de Solo Urbano. Com isso, são asseguradas, além da segurança da posse por meio da regularização fundiária, a ação do poder público na oferta de serviços urbanos e equipamentos comunitários. O princípio da não-discriminação entre os gêneros, no que se refere à segurança da posse, está contemplado no artigo 183, § 1o, da Constituição e no artigo 1o, § único, da Medida Provisória no 2.220, de 2001, que estabelecem que o título de domínio, a concessão de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia são conferidos de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Nesse quesito, destaca-se também a Portaria no 11 do 60 plano diretor é obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes, integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas e de especial interesse turístico. 61 Plano diretor participativo, parcelamento e edificação compulsórios, imposto territorial progressivo no tempo, desapropriação com títulos da dívida pública, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir (solo criado). 62 Concessão especial para fins de moradia, concessão do direito real de uso e zonas especiais de interesse social 63 Conselhos de política urbana, audiências e conferências públicas, orçamento participativo, iniciativa popular de projetos de lei, estudo de impacto de vizinhança 64 As Zeis permitiram a flexibilização dos parâmetros urbanísticos e das normas técnicas de prestadores de serviços públicos de infra-estrutura em assentamentos populares, amparando legalmente as iniciativas locais de urbanização e regularização fundiária, facultando a melhoria das condições de moradia e minimizando as realocações das unidades habitacionais existentes. 65 . A Campanha pela Segurança da Posse tem como objetivo principal garantir o direito à moradia, particularmente para os pobres e os sem-teto. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas considera os despejos forçados incompatíveis com os requerimentos do Pidesc. Em 2005, o Conselho das Cidades aprovou a Resolução no 31 que propõe o estabelecimento de um processo de discussão entre os órgãos do Poder Judiciário, instituições como o Ministério Público, e o Conselho das Cidades para tratar da atuação do Judiciário em conflitos relativos aos deslocamentos e despejos forçados de grande impacto social 150 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que estabelece a mulher chefe de família como público-alvo dos programas habitacionais com recursos da União. Em 2002, o novo Código Civil Brasileiro, aprovado pela Lei no 10.406, no artigo 1.288, aborda a propriedade urbana como um direito amplo, mas não absoluto, que deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais, o que possibilita a sua utilização para fins de regularização fundiária em áreas de interesse social. Soma-se a esse leque de instrumentos, a MP no 292 de 2006, que altera, de forma significativa, a Lei Federal no 8.666 de 1993 (Lei das Licitações), no que se refere à doação de lotes para populações de baixa renda (até cinco salários mínimos). Outra alteração de relevância para o processo de regularização fundiária feita por essa MP foi a permissão dos instrumentos de reconhecimento de posse (concessão especial para fins de moradia, concessão de direito real de uso, aforamento gratuito e o direito de superfície) pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH) como garantia para a obtenção de financiamento para a construção e melhorias habitacionais (artigo 4, seção I NR). Outros esforços com vistas a garantir o direito à moradia, principalmente no que se refere à segurança de posse, concentram-se no novo modelo de regulação urbana desenhado pelo Projeto de Lei no 3.057/2000, que dispõe sobre o parcelamento do solo e a regularização fundiária em áreas urbanas, denominada Lei de Responsabilidade Territorial. Ainda no tema da segurança da posse, a Lei Federal no 10.741, de 2003, conhecida como Estatuto do Idoso, estabelece em seu capítulo IX, arts. 37 e 38, o direito à moradia e a prioridade da titularidade da moradia aos idosos nos programas habitacionais. Em relação ao mercado rentista, o direito à moradia adequada é assegurado pela Lei Federal no 8.245, de 1993, que garante em seu artigo 2o, § único, a titularidade de direitos como locatários de imóveis urbanos, o que por sua vez obriga o locador a respeitar a exigência legal dos moradores, de melhorias das condições habitacionais do imóvel alugado. A próxima seção resume os indicadores recomendados pela ONU para monitorar os principais instrumentos legais e agendas que tratam do direito à moradia. A seção avalia em que medida os avanços ocorridos na legislação de direito à moradia no país se traduziram em avanços concretos nas condições de habitação e acesso a serviços urbanos da população brasileira. Indicadores de direito à moradia A noção de o que vem a constituir uma moradia adequada é o ponto de partida para a construção de indicadores de direito à moradia. O Comitê da ONU sobre os Direitos Econômicos e Sociais no General Comment no. 4 on the Right to Adequate Housing, adotado em 1991, identificou sete componentes básicos para que uma moradia possa ser considerada minimamente adequada: i) segurança nos direitos de propriedade, que garanta a proteção contra os despejos forçados; ii) disponibilidade de serviços, equipamentos e infra-estrutura, tais como água, esgoto, coleta de resíduos sólidos, energia para cocção, iluminação, dentre outros; iii) disponibilidade a preços acessíveis, para que o preço da moradia seja compatível com o nível de renda da população e não comprometa a satisfação de outras necessidades básicas das famílias; iv) habitabilidade, no sentido de fornecer aos seus moradores espaço adequado, protegendo-os de fatores climáticos e garantindo a sua segurança física; v) acessibilidade a todos os grupos sociais, levando em conta as necessidades habitacionais específicas de idosos, crianças, deficientes físicos, moradores de rua, população de baixa renda etc.; vi) localização que possibilite o acesso ao emprego, a serviços de saúde e outros equipamentos sociais; e vii) adequação cultural, de modo a permitir a expressão 151 das identidades culturais. Essa definição de moradia adequada é semelhante à adotada no § 60 da Agenda Habitat: Moradia adequada significa mais do que ter um teto sobre a cabeça. Significa também privacidade adequada; espaço adequado; acessibilidade física; segurança adequada; segurança da posse; estabilidade e durabilidade estrutural; iluminação, calefação e ventilação adequadas; infra-estrutura básica adequada tal como serviços de abastecimento de água, esgoto e coleta de lixo, qualidade ambiental e fatores relacionadas à saúde apropriados; e localização adequada no que diz respeito ao local de trabalho e aos equipamentos urbanos: os quais devem estar disponíveis a um custo razoável (...) Fatores relacionados ao gênero e à idade (...) devem ser considerados. Para o monitoramento da Agenda Habitat, o UN-Habitat propõe a adoção de um conjunto de 20 indicadores-chave, 13 indicadores extensivos e 9 check-lists de indicadores qualitativos (UNHabitat, 2004). Embora todos os indicadores propostos estejam direta ou indiretamente ligados ao monitoramento das condições de moradia, o UN-Habitat recomenda especificamente para monitorar a promoção do direito à moradia adequada indicadores relativos à durabilidade estrutural, à existência de área suficiente para viver, ao preço da moradia em relação ao nível de renda da população e uma check list relativa ao alcance do direito à moradia para todos os cidadãos na Constituição e/ou legislação dos países. Também se relacionam com o monitoramento do direito à moradia os indicadores propostos pelo UN-Habitat (2003) para o monitoramento da Meta no 11 do 7o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio – até 2020, ter alcançado uma melhora significativa na vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de assentamentos precários –, relativos à estimativa do número de domicílios precários, i.e, aqueles que não atendem a uma ou mais das seguintes condições: i) acesso a água potável; ii) acesso a esgotamento sanitário; iii) segurança da posse; iv) durabilidade da moradia; e v) área suficiente para morar. As diretrizes gerais sobre a forma e o conteúdo dos relatórios nacionais a serem apresentados ao CESCR pelos países signatários do Pidesc (E/C.12/1991/1) também apresentam uma extensa lista de indicadores, destacando a necessidade de se prover estatísticas detalhadas sobre as condições de moradia nos países, a existência de leis que afetem o direito à moradia, bem como as medidas adotadas pelo Estado para colocar em prática esse direito. As diretrizes citam especificamente o número de pessoas e famílias sem teto, as pessoas com condições de moradia inadequadas e sem acesso a serviços de infra-estrutura urbana, os moradores em assentamentos informais, os sujeitos a despejos forçados, as pessoas cujos gastos com moradia são superiores à sua capacidade de pagamento e as pessoas em lista de espera para obter moradia, dentre outros. Mais recentemente, o Programa das Nações Unidas para os Direitos Humanos também estabeleceu um conjunto de 15 indicadores para o monitorar o direito à moradia, divididos em nove elementos básicos: habitabilidade, acessibilidade a serviços, cessibilidade econômica, segurança da posse, população sem teto, população em favelas, despejos forçados, marco legal e marco institucional da política habitacional. O direito à moradia nas cidades brasileiras Para o monitoramento do alcance do direito à moradia nas cidades brasileiras, além da revisão da legislação apresentada na seção 2 deste artigo, utilizou-se uma série de 16 indicadores quantitativos. Procurou-se compatibilizar as recomendações metodológicas contidas nas diretrizes da ONU com a disponibilidade de informações sobre moradia existentes na Pnad e outras bases de dados do IBGE, adaptando os indicadores recomendados à realidade socioeconômica do Brasil. 152 Para verificar a conformidade com os princípios de igualdade de oportunidades e de nãodiscriminação no acesso à moradia adequada para todos, apresentam-se os indicadores com os recortes de gênero, raça, faixa etária e nível de renda. O horizonte temporal analisado engloba o período 1992-2004. Como proxy para a população sem teto utilizou-se as pessoas residentes em domicílios urbanos improvisados.66 As pessoas residentes em setores especiais de aglomerados subnormais foram usadas como proxy para favels e os residentes em domicílios urbanos do tipo cômodo como proxy para cortiços. A população com insegurança da posse foi aproximada pelo número de moradores urbanos com irregularidade fundiária.67 A acessibilidade econômica da moradia foi medida pela proporção de pessoas residentes em domicílios urbanos com ônus excessivo com aluguel, i.e, aquelas pessoas que comprometem mais de 30% da renda domiciliar com o pagamento do aluguel. Para a análise da dimensão de habitabilidade utilizou-se a proporção de pessoas residentes em domicílios urbanos com: i) adensamento excessivo (mais de 3 pessoas por dormitório); ii) paredes e tetos feitos de materiais duráveis;68 e iii) banheiro de uso exclusivo do domicílio. Para medir o acesso aos serviços, equipamentos e infra-estrutura urbana foram considerados indicadores relativos à proporção de pessoas residentes em domicílios urbanos que: i) usam predominantemente gás ou luz elétrica no fogão; ii) possuem iluminação elétrica etc.; e iii) têm acesso a cada um dos serviços de saneamento básico isoladamente, bem como com acesso simultâneo a água canalizada de rede geral, esgoto de rede geral ou fossa séptica e coleta direta ou indireta de lixo, que é considerado o padrão de saneamento básico adequado para as áreas urbanas. Por último, construiu-se um indicador para medir a proporção de pessoas residentes em domicílios urbanos com condições de moradia adequadas, retirando-se da população total os residentes em dom cílios classificados como precários pelos critérios do UN-Habitat69. A análise dos indicadores mostra que houve uma sensível melhoria nas condições de moradia da população brasileira residente em áreas urbanas entre 1992 e 2004, pois 13 dos 15 indicadores utilizados apresentaram performance positiva. Os indicadores de saneamento básico apresentaram os melhores desempenhos, seja quando se analisam os serviços de água, esgoto e lixo separadamente seja quando nos referimos ao acesso simultâneo aos três tipos de serviços, passando de 57,4%, em 1992, para 70,8%, da população em 2004. O número absoluto de pessoas residentes em domicílios adensados também sofreu uma redução de 13,8%. Alguns indicadores apresentam percentuais de cobertura bastante elevados como é o caso da proporção da população com acesso a banheiro de uso exclusivo, paredes e tetos duráveis, coleta de lixo, energia elétrica e gás ou eletricidade para cocção, com níveis de adequação superiores a 95,7%. Um ponto negativo a observar é que a moradia ficou menos acessível face à renda da população, causando um aumento na proporção da população urbana que sofre de ônus excessivo com aluguel de 1,7%, em 66 Domicílio localizado em unidades sem dependência destinada exclusivamente à moradia, tais como: loja, sala comercial, prédio em construção, embarcação, carroça, vagão, tenda, barraca, gruta etc., que estivesse servindo de moradia 67 Moradores de domicílios próprios em terreno de terceiros ou pessoas com “outra condição de moradia.“ 68 Para as paredes, são considerados materiais duráveis a alvenaria e a madeira aparelhada. Para o teto, os materiais duráveis são: laje de concreto, telha e madeira. 69 Domicílios urbanos particulares permanentes que apresentam pelo menos uma das seguintes inadequações: ausência de água por rede geral canalizada para o domicílio; ausência de esgoto por rede geral ou fossa séptica; ausência de banheiro de uso exclusivo do domicílio; teto e paredes não duráveis; adensamento excessivo; não conformidade com os padrões construtivos (aglomerado subnormal); e irregularidade fundiária 153 1992, para 3,5%, em 2004, onerando, sobretudo, a população de baixa renda residente nas principais regiões metropolitanas. No que diz respeito aos indicadores de informalidade habitacional verificou-se que ocorreu uma queda de 347 mil no número de pessoas residentes em cortiços; de 36 mil, no número de moradores de rua; e de quase 1,1 milhão no número de pessoas com irregularidade fundiária. Contudo, não foi possível deter o crescimento da população favelada, que apresentou um aumento de mais de 2 milhões de pessoas em termos absolutos. A proliferação de favelas e outros assentamentos informais, que correspondem acerca de 4,6% da população urbana e estão concentrados principalmente nas metrópoles e nos municípios de grande porte, acarreta graves conseqüências econômicas, sociais e ambientais para as cidades brasileiras. No geral, verificamos que ocorreram avanços significativos no alcance do direito à moradia para o conjunto da população brasileira, pois a proporção da população residente em domicílios urbanos com condições de moradia adequadas aumentou mais de 12 pontos percentuais: de 48% para 60,4%. Essa melhoria nas condições de moradia reflete os esforços empreendidos pelos três níveis de governo por meio de programas e legislações. Outro ponto positivo a enfatizar diz respeito à diminuição das desigualdades entre brancos e negros no acesso à moradia adequada. De acordo com dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) do IBGE em 2004, mais de 81,3% dos municípios possuíam programas ou ações habitacionais: 34,3%, oferta de lotes; 19,8%, urbanização de assentamentos; 16,2%, regularização fundiária; 43,5%, oferta de materiais de construção; e 66,5%, construção de unidades habitacionais. São especialmente importantes para a consecução do direito à moradia adequada para todos as ações de habitação, saneamento, urbanização e regularização fundiária em quilombos, áreas indígenas, reservas extrativistas, assentamentos da reforma agrária e assentamentos urbanos informais. Somam-se a essas ações aquelas relacionadas ao desenvolvimento urbano, como é o caso da Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo (PDP)70. Entretanto, apesar dos avanços obtidos, o grau de alcance do direito à moradia no Brasil ainda é bastante desigual entre os diferentes grupos socioeconômicos. A população negra (pretos e pardos), os pobres (renda domiciliar per capita até ½ salário mínimo), as crianças (pessoas com até 12 anos de idade) os moradores de assentamentos informais apresentam piores condições de moradia do que a média da população brasileira. Para dar uma idéia da dimensão das desigualdades raciais que ainda persistem, enquanto o grau de adequação das condições de moradia entre a população branca é de 70,7%, entre os pretos e pardos é somente 48,2%. Entre a população pobre o grau de adequação é de apenas 31%, ao passo que 78,7% da população que ganha mais de 5 salários mínimos vive em domicílios adequados. As crianças também apresentam níveis de adequação das condições de moradia inferiores aos das demais faixas etárias (49,6%). Por sua vez, não foram observadas diferenças significativas entre as condições de moradia de homens e mulheres. Mesmo com o direito à moradia presente entre os deveres do Estado constantes da Constituição Federal e de outros normativos legais, ainda existe no país uma vasta gama de necessidades habitacionais não satisfeitas, configurando violações do direito à moradia, que incidem, sobretudo, 70 Segundo a Secretaria de Programas Urbanos, cerca de 88% dos municípios obrigados a elaborar o PDP estão em processo de conclusão ou em andamento (SNPU, 2006). 154 nas camadas mais pobres da população. Nas áreas urbanas brasileiras ainda há 59,7 milhões de brasileiros que convivem com pelo menos um tipo de inadequação habitacional Conclusão O governo Brasileiro tem dado importantes passos para o alcance do direito à moradia no Brasil. Na esfera internacional, o Brasil ratificou os principais pactos, convenções e declarações da ONU que incluem o direito à moradia como uma parte indissociável para o alcance dos direitos humanos. No âmbito legislativo nacional, destaca-se a nclusão do direito à moradia entre os direitos sociais mínimos da população pela Eenda Constitucional no 26, de 10 de fevereiro de 2000 e a homologação do Estatuto da Cidade, que introduziu diversos instrumentos para garantir o cumprimento da função social da propriedade e para a regularização fundiária de assentamentos informais e a gestão democrática e participativa da cidade. Os avanços na legislação e os esforços de investimento realizados pelos três níveis de governo nas áreas de habitação e saneamento ocasionaram a implementação gradual e progressiva do direito à moradia no Brasil, com a proporção de pessoas residindo em domicílios urbanos com condições de moradia adequadas aumentando, de 48%, em 1992, para 60,4%, em 2004. Contudo, apesar dos resultados positivos alcançados, o direito à moradia ainda não está acessível a todos os cidadãos brasileiros, pois cerca de 2/5 da população do país apresentam condições de moradia precárias. Os princípios da igualdade e da não-discriminação no direito à moradia também ainda não foram alcançados, pois as desigualdades no acesso à moradia adequada entre os grupos raciais e os estratos socioeconômicos ainda são bastante elevadas, com os problemas habitacionais recaindo, principalmente, sobre a população negra e pobre, que apresenta baixa capacidade de pagamento pela moradia e menor acesso a serviços urbanos. A persistência de um número elevado de necessidades habitacionais insatisfeitas nos grupos de renda mais baixos exigirá um aumento substancial dos investimentos por parte dos três níveis de governo, notadamente nos setores de habitação de interesse social, urbanização de assentamentos precários, regularização fundiária e aumento da cobertura de saneamento básico, sobretudo esgotamento sanitário. Por último, cabe ressaltar que uma das principais dificuldades para a construção dos indicadores foi a ausência de um censo específico sobre o habitação, forçando-nos a utilizar proxies que, na maioria das vezes, subestimavam as dimensões dos problemas habitacionais brasileiros. Especialmente difíceis de construir foram os indicadores relativos a pessoas em favelas e cortiços, moradores de rua e pessoas com insegurança da posse, pois não há dados quantitativos precisos sobre o grau de informalidade habitacional que prevalece no país. Assim, para que possamos dispor de estatísticas adequadas para monitorar o direito à moradia no Brasil recomenda-se ao IBGE, ao Ministério das Cidades e aos diversos institutos de pesquisa e planejamento governamental juntar esforços no sentido de ampliar o leque de informações disponíveis sobre as condições de moradia no país. Referências BRASIL. Lei Federal no 6.766 de dezembro de 1979. Presidência da República. ______. 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