Governança Metropolitana Colaborativa

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Curso de Extensão:
Governança Metropolitana Colaborativa
Apostila do Curso
- Belém, 16, 17 e 18 de novembro 2009 -
Organização
Secretaria de Estado de Integração Regional do Pará
Universidade de British Columbia CHS/UBC – Canadá
Novembro 2009
Prezados Participantes do Curso,
Recentemente, testemunhamos no Brasil um interesse renovado em novas formas de gestão urbana
compartilhada, envolvendo governos locais e estaduais (governança regional e metropolitana), e o
aparecimento de uma articulação macro-institucional mais forte, ampliando as perspectivas
relacionadas às questões relacionadas com financiamento, organização e gestão de áreas
metropolitanas e cidades-região (Lei dos Consórcios Públicos, contratos de gestão).
O mundo acadêmico acompanha este novo desenvolvimento criando novas linhas de estu-do e
pesquisas focadas em regiões metropolitanas. Dessa forma, à promoção do diálogo entre as entidades
envolvidas no gerenciamento metropolitano se alia a criação de um cenário fértil para incentivar os
agentes públicos na formação de sua consciência regional, instrumentando-os para o enfrentamento
dos desafios colocados pelas dinâmicas complexas das regiões metropolitanas.
O curso Governança Metropolitana Colaborativa faz parte do projeto internacional “Novos
Consórcios Públicos para Governança Metropolitana no Brasil”, desenvolvido pela Universidade de
British Columbia, Canadá e pelo Ministério das Cidades, Brasil,com apoio de universidades
brasileiras, instituições governamentais e não governamentais que atuam em regiões metropolitanas
brasileiras.
Desde o início de 2009, o projeto vem promovendo a criação de uma rede de instituições com interesse
na questão da Governança Metropolitana Colaborativa que promova a inclusão social. As instituições
que integram esta rede desenvolvem atividades, encontros, seminários, cursos de capacitação e
formação, bem como projetos que tratam da temática da cooperação entre os municípios e os desafios
da governança regional colaborativa. Atualmente, esta rede é composta pelas seguintes instituições:
OPUR – PROEX/PUC Minas; Rede Nacional Observatório das Metrópoles; Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais da PUC Minas; Programa de Pós-graduação em Direito/NUJUP da
PUC Minas; Universidade federal do ABC, Universidade São Judas e o Centro de Assentamentos
Humanos/University of Britsh Columbia.
Este curso tem como objetivos: a) elevar o nível de consciência regional dos gestores públicos, a partir
de conceitos, princípios e metodologias vinculados ao novo papel das cidades-região e áreas
metropolitanas na realidade nacional; b) capacitar profissionais para a governança regional e
metropolitana colaborativa, buscando melhorar a eficiência e efetividade da organização e gestão das
regiões metropolitanas; c) vincular políticas públicas setoriais de interesse local à perspectiva regional;
e d) mapear os processos da colaboração inter-institucional.
Esta apostila se estrutura a partir de textos e apresentações de professores que vêm ministrando os
cursos oferecidos. Para o presente curso, oferecido em Belém, os textos são refenrcias para os
seguintes módulos: 1) Cooperação interinstitucional e governança colaborativa; 2)oficina sobre
Ocnsorcios Publicos; 3) A participação da sociedade civil em arrnjos interinstitucionais; 4) Discussão
sobre Planos Diretores e Planos Complementares; 5) e 6) Laboratório de Simlação: cooperação
interfederativa e Moradia Social.
Esperamos que o presente curso traga novos conhecimentos e venha de encontro às expectativas de
todos os participantes.
Organização do Curso
ÍNDICE
Currículo dos Professores do curso Governança Metropolitana Colaborativa ................................. 2
Descrição dos Módulos do Curso..................................................................................................... 4
CONTEÚDO.................................................................................................................................... 5
MÓDULO 1: Artigos Referenciais: ............................................................................................... 6
A Coordenação Federativa no Brasil: A Experiência do Período FHC e os Desafios do Governo
Lula................................................................................................................................................ 6
Federalismo, Relações Intergovernamentais e Gestão Metropolitana no Brasil......................... 29
MÓDULO 2: Artigos Referenciais: ............................................................................................. 42
Experiência de Aplicação da Lei de Consórcios Públicos no Município de Belo Horizonte: O
Consórcio Regional de Promoção da Cidadania – “Mulheres das Gerais”................................. 42
Custos de Transação na Governança Metropolitana na RMBH e no Grande ABC Paulista ...... 54
MÓDULO 3: Artigos Referenciais: ............................................................................................. 91
Democracia e Cidadania.............................................................................................................. 91
A Democracia e Suas Dificuldades Contemporâneas ................................................................. 98
MÓDULOS 4, 5 e 6: Artigos Referenciais: ............................................................................... 108
Habitação, Inclusão Social e Governança Urbana Colaborativa............................................... 108
A Questão Habitacional na Região Metropolitana de Belem ................................................... 118
Em Defesa da Locação Social................................................................................................... 146
Monitorando o Direito à Moradia no Brasil (1992-2004)......................................................... 148
1
Currículo dos Professores do curso Governança Metropolitana Colaborativa
Módulo 1: Carlos Aurélio Pimenta de Faria
Possui graduação em História, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1990), mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro - IUPERJ (1992) e doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ (1997). Foi pesquisador
visitante da Universidade de UMEAc, na Suécia, onde cumpriu parte de sua pesquisa de
doutoramento. Atualmente é Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, sendo Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
mesma Universidade.
Módulo 2: Marina Esteves Lopes
Mestre em Ciências Juridicas pela Universidae de Lisboa/Portugal. Especialista em Direito
Municipal pelo IEC/PUCMinas, professora no curso de Direito da PUC Minas na disciplina de
Contratos. Advogada sócia da Ribeiro de Oliveira Advogados Associados. Assessora Juridica da
Procuradoria Geral do municipio de Belo Horizonte junto à Secretaria Municipal de Planejamento,
Orçamento e Informação, responsavel pela equipe técnico-jurídica por Belo Horizonte na
implementação do Consorcio Público “Mulheres das Gerais.”
Módulo 3: Elena Maria Rezende
Educadora Social com experiência em Desenvolvimento Comunitário. Atuação em Núcleos
Habitacionais, com foco no diálogo com comunidades para ações conjuntas com o governo
municipal; Planejamento urbano e acompanhamento em políticas públicas em projetos de
urbanização; Desenvolvimento de Projeto Internacional de Recuperação Ambiental em
Reassentamento Humano (GEPAM: Gerenciamento Participativo em Áreas de Mananciais) com
enfoque em gênero e economia solidária; Participação no Conselho Municipal de Gestão
Ambiental (COMUGESAN), órgão formulador e deliberativo da Política Pública de Saneamento
Ambiental da cidade; Coordenação de oOficinas de formação para a cidadania: sobre o Estatuto da
Cidade e Plano Diretor; Desenvolvimento de programas de formação de lideranças comunitárias
locais, na constituição de Conselhos de Representantes locais como fóruns de participação cidadã
que facilitem a interlocução com concessionárias de serviços públicos. Recentemente atua como
coordenadora do projeto no Pará na implantação e desenvolvimento de projeto de cunho sócioeducativo, esportivo e cultural com foco no planejamento, avaliação e acompanhamento à gestão
em unidades descentralizadas.
Módulo 4: Simaia do Socorro Sales das Mercês
Doutora e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAU/USP), Brasil, em 1999 e 2005, respectivamente; Especialista em
Planejamento e Administração de Transporte Urbano pela Universidade Federal do Pará (UFPA),
Brasil, em 1988; graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPA, Brasil, em 1983.
Desempenhou funções de coordenação, técnicas e de consultoria em órgãos públicos, no período
1985-2006. Atualmente é professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da UFPA.
Tem experiência técnica e acadêmica nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano
e Regional e Planejamento de Transporte, com ênfase em gestão urbana e políticas públicas,
atuando principalmente nos seguintes temas: produção do espaço urbano, habitação, mercado
imobiliário; atores sociais; desigualdades sócio-espaciais; planejamento urbano e transporte
urbano.
2
Módulos 5 e 6: Fernando Bruno Filho
Graduado pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2001). Atualmente é professor da Universidade Sao Judas Tadeu. Foi
Secretario Adjunto de Desenvolvimento Urbano na Prefeitura de Santo Andre (2000-2006). Tem
experiência no planejamento e na gestão da política urbana, bem como na área de ensino, pesquisa
e produção acadêmica em direito, com ênfase em direito urbanístico, constitucional e
administrativo.
Módulos 5 e 6: Francisoc Comaru
Possui Doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (2004), Mestrado em
Engenharia pela Universidade de São Paulo (1998) e Graduação em Engenharia Civil pela Escola
de Engenharia Mauá (1992). É Professor Doutor da Universidade Federal do ABC, membro do
programa de pós graduação interdisciplinar em Energia da mesma universidade. É colaborador do
Cepedoc/FSPUSP - Centro de Estudos, Pesquisa e Doc. Cidades Saudáveis - FSPUSP e do
Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP. Tem experiência em
desenvolvimento urbano, habitacão, gestão de cidades e energia, planejamento urbano e
ambiental. Vem atuando principalmente nos seguintes temas: promoção da saúde, áreas centrais
metropolitanas e inclusão, políticas públicas territoriais.
3
Descrição dos Módulos do Curso
Horario e
Palestrante
16 de novembro
(manhã)
Carlos Aurélio
Pimenta
PUC Minas, Belo
Horizonte
16 novembro
(tarde)
Marina Esteves
Lopes, Prefeitura
de Belo Horizonte
17 novembro
(manhã)
Elena Rezende,
Prefeitura de
Santo André
Nome do
Módulo
O quadro institucional federativo brasileiro e
o processo de descentralização das últimas
décadas produziram poucos incentivos à
ação cooperativa no âmbito regional. No
Cooperação
entanto, percebe-se hoje no país uma
interinstitucional
multiplicação de experimentos de
para Governança cooperação intergovernamental e
Colaborativa
interinstitucional, a partir do reconhecimento
da impossibilidade de resolução de
determinados problemas compartilhados
com base apenas na ação isolada de atores
governamentais ou societários
O objetivo deste módulo é debater o papel
dos consórcios públicos, apresentando a
diversidade de experiências no país, sua
Oficina sobre
sustentação legal e financeira, sua estrutura
consórcios
organizacional e os desafios que elas
públicos
enfrentam na provisão de serviços. O caso
do Consórcio Mulheres das Gerais será
discutido.
Hoje em dia, as regiões metropolitanas
concentram grandes disparidades de
direitos e serviços entre as camadas sociais.
A Participação da Desde 1988 e com a reforma urbana, o
Sociedade Civil
quadro institucional teve alguns avanços e
em Arranjos
retrocessos para garantir o direito à cidade.
Interinstitucionais A essência do direito à cidade é a igualdade
democrática entre os cidadãos.
17 de agosto
(tarde)
Discussão sobre
Professora da
Planos Diretores
UFP e membro da e Planos
FASE, Belém do
Complementares
Pará
18 de novembro
(manhã e tarde)
Fernando Bruno,
U. São Judas
Tadeu, SP
Francisco
Comaru, UFABC,
Santo André.
Descrição
Laboratório de
Simulação –
Cooperação
Interfederativa e
Moradia Social
A região metropolitana atual é marcada
tanto pela implantação de grandes projetos
de desenvolvimento em territórios
estratégicos quanto pelos recentes planos
diretores municipais. Serão discutidas as
interfaces e superposições na definição da
política urbana e a relação entre os
sistemas de gestão democrática a nivel
estadual, regional e municipal. A leitura
dos Planos Diretores Municipais permite
constatar que há grandes dificuldades para
viabilizar propostas conjuntas e integradas
de desenvolvimento urbano e regional de
forma cooperada, democrática e
participativa.
A simulação será baseada em um estudo de
caso que representa uma realidade
metropolitana hipotética. O objetivo será
examinar os desafios específicos
relacionados aos processos, dificuldades e
oportunidades de harmonizar políticas
públicas entre diferentes entes federativos
em um contexto regional. O tema adotado
para essa simulação é a Moradia Social.
Carga Horária: 8 horas. Professores:
Fernando Bruno, Universidade São Judas
Tadeu, São Paulo, e Francisco Comaru,
Universidade Federal do ABC, Santo André.
4
Conceitos Chaves
Federalismo;
relações intergovernamentais;
centralização/descentralização;
cooperação interinstitucional;
governança regional;
cooperação intragovernamental;
desenvolvimento local e inclusão
social.
Associação de Municípios vs.
Consórcio Público
Consórcios Públicos e
Desenvolvimento Local
Espaços de participação da
sociedade civil nos consórcios
A formação de um consórcio público:
Fluxograma
Participação da sociedade civil nos
processos de governança;
Políticas públicas participativas;
Inclusão social;
Cidadania regional: direitos e
responsabilidades;
Conselhos de representação popular
O Planejamento do Desenvolvimento
Metropolitano e os Planos Diretores
Participativos Municipais
A Gestão Democrática das Cidades
e a integração entre as políticas de
desenvolvimento urbano
Os Instrumentos de acesso a terra
urbanizada previstos e o seu grau de
auto-aplicabilidade
Desafios para a implementação e a
efetividade dos Planos Diretores
Municipais e sua integração com o
desenvolvimento regional.
Cooperação intermunicipal;
Avaliação de desafios e
oportunidades em empreendimentos
cooperativos;
Benefícios e limites de moradia/
aluguel social;
Mecanismos cooperativos de
finaciamenteo regional para
moradia/aluguel social;
Negociação entre stakeholders
CONTEÚDO
MÓDULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DA GOVERNANÇA METROPOLITANA
Carlos Aurélio Pimenta de Faria, PUC-Minas
Artigos Referenciais:
• Fernando Luiz Abrucio. A Coordenação Federativa no Brasil: A experiência do Período FHC e os
Desafios do Governo Lula. Revista Social Política, Curitiba 24 p. 41-67, jun. 2005.
• Carlos Alberto de Vasconcelos Rocha e Carlos Aurélio Pimenta de Faria:Federalismo, Relações
intergovernamentais e Gestão Metropolitana no Brasil; paper apresentado durante a Mesa Redonda
NPC, BH, setembro 2009.
MÓDULO 2 – OFICINA SOBRE CONSÓRCIOS PÚBLICOS
Marina Estevez Lopes. Prefeitura de BH
Artigos Referenciais:
• Marina E. Lopes: Experiência da Aplicação da Lei de Consorcios Públicos no Municipio de Belo
Horizonte: O Consórcio Regional de Promoção da Cidadania “Mulheres das Gerais”; paper
apresentado durante a Mesa Redonda NPC, BH, setembro 2009.
• Gustavo Machado: Custos de Transação na Governança Metropolitana e no Grande ABC Paulista.
Texto baseado em dissertação de mestrado entitulada “O Ente Metropolitano, Custos de transação na
gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte e no Consórcio do Grande ABC – os modelos
compulsório e voluntário comparados.”, apresentada na PUC Minas, em março de 2007.
MÓDULO 3 – A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM ARRANJOS
INTERINSTITUCIONAIS
Elena Rezende
Artigos Referenciais
• Orlando Santos. Democracia e Cidadania: Texto retirado de: Santos Junior, Orlando Alves dos...[et al.].
(organizadores). Políticas Públicas e Gerstão Local: programa interdisciplinar de capacitação de
conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003.
• Celso Antônio Bandeira de Mello. A Democracia E Suas Dificuldades Contemporâneas – Salvador,
Bahia 2001
MÓDULO 4 – DISCUSSÃO DE PLANOS DIRETORES E PLANOS COMPLEMENTARES)
Simaia do Socorro Sales das Mercês
(mesmos artigos referenciais para os Módulos 4, 5 e 6)
MÓDULO 5 E 6 - LABORATORIO DE SIMULAÇÃO: COOPERAÇÃO INTERFEDERATIVA E
MORADIA SOCIAL
Fernando Bruno Filho e Francisco Comaru
Artigos Referenciais
• Rosana Denaldi, Jeroen J. Klink, Claudia de Souza: Habitação, Inlcusão Social e Governança Urban
Colaborativa; paper apresentado durante a Mesa Redonda NPC, BH, setembro 2009.
• Andréa Pinheiro, José Júlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de Sá, Maria Vitória Paracampo: A
questão habitacional na região metropolitana de Belém Coleção Habitare - Habitação Social nas
Metrópoles Brasileiras - Uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto
Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX
• Maria da Piedade Morais, Bruno de Oliveira Cruz: Em defesa da locação social; IPEA 42
Desenvolvimento junho de 2009
• Maria da Piedade Morais, George A. Guia, Rubem de Paula: Monitorando o direito à moradia no
Brasil – 1992-2004, IPEA políticas sociais − acompanhamento e análise, 12 , fev. 2006
5
MÓDULO 1: Artigos Referenciais:
A Coordenação Federativa no Brasil: A Experiência do Período FHC e os Desafios do
Governo Lula1
Fernando Luiz Abrucio
O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos
alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação
intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas
de nossa realidade. O presente artigo concentra-se basicamente no estudo dos problemas e ações
de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período
governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir desta análise, procura-se, ao
final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o
governo Lula.
PALAVRAS-CHAVE: federação; centralização; descentralização; governo FHC; governo Lula.
I. INTRODUÇÃO
A estrutura federativa é um dos balizadores mais importantes do processo político no Brasil. Ela
tem afetado a dinâmica partidário-eleitoral, o desenho das políticas sociais e o processo de reforma
do Estado. Além de sua destacada influência, a federação vem passando por intensas modificações
desde a redemocratização do país. É possível dizer, tendo como base a experiência comparada
recente, que o federalismo brasileiro é atualmente um dos casos mais ricos e complexos entre os
sistemas federais existentes.
Diante de tudo isso, cresce o número de pesquisas sobre o assunto, de estudiosos brasileiros e
estrangeiros. Embora esses trabalhos comportem abordagens de campos científicos diferentes,
diversidades de temas e divergências de interpretação, há um elemento comum à maioria deles.
Grosso modo, os estudos sobre o federalismo brasileiro privilegiam a análise do embate, hoje e ao
longo da história, entre o governo federal e os entes subnacionais, por meio de suas elites políticas
e estruturas de poder. As oposições descentralização versus centralização (ou recentralização) e o
poder dos governadores frente à força das instâncias nacionais – os partidos e/ou o Presidente da
República – dominam boa parte do debate. Esse foco analítico é uma peça-chave na investigação
das relações intergovernamentais, mas ele não esgota o seu entendimento e, pior, não leva sozinho
à compreensão do funcionamento dos sistemas federais.
É preciso acrescentar outro vetor analítico, pouco explorado no Brasil, bem como no estudo de
outros países. Trata-se da análise do problema da coordenação intergovernamental, isto é, das
formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presentes nas federações. Essa questão
torna-se bastante importante com a complexificação das relações intergovernamentais ocorrida em
todo o mundo nos últimos anos. Isso se deveu à convivência de tendências conflituosas e de
intrincada solução, entre as quais se destacam três:
1
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 41-67 JUN. 2005 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 41-67, jun.
2005. Este artigo baseia-se em duas pesquisas. A primeira foi feita em 2002, para o Ministério do Planejamento e o Programa da
Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que resultou na publicação O Estado em uma era de reformas: os anos
FHC. A segunda chama-se Reforma do Estado, federalismo e elites políticas: o governo Lula em perspectiva comparada e está em
andamento, tendo como financiador o Núcleo de Publicação e Pesquisas (NPP) da Fundação Getúlio Vargas.
6
a) há hoje expansão ou, no mínimo, manutenção do Welfare State convivendo com maior escassez
relativa de recursos. Tal situação exige melhor desempenho governamental, com fortes pressões
por economia (cortar gastos e cus-tos), eficiência (fazer mais com menos) e efetividade (ter
impacto sobre as causas dos problemas sociais) – três tópicos que dependem, em países
federativos, de maior coordenação entre as esferas político-administrativas na gestão das políticas
públicas;
b) houve um aumento das demandas por maior autonomia de governos locais e/ou grupos étnicos,
levando à luta contra a uniformização e a excessiva centralização, o que acontece ao mesmo
tempo em que governos e coalizões nacionais tentam evitar problemas causados pela
fragmentação, como a elevação da desigualdade social, o descontrole das contas públicas de entes
subnacionais – como ocorreu na Argentina e no Brasil –, a guerra fiscal entre os níveis de governo
e, no piores casos, o surgimento de focos de secessão, como na Rússia e
c) se, por um lado, é cada vez maior a interconexão dos governos locais com outras estruturas de
poder que não os governos centrais, tais como os relacionamentos com forças transnacionais –
como empresas e organismos internacionais – e as parcerias com a sociedade civil, por outro lado,
há simultaneamente uma necessidade de reforço das instâncias nacionais para organizar melhor a
inserção internacional do país e reduzir os aspectos negativos da globalização, inclusive para as
comunidades locais e seus hábitos socioculturais.
Conflitos e dilemas como esses revelam, em suma, que a temática da coordenação federativa tem
como intuito ir além da dicotomia centralização versus descentralização. Em recente estudo feito
pela Organization for the Economic Cooperation and development (OECD), com base em diversas
federações, concluiu-se que “Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização.
Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções – descentralizando algumas
funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de
políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países” (OECD, 1997, p. 13).
O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos
alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação
intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas
de nossa realidade. O presente artigo concentrase basicamente no estudo dos problemas e ações de
coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período
governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). A partir desta análise,
procurase, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental
colocados para o governo Lula.
II. O SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO FEDERATIVA
A temática da descentralização ganhou força nos últimos 30 anos em todo o mundo. Sua
implementação diferencia-se, no entanto, de país a país, de acordo com especificidades históricas,
coalizões sociais e arranjos institucionais. Dentre estes últimos, a adoção de uma forma federativa
de Estado é a que tem maior impacto. O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a
organização político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial da soberania e
não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR, 1987, p. 37). O entendimento da
especificidade do federalismo passa pela análise de sua natureza, de seu significado e de sua
dinâmica. Primeiramente, toda federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993).
Duas condições conformam esse cenário. Uma é a existência de heterogeneidades que dividem
7
uma determinada nação, de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física),
étnico, lingüístico, sócio-econômico (desigualdades regionais), cultural e político diferenças no
processo de constituição das elites dentro de um país e/ou uma forte rivalidade entre elas).
Qualquer país federativo foi assim instituído para dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se
um país desse tipo não constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional
manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de fragmentação.
Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma prática defensores da unidade
na diversidade, resguardando a autonomia local, mas procurando formas de manter a integridade
territorial em um país marcado por heterogeneidades. A coexistência dessas duas condições é
essencial para montar-se um pacto federativo. Mas que é uma federação? Segundo Daniel Elazar,
“O termo ‘federal’ é derivado do latim foedus, que [...] significa pacto. Em essência, um arranjo
federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um
tipo especial de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimento mútuo da
integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidade especial entre eles” (ELAZAR,
1987, p. 5). O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos governos e a
interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel Elazar:
selfrule plus shared rule. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis
intermediários e locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processo de
descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal, administrativo e
financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da federação reside exatamente
na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – sejam estados,
províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente
retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal
contrato fiador do pacto político-territorial.
Ressalte-se que na federação o poder nacional deriva de um acordo entre as partes, em vez de
constituí-las. Assim, a descentralização em estados unitários pode até repassar um efetivo poder
político, mas esse processo sempre provém do centro e não constitui direitos de soberania aos
entes subnacionais.
Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para defender seus interesses e
direitos originários, quais sejam, a existência de cortes constitucionais, que garantem a integridade
contratual do pacto originário; uma segunda casa legislativa representante dos interesses regionais
(Senado ou correlato); a representação desproporcional dos estados/províncias menos populosos (e
muitas vezes mais pobres) na câmara baixa e o grande poder de limitar mudanças na Constituição,
criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas e, em muitos
casos, é necessária a aprovação dos legislativos estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios
básicos da federação não podem ser emendados em hipótese alguma.
Como bem constatou Alfred Stepan, toda federação restringe o poder da maioria (“demos
constraining”), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa igualmente
responder à questão da interdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendências
centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos do plano local ao nacional são
formas que devem ser atacadas em qualquer experiência federativa, sob o risco de enfraquecerse a
unidade político-territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a “tragédia dos comuns” típica do
federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fato é que a soberania compartilhada só
pode ser mantida ao longo do tempo caso estabeleça-se uma relação de equilíbrio entre a
autonomia dos pactuantes e sua interdependência.
8
A interdependência federativa não pode ser alcançada pela mera ação impositiva e piramidal de
um governo central, tal qual em um Estado unitário, pois uma federação supõe uma estrutura mais
matricial, sustentada por uma soberania compartilhada.
É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja
em termos legais, seja em virtude do auxílio e do financiamento às outras unidades
governamentais. O governo federal tem prerrogativas específicas para manter o equilíbrio
federativo e os governos intermediários igualmente detêm forte grau de autoridade sobre as
instâncias locais ou comunais. Mas a singularidade do modelo federal está na maior
horizontalidade entre os entes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua
capacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos de barganha afetam
decisivamente as relações verticais em um sistema federal.
O compartilhamento de poder e decisão em uma federação, desde a sua invenção nos Estados
Unidos, pressupõe a existência de controles mútuos entre os níveis de governo – trata-se dos
checks and balances4. O objetivo desse mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes
federativos para que nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe com a
autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependência em uma federação democrática
tem de ser feita conjuntamente com o controle mútuo.
Mas, além da garantia da autoridade nacional sem retirar a autonomia local e da necessidade de
checks and balances entre os níveis de governo, um novo aspecto torna mais complexo o
funcionamento das federações. É que o desenvolvimento recente dos estados modernos levou ao
crescimento do papel dos governos centrais, especialmente no que se refere à expansão das
políticas sociais. No caso dos sistemas federais, em que vigora uma soberania compartilhada,
constituiu-se um processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de
compartilhamento de decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o problema
da coordenação das ações de níveis de governo autônomos, aspecto-chave para entender a
produção de políticas públicas em uma estrutura federativa contemporânea.
Em seu trabalho sobre os estados de Bem-estar Social em países unitários e federativos, Paul
Pierson (1995) revela que no federalismo as ações governamentais são divididas entre unidades
políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, devido à nacionalização
dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa de governos locais e/ou
regiões. O dilema do shared decision making surge porque é preciso compartilhar políticas entre
entes federativos que, por natureza, só entram nesse esquema conjunto se assim o desejarem.
Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativos é bem mais complexa,
envolvendo jogos de cooperação e competição, acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis
de governo.
O desafio posto por essa questão foi bem resumido por Pierson: “No federalismo, dada a divisão
de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de
modo freqüente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995, p. 451). Para garantir a
coordenação entre os níveis de governo, as federações devem, primeiramente, equilibrar as formas
de cooperação e competição existentes, levando em conta que o federalismo é intrinsecamente
conflitivo. Seguindo essa linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das
relações intergovernamentais no federalismo: “Mais do que um simples cabo de guerra, as
relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e
9
acomodação” (idem, p. 458). Daí toda federação ter de combinar formas benignas de cooperação
e competição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de
instaurar mecanismos de parceria que sejam aprovados pelos entes federativos. O modus operandi
cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nas questões
ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de uma jurisdição (caso dos
transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais pobres a
realizarem determinadas tarefas e para integrar melhor o conjunto de políticas públicas
compartilhadas, evitando o jogo de empurra entre os entes. Ainda é peçachave no ataque a
comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também
na distribuição de informação sobre as fórmulas administrativas bem-sucedidas, incentivando o
associativismo intergovernamental.
Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui para elevar a esperança
quanto à simetria entre os entes territoriais, fator fundamental para o equilíbrio de uma federação.
No entanto, fórmulas cooperativas mal-dosadas trazem problemas. Isso ocorre quando a
cooperação confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordinação do que em
parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade latino-americana, de forte tradição
centralizadora.
É também perigosa a montagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap
(armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, mas que se repete igualmente
em outras experiências. Nessa estrutura, todas as decisões são o máximo possível compartilhadas e
dependem da anuência de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos de
racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas, processo que pode diminuir o
ímpeto inovador dos níveis de governo, enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e
dificultar a responsabilização da administração pública.
As federações requerem determinadas formas de competição entre os níveis de governo. Primeiro,
devido à importância dos controles mútuos como instrumento contra a dominância (ou tirania, nos
termos de Madison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a competição federativa
pode favorecer a busca pela inovação e pelo melhor desempenho das gestões locais, já que os
eleitores podem comparar o desempenho dos vários governantes, uma das vantagens de ter-se uma
multiplicidade de governos.
A concorrência e a independência dos níveis de governo, por fim, tendem a evitar os excessos
contidos na “armadilha da decisão conjunta”, bem como o paternalismo e o parasitismo causados
por certa dependência em relação às esferas superiores de poder.
Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O primeiro refere-se ao excesso
de concorrência, que afeta a solidariedade entre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo.
Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou sócio-econômicos, mais
complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federalismo. Países como a
Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evitar uma disputa desregrada entre os entes. A
competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais particularmente no
terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism,
1995) sobre a experiência recente dos governos estaduais norte-americanos. O autor percebeu o
fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de que os cidadãos “votam com os pés”, ou
seja, podem escolher o lugar que otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas
públicas. Diante disso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápio amplo de
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proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é, mais pessoas, sobretudo as mais
pobres, morariam nesses lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a
competitividade econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam constituir
uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com isso
a afluência dos mais pobres àquela região e, novamente em tese, elevando a competitividade
econômica e a oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via – é o que Peterson
denomina race to the bottom.
Entre o efeito de Welfare magnets e o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão
escolhendo a segunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompanhado da
redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, o modelo competitivo levado ao
extremo piora a questão redistributiva. O federalismo puramente competitivo vem estimulando,
ainda, a guerra fiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e mais
isenções às empresas, em que cada governo subnacional procura oferecer mais do que o outro,
geralmente sem se preocupar com a forma de custear esse processo. Ao fim e ao cabo, a resolução
financeira dessa questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas
gerações, seja repassando tais custos para o nível federal e, por tabela, para a nação como um todo.
O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação entre competição e cooperação,
procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma
vez à argumentação precisa de Daniel Elazar: “[...] todo sistema federal, para ser bem sucedido,
deve desenvolver um equilíbrio adequado entre cooperação e competição e entre o governo central
e seus componentes” (ELAZAR, 1993, p. 193; Sem grifos no original). A coordenação federativa
pode realizar-se, em primeiro lugar, por meio de regras legais que obriguem os atores a
compartilhar decisões e tarefas – definição de competências no terreno das políticas públicas, por
exemplo.
Além disso, podem existir fóruns federativos, com a participação dos próprios entes – como os
senados em geral – ou que eles possam acionar na defesa de seus direitos – como as cortes
constitucionais. A construção de uma cultura política baseada no respeito mútuo e na negociação
no plano intergovernamental é outro elemento importante. A forma de funcionamento das
instituições representativas, tais como os partidos e o Parlamento, pode favorecer certos resultados
intergovernamentais (ARRETCHE, 2004).
O governo federal também pode ter um papel coordenador e/ou indutor. Por um lado, porque em
vários países os governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que
dificultam a assunção de encargos. Por outro, porque a União tem por vezes a capacidade de
arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre
os níveis de governo no terreno das políticas públicas. A atuação coordenadora do governo federal
ou de outras instâncias federativas não pode ferir os princípios básicos do federalismo, como a
autonomia e os direitos originários dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo
associados ao relacionamento intergovernamental e os controles mútuos. É preciso, portanto, que
haja processos decisórios com participação das esferas de poder e estabelecer redes federativas
(ABRUCIO & SOARES, 2001) e não hierarquias centralizadoras.
Definido o conceito de federalismo e a importância da coordenação intergovernamental dentro
dele, o propósito central deste texto é analisar o caso brasileiro, centrando o foco no período
governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Mais especificamente, o
objetivo primordial é mostrar como o governo federal, na Era FHC, lidou com a questão da
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coordenação entre os níveis de governo. As ações de outras instâncias que podem lidar com esse
tema não serão negligenciadas, mas deverão ser entendidas a partir da estratégia adotada pelo
poder Executivo federal.
III. A REDEMOCRATIZAÇÃO E O NOVO FEDERALISMO BRASILEIRO
A história federativa brasileira foi marcada por sérios desequilíbrios entre os níveis de governo.
No período inicial, na República Velha, predominou um modelo centrífugo, com estados tendo
ampla autonomia, pouca cooperação entre si e um governo federal bastante fraco. Nos anos
Vargas, o Estado nacional fortaleceu-se, mas os governos estaduais, particularmente no Estado
Novo, perderam a autonomia. O interregno 1946-1964 foi o primeiro momento de maior
equilíbrio em nossa federação, tanto do ponto de vista da relação entre as esferas de poder como
da prática democrática. Mas o golpe militar acabou com esse padrão e por cerca de 20 anos
manteve um modelo unionista autoritário (ABRUCIO, 1998), com grande centralização política,
administrativa e financeira.
A redemocratização do país marcou um novo momento no federalismo. As elites regionais,
particularmente os governadores, foram fundamentais para o desfecho da transição democrática,
desde as eleições estaduais de 1982, passando pela vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral
– ele próprio, não coincidentemente, um governador de estado – até chegar à Nova República e à
Constituinte. Além disso, lideranças de discurso municipalista associavam o tema da
descentralização à democracia e também participaram ativamente na formulação de diversos
pontos da Constituição de 1988.
Um novo federalismo nascia no Brasil. Ele foi resultado da união entre forças descentralizadoras
democráticas com grupos regionais tradicionais que se aproveitaram do enfraquecimento do
governo federal em um contexto de esgotamento do modelo varguista e do Estado
nacionaldesenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto básico era fortalecer os governos
subnacionais e, para uma parte desses atores, democratizar o plano local. Preocupações com a
fragilidade dos instrumentos nacionais de atuação e com coordenação federativa ficaram em
segundo plano. Dois fenômenos destacam-se nesse novo federalismo brasileiro, desenhado na
década de 1980 e com reflexos ao longo dos anos 1990. Primeiro, o estabelecimento de um amplo
processo de descentralização, tanto em termos financeiros como políticos. Em segundo lugar, a
criação de um modelo predatório e não-cooperativo de relações intergovernamentais, com
predomínio do componente estadualista.
Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório, visto que ele teve um impacto
enorme nos primórdios do novo federalismo brasileiro. De 1982 a 1994, vigorou um federalismo
estadualista, não-cooperativo e muitas vezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa reviravolta na
federação brasileira só pôde efetivar-se, em primeiro lugar, porque a União e a própria Presidência
da República entraram em uma séria crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise
abarcava o modelo de financiamento estatal do desenvolvimento, o equilíbrio das contas públicas
nacionais e a burocracia federal – enfim, os instrumentos de poder do Executivo federal.
Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro características do sistema político
também contribuíram para aumentar o poderio dos estados e de seus governadores. A primeira
delas foi a vigência de um sistema ultrapresidencial nos estados – que em grande medida ainda
vigora –, que fortaleceu sobremaneira os governadores no processo decisório e praticamente
eliminou o controle institucional e social sobre o seu poder (idem, cap. 3). A segunda diz respeito
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aos padrões hegemônicos da carreira política brasileira, cuja reprodução dá-se pela lealdade às
bases locais e pela obtenção de cargos executivos no plano subnacional ou então aqueles no nível
nacional que possam trazer recursos aos “distritos” dos políticos.
Em ambos os casos, o Executivo estadual é peça fundamental, seja no monitoramento das bases
para os deputados, seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administração pública
federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997). Os caciques regionais tiveram uma posição destacada
de liderança no Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes a despeito dos
partidos, por outras tornando-se grandes proprietários de parcelas dos condomínios partidários.
Por fim, os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrativos que os fortaleciam
no sistema de poder, como bancos estaduais e empresas estatais estratégicas.
O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração de um federalismo estadualista
e predatório. Estadualista porque o pêndulo federativo esteve a favor das unidades estaduais em
termos políticos e financeiros, pelo menos até 1994, quando se implementou o Plano Real. Esse
aspecto estava igualmente presente no comportamento atomizado e individualista dos
governadores, cujo fortalecimento não resultou em uma coalizão nacional em torno de um projeto
de hegemonia nacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter o status quo.
O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão de competição não- cooperativa
que predominava nas relações dos estados com a União e deles entre si. Desde o final do regime
militar, as relações intergovernamentais verticais tinham sido marcadas pela capacidade de os
estados repassarem seus custos e dívidas ao governo federal e, ainda por cima, não se
responsabilizarem por este processo, mesmo quando assinavam contratos federativos. Caso
clássico disso foram os bancos estaduais. A partir de 1982, as instituições financeiras estaduais
foram utilizadas pelos governadores como instrumento de atuação política. Foram criadas
verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos deletérios para a inflação e para o
endividamento global.
No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório teve sua principal manifestação na
guerra fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de 1988 e ainda continua vigorosa
nas práticas federativas. O fato é que o estadualismo predatório acabou sendo ele próprio um dos
elementos geradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante.
Esse contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização: o intento de reforçar os
governos subnacionais, obtendo-se uma autonomia inédita. A federação tornou-se uma cláusula
pétrea e sua extinção ou medidas que alterem profundamente seus princípios não podem ser
objetos de emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4 da Constituição Federal de 1988). Os
estados ganharam maior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação no
plano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs),
extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA, 1999, p. 55).
Pela primeira vez na história, os municípios transformaram-se em entes federativos,
constitucionalmente com o mesmo status jurídico que os estados e a União. Não obstante essa
autonomia, os governos locais respeitam uma linha hierárquica quanto à sua capacidade jurídica –
a Lei Orgânica, por exemplo, não pode contrariar frontalmente a Constituição estadual –, e são, no
mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores de governo no que tange às questões
políticas, financeiras e administrativas.
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A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medida das conquistas tributárias,
iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983, e consolidadas na constituição de 1988, o que faz
do Brasil o país em desenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal (SOUZA, 1998, p.
8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a maior elevação relativa na participação do bolo
tributário, apesar de grande parte deles depender muito dos recursos econômicos e administrativos
das demais esferas de governo. O fato é que os constituintes reverteram a lógica centralizadora do
modelo unionista-autoritário e mesmo as recentes alterações que beneficiaram a União não
modificaram a essência descentralizadora das finanças públicas brasileiras.
A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de democratizar o plano local.
Embora esse processo seja desigual na sua distribuição pelo país e tenha um longo caminho pela
frente, ele redundou em uma pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformando um
fenômeno sem paralelo em nossa história federativa. Daí surgiram novos atores, como os
conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que não tinham acesso real à competição pelo
poder – o crescimento gradativo da esquerda nas eleições municipais, em particular o Partido dos
Trabalhadores (PT), demonstra isso.
Também surgiram formas inovadoras de gestão, como o orçamento participativo e a bolsa-Escola,
para ficar com dois casos famosos. As conquistas da descentralização não apagam os problemas
dos governos locais brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocam obstáculos ao
bom desempenho dos municípios do país: a desigualdade de condições econômicas e
administrativas; o discurso do “municipalismo autárquico”; a “metropolização” acelerada; os
resquícios ainda existentes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam a
accountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais.
Desde a fundação da federação, o Brasil é historicamente marcado por fortes desigualdades
regionais, inclusive em comparação com outros países. A disparidade de condições econômicas é
reforçada, ademais, pela existência de um contingente enorme de municípios pequenos, com baixa
capacidade de sobreviver apenas com recursos próprios. A média por região é de 75% dos
municípios com até 50 mil habitantes, ao passo que no universo total há 91% dos poderes locais
com esse contingente populacional (ARRETCHE, 2000, p. 247).
A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maior sob o ponto de v vista
comparado. Segundo estudo realizado por José Roberto Afonso e Érica Araújo (2000, p. 48), os
governos locais brasileiros estavam em 15º lugar em termos de base de arrecadação própria em um
universo de 19 países. Mas, além da fragilidade financeira, a maior parcela das municipalidades
detém uma máquina administrativa precária.
Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento da descentralização no Brasil
foi prejudicado pelo municipalismo autárquico, visão que prega a idéia de que os governos locais
poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletiva colocados às suas populações. Essa
definição foi elaborada por Celso Daniel, ex-Prefeito de Santo André (em 2001), um dos grandes
defensores da bandeira municipalista, além de um inovador administrativo e um democratizador
das relações entre Estado e sociedade, mas que também sabia dos limites do poder local no país.
O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a “prefeiturização”, tornando os
prefeitos atores por excelência do jogo local e intergovernamental. Cada qual defende seu
município como uma unidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relação aos
problemas comuns em termos “micro” e macrorregionais. Ademais, há poucos incentivos para que
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os municípios consorciem-se, dado que não existe nenhuma figura jurídica de direito público que
dê segurança política para os governos locais que buscam criar mecanismos de cooperação.
Mesmo assim, em algumas áreas, os consórcios desenvolveram-se mais, como em meio ambiente
e na saúde, porém ainda em uma proporção insuficiente para a dinâmica dos problemas
intermunicipais. Ao invés de uma visão cooperativa, predomina um jogo em que os municípios
concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis de governo, lutam predatoriamente por
investimentos privados e, ainda, muitas vezes repassam custos a outros entes, como é o caso de
muitas prefeituras que compram ambulâncias para que seus moradores utilizem os hospitais de
outros municípios, sem que seja feita uma cotização para pagar as despesas. Nesse aspecto, a
questão da coordenação federativa é chave.
Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi a intensa metropolização do país.
Não só houve um crescimento das áreas metropolitanas, em número de pessoas e de organizações
administrativas, como também os problemas sociais cresceram gigantescamente nesses lugares.
No entanto, a estrutura financeira e político-jurídica instituída pela Constituição de 1988 não
favorece o equacionamento dessa questão. No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos
constituintes foi por um sistema de repartição de rendas intergovernamentais com viés fortemente
antimetropolitano, favorecendo inclusive a multiplicação de pequenas cidades (REZENDE, 2001).
No que tange ao segundo ponto, o fato é que as regiões metropolitanas (RMs) enfraqueceram-se
institucionalmente em comparação com a dimensão que tinham no regime militar.
Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formas compartilhadas de gestão territorial. É
dessa concepção que se originou a explosão dos problemas dos grandes centros urbanos
brasileiros. A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de resquícios culturais e
políticos anti-republicanos no plano local. A despeito dos avanços que houve, que foram muitos se
os enxergarmos de uma perspectiva histórica, diversas municipalidades do país ainda são
governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é fundamental para a
combinação entre descentralização e democracia.
É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poder local é continuar na trilha da
descentralização. Porém, se não houver reformas das instituições políticas subnacionais, além de
uma mudança da postura da sociedade em relação aos governantes, o processo descentralizador
não leva necessariamente à democracia. No plano intergovernamental, não se constituiu uma
coordenação capaz de estimular a descentralização ao longo da redemocratização. Na relação dos
municípios com os estados, predominava a lógica de cooptação das elites locais, típica do
ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a
constituição de 1988, em um quadro de indefinição de suas competências e da maneira como se
relacionariam com os outros níveis de governo. Esse vazio institucional favoreceu uma posição
“flexível” dos governos estaduais: quando as políticas tinham financiamento da União, eles
procuravam participar; caso contrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as atribuições para os
governos locais.
O avanço da descentralização encontrou a União em uma postura defensiva. Ao perder recursos
tributários na Constituição e responsabilizar-se integralmente, em um primeiro momento, pela
estabilidade econômica, o governo federal procurou transformar a descentralização em um jogo de
mero repasse de funções, intitulado à época de “operação desmonte”.
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Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opinião pública, grande parcela dos
encargos foi, sim, assumida pelos municípios. Mas isso aconteceu de modo desorganizado na
maioria das políticas – a grande exceção foi a área de saúde. Ademais, a inflação crônica tornava
mais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção programada das atribuições por
parte dos governos locais. Criou-se, em suma, uma situação de incerteza, de decisões e
transferências de verbas em ritmos inconstantes e de ausência de mecanismos que garantissem a
cooperação e a confiança mútua.
Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conformado na redemocratização: a
descentralização depende agora, diversamente do que ocorria no regime centralizador e
autoritário, da adesão dos níveis de governo estadual e municipal.
Por isso, o jogo federativo depende hoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das
esferas superiores de poder, como é natural em uma federação democrática. Em suma, seu sucesso
associa-se a processos de coordenação intergovernamental.
O principal problema da descentralização ao longo da redemocratização foi a conformação de um
federalismo compartimentalizado, em que cada nível de governo procurava encontrar o seu papel
específico e não havia incentivos para o compartilhamento de tarefas e a atuação consorciada.
Disso decorre também um jogo de empurra entre as esferas de governo. O federalismo
compartimentalizado é mais perverso no terreno das políticas públicas, já que em uma federação,
como bem mostrou Paul Pierson, o entrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na
produção e gerenciamento de programas públicos, especialmente na área social. A experiência
internacional caminha nesse sentido.
Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coordenação da descentralização
foram atacados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com sucessos diferenciados, maiores na
primeira questão, mais irregulares na segunda. Antes de analisar as políticas em si, é preciso
compreender as condições que permitiram as mudanças, bem como as que ainda criam obstáculos
para a melhoria da coordenação federativa.
IV. COORDENAÇÃO FEDERATIVA NA ERA FHC: AVANÇOS, DILEMAS E
PROBLEMAS
Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemos destacar sete mecanismos
gerais adotados pelo governo federal para modificar e coordenar as relações intergovernamentais
e o processo de descentralização. O primeiro deles refere-se ao fato de que o Brasil tinha iniciado
o processo descentralizador antes de estabilizar a economia, o que tornou mais difícil a
constituição de jogos mais coordenados e efetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a
inconstância da transferência das verbas constitui um obstáculo em uma federação desigual como
a brasileira. Ao reduzir a inflação, houve um impacto positivo para a regularização dos repasses de
recursos aos governos subnacionais. Isso permitiu a abertura de uma nova rodada de negociação
para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas públicas.
Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e os objetivos de reformulação
do Estado. Nesse sentido, o governo federal procurou, em primeiro lugar, reduzir todos os focos
de criação de déficit público nos governos subnacionais, especialmente os de cunho predatório –
isto é, que repassavam custos para a União. Para alcançar essas metas fiscais, houve uma atuação
conjunta em prol da modernização da estrutura fazendária em vários estados – com recursos de
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instituições internacionais – e, no segundo mandato, a aprovação de uma regra federativa de
restrição orçamentária – a Lei de Responsabilidade Fiscal –, além da adoção de medidas de auxílio
na área previdenciária.
O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação estatal, ademais, incluiu a
proposição de programas de demissão voluntária aos estados, com financiamento federal. Em um
sentido mais institucional, o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) procurou
ativar o Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, realizando reuniões mais constantes e
cujo tema de debate era a modernização dasmáquinas públicas – isso durou apenas os primeiros
quatro anos do período FHC. Por fim, destaca- se aqui o processo de privatização das empresas
estaduais, no qual o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) teve um
papel decisivo.
O repasse de recursos condicionado à participação e à fiscalização da sociedade local foi um
terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. De certo modo, houve uma continuidade da
estratégia já prevista pela Constituição de 1988, particularmente na criação e ampliação do escopo
dos conselhos de políticas públicas. Aprofundou-se essa concepção com a determinação de que
certas transferências só seriam recebidas se existissem os Conselhos da área em questão. Além
disso, o programa Comunidade Solidária optou pela produção de programas intrinsecamente
vinculados à montagem de parcerias entre o Estado e a sociedade. O caráter democrático da
descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a tônica dessa política.
A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas de saúde e educação, com o
PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef, respectivamente. Os mecanismos coordenadores aqui
utilizados passaram pela combinação de repasse de recursos com o cumprimento de metas
preestabelecidas ou a adoção de programas formulados para todo o território nacional. Trata-se de
um modelo indutivo que transfere verbas segundo metas ou políticas-padrão estipuladas
nacionalmente, procurando assim dar um perfil mais programado e uniforme à descentralização,
sem retirar a autonomia dos governos subnacionais em termos de gestão pública. No caso do
Fundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de recursos, experiência inédita na federação
brasileira.
A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foram adotadas políticas de
distribuição de renda direta à população. O primeiro deles foi o PETI (Programa de erradicação
do Trabalho Infantil), depois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o Programa BolsaEscola, a que se juntaram os programas Bolsa-Alimentação e o Vale-Gás. Buscou-se, com tais
medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticas nacionais, as quais podem ser
realizadas em parceria com outros instrumentos de gestão local, mas com a garantia de uma verba
federal padronizada. O pressuposto dessas ações era que em problemas de origem redistributiva,
particularmente em uma federação, é necessária a atuação do governo federal para evitar o
agravamento das desigualdades.
A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temática federativa foi outro
mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com tais ações, ficou claro que o objetivo era fazer
uma reforma institucional no federalismo brasileiro, mais do que implementar políticas de
governo, embora o padrão de implementação dessas medidas não seja completamente coerente,
além de responder a pressões políticas diferenciadas dentro do poder Executivo federal. Das 34
emendas constitucionais aprovadas de 1995 até junho de 2002, quinze delas afetavam diretamente
o pacto federativo. Isso ocorreu nos seguintes terrenos:
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a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e sua
renovação posterior pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), como também pelas
mudanças nas contribuições sociais, especialmente aquelas vinculadas à criação e à prorrogação
da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Foi por meio das
Contribuições Sociais que a União aumentou suas receitas, sem precisar reparti-las com os outros
níveis de governo. Também foram feitas modificações constitucionais que atingiram o Imposto
Predial e Territorial Urbano (IPTU), garantindo sua progressividade, e no Imposto sobre Serviços
(ISS), procurando efetuar aqui uma harmonização tributária entre os municípios;
b) na organização político-administrativa, com a aprovação da “Emenda Jobim” (Emenda
Constitucional n. 15), que tornou mais difícil a criação de municípios, com a aprovação de novos
limites de gastos dos legislativos locais (Emenda Constitucional n. 25) e mesmo com a instituição
da reeleição (Emenda Constitucional n. 16). Pouco se comentou acerca do impacto federativo da
reeleição, mas o fato é que ela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um
grande impacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, que antes passavam
pela utilização dos legislativos, sobretudo a Assembléia Legislativa, como trampolim para postos
executivos;
c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatização nas áreas do gás canalizado
e das telecomunicações, e a reformulação de vários artigos referentes à administração pública
(Emenda Constitucional n. 19) e à previdência (Emenda Constitucional n. 20), com impacto
enorme sobre a gestão governamental dos estados e municípios. Não por acaso, todas essas
medidas passaram por intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf.
ABRUCIO & COSTA, 1999; MELO, 2002) e
d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda Constitucional n. 14), da chamada “PEC
[Proposta de Emenda Constitucional] da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29) e do undo de
Combate e Erradicação da Pobreza (Emenda Constitucional n. 31), que ajudou a modificar o
padrão das políticas de distribuição de renda direta à população, tal como referido anteriormente.
É interessante notar que tais reformulações constitucionais criam obrigações válidas não só para os
próximos Presidentes, mas também para os futuros governantes de estados e municípios.
Além das alterações constitucionais, várias leis complementares e ordinárias com impacto
federativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei Kandir, que
transformaram regras básicas das finanças públicas. Na verdade, essa nova legislação reordenou
os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando as condições para que as relações
intergovernamentais ganhem um sentido diferente do constituído na redemocratização,
especificamente no que tange à convivência mais responsável entre os níveis de governo. A
avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda de coordenação federativa do
governo FHC. O Ministério da Educação (MEC) constituiu-se no principal agente dessa mudança,
criando sistemas avaliadores que apresentam regularmente os resultados alcançados por essa
política. Entretanto, esse vetor avaliador não se tornou uma regra geral do governo federal.
Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos de ação na ordem federativa: 1)
o combate à inflação e a respectiva regularização dos repasses, permitindo uma negociação mais
estável e planejada com os outros entes; 2) a associação dos objetivos da reforma do Estado, como
o ajuste fiscal e a modernização administrativa, com a descentralização; 3) condicionou a
transferência de recursos à participação da sociedade na gestão local; 4) criou formas de
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coordenação nacional das políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionais a
assumirem encargos, mediante distribuição de verbas, cumprimento de metas e medidas de
punição, também normalmente vinculadas à questão financeira, além de utilizar instrumentos de
redistribuição horizontal no Fundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à
população, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não se resolveria apenas com
ações dos governos locais, dependendo do aporte da União; 6) aprovou um conjunto enorme de
leis e emendas constitucionais, institucionalizando as mudanças feitas na federação, dando-lhes,
assim, maior força em relação às pressões conjunturais e 7) estabeleceu instrumentos de avaliação
das políticas realizadas no nível descentralizado, especialmente na área educacional.
Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso também teve
problemas gerais de funcionamento. Entre eles, estão a fragmentação de uma mesma política em
vários órgãos e ministérios, como é o caso do saneamento básico; a pulverização das políticas de
renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a falta de uma avaliação consistente
na maior parte das áreas descentralizadas; a existência de poucos ou fracos fóruns
intergovernamentais, a partir dos quais as políticas nacionais poderiam ser melhor controladas e
legitimadas; a adoção de uma visão tributária perversa do ponto de vista federativo, seja pela
recentralização de recursos, seja pela negligência em relação à harmonização tributária do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); a deterioração das políticas regionais, levada
às últimas conseqüências com o fim da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia
(Sudam) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o fracasso das
políticas urbanas, afetando setores como habitação, saneamento, segurança pública e transportes
metropolitanos.
Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de três áreas de coordenação federativa contempladas
nos anos FHC. O propósito não é avaliar substantivamente tais ações; o intuito desta parte do
trabalho é entender do papel do governo federal em tais questões ou setores.
IV.1. Coordenação federativa na área social: alguns exemplos
A área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeada no espaço deste artigo.
Por essa razão, escolhemos três de suas políticas, analisando como se deu a relação entre
descentralização e coordenação federativa, sem fazer uma avaliação substantiva dos resultados
alcançados. A saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaque no quadro
federativo desde a Constituição de 1988. O modelo de descentralização proposto foi construído
por muitos anos de lutas contra a centralização dos programas e da gestão dos recursos, com
destaque para a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que constituíram, junto com
lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que alguns denominam de “partido da saúde” – a
que hoje se somam a burocracia setorial e diversos políticos, muitos com origem na área.
A reforma desse setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e o estabelecimento do Sistema
Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicos são a universalidade, a integralidade e a igualdade
de assistência garantida a todos os brasileiros; preconizava ainda a descentralização da gestão do
sistema e a participação da comunidade, com um tom fortemente municipalista.
Na década de 1990, surgiram também as NOBs (Normas Operativas Básicas), que representaram
um esforço de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios,
além da criação de instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Elas tentavam
definir, com a maior clareza possível, os custos e benefícios resultantes do cumprimento ou não
das regras e critérios de repasse de recursos (principalmente no que se refere às condições
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necessárias e suficientes ao repasse de recursos financeiros entre União, estados e municípios),
prestação de contas e acompanhamentos das ações de saúde.
A partir da NOB-96, o SUS procurou estruturar-se pela responsabilização de cada instância de
governo. Estabeleceu-se que os gestores federal e estadual são os promotores da harmonização,
modernização e integração do SUS. Essa tarefa acontece, especialmente, na Comissão
Intergestores Bipartite (CIB), no âmbito estadual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no
âmbito nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas não cria incentivos
financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999, p. 78).
Foi nesse contexto de maior consistência da descentralização que o governo FHC estabeleceu suas
políticas de saúde. Os problemas iniciais estavam vinculados mais à regularidade dos repasses e à
garantia de fonte seguras e permanentes de recursos. Com a resolução destes últimos, a partir do
fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos “carimbados” para a saúde, a
descentralização aprofundou-se ainda mais. Entre 1995 e 1999, sem contabilizar as transferências,
os gastos dos níveis de governo eram de 58% para a União, 16% para os estados e 26% para os
municípios; após contabilizarmos as transferências, as cifras mudam substancialmente: 23% para a
União, 25% para os estados e 52% para os municípios.
Além disso, segundo dados de dezembro de 2001, 99% dos municípios estavam habilitados a uma
das condições de gestão, sendo 89% em Gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão
Plena do Sistema Municipal (MELO, 2002, p. 4). No campo da saúde, a descentralização e a
coordenação federativa estiveram presentes em três questões. A primeira diz respeito ao
fortalecimento das atividades intrinsecamente acionais.
A primeira delas é a organização administrativa do Ministério da Saúde, que se reforçou com a
melhoria dos sistemas de informação, em especial o Datasus. Houve também uma reorganização
administrativa, com aperfeiçoamento de pessoal e constituição de duas agências reguladoras
essenciais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS). Cabe reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à
capacidade burocrática do governo federal. A política de saúde do governo FHC adotou iniciativas
para reforçar as funções redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões mais pobres e
menos populosas (COSTA, SILVA & RIBEIRO, 1999). A principal medida nesse sentido foi a
criação, em dezembro de 1997, do PAB. Ao mesmo tempo em que procura reduzir as
desigualdades de recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização, pois
somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos.
O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeira destina-se à atenção básica da
saúde e garante a transferência automática, fundo a fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/
ano para todos os municípios brasileiros. A idéia era reduzir as desigualdades existentes entre as
municipalidades, uma vez que aquelas com maior “capacidade produtiva” tendiam a receber mais
recursos, ao passo que as pequenas, com rede incipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde,
pouco recebiam. A parte variável do PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nos
anos FHC. Sua distribuição de recursos só ocorria se os governos locais aderissem aos programas
nacionais definidos como prioritários. Além disso, para receber tais recursos era preciso passar por
todo o sistema de conselhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos. Foram
seis os programas nacionais incluídos no PAB variável: Saúde da Família-Agentes Comunitários e
Saúde, Saúde Bucal, Assistência Financeira Básica, Combate às arências Nutricionais, Combate a
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Endemias e Vigilância Sanitária. A característica básica dessas políticas era a ênfase na prevenção
e não na cura, lema histórico do movimento sanitarista.
O município podia aderir a quantos quisesse e recebia os recursos de acordo com o estipulado em
cada programa. Tais ações governamentais, ademais, envolvem capacitação dos gestores locais e a
avaliação dos resultados, seja pelo sistema federal, seja pelo controle social ligado aos
mecanismos de accountability intrínsecos ao SUS. Os resultados foram bastante satisfatórios no
que se refere à adesão e, conseqüentemente, ao número de pessoas atingidas. No caso do
Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30%
na população coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002, p. 517).
A terceira medida foi a aprovação da chamada “PEC da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29),
que determinou a elevação gradativa da porcentagem de recursos destinados a essa área nos três
níveis de governo. Com isso, o problema que o governo Fernando Henrique Cardoso encontrou no
início do seu primeiro mandato de instabilidade nos gastos com saúde foi, em boa medida,
resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação, pois ele “engessa” mais o orçamento e os
próprios governantes, que devem subordinar sua agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos
constitucionais. Talvez tivéssemos de combinar melhor as regras intertemporais que orientam a
ação dos entes federativos com mecanismos de negociação contínua de metas e resultados – e,
nesse sentido, o Fundef está mais adequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez
que tem metas e prazo para esgotar-se, ao mesmo tempo em que suas diretrizes ultrapassam o
período de mais de um governante.
Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à saúde. A coordenação
intergovernamental, a despeito da força integradora do SUS e do “partido da saúde”, vez ou outra
revela sua fragilidade, como ficou bem claro no episódio da dengue, em 2002, em que a briga dos
governantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual ou federal. A maior lacuna desse
sistema é a indefinição do papel das unidades estaduais. Nesse tópico, o governo federal precisa
criar formas de indução à participação e à cooperação da mesma maneira que o PAB fê-lo em
relação aos municípios.
O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de consórcios entre os municípios,
como forma de melhorar a prestação do serviço segundo problemas que são regionais e/ou porque
a maioria dos governos locais não tem condições de resolver todos os seus problemas nessa área.
fato é que a saúde é uma das áreas com maior número de consórcios. Em 2000, havia 141
consórcios de saúde, em 13 estados e 1 168 municípios e abrangendo uma população de
25.362.735 habitantes, segundo estudo da Organização Panamericana de Saúde e do Ministério da
Saúde.
Trata-se de um dado impressionante comparado ao que acontece nas outras políticas públicas.
Porém, os mesmos números mostravam que no bloco das municipalidades que têm entre 10 mil a
20 mil habitantes a porcentagem de consórcios era de 23,5%, enquanto no estrato que vai de 20
mil a 50 mil, o contingente atingido era de 12,4%. Além do mais, nenhuma capital tinha
consórcio, o que é um absurdo, sabendo que as regiões metropolitana sofrem freqüentemente do
problema do “carona” – habitantes de cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais e
não pagam nada por isso.
Esse retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de indução à criação dos consórcios,
na mesma linha do PAB. Mas, nesse caso, há um problema estrutural, revelado anteriormente: o
21
federalismo compartimentalizado, o municipalismo autárquico e a fragilidade jurídica desse
instrumento dificultam a adesão a essa união intermunicipal.
Na área de educação, uma política destacouse nos anos FHC como forma de coordenação
federativa. Trata-se do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso Nacional em 1997, ele obriga os
governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes da receita de impostos e transferências na
educação, sendo que não menos de 60% deverão ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua
implantação, em nível nacional, iniciou-se em 1o de janeiro de 1998. Dos recursos do Fundef, pelo
menos 60% devem ser aplicados na remuneração dos profissionais do magistério em efetivo
exercício de suas atividades no Ensino Fundamental público. Ademais, são definidas metas que
balizam a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar que os estados, o Distrito Federal e
os municípios devem dispor de um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério.
O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculados na respectiva rede de
ensino.Com isso, a distribuição de recursos obedece a um critério mais justo, vinculado à assunção
efetiva de encargos. Ocorre aqui uma adequação melhor das transferências às atribuições, algo
fundamental em uma federação, especialmente a nossa, em que a desigualdade e a politização dos
critérios foram regularmente empecilhos à efetividade das políticas.
O objetivo do governo federal com o Fundef foi corrigir a má distribuição de recursos entre as
diversas regiões e dentro dos próprios estados, diminuindo as desigualdades presentes na rede
pública de ensino. Trata-se, nesse sentido, de uma política vertical e horizontal de redistribuição
de recursos, o que a faz única no federalismo brasileiro. Para assegurar o seu cumprimento, a lei
exige a criação dos conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em
cada esfera de governo, que têm por atribuição acompanhar e controlar a repartição, a
transferência e a aplicação dos recursos do Fundo. O Conselho Municipal de Acompanhamento e
Controle Social do Fundef deve ser composto de, pelo menos, quatro membros, representando a
Secretaria Municipal de Educação ou órgão equivalente; os professores e diretores das escolas
públicas de ensino fundamental; os pais de alunos e os servidores das escolas públicas de ensino
fundamental.
Em comparação com a saúde, em que o papel do governo federal sempre foi muito forte, a ação da
União na educação foi prejudicada pela forma confusa e movediça de distribuição de
responsabilidades e competências. Nessa “torre de Babel”, a União cumpria as tarefas mais
variadas, em todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionar a contento seus esforços
para o Ensino Fundamental. Desse modo, seu comprometimento era mais voluntarista ou
discricionário do que fruto de um plano de cooperação federativa na area educacional. Isso apesar
de a Constituição definir expressamente a missão do governo federal: promover prioritariamente a
universalização e a eqüidade no ensino público, incentivando, financiando e fornecendo
assistência técnica a estados e municípios. O Fundef conseguiu reorganizar com sucesso a ação
federal.
Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de alunos matriculados como da
municipalização do Ensino Fundamental, tarefas que não avançavam satisfatoriamente no período
anterior. Em 1996, antes da implantação do Fundo, 63% das matrículas estavam na rede estadual,
enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano depois de iniciado esse programa, já houve
uma reversão significativa: 51% dos alunos pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal.
22
Outro dado revelador da mudança: em 1998 os governos municipais detinham 38,2% das verbas
do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2% (GARSON & ARAÚJO, 2001, p. 2-3).
Em resumo, o Fundef foi bem-sucedido no que se refere à questão federativa por ter melhorado a
redistribuição de recursos (em termos verticais e horizontais), aumentado a esperança por simetria
entre os níveis de governo, além de impulsionar uma municipalização mais planejada e a
colaboração intergovernamental. Contudo, existem dois dilemas federativos não equacionados. O
primeiro é o da fragilidade do controle, perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de
corrupção em vários estados. Para tanto, é necessário estabelecer formas articuladas de
fiscalização institucional entre o TCU, os tribunais de Contas do plano subnacional, o Conselho
vinculado à política e o poder Legislativo.
O Fundef, ademais, não foi montado sobre um aparato institucional capaz de discutir e revisar sua
implantação tal qual há na área de saúde, em que a rede federativa é mais forte e legitimadora. Em
termos democráticos, é essa rede que permite a continuidade e as alterações da política ao longo
do tempo. Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacamos as políticas de
transferência de renda à população. Iniciado com o PETI, passando pelo mal definido Programa de
Renda Mínima até chegar ao bolsa-escola, o governo FHC gastou sete anos de seu mandato para
construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na verdade, ao longo desse aprendizado,
percebeuse que problemas redistributivos em uma federação, como já apontaram Paul Peterson
(1995) e Paul Pierson (1995), só podem ser resolvidos com a intervenção ativa de políticas
nacionais. A maior novidade em termos substantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a
certos objetivos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasão escolar.
A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprovação do Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza. Além disso, a partir de 2001, essa distribuição de renda diretamente à
população foi mais bem coordenada pelo Projeto Alvorada, que estabeleceu uma focalização
melhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo de utilização do índice de
desenvolvimento humano (IDH) dos municípios. Todavia, o Projeto Alvorada e a noção mais
coordenada de políticas de transferência de renda foram atropelados pelo ciclo eleitoral. Com a
proximidade do pleito presidencial, o Presidente Fernando Henrique Cardoso também permitiu a
proliferação de “bolsas” ou “vales” por vários ministérios, de modo que mais programas dividiram
o bolo, muitas vezes com ausência de comunicação entre eles, o que levou ao desperdício e à
dificuldade de avaliarem-se os resultados.
IV.2. As políticas urbanas e de desenvolvimento
Várias ações do governo FHC poderiam ser criticadas sob o prisma federativo, mas duas delas
precisam ser comentadas devido ao enorme impacto que têm. A primeira diz respeito às políticas
de desenvolvimento, analisadas pelo viés do federalismo. A estrutura institucional federal montada
para tratar desses problemas foi bastante débil. O Ministério da Integração Regional constituiu-se
apenas em um lugar para o fisiologismo político da pior espécie, afora ter tido uma grande
instabilidade no seu comando, com trocas freqüentes de titulares, muitas delas derivadas de algum
escândalo.
Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimento regional, a Sudam e a
Sudene. O Presidente Fernando Henrique Cardoso poderá dizer que foi ele quem desvelou toda
uma estrutura profunda, construída por décadas,de corrupção. É óbvio que essa obra deve ser
creditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensa participação da imprensa
23
e das instituições de controle, em particular aqui o Ministério Público Federal. Mas o fato cabal é
que o governo FHC não teve um projeto claro de desenvolvimento regional. Ao contrário,
desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmentou políticas para esta área e não propôs
uma alternativa ao modelo anterior. O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa
da Era FHC. O uso dessa forma de competição federativa é comprovadamente inócuo, pois a
adoção dessas medidas não tem alterado a redistribuição regional dos recursos e, como mostrou o
estudo de Sérgio Ferreira (2000), do Bndes, dos sete estados que mais utilizaram os instrumentos
de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Bahia e
Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na sua participação no PIB nacional entre 1985 e
1998.
Sem dúvida, há fatores que fogem da alçada da União, como o comportamento estadualista das
governadorias e os elementos da crise financeira dos estados causados por eles mesmos,
resultantes do uso indiscriminado dos instrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o
que os levou a procurar atrair empresas para angariar empregos e impostos futuros. Fica a
pergunta: como o governo federal poderia ter atuado nessa questão? Primeiro, realizando políticas
de desenvolvimento, a partir de decisões que sejam tomadas em fóruns nacionais, em nome da
transparência, da justiça redistributiva e da igualdade entre os pactuantes. Em segundo lugar,
faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma tributária. Porém, se partirmos da hipótese de que
a reformulação do sistema de tributo é quase impossível de ser realizada, o papel do presidente
Fernando Henrique deveria ter sido o de colocar no debate público esse problema e condená-lo.
Em vez disso, concedeu empréstimo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, em uma
batalha entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano em razão da pressão
do grande cacique regional, Antônio Carlos Magalhães. Nesse caso, FHC perdeu para o legado
oligárquico e patrimonialista do federalismo brasileiro. A maior fragilidade dos anos FHC foi a
ausência de políticas urbanas. É bem verdade que desde o governo Sarney elas não são
prioritárias e na Era Collor houve um desmantelamento daquilo que havia. Mas o fato é que o
Brasil dos anos 1990 assistiu a um processo de metropolização dos problemas, com a elevação do
desemprego urbano, a piora no sistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da
desigualdade e da pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo do que o vivido no
meio rural), bem como o aumento da violência nas periferias.
O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo momento em que não há políticas
ou instituições capazes de dar conta dessa questão. A Constituição de 1988 foi movida por uma
concepção descentralizadora municipalista, por um modelo federativo compartimentalizado e por
uma aversão ao centralismo, justificável pelo impacto negativo que teve o “unionismo-autoritário”
desenvolvido pelo regime militar. Contudo, quando os problemas não podem ser resolvidos
sozinhos pelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisam também da
intervenção ativa de uma política nacional, o desenho institucional e a cultura política federalista
predominante não têm respostas adequadas.
O resultado disso torna-se claro no modelo de região metropolitana (RM) concebido na
Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foram esvaziadas e sua conformação legal, transferida
para os estados, os quais, conforme trabalho realizado por Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000),
não priorizaram essa questão no seu desenho político- administrativo. Sem uma instância
metropolitana e/ou formas que levem à formação de colegiados metropolitanos – com os
municípios envolvidos, mais os governos estadual e federal, além da sociedade civil local –, será
muito difícil resolver os dilemas dos grandes centros urbanos. Uma ação nacional passaria pela
24
revisão da legislação sobre as regiões metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O
governo federal não tratou deste assunto nos anos FHC. Para além da questão mais geral, o fato é
que a União não constituiu políticas adequadas para a grande maioria dos problemas
metropolitanos. Isso fica claro ao observarmos o desenho institucional do poder Executivo federal
em relação a essa temática.
Primeiro, repassou tal preocupação à Secretaria de Políticas Urbanas, fraca institucional e
politicamente, destinada a obter apoios clientelistas no Congresso Nacional. Some-se a isso o fato
de que a maioria das políticas urbanas dividia-se por vários ministérios – só o saneamento estava
presente em sete deles, mais a Secretaria de Políticas Urbanas. A fragmentação excessiva
inviabilizou o alcance de resultados satisfatórios. As principais políticas de cunho urbanometropolitano fracassaram. Poderíamos citar a segurança pública, em que o governo federal
descobriu tarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveria atuar em rede
na coordenação das polícias. No caso do saneamento, houve um problema regulatório, com a crise
das empresas do setor e a errática (e equivocada) trajetória de privatização e, em termos de
investimentos, embora eles tenham-se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer mais
no momento seguinte devido às restrições de acordo feito com o Fundo Monetário Internacional
FMI).
Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Federal, principal financiadora de infra-estrutura
urbana, não firmou nenhum contrato de financiamento na área de saneamento entre 1999 e 2000
(MELO, 2002, p. 8). Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências e atribuições
dos três níveis de governo, a coordenação federativa teria que passar, como foi feito na saúde e
com o Fundef, pela elaboração de políticas federais indutoras, a partir das quais os governos
subnacionais fossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e resultados. Além
disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticas públicas tem sido maior conquanto
consigam desenvolver suas características intersetoriais, como ocorre no bolsa-escola, por
exemplo. Isso é válido para vários setores do desenvolvimento urbano, em particular o
Saneamento, que poderia articular-se mais com a saúde, fortalecendo os programas desta área
(idem, p. 25).
O Presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem de um mandato a outro, que sua
política urbana ia de mal a pior. Por isso cogitou de criar um ministério específico e forte para essa
área, mas não teve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a pena citar a descrição de Caco de
Paula a respeito desse processo: “Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique
Cardoso hegou a anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano, uma superpasta
que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de recursos da Caixa
Econômica Federal e que, com acordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater os
grandes déficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicos em urbanismo
como por empresários do setor imobiliário esse ‘Ministério da Moradia’ – ou ‘Ministério da
Cidade’ – passou a ser visto como uma possibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as
políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como já acontecera outras vezes,
desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo de muitos comentários, discussões e
disputas entre os políticos aliados do Palácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o
xadrez ministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso abandonou a idéia. E
o antigo projeto, tentado desde o fim dos governos militares, de fazer da questão urbana a grande
prioridade da ação federal, novamente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002, p. 419).
25
V. OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA
A Era FHC teve um papel importante na mudança de alguns padrões federativos construídos ao
longo da redemocratização. Em especial, teve grande êxito no ataque ao modelo predatório
vinculado ao estadualismo, reduzindo as formas de repasse de custos financeiros entre os entes e
colocando fortes limites à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos. Destaque deve ser
dado também para outros quatro elementos positivos: o reforço do controle social vinculado à
descentralização; a adoção de políticas de coordenação intergovernamental nas políticas de saúde
(com o PAB) e de educação (com o Fundef); criação de programas nacionais de transferência
direta de renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, montou programas
de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das políticas, fornecendo um feedback essencial
à União para coordenar a descentralização.
Os limites e os fracassos do período Fernando Henrique Cardoso são pensados aqui como o
universo que compõe os desafios federativos do governo Lula. Cabe assinalar, primeiramente, três
ações institucionais positivas tomadas pelo novo Presidente: o revigoramento da Secretaria de
Assuntos Federativos, que nunca teve o devido poder nos anos FHC, a criação do Ministério das
Cidades, unificando todas as políticas urbanas em um só local, além da reestruturação da política
regional, com o Ministério da Integração Nacional.
Duas medidas legislativas também apontaram para o rumo certo. Uma foi a continuação da
reforma da previdência, agora mais focada no setor público, com impacto favorável à
modernização dos governos estaduais – e a forma cooperativa pela qual Lula atuou junto aos
governadores foi um dos pontos altos de sua gestão. A outra medida revela a assunção de uma
nova visão das relações intergovernamentais. Trata-se do projeto que regulamenta os consórcios
públicos, que diminuirá substancialmente os efeitos perversos do municipalismo autárquico.
Permanece uma lista longa de problemas de coordenação federativa para o governo Lula. Entre os
principais, destacamos:
1) mudanças no sistema tributário, principalmente na lógica de cobrança do ICMS, a fim de
neutralizar os efeitos perversos da guerra fiscal;
2) o fortalecimento dos mecanismos nacionais de avaliação de políticas públicas, tarefa
bastante atrasada no atual momento;
3) auxílio na reformulação e criação de capacidades administrativas de estados e municípios,
processo que teve um bom impulso no campo dos estados, com a criação do Programa
Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do Distrito
Federal (Pnage). Além disso, é preciso estabelecer redes e interconexões de longo prazo
entre as burocracias federal, estaduais e municipais, o que favorecerá um planejamento
melhor das políticas nacionais e regionais;
4) montagem de uma nova ordem regulatória e coordenadora das principais políticas urbanas,
com destaque para o saneamento, a segurança pública, a habitação e o transporte. Mais
uma vez, o governo Lula tem andado lentamente, quando não erraticamente, na formulação
e negociação dessas políticas. Vale frisar aqui que a discussão sobre o papel e o
funcionamento das regiões metropolitanas precisa estar ligada a esses assuntos;
5) ampliação e reforço dos mecanismos coordenadores nas áreas de educação – com a
elaboração e aprovação do Fundeb – e saúde – com a indução para ações mais
regionalizadas;
6) aprimoramento das políticas nacionais de transferência de renda, vinculando e controlando
mais o repasse de recursos a políticas de capacitação para a cidadania plena;
26
7) adoção de políticas de desenvolvimento que reduzam, efetivamente, as disparidades
regionais do país. As boas intenções iniciais, inclusive no campo institucional, não tiveram
ainda resultados palpáveis e por fim
8) o fortalecimento dos fóruns federativos de discussão e negociação entre os níveis de
governo. Decerto que os anos FHC trouxeram muitos avanços para o nosso federalismo,
mas eles ocorreram em uma ação direta, informal e por vezes fragmentada do governo
federal junto aos entes subnacionais.
O aumento da consciência da importância da temática da coordenação federativa só ocorrerá com
maior sustentabilidade quando instituições como o Senado, o Conselho de Gestão Fiscal e
governos metropolitanos devem ser ativados para evitar o reforço perverso da dicotomia entre
descentralização e centralização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRANCHES, S. 1988. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-34.
ABRUCIO, F. L. 1998. Os barões da federação : os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo : Hucitec.
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Paulo. Tese (Doutorado em Ciência Política). Universidade de São Paulo.
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ABRUCIO, F. L. & SAMUELS, D. 1997. A nova política dos governadores. Lua Nova, São Paulo, n. 40-41, p. 137-166. Fernando
Luiz Abrucio ([email protected]) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Programa de
Pós-graduação em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), além de lecionar
Política Comparada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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Federalismo, Relações Intergovernamentais e Gestão Metropolitana no Brasil
Carlos Alberto de Vasconcelos Rocha ([email protected]) e Carlos Aurélio Pimenta de Faria
([email protected])
Os objetivos deste ensaio são modestos: discutir, de maneira panorâmica e introdutória, a maneira
como, desde a década de 1970, têm se institucionalizado no Brasil distintos modelos de gestão
metropolitana. Destaque será dado aos constrangimentos e incentivos à ação cooperativa das
distintas esferas de governo, no âmbito metropolitano, interpostos pelos padrões de relações
intergovernamentais prevalecentes na Federação Brasileira. Para tanto, o trabalho está estruturado
da seguinte maneira: na primeira seção, discutimos o conceito de “federalismo”, apresentamos as
suas características e algumas formas de classificação das distintas experiências internacionais. Na
segunda, apresentamos, brevemente, a evolução do modelo federalista brasileiro. Na terceira e
última seção, analisamos algumas maneiras de se periodizar a experiência de gestão metropolitana
no país, desde o modelo implantado no início da década de 1970, classificando os distintos
modelos e dando destaque às modalidades de relações intergovernamentais prevalecentes e aos
seus impactos. Nas breves considerações finais, é resgatada a inescapável interdependência entre
gestão metropolitana e o padrão de relações intergovernamentais vigente hoje no país.
1 -Federalismo: o que é.
Em décadas recentes, os estudos sobre o federalismo ganharam relevo na agenda de pesquisa da
ciência política. Apesar da considerável produção de trabalhos realizados até o momento, essa área
de pesquisa ainda se defronta com desafios que podemos caracterizar como básicos. Um desses
desafios – talvez o mais fundamental, mas nem por isto o menos problemático – é estabelecer um
consenso minimamente razoável sobre o próprio significado de federalismo. Como exemplo do
grau de dificuldade envolvido nessa definição conceitual, Stewart listou 497 concepções diferentes
para o termo (apud Wrigth, 1997: 103). É evidente que delimitar um campo de estudo com tal
imprecisão torna-se bastante complicado. Feita essa ressalva inicial, discutiremos, nesta seção, o
significado de federalismo, apontando alguns de seus dilemas.
Etimologicamente, a palavra federalismo vem do latim faedus, que significa contrato. Em sua
dimensão histórica, o termo diz respeito a contratos estabelecidos por unidades políticas para
diversos fins. Especificamente, as primeiras experiências federativas do mundo moderno tinham
como objetivo aumentar a capacidade de defesa militar e potencializar as condições de
concorrência econômica de determinadas sociedades políticas.
Esses contratos procuram viabilizar a convivência de unidades políticas, sendo constituídos por
uma diversidade de motivos, como identidade cultural, lingüística, étnica e regional. Esses acordos
coletivos estabelecem obrigações mútuas entre os seus componentes. Em seu sentido mais
contemporâneo, o federalismo envolve a articulação de partes em “uma forma de organização
territorial do poder, de articulação do poder central com os poderes regional e local”, que consiste
em “um conjunto de complexas alianças, que buscam a compatibilização de valores e interesses
entre atores políticos” (Afonso e Barros, 1995: 57).
Montesquieu, referindo-se às “repúblicas federativas” de seu tempo, afirma que o federalismo é
uma “sociedade de sociedades”, que pressupõe “uma convenção pela qual vários corpos políticos
consentem em tornar-se cidadãos de um Estado maior que querem formar.” (1979: 125). Tal
definição enfatiza a possibilidade de expressão das vontades dos participantes envolvidos no
29
acordo federalista. Em outras palavras, o federalismo envolve a partilha de poder entre os níveis
de governo. Nesse aspecto, o federalismo se relaciona positivamente com uma idéia específica de
democracia, pois visa garantir a expressão e a autonomia de vontades e interesses não do povo
genericamente, mas de grupos parciais. Como muitos desses grupos podem ser minoritários no
contexto de uma unidade política, a adoção do critério das decisões por maioria deixa de ser
adequada, já que implicaria a submissão dessas minorias aos interesses e vontades dos grupos
majoritários. Os arranjos federalistas têm, nesse sentido, características consociativas, pois adotam
certos mecanismos que limitam o poder das maiorias e protegem os interesses das minorias.
(Lijphart, 1982)
Uma característica central do federalismo é garantir simultaneamente a unidade e a diversidade.
Ao mesmo tempo em que envolve uma unidade de partes que pactuam uma ação comum,
estabelece um espaço para a afirmação dos valores e interesses de cada uma delas. Nesse sentido,
o federalismo é fundado em uma ambigüidade, já que a dimensão da unidade se estabelece no
contexto da diversidade. São dois processos que se desenvolvem simultaneamente: a disposição de
se unir para propósitos comuns, mantendo simultaneamente a integridade das partes. Para Elazar,
essa ambigüidade significa “querer ter um bolo e comê-lo ao mesmo tempo” (1987: 64).
Conduzindo a discussão para um enfoque menos abstrato, há uma dimensão formal do fenômeno,
expressa no desenho das instituições, e uma dimensão sociológica, que se refere à diferenciação
real de uma sociedade por critérios de cultura, língua, identidades regionais ou outros aspectos.
Relacionar a existência de identidades sociais, culturais e políticas específicas com as
características institucionais de um sistema é algo complexo, pois dessas identidades podem
derivar arranjos institucionais diferenciados. Uma sociedade diversa em termos de identidades, por
exemplo, pode expressar ou não essas diferenças em termos institucionais. Como afirma Baldi, o
“federalismo é um exercício de criatividade institucional e não é necessariamente reprodução de
um desenho institucional” (1999: 6). Essa diversidade de formatos que podem assumir os arranjos
federais é, em grande medida, responsável pela ambigüidade do conceito. Se não há divergências
na afirmação de que federação envolve um contrato que visa manter simultaneamente diversidade
e unidade, a controvérsia torna-se evidente com a existência de uma grande variedade de arranjos
institucionais denominados de federação, independente das suas diferenças.
Essa falta de consenso sobre a definição dos traços caracterizadores de um modelo federal leva
diversos autores a contrastar federalismo com conceitos afins. Para alcançar alguma unidade
conceitual, esses autores adotam a estratégia de definir o significado de federação através da
demarcação de sua diferença com fenômenos afins. Essa forma de conceituar federalismo trabalha
com as distinções entre os modelos unitário, federativo e confederativo. O Estado unitário
diferencia-se do federalismo por se caracterizar pelo poder concentrado, que se impõe como única
referência de uma sociedade política, excluindo a existência de focos parciais de poder. O Estado
federal, ao contrário, pressupõe a existência de partes com poder de decisão. Por outro lado, a
confederação compartilha com o federalismo a característica de que ambas fazem referência a um
contrato entre unidades políticas para lograr objetivos comuns. Na federação, no entanto, uma
parte da soberania é repassada ao órgão central, ao passo que na confederação a soberania das
unidades é plena e o órgão comum representa a soma das vontades das partes, sem o
reconhecimento da existência de qualquer poder superior sobre elas. Segue-se que numa
confederação é possível a renúncia das partes ao pacto, conforme seus interesses momentâneos.
Ao contrário, no federalismo nenhum membro tem o direito de renunciar unilateralmente ao pacto
político inicial e seguir o seu caminho individualmente, pois a unidade não pode ser questionada
pelas partes.
30
O problema dessa forma relacional de definir o federalismo é que não existem critérios que
estabeleçam com maior precisão os limites entre um modelo e outro. Essa dificuldade de definir
com precisão as características de cada um dos modelos aumenta em tempos recentes, pois os
processos políticos contemporâneos impactam, em graus variados, esses modelos, no sentido de
tornar ainda mais confusas suas características básicas. Atualmente, a distribuição territorial do
poder tem configurado sistemas federais com tendências de fortalecimento do centro e, ao mesmo
tempo, sistemas unitários que abrem espaços para a expressão de autonomias parciais. Como
aponta Stepan (1999), a distinção entre sistemas unitário e federal tem perdido capacidade de
descrever e classificar a complexidade que o fenômeno do federalismo tem assumido.
Uma proposta de processar esse conjunto de dificuldades foi fornecida por Baldi (1999) e Stepan
(1999), que tratam o federalismo no contexto de um continuum que vai dos sistemas que contêm
restrições mínimas ao centro de poder (least center-constraining) aos que contêm restrições
máximas (most center-constraining). Um continuum que em um extremo é representado pelo
sistema unitário, passa pelo sistema federal e termina, no outro pólo, representado pela
confederação. Essa idéia de continuum permite contemplar as diversas variações institucionais
entre os sistemas unitário, federal e confederal, a partir de um critério que, de alguma forma,
permite ultrapassar formulações rígidas dos modelos, baseadas em definições de suas instituições
características. A idéia de center-constraining permite avaliar em que medida as instituições
garantem a autonomia das partes, pela restrição do poder do centro.
Apesar do amplo leque de instituições que podem ser consideradas como características de um
sistema federal, há pelo menos um consenso considerável sobre os seus aspectos mais
característicos. Mesmo assim, a variedade de possibilidades de combinação desses traços
institucionais e o resultado diversificado do seu funcionamento, em cada caso específico,
relativizam o alcance desse acordo analítico inicial. Sem pretender desenvolver essas alternativas
possíveis, vamos apresentar a seguir os principais traços institucionais considerados como
caracterizadores do federalismo, dada a sua função de center-constraining:
Um sistema federal tende a ser dotado de referência constitucional, tanto do governo central como
dos outros níveis de governo, que proteja a soberania e a autonomia dos entes. As regras que
definem o pacto devem ser garantidas por um poder Judiciário forte e independente, com a função
de arbitrar a distribuição de poder definida constitucionalmente e dirimir os conflitos entre os
entes.
Deve haver uma distribuição de autoridade para legislar reservada tanto ao governo federal quanto
às unidades federadas. Nem sempre essa distribuição das prerrogativas de tomada de decisão sobre
políticas públicas, ou policy scope, é definida pela lei. Em vários casos, depende de negociações e
barganhas ad hoc.
Existência de bicameralismo, com a presença de uma câmara alta, com representação territorial,
ao lado de uma câmara baixa representativa da população. Como se apontou anteriormente, o
sistema federativo adota mecanismos de proteção das minorias, como sobre-representação das
pequenas unidades e exigências de maiorias ou super-maiorias para efetuar amplas mudanças
políticas que afetem a distribuição da autoridade política das partes.
O pacto federal requer uma distribuição de recursos financeiros que contemple, de alguma forma,
os interesses dos entes envolvidos, habilitando-os a decidir sobre a alocação de seus próprios
31
recursos. A questão fiscal é um aspecto central para a configuração de um sistema federal, na
medida em que as alianças “são soldadas em grande parte por meio dos fundos públicos” (Afonso
e Barros, 1995: 57).
A definição desses aspectos institucionais é relevante, mas, de toda a forma, insuficiente. Como se
disse, as definições que buscam captar o fenômeno pela sua dimensão formal, ou institucional,
podem resultar em equívocos. Mais do que as características institucionais, os processos políticos
devem ser considerados na caracterização de um sistema federal, pois “o federalismo não é uma
distribuição particular de autoridade entre governos, mas sim um processo, estruturado por um
conjunto de instituições, por meio do qual a autoridade é distribuída e redistribuída.” (Rodden,
2005: 17). De fato, a real distribuição do poder territorial vai além do desenho institucional e das
regras constitucionais. Como aponta Elazar (1987), muitos países com estruturação institucional
federal não o eram na realidade: essas estruturas formais mascaravam uma concentração de poder
de fato. Assim, “no estudo dos governos federativos é sempre conveniente estudar as forças reais
que estão por trás da ficção em um sistema político” (Ricker apud Stepan, 1999: 24).
Em um esforço de fornecer uma definição mais abrangente e menos equívoca do objeto em
exame, Wrigth (1997) propõe o abandono do termo federal e, em substituição, adota o termo
Relações Intergovernamentais (RIGs). Sem pretender avaliar aqui o alcance de sua proposta, vale
apresentar os três modelos de RIGs que ele propõe, já que contribuem para classificar os padrões
de autoridade estabelecidos entre os entes governamentais. Em primeiro lugar, ele define a
autoridade coordenada como caracterizada pela existência de limites claros e bem determinados
separando o governo nacional dos governos subnacionais. No caso, os níveis de governo são
independentes e autônomos, sendo unidos apenas tangencialmente, e as ações dos entes são
separadas, reproduzindo o que se denomina de federalismo dual. Esse modelo estaria superado
pelas condições sociais e políticas hoje existentes, já que a complexidade dos problemas sociais
inviabiliza ações independentes e autônomas por parte dos entes governamentais.
Em segundo lugar, outro padrão é o que ele chama de autoridade inclusiva, caracterizado por
relações hierárquicas: os estados e localidades se submetem ao governo federal, que é quem
governa. Envolve a idéia de uma sociedade nacional, que busca assegurar propósitos nacionais,
através da formulação centralizada de seus objetivos. Os governos intermediários e locais
dependem das decisões nacionais, caracterizando subordinação e atrofia de sua autonomia.
Finalmente, Wrigth propõe o padrão que melhor descreve as relações de poder dos sistemas
políticos atuais, caracterizados pela crescente complexidade. O modelo de autoridade superposta
é caracterizado por interações negociadas entre os entes. Nesse caso, as áreas operacionais dos
níveis de governo incluem simultaneamente unidades e funcionários nacionais, estaduais e locais,
cuja autonomia ou independência individual é relativamente pequena, pois o poder de influência
de cada ente é limitado e a autoridade é comumente negociada. Permanecem áreas modestas de
autonomia, pois as políticas não são de uma só entidade governamental, mas envolvem relações de
negociação e regateio entre múltiplas entidades governamentais. Assim, nesse caso as RIGs são
caracterizadas pela busca de concertação: quem recebe ajuda deve também aceitar condições e
prestar contas do seu desempenho. Isso não significa que fica estabelecida de antemão a
preponderância de relações cooperativas ou competitivas, pois a preponderância de uma ou outra
depende das condições de cada caso específico. Esse modelo envolve o intercâmbio de recursos e
influência através dos limites governamentais, tornando possível alterar as relações de autoridade
entre os participantes. O poder, portanto, é disperso e sua distribuição desigual. Reforçando a
atualidade do modelo de autoridade superposta, Rodden (2005: 20), no mesmo sentido, nota que
32
as federações têm evoluído para contratos incompletos e em constante renegociação, pois na
maioria dos casos o centro depende das províncias para implementar suas políticas e não pode
efetuar mudanças sem o consentimento das unidades constituintes.
2- O Federalismo no Brasil
A primeira experiência federal do mundo moderno se desenvolveu no contexto do surgimento dos
Estados Unidos da América, no final do século XVIII. Desde então, esse modelo vem sendo
adotado progressivamente em diversas partes do mundo. Elazar, por exemplo, calcula que 40% da
população mundial vivem em países federais (1987: 6). Inspirando-se na experiência norteamericana, o Brasil adotou a forma federativa de distribuição de poder territorial com a
proclamação da República, em 1889. O federalismo, no Brasil, significou assumir no plano das
instituições a efetiva fragmentação do seu poder territorial, que contrastava com as intenções de
centralização política e administrativa do poder central desde o período colonial. Num território
das dimensões do brasileiro, com uma grande dispersão populacional, o desejo do centro de
exercer o controle político sobre o território sempre apresentou dificuldades para ser concretizado.
Se o federalismo brasileiro não reflete clivagens étnicas, lingüísticas e religiosas, é inegável a
importância do papel das elites regionais para o entendimento da política brasileira: as regiões, os
estados e os municípios formam, historicamente, sistemas de poder que, dependendo do momento,
são reconhecidos ou não pelas instituições governamentais formais. Sendo assim, ao longo do
tempo, a distribuição territorial do poder no Brasil vai configurando momentos de maior
autonomia dos entes frente ao governo central e momentos de afirmação deste frente aos estados e
municípios.
O federalismo brasileiro surgiu como resultado das pressões de elites regionais para o
reconhecimento da sua autonomia. Ao contrário do caso clássico dos EUA, cujo federalismo
resulta da associação de unidades políticas antes independentes entre si (come together type ou
processo centrípeto), no caso do Brasil o federalismo resulta da adequação dos interesses do centro
aos interesses regionais, como forma de manter a integridade do Estado nacional, ameaçada pelas
reivindicações de autonomia das regiões (hold together type ou processo centrífugo).
De 1889 a 1930, instaura-se no Brasil um período de “federalismo oligárquico”, em que
oligarquias regionais, especialmente dos estados mais poderosos, afirmavam seu poder frente ao
governo central. Com a Revolução de 1930, inicia-se um novo momento de tendências
centralizadoras, que culmina com o golpe do Estado Novo, em 1937, que significou a
centralização do poder no governo central e o fim do regime federativo. Nesse período, o Estado
central brasileiro consolida-se, de fato, como o principal foco de poder sobre o território. Os
estados funcionavam praticamente como agências administrativas do governo central. Em 1945, o
regime federativo foi restabelecido, instaurando uma lógica de competição de elites políticas
regionais pelo poder central, contrabalançada pelo grande poder de decisão das burocracias
federais consolidadas no período anterior.
Com o regime autoritário instaurado pelos militares em 1964, inaugura-se um novo período de
centralização do poder, caracterizado pela existência de um federalismo “meramente nominal”, já
que o poder do governo central passa a limitar fortemente a autonomia dos entes federados.
Expressão dessa tendência centralizadora foi a reforma fiscal de 1966, que centralizou recursos
públicos e políticos de maneira inédita, instaurando uma situação de forte dependência política e
financeira dos governos subnacionais ao governo central.
33
Na década de 1980, um forte movimento pela democratização política do país instaura um período
de tendências descentralizadoras, com implicações para a questão federativa e para a problemática
da gestão metropolitana, como veremos na próxima seção do trabalho. As pressões pela
democratização política do país incorporavam movimentos de afirmação de estados e municípios
frente à característica hipertrofia do poder central do período autoritário. A demanda por
democracia envolvia, como um dos seus aspectos centrais, a restauração de um federalismo de
fato, através da descentralização política, fiscal e administrativa. A Constituição Federal de 1988,
elaborada com ampla participação de diversos setores da sociedade, inclusive de prefeitos e
governadores, consagra uma maior autonomia administrativa, fiscal e política para os estados e,
principalmente, para municípios.
O federalismo atual é, no Brasil, caracterizado pela existência de três níveis autônomos de
governo, pois os municípios são considerados entes federativos com status similar à União e aos
estados, configurando uma federação trina. São 26 estados, o Distrito Federal, e cerca de 5.560
municípios, todos com autonomia político-administrativa. Todos os Executivos e Legislativos
estaduais e municipais são eleitos pelo voto direto do eleitorado, estabelecendo assim três níveis
de governo legitimados pelo voto popular.
Em termos institucionais, o federalismo brasileiro cumpre os requisitos tidos como característicos
de uma federação. A Constituição de 1988 é a mais detalhada de todas as constituições brasileiras,
tratando, entre outros aspectos, da distribuição territorial do poder. Os estados e municípios
também elaboram as suas constituições (as Leis Orgânicas Municipais, no caso desses últimos). O
Supremo Tribunal Federal funciona como um tribunal da federação, dirimindo conflitos sobre as
prerrogativas dos níveis de governo. No plano central, o Brasil adota um sistema legislativo
bicameral, com uma câmara territorial, o Senado, onde todos os estados elegem três
representantes, independente da dimensão do seu eleitorado. Na Câmara dos deputados, que
representa a população, há também sobre-representação dos estados menores, já que nenhum
estado pode ter mais do que 70 e nem menos que 8 deputados federais. Tais regras buscam
potencializar o poder de pressão dos entes mais fracos. Os legislativos estaduais e municipais, no
entanto, são unicamerais. O sistema partidário funciona, em boa medida, como espaço de
expressão dos interesses federativos, já que falta um sistema partidário forte e disciplinado e com
orientação nacional. Os partidos, no geral, são fragmentados pelos interesses regionais.
Definir o federalismo brasileiro como descentralizado ou centralizado pode levar a equívocos. As
relações federativas no Brasil são hoje mais complexas, aproximando-se do modelo de autoridade
superposta de Wrigth. Poucas competências exclusivas são alocadas para os estados e municípios.
A Constituição de 1988 estipulou, por exemplo, um amplo leque de funções concorrentes entre as
três esferas de governo (Souza, 2006a). Além disso, a descentralização, no Brasil, foi
implementada de forma bastante diferenciada nos distintos setores de políticas públicas (Arretche,
2000; Almeida, 1995). Cada área de política, como saúde, educação, assistência social, habitação e
etc., tem suas características próprias, em termos das relações federativas.
Conforme aponta Souza (2006a), ao estabelecer as responsabilidades comuns aos três entes
federativos, ficou nítida a opção por uma “divisão institucional do trabalho” compartilhada, que
repercutiu num amplo e complexo sistema de relações intergovernamentais. A iniciativa indica
que se buscava ampliar o caráter cooperativo do federalismo brasileiro. No entanto, ainda hoje
predomina a competição, tendo em vista, de um lado, as desigualdades financeiras, técnicas e de
gestão dos governos subnacionais, que possuem capacidades distintas de implementação de
políticas públicas, e, de outro lado, certa fragilidade dos mecanismos constitucionais ou
34
institucionais que regulam as relações intergovernamentais e estimulam a cooperação. Na verdade,
o federalismo tripartido brasileiro torna as relações intergovernamentais particularmente
complexas, restando o desafio de ampliação de seu caráter cooperativo, o que fica evidente no
caso da gestão metropolitana, como veremos a seguir.
3- Os três tempos da gestão metropolitana no Brasil e as mudanças no padrão de relações
intergovernamentais na Federação
O Brasil vive, hoje, um momento de busca de superação dos efeitos perversos da autonomização
dos municípios, chancelada pela Constituição Federal de 1988, que redundou na cristalização de
um “municipalismo autárquico” (Abrucio & Soares, 2001) ou de um “municipalismo a todo
custo” (Fernandes, 2004). Iniciativas de busca de “desfragmentação” da gestão pública no país
têm sido desenvolvidas em várias áreas, como, por exemplo, na constituição de uma diversidade
de consórcios intermunicipais, de comitês de bacias hidrográficas, de fóruns regionais e
metropolitanos de múltiplos propósitos, entre outras ações conjuntas, iniciadas pelos próprios
municípios e/ou pelas demais esferas da Federação. Tal processo tem também levado à
revalorização do planejamento metropolitano, na busca do desenvolvimento regional e/ou de
solução para problemas comuns, que transcendem as fronteiras municipais.
Alberto Lopes sintetiza com precisão o que se convencionou denominar como o “problema
metropolitano”, que, certamente, longe está de ser exclusividade brasileira:
“A especificidade do metropolitano decorre do fato de os elementos do espaço (meio
ecológico, infra-estruturas, sujeitos sociais) guardarem uma interdependência
estreita, sistemática e cotidiana, manifesta de forma concentrada em uma determinada
fração do território que se encontra fragmentado pela divisão político-administrativa
vigente” (Lopes, 2006:139).
No Brasil, é cada vez mais perceptível o fato de as metrópoles terem passado a concentrar a
chamada questão social, até porque 41,23% dos brasileiros viviam, em 2000, em áreas
metropolitanas, sendo que tais áreas concentravam 43,51% da população economicamente ativa.
Cabe destacar, também, que as taxas de desemprego nessas áreas são maiores que a média
brasileira (Moura et al, 2003).
No cerne da problemática metropolitana está o dilema da ação coletiva, no sentido da necessidade
de promoção da cooperação inter e intra-governamental, bem como intersetorial, que requer a
articulação entre interesses e preferências distintos, defendidos por atores e agências estatais,
societais, semipúblicas e privadas, que desfrutam de variados graus de autonomia, mas atuam
sobre o mesmo espaço territorial (Souza, 2006b). O objetivo maior das instituições encarregadas
da gestão metropolitana é, portanto, a superação do dilema da ação coletiva.
Desde 1973, quando foram instituídas as oito primeiras regiões metropolitanas (RMs) do Brasil, é
necessário distinguir a vigência no país de três formas diferentes de institucionalização da
cooperação intergovernamental, quais sejam: (a) o modelo compulsório altamente hierarquizado,
imposto pelo governo federal no início da década de 1970, de forte viés “estadualista”; (b) o
modelo do “hipermunicipalismo simétrico”, instituído após as Constituições Estaduais de 1989; e
(c) o modelo de uma integração supostamente “negociada”, que está hoje em gestação ou em
processo de implementação em algumas RMs do país, como a de Belo Horizonte.
35
No Brasil, as regiões metropolitanas foram instituídas através da Lei Complementar No. 14, de
1973, que, ao regulamentar disposições incorporadas ao texto constitucional pela Emenda No.1,
de 1969, criou as oito primeiras RMs do país. Sob o signo do planejamento tecnocrático
centralizado, a legislação que institucionalizaria as regiões metropolitanas no país, mesmo
buscando priorizar a concertação dos atores estatais para a provisão de serviços comuns, tratava as
RMs principalmente como regiões de desenvolvimento e não como regiões de serviços (Moraes,
2001). Para o regime militar instaurado em 1964, o território tinha uma dimensão estratégica
(Lopes, 2006). A institucionalização das RMs naquele período deve ser vista como “parte da
política nacional de desenvolvimento urbano, relacionada à expansão da produção industrial e à
consolidação das metrópoles como lócus desse processo” (Moura et al, 2003:35). Nas palavras de
Moraes, “a intenção do Estado ao institucionalizar as RMs não era partir de, mas construir uma
mesma comunidade socioeconômica, do ponto de vista da criação de condições favoráveis ao
desenvolvimento da relação capital/produção/trabalho em pontos estratégicos do território
nacional” (2001:341).
A Lei Complementar No.14, de 1973, logo em seu artigo 1º, determinou os municípios que fariam
parte das RMs que eram instituídas, conformando o caráter compulsório do modelo de gestão
metropolitana originariamente implantado. Tal determinação desconsiderou os distintos graus de
comprometimento dos municípios-membros no processo de metropolização.
Esse modelo de concertação compulsória, altamente hierarquizado, caracterizava-se por um forte
viés “estadualista”, sendo por vezes caracterizado como “simétrico”, em função do mesmo
tratamento dispensado às RMs instituídas, independentemente de suas singularidades.
Diversas foram as críticas endereçadas a tal arcabouço legal, as quais enfatizavam: a ambigüidade
e imprecisão de seus objetivos e instrumentos; a ausência de previsão dos recursos financeiros que
viabilizariam a gestão metropolitana; a rigidez do modelo institucional a ser implantado em
realidades heterogêneas; sua visão funcionalista e centralizadora, que não atentava para as
desigualdades intra e inter-regionais, para as distintas vocações, potencialidades e políticas locais
e para o impacto diferenciado das ações regionais sobre os municípios ou sobre parte deles; a
excessiva tutela dos técnicos da administração federal sobre os estudos preliminares para a
implantação de tal forma específica de regionalização; a desvalorização do papel dos municípios e
a grande concentração do poder decisório em uma esfera estadual fortemente controlada pelo
governo federal, entre outras (Pacheco, 1995, e Moraes, 2001).
A despeito da pertinência de tais críticas, a razão principal do insucesso destas experiências
pioneiras de gestão metropolitana deve ser buscada na precariedade do equacionamento das
relações intergovernamentais no âmbito metropolitano, imprescindível para a garantia do
comportamento cooperativo dos principais atores envolvidos. Ficaram patentes tanto os
desequilíbrios na articulação entre os três níveis de governo (União, estados e municípios) quanto
as dificuldades na ação cooperativa horizontal, entre os municípios de cada RM, bem como a
incapacidade de se produzir a coordenação intragovernamental, entre órgãos de um mesmo nível
de governo (Pacheco, 1995).
A gestão metropolitana instituída pela LC 14/1973 estava ancorada no funcionamento de dois
conselhos, um deliberativo e outro consultivo. O Conselho Deliberativo (CD) era composto por
seis membros, nomeados pelo governador do estado, sendo um deles indicado a partir de lista
tríplice articulada pelo prefeito da capital e outro pelos demais municípios-membro (Hotz, 2000).
O CD era presidido pelo governador do estado, que indicava diretamente 4 de seus 6 membros,
36
sendo, assim, expressão cabal de seus interesses e prioridades. Cabe recordarmos que os
governadores de estado eram indicados pelo Executivo federal. Por seu turno, o Conselho
Consultivo, congregando os prefeitos dos municípios envolvidos ou seus representantes, tinha
funções bastante periféricas. Nas palavras de Montoro, “os conselhos foram muito mais instâncias
homologatórias de propostas técnicas levadas pelo governo estadual que foros de debates de
problemas de interesse comum” (apud Pacheco, 1995:197).
Ressalte-se que as entidades metropolitanas então instituídas foram pensadas como instâncias
administrativas, sendo desprovidas de poder político (Moraes, 2001). Nos termos utilizados por
Wrigth (1997) para a classificação das relações intergovernamentais, temos exemplificado, no
caso da gestão metropolitana do regime militar, o padrão de autoridade inclusiva. Nos termos
propostos por Stepan (1999), tínhamos no país, claramente, um federalismo com restrições
mínimas ao centro de poder (least center-constraining).
Pensando nas motivações para a ação metropolitana no Brasil e levando em consideração as fontes
de coesão e sustentabilidade da ação concertada, Lopes afirma que este primeiro período, que iria
da primeira metade da década de 1970 a meados da de 1980, caracterizou-se por uma “coerção
simétrica” implementada pelo governo federal. Isso em função da “iniciativa, da vinculação
institucional, da sustentação política e financeira e do repertório de ações metropolitanas
empreendidas desde o governo federal” (2006:144). Como recorda o autor, foi criada à época, no
âmbito federal, uma superestrutura de apoio técnico e financeiro ao desenvolvimento urbano e às
RMs, composta pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), pelo Serviço Federal de Habitação e
Urbanismo (Serfhau) e pela Comissão Nacional de Política Urbana e Regiões Metropolitanas
(CNPU), que seria sucedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU). No
que diz respeito à questão do financiamento, foram criados também os Fundos de
Desenvolvimento Metropolitano, que priorizavam aqueles municípios que adotavam uma postura
de maior colaboração em relação às iniciativas capitaneadas pelo governo federal e pelos estados.
Em sintonia com as políticas macroeconômicas do regime militar, os investimentos nas áreas
metropolitanas se concentraram na circulação, no transporte urbano e na construção civil, sendo as
capitais dos estados, as cidades-pólo das RMs instituídas, tomadas como centros irradiadores do
progresso para as periferias. No que concerne à prestação de serviços públicos como água e
esgotamento sanitário, operou-se no período uma “centralização empresarial em concessionárias
da esfera estadual de governo” (Lopes, 2006:146).
Tal modelo de gestão metropolitana foi denominado por Machado (2007) de “modelo da
tecnocracia esclarecida”, denominação essa que talvez merecesse um reparo, no sentido de se
acrescentar o termo “supostamente”.
Da articulação dos atores que se opunham ao regime militar e do repúdio generalizado ao
centralismo que caracterizava o período de exceção, cristalizou-se no país, em resposta também à
perda de dinamismo da gestão metropolitana no Brasil, na década de 1980, uma postura de
“municipalismo a todo custo”. O “municipalismo autárquico”, que se consolidava então,
redundaria em um tratamento muito genérico da questão metropolitana pela Constituição Federal
de 1988, o qual encontraria reverberação em algumas das constituições estaduais promulgadas no
ano subseqüente.
O texto constitucional de 1988 transferiu a responsabilidade de criação das RMs para o âmbito
estadual, reconhecendo a autonomia dos estados para a formulação de estratégias de gestão de seu
37
território e potencializando a diversificação dos modelos de gestão metropolitana no Brasil. Tal
possibilidade redundou tanto na criação de novas RMs no país como na alteração dos limites
daquelas existentes. Contudo, a força do municipalismo no país levaria a uma grande resistência
em se priorizar a questão metropolitana, cujo enfrentamento demanda ação cooperativa por parte
dos atores envolvidos e, como uma das alternativas então cogitadas, até mesmo a cessão de
parcela da autonomia que se concedia aos municípios. Tais embates explicam o tratamento
genérico da questão pela nova Carta Magna.
Cabe notarmos, aqui, que, a despeito do trabalho de advocacy de alguns atores, o processo
constituinte de 1986 a 1988 acabou redundando na refutação de soluções mais ousadas à
problemática metropolitana. Naquela época, oito das nove RMs do Brasil prepararam um
documento que, a partir de sua experiência de 15 anos de gestão metropolitana, propunha que o
pacto federativo do país incorporasse uma nova instância, ou um quarto nível da Federação, o
metropolitano. A proposta baseava-se na constatação que uma RM não se constitui apenas como
uma região de serviços comuns, socioeconômica, administrativa ou de planejamento do uso do
solo, sendo, fundamentalmente, uma instância política. Tal proposta chegou a ser apresentada à
Assembléia Constituinte, mas não foi votada (Fernandes, 2004).
Ao contrário de outras experiências de governança metropolitana, sem dúvida menos numerosas,
calcadas no “modelo de coordenação supramunicipal”, como é o caso das RMs de Londres e de
Toronto, por exemplo, a “segunda geração” de entidades metropolitanas no Brasil estava, então,
fadada a se constituir como variações do “modelo intermunicipal”. Na verdade, a partir de um
modelo intermunicipal orquestrado pelos estados federados. Segundo Rodríguez e Oviedo (2001),
o “modelo intermunicipal” corresponde a um tipo de governo cuja legitimidade é indireta, posto
que assentada na autoridade de seus membros, os municípios, tendo baixa autonomia financeira,
uma vez que os recursos são oriundos de seus membros e/ou de subsídios dos níveis superiores de
governo. Suas competências são definidas a partir de acordos entre os municípios-membros,
correspondendo a concessões de poder predefinidas e limitadas.
As diversas constituições estaduais, datadas de 1989, deram tratamento muito diferenciado à
problemática metropolitana, tanto no que diz respeito à abrangência da regulação como aos
distintos fatores privilegiados. Cabe ressaltarmos que apenas os estados do Ceará e de São Paulo
enfatizaram a importância estratégica da participação estadual (Azevedo & Mares Guia, 2000).
Nas palavras de Azevedo e Mares Guia,
“a experiência brasileira posta em prática a partir dos anos 1970 evolui, durante as
últimas décadas, de uma gestão metropolitana altamente padronizada, imposta aos
municípios pelo governo federal, para modelos mais flexíveis peculiares a cada estado
da Federação, combinando formas compulsórias e voluntárias de associação que,
constitucionalmente, se caracterizam por uma maior participação dos governos
locais” (2004:98).
Em função do papel central dado às municipalidades nos arranjos institucionais característicos
deste segundo momento de institucionalização das RMs no país, parece-nos pertinente denominar
o modelo instituído pelas Constituições Estaduais de 1989 como o de um “hipermunicipalismo
simétrico”, uma vez que a tendência, no âmbito estadual, foi a de não discriminação de papéis
diferenciados para os municípios-membros, segundo as suas particularidades econômicas e
demográficas e o seu tipo de inserção na dinâmica metropolitana. Neste segundo momento, o que
se verifica, no que toca a gestão metropolitana, é uma aproximação, nos termos de Stepan (1999),
ao modelo de restrições máximas ao centro de poder, a União. Talvez se possa dizer, também, que
38
essa segunda geração do experimentalismo metropolitano no Brasil tenha sido uma expressão do
modelo de relações intergovernamentais segundo o padrão da autoridade coordenada, em função
da existência de limites claros e bem determinados separando o governo nacional dos governos
estaduais, em um contexto em que os níveis de subnacionais governo teriam maior independência
e autonomia (Wright, 1997).
Vale ressaltar que o processo que se inicia com a promulgação das constituições estaduais é
derivado de um cenário não apenas de repúdio ao centralismo que havia caracterizado o regime
militar, sendo também pautado pela crise de financiamento do Estado e pelo desmonte da
superestrutura de apoio do governo federal ao desenvolvimento urbano. Nesse segundo momento
de (re)organização da gestão metropolitana no país, caberia distinguir, de acordo com Lopes, a
coexistência de dois conjuntos de experiências de gestão metropolitana, quais sejam: “aquelas
remanescentes, ainda que renovadas, da matriz estadualista do passado e as novas, identificadas
com um protagonismo voluntarista cujo projeto veio sendo construído local e regionalmente”
(2006:148).
Segundo a periodização proposta por Machado (2007), após o reconhecimento das dificuldades
desta forma exacerbada de municipalismo e com a crise, muitas vezes aguda, das instituições
metropolitanas instituídasi, se seguiria um terceiro momento, de “integração negociada”, no qual,
porém, a questão do financiamento para as ações metropolitanas continua enfrentando obstáculos
políticos, institucionais e legais (Ver Rezende & Garson, 2006). Nesse terceiro momento de
(re)organização da gestão metropolitana no país, em que proliferam as iniciativas de
“desfragmentação” da gestão pública, ganha destaque o experimento institucional que se consolida
hoje no estado de Minas Gerais, que não será discutido aqui em maiores detalhes, mas que busca
reequilibrar o papel dos principais interessados, não apenas dando voz à sociedade civil, mas
revalorizando o governo estadual e dando um peso diferenciado aos municípios do eixo
econômico da RM de Belo Horizonte (Faria, 2008).
Quando se recorda que, atualmente, o governo federal brasileiro volta a pensar a necessidade de se
fomentar a ação cooperativa de escopo metropolitano, talvez o que se projeta para o futuro seja
uma maior possibilidade de as relações intergovernamentais, também nesse âmbito, se
aproximarem do modelo de autoridade superposta, que é caracterizado por interações negociadas
entre os entes, não apenas interações horizontais, mas também verticais (Wright, 1997).
4- Brevíssimas considerações finais
Em trabalho recente, Celina Souza (2006b) discute os “principais constrangimentos às ações
cooperativas nas RMs brasileiras”. São listados e analisados quatro grandes constrangimentos: o
federalismo competitivo do país; o fato de o sistema tributário brasileiro promover a competição
intergovernamental; os efeitos perversos da descentralização promovida no Brasil, que resultou no
“neolocalismo” ou no “municipalismo a todo custo”; e, por fim, o peso da própria trajetória de
institucionalização das RMs no país. Qualquer consideração acerca do impacto esperado da
implantação, ainda em curso, de uma forma supostamente mais equilibrada, dita “negociada”, de
busca de concertação e cooperação entre os atores governamentais no âmbito de algumas das RMs
do país deve, assim, partir da constatação de que são particularmente agudos os constrangimentos
impostos pelo próprio pacto federativo do Brasil. Qualquer solução autárquica, no âmbito
estadual, estará necessariamente pressionada pelas forças estruturantes do conjunto das relações
intergovernamentais do país.
39
O impacto do experimentalismo institucional no âmbito metropolitano, que hoje volta a ganhar
intensidade no Brasil, fica, por certo, condicionado ao reconhecimento, explicitação e negociação
da interdependência, conforme as características do modelo de autoridade superposta proposto
por Wrigth. Afinal, como sugerido por Pressman há mais de trinta anos, as relações
intergovernamentais irão sempre gerar “doadores” e “receptores”, que dependem um do outro em
um cenário em que nenhum deles tem completo controle sobre a interação. Por isso são
importantes os instrumentos de apoio mútuo, construídos pela via de negociações que serão,
necessariamente, parcialmente cooperativas e parcialmente antagônicas (apud Souza, 2006b:178).
A mudança no modelo institucional, ainda que não possa ser vista como panacéia, parece
necessária, contudo, para que os impasses verificados nos modelos de gestão metropolitana de
segunda geração possam ser superados.
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41
MÓDULO 2: Artigos Referenciais:
Experiência de Aplicação da Lei de Consórcios Públicos no Município de Belo Horizonte: O
Consórcio Regional de Promoção da Cidadania – “Mulheres das Gerais”
Marina Esteves Lopes
Resumo: A partir da publicação da Lei 11.107/05, os arranjos cooperativos entre os entes
federados tomaram um novo rumo. A região metropolitana de Belo Horizonte, foi escolhida no
âmbito do projeto Novos Consórcios Públicos para Governança Metropolitana (NCP), financiado
pela Agência Canandense de Desenvolvimento Internacional (CIDA), para implantar um
consórcio público e testar os limites, dificuladades e aplicações da Lei de Consórcios. O tema
escolhido foi o enfrentamento da violência contra a mulher, um grave problema mundial
caracterizado como violação aos direitos humanos. O objetivo deste trabalho é fazer o relato da
experiência de implementação do referido Consórcio Público, apresentando as dificuldades e as
opções feitas, especialmente na seara jurídica, ao longo de mais de dois anos de desenvolvimento,
que culminaram na assinatura e aprovação pelos Poderes Legislativos municipais, do Protocolo de
Intenções do Consórcio, do estatuto e contrato de rateio, fazendo uma avaliação dos resultados
obtidos até agora e dos projetados para o futuro. Em especial discute-se a definição da temática e o
enfretamento da violência contra a mulher como interesse passível de consorciamento. As
finalidades específicas do Consórcio, os modelos de gestão associada, cooperada e coordenada e a
estrutura organizacional do Consórcio, além da opção pelo consenso.
Palavras-Chaves: Direito Público; Consórcio Público; Federalismo Cooperativo; Violência
contra a mulher.
1. INTRODUÇÃO
Na estrutura da Constituição de 1988 (BRASIL,1988), o município foi reconhecido como ente
federado, com grande aumento de suas competências e responsabilidades, através de intensa
descentralização de políticas públicas, pelo fortalecimento do poder local e por mecanismos
(pouco) coordenados de relação vertical e horizontal entre os demais entes federativos. Ao mesmo
tempo, a ausência de políticas de desenvolvimento regional acentuou as desigualdades locais e
regionais observadas historicamente no país. Ocorre que, muitos municípios não têm condições
técnicas ou financeiras para, sozinhos, executarem as competências que lhe são atribuídas.
Nas regiões metropolitanas a situação é agravada pela característica da ocupação que faz com que
os problemas de um município afetem diretamente o município vizinho, não sendo possível pensar
em soluções realmente eficazes e permanentes que não passem por uma ação regional. Mesmo um
município rico, com alta capacidade técnica e política para atuar, não consegue blindar suas
fronteiras e trabalhar solucionando seus problemas locais, pois a população regional
necessariamente se movimenta entre territórios vizinhos transportando problemas e soluções entre
eles.
Assim, em muitos casos, o enfrentamento de problemas ou a apresentação de soluções para temas
de interesse comum entre os municípios, estado e União, deve ser trabalhado aplicando-se o
modelo de federalismo cooperativo festejado em nossa Constituição de 1988 (BRASIL,1988) que
prevê a atuação concertada entre os entes da federação como um meio de se concretizar a
democracia.
42
Segundo Odete Medauar e Gustavo Justino de Oliveira (2006), “são evidentes as vantagens da
cooperação entre os entes federados, podendo ser citadas: (a) a racionalização do uso dos recursos
existentes, destinados ao planejamento, programação e execução de objetivos de interesses
comuns, (b) a criação de vínculos ou fortalecimento dos vínculos preexistentes, com a formação
ou consolidação de uma identidade regional, (c) a instrumentalização da promoção do
desenvolvimento local, regional e nacional e (d) a conjugação de esforços para atender as
necessidades da população, as quais não poderiam ser atendidas de outro modo diante de um
quadro de escassez de recursos.”
Em verdade, ações conjuntas, convênios e consórcios entre entes federados, especialmente
consórcios intermunicipais, não são novidade em nosso país, mas em virtude da prática política e
do entendimento jurídico sobre a natureza destes institutos, estas iniciativas sempre sofreram com
a fragilidade do ajuste estabelecido.
Os consórcios intermunicipais, com natureza jurídica de associações privadas, para a realização de
finalidades amplas ou especificas, sem qualquer traço obrigacional entre os entes de mesma
espécie, padecia de um vínculo mais forte e levava a uma situação de incerteza e de falta de
perspectiva para além do prazo de um mandato, ou do interesse do chefe do poder executivo.
As limitações institucionais e jurídicas da repartição de competências constitucionais entre os
entes federados e principalmente a precariedade dos arranjos utilizados pelos municípios levaram
à aprovação da Emenda Constitucional nº 19 de 1998 (BRASIL,1998), que alterou a redação do
art. 2412 e passou a prever expressamente os consórcios públicos, os convênios de cooperação e a
gestão associada de serviços públicos.
Apesar da mudança no art. 241, foi mantida a prática de se criar consórcios públicos como
associações civis que não cumpriam com os preceitos de direito público. O principal motivo para
isso é que, apesar de previsto na Constituição (BRASIL, 1988), a figura do consórcio público não
havia regulamentação na legislação infraconstitucional.
Alguns órgãos de controle e parte da doutrina jurídica também não se adequaram à inovação
defendendo o entendimento histórico, de que os consórcios públicos eram meros pactos de
cooperação, celebrados entre entidades estatais de mesma espécie ou do mesmo nível, de natureza
precária e sem personalidade jurídica – tal como os convênios.
Para que a mudança instituída pela Emenda Constitucional nº 19/1998 (BRASIL, 1988) fosse
aplicável, o Governo Federal propôs a Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005 (BRASIL, 2005),
dispondo sobre normas gerais de consórcios públicos, abrangendo igualmente os convênios de
cooperação e os contratos de programa. Ao editar normas gerais de contratação, fazendo uso de
sua competência privativa exposta no art. 22, inc. XXVII, a União fixa diretrizes para si própria e
para todos os outros entes da Federação, não excluindo a competência legislativa destes para
suplementar tais preceitos, como dispõe o §2º do art. 24 da também da Constituição de 1988
(BRASIL,1988).
2
“Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios
públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos,
bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços
transferidos.”
43
A Lei dos Consórcios Públicos (BRASIL,2005), como ficou conhecida, inovou em diversos
pontos, principalmente ao estabelecer que o consórcio seja criado e extinto por lei, de natureza
publica ou privada e tenha personalidade jurídica própria, reduzindo a precariedade e conferindo,
em tese, mais chance de perenidade ao vínculo (FORTINI, 2007).
A Lei de Consórcios foi regulamentada em fevereiro de 2007 pelo Decreto nº 6.017 (BRASIL,
2007). A partir daí as ações visando sua implementação começaram a surgir com mais força no
cenário nacional.
O governo brasileiro, por meio do Ministério das Cidades, firmou, em 2006, com a Universidade
de British Columbia, do Canadá, acordo de cooperação em torno da implementação do Projeto
Melhorando a Governança Metropolitana através de Consórcios Públicos (Projeto Governança). O
projeto, financiado pela Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional – CIDA, tem como
com objetivo desenvolver e aplicar o modelo de consorciamento público na resolução de
problemas regionais, à partir do marco regulatório estabelecido pela Lei 11.107/05, testar os
limites e instrumentos criados pela lei, fornecer suporte técnico e financeiro para fomentar a
constituição de consórcios, com vistas a compartilhar responsabilidades, recursos e conhecimentos
para o enfrentamento dos problemas urbanos locais e regionais, com base na larga experiência do
Canadá em governança através do consorciamento.
Foram selecionados e convidados por Belo Horizonte, a desenvolver e compor um consórcio os
municípios de Sabará, Betim e Contagem, integrantes da região metropolitana de Belo Horizonte,
através de aferição de dados objetivos bem como o grau de interesse e desenvolvimento na área de
atuação escolhida para consorciamento, qual seja enfrentamento da violência contra a mulher.
Em 10 de outubro de 2007 aqueles municípios assinaram o Protocolo de Intenções para
constituição do Consórcio Regional de Promoção da Cidadania – “Mulheres das Gerais”
(Consórcio). Em dezembro do mesmo ano o Protocolo de Intenções foi enviado e aprovado, sem
ressalvas, pelas Câmaras Municipais com o lançamento oficial ocorrido 27 de março de 2008, em
comemoração ao Mês Internacional da Mulher.
Em linhas gerais, o Consórcio é pessoa jurídica de direito público interno, do tipo associação
pública, com personalidade jurídica própria, que integra a administração direta de todos os
municípios consorciados como autarquia. Como veremos com mais detalhes, a finalidade é o
enfrentamento da violência contra a mulher, sendo repassado ao Consórcio a gestão dos
equipamento urbanos afetos ao serviço de abrigamento da mulher em situação de risco. As
despesas com o Consórcio serão, inicialmente, repartidas entre os municípios de acordo com a
utilização (nº de vagas) do equipamento público de gestão associada Casa Abrigo. O repasse de
recursos dos municípios para o Consorcio se dá anualmente através de um Contrato de Rateio.
Espera-se que com o tempo o Consorcio consiga ter independência financeira com captação e
geração próprias de recursos para seu sustento, deixando de depender dos municípios
consorciados. Optou-se por se trabalhar preferencialmente com servidores cedidos dos entes
consorciados, como uma forma de diminuir o custo, entretanto há previsão de que eventuais novos
funcionários sejam empregados públicos, regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas.
O objetivo deste trabalho é fazer um breve relato da experiência de implementação do Projeto
Governança, pela Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Informação da Prefeitura de
Belo Horizonte, apresentando as dificuldades e as opções feitas, especialmente na seara jurídica,
ao longo de mais de dois anos de desenvolvimento, que culminaram na assinatura e aprovação do
44
Protocolo de Intenções do Consórcio, aprovação de seu Estatuto e Contrato de Rateio, fazendo
uma avaliação dos resultados obtidos até agora e dos projetados para o futuro.
2. DESENVOLVIMENTO DO PROJETO
O desenvolvimento do Projeto Governança para construção do Consórcio exigiu a conjugação de
esforços dos gestores públicos, da equipe técnica temática e jurídica, pois se tratava de legislação
recentíssima e praticamente desconhecida. A necessidade inicial formou um modo de trabalho
muito bem sucedido, que foi, posteriormente adotado pelos outros municípios consorciados, sendo
formalizado através de um ato do Chefe do Executivo de cada município que destacava os
componentes do projeto na área técnica, na área jurídica e na área política, responsabilizando cada
qual por sua atuação.
2.1. A definição da temática, a questão de gênero e a violência contra a mulher
Dentre diversas possibilidades estudadas para ser objeto do Consórcio, o tema escolhido pelo
município de Belo Horizonte foi o enfrentamento da violência contra a mulher.
Anteriormente a iniciativa de criação do Consórcio Regional, os municípios de Belo Horizonte,
Betim, Contagem e Sabará, já desenvolviam, de forma isolada, ações destinadas ao enfrentamento
da violência contra à mulher que geravam resultados tímidos, de limitada abrangência e recursos
aplicados de formas descontinuadas. Belo Horizonte e Betim já contavam até com uma parceria
informal que envolvia repasses de recursos para custeio de ações de abrigamento de mulheres em
risco residentes em Betim na Casa Abrigo de Belo Horizonte.
Entretanto, havia dúvida sobre a possibilidade jurídica de se utilizar o instituto do consórcio para
esta finalidade. A dúvida era fundada em dois pontos principais: (i) o art 241 da Constituição da
República (BRASIL, 1988) institui o consórcio público e menciona a gestão associada de serviços
públicos, por sua vez o Decreto nº 6.017/2007 que regulamentou a Lei de Consórcios definiu em
seu art 2º, inc. XIV, serviço público como “atividade ou comodidade material fruível diretamente
pelo usuário, que possa se remunerado por meio de taxa, tarifa ou preço público”. Os serviços
públicos, de suma relevância, que seriam prestados pelo Consórcio, no âmbito do enfrentamento a
violência contra a mulher, não cabiam na estreita definição dada pelo Decreto, não havia caráter
de universalidade em sua prestação e muito menos ele poderia ser remunerado por meio de taxa,
tarifa ou preço público. Reforçava este entendimento o fato de que, embora a Lei de Consórcio
não estabelecesse em sua ementa a função de regulamentar o art 241 da Constituição da
República, a assimilação era imediata, fazendo com que a primeira reação dos juristas fosse de
acusar de inconstitucional o uso do instituto para aquela temática. (ii) piorava a situação a mens
legislatoris que colocou como foco da Lei de Consórcios o fomento a ações e projetos de infraestrutura, meio ambiente e saneamento básico, fazendo com que a equipe da Casa Civil, que havia
trabalhado na formulação da lei, não reconhecesse como objeto de consórcio o compartilhamento
de ações para a execução de uma política pública, por exemplo. Contra todas as oposições e
firmemente apoiado pelos parceiros canadenses, Belo Horizonte assumiu a escolha da temática de
enfrentamento a violência entendendo ser este um relevante objetivo de interesse comum dos
municípios consorciados.
Tendo em vista que a doutrina brasileira não é uniforme, nos filiamos a corrente que entende que o
conceito de serviço público, referido no art. 241 da Constituição da República, deve ser entendido
de maneira extensiva, contemplando não apenas serviços públicos strictu sensu (conforme
45
conceitua o decreto regulamentador), mas também outras atividades administrativas de interesse
comum. Além do mais, a redação do art. 1º, caput da Lei de Consórcios não determina um elenco
exaustivo de objetivos de interesse comum e não condiciona a prestação de serviço público, desde
que atendidos os limites constitucionais referidos no art. 2º, caput.
Assim, embora não se confundam as competências constitucionais comuns com os objetivos de
interesse comum dos entes consorciados, entendemos que o objetivo do Consorcio é executar as
competências comuns arroladas nos incisos II e X do art. 23, sem ultrapassar suas competências
definidas no art 30, todos da Constituição da República.
2.1.1 A relevância da questão de gênero e a violência contra a mulher
A Constituição Federal de 1988 instituiu e consolidou importantes avanços na ampliação dos
direitos das mulheres e no estabelecimento de relações de gênero mais igualitárias. No mesmo
sentido seguem as normas jurídicas que asseguram direitos às mulheres, aprovadas após a
promulgação desta Constituição.
Do ponto de vista da construção e implementação de políticas públicas, os dados demográficos
oferecem referências básicas para a identificação e projeção de demandas sociais. No combate às
desigualdades vinculadas ao gênero e à pobreza, consolida-se o reconhecimento de que as
iniciativas serão mais eficazes se planejadas com base nestes dados. Assim, importa verificar
alguns levantamentos que dão suporte à iniciativa de constituição do Consórcio com o tema
escolhido.
As mulheres representam 51,2% da população brasileira, sendo 46% pretas e pardas. São
aproximadamente 89 milhões, das quais, 85,4% vivem em áreas urbanas. Amplia-se o segmento
de mulheres em idade reprodutiva, ou seja, entre 15 e 49 anos, que em 2003, já representava 54,7
% da população feminina (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004). Admitindo-se
a ampliação desse intervalo para as idades entre 10 e 49 anos, em virtude da incidência elevada de
casos de gravidez precoce, este percentual corresponderia a 63,7% (PNAD/IBGE 2003).
Um dos pontos de maior disparidades entre homens e mulheres diz respeito à participação na
economia. A participação das mulheres na faixa de População Economicamente Ativa (PEA) tem
crescido, mas, embora o grau de escolaridade média das mulheres sejam maior que o dos homens,
as funções ocupadas no mercado de trabalho e a proporção entre o rendimento médio das mulheres
em relação ao rendimento médio dos homens é gritante. Segundo o censo demográfico 2000 do
IBGE, em Belo Horizonte, embora as mulheres tenham em média 9,3 anos de estudo contra em
média de 8,7 dos homens, o rendimento médio das mulheres ocupadas representa 63,70%
daqueles relativos à população masculina (SNIG - Censos de 1991 e 2000). A violência de gênero
afeta constantemente a probabilidade geral de uma mulher conseguir um emprego, tem influencia
no salário e na sua capacidade de manter o emprego.
A violência contra a mulher é um dos principais indicadores da discriminação de gênero e o seu
enfrentamento, em suas diferentes formas de expressão, variando do assédio moral e da violência
psicológica até as manifestações extremas da agressão física e sexual, é um desafio para o Poder
Público. O Relatório Mundial da Organização das Nações Unidas sobre Violência, publicado em
2002, destaca: visível custo humano; elevado custo à rede de saúde pública, relativo às internações
e ao atendimento físico e psicológico; e repercussões no mercado de trabalho, em razão dos
prejuízos ao desempenho profissional da vítima.
46
A violência contra a mulher acontece no mundo inteiro e atinge mulheres de todas as idades,
classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. Qualquer que seja o tipo, física, sexual,
psicológica, ou patrimonial, a violência está vinculada ao poder e à desigualdade das relações de
gênero, onde impera o domínio dos homens, e está ligada à ideologia dominante que lhe dá
sustentação.
As mulheres brasileiras são duplamente vítimas de situações violentas: como cidadãs se defrontam
com as diversas formas de violência que atingem a sociedade brasileira; como cidadãs e mulheres,
com a violência de gênero. Esta forma de violência ocorre, fundamentalmente, no ambiente
doméstico, sendo praticada, quase sempre, por homens da família. Protegidos pelos laços afetivos,
eles podem levar ao extremo as relações de dominação originadas na cultura patriarcal, centrada
na idéia de sujeição das mulheres ao exercício do poder masculino, e se necessário pelo uso da
força.
São muitas as formas de violência contra a mulher: desigualdades salariais; assédio sexual; uso do
corpo como objeto; agressões sexuais; assédio moral, tráfico nacional e internacional de mulheres
e meninas.
Informações recentes, resultantes de pesquisas e dos atendimentos em serviços especializados, tais
como Delegacias Especializadas, Centros de Referência e Casas-Abrigo, demonstram a magnitude
do problema. Os dados sobre Belo Horizonte estão disponíveis no relatório preliminar do Perfil
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, com pergunta estimulada 43% das mulheres
admitem terem sofrido alguma forma de violência, contrastando com a resposta espontânea
quando apenas 19% admitem terem sido submetidas a alguma forma de violência.
Esta pesquisa mostra que cerca de uma, em cada cinco mulheres brasileiras, sofreu algum tipo de
violência por parte de algum homem. “A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo
investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram
espancadas ao menos uma vez”. Projeta-se no mínimo 2,1 milhões de mulheres espancadas por
ano, ou seja, uma em cada 15 segundos”(PERSEU ABRAMO, 2001).
O relatório nacional da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de
Exploração Sexual Comercial no Brasil, coordenada pelo CECRIA (2002), comprova que no
tráfico para fins sexuais predominam as mulheres e adolescentes afro-descendentes, com idade
entre 15 e 25 anos. A pesquisa mostra que das 131 rotas internacionais, 102 lidam com tráfico de
mulheres, 60 são utilizadas para transportar “somente mulheres” e das 78 rotas interestaduais, 62
envolvem adolescentes. As mulheres adultas são preferencialmente traficadas para outros países.
Outro fato grave é o abuso sexual de jovens. A partir da pesquisa Juventude e Sexualidade
(UNESCO, 2004), estima-se que uma em cada três ou quatro meninas jovens é abusada
sexualmente antes de completar 18 anos. O Ministério da Justiça registra anualmente cerca de
50.000 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.
A efetividade das ações de prevenção e redução da violência doméstica e sexual depende da
reunião de recursos públicos e comunitários e do envolvimento do Estado e da sociedade em seu
conjunto. É preciso que estejam envolvidos os poderes legislativo, judiciário e executivo, os
movimentos sociais, e a comunidade, guardadas as competências e responsabilidades,
estabelecendo uma rede de atendimento e proteção.
47
Grande avanço no campo legislativo se deu com a entrada em vigor da Lei nº 11.340 de 07 de
agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha3, que visa coibir a violência domestica e
domiciliar contra a mulher. Foram muitas as mudanças estabelecidas pelo novo diploma legal,
tanto na tipificação dos crimes de violência contra a mulher, quanto nos procedimentos judiciais e
da autoridade policial. Ela tipifica a violência domestica como uma das formas de violação dos
direitos humanos. Altera o Código Penal e possibilita que agressores sejam presos em flagrante,
ou tenham sua prisão decretada, quando ameaçarem a integridade física da mulher. Prevê, ainda,
inéditas medidas de proteção para a mulher que corre risco de vida, como o afastamento do
agressor do domicilio e a proibição de sua aproximação física da mulher agredida e de seus filhos
(Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006).
Cabe ao Estado adotar uma política sistemática e continuada em diferentes áreas. A intervenção
deve se caracterizar pela promoção e implementação de políticas públicas de responsabilidade dos
governos federal, estaduais e municipais, constituindo uma rede de ações e serviços.
As redes devem articular assistência jurídica, social, serviços de saúde, segurança, educação e
trabalho. Os serviços e organizações que compõem as redes incluem: Delegacias Especializadas
de Atendimento à Mulher, delegacias comuns, Centro de Referencia, Defensorias Públicas da
Mulher, Defensorias Públicas, Instituto Médico Legal, Serviços de Saúde, Polícia Militar, Corpo
de Bombeiros, Casas Abrigos e Casas de Passagem.
As informações disponíveis atestam que a violência contra a mulher é um fenômeno transversal
que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridades ou
raças. Isto justifica a adoção de políticas de caráter universal, acessíveis a todas as mulheres, que
englobem as diferentes modalidades pelas quais ela se expressa. Entretanto, as mulheres mais
pobres e com menor grau de independência financeira, com menores perspectivas de
sobrevivência fora da casa do agressor, obviamente estão mais vulneráveis.
Especificamente para estas mulheres para as quais a violência já se instalou e estão em situação de
limite de vulnerabilidade é que os equipamentos de atendimento Casa Abrigo4 e a Casa de
Passagem5, ambas previstas como equipamentos de gestão associada pelo Consórcio, passam a ser
primordiais para a proteção da vida.
Por outro lado, como a violência contra a mulher está vinculada ao poder e a desigualdade das
relações de gênero é necessário pensar ações desenvolvidas tanto no âmbito da prevenção quanto
no âmbito do atendimento. Desta forma, outros eixos de atuação preventiva do Consórcio tais
como os projetos de educação não sexista, promotoras legais populares e do protagonismo juvenil,
3
Maria da Penha protagonizou um caso simbólico de violência domestica e familiar contra a mulher. Em 1983, por
duas vezes, seu marido tentou assassina-la. Na primeira vez por arma de fogo e na segunda, com requintes de
crueldade e tortura, por eletrocussão e afogamento. As lesões foram irreversíveis a sua saúde com paraplegia e outras
seqüelas, mas Maria da Penha transformou a dor em luta e ajudou a consolidar os avanços obtidos até hoje.
4
Equipamento público, atualmente pertencente ao município de Belo Horizonte, que atende mulheres e seus filhos
menores de 18 anos, que vivem situação de violência cronificada de gênero com risco de morte, sem alternativas de
proteção, por um período médio de 30 a 90 dias. Está previsto para o primeiro ano do Consórcio a ampliação e
qualificação do atendimento da Casa, de 10 para 20 vagas para as mulheres e 60 vagas para os filhos menores.
5
Equipamento público, que tem como público alvo, exclusivamente, mulheres em situação de violência de gênero e
seus filhos menores de 18 anos que necessitam sair do lar em caso de emergência, por medida de segurança e proteção,
necessitando de um abrigo temporário, para que nesse período possam ser tomadas as devidas providências para o
andamento do caso. Sua implementação está prevista para o segundo ano de funcionamento do Consórcio.
48
visam desconstruir os estereótipos de gênero que contribuem para a manutenção da violência
contra as mulheres.
Este é o fundamento para o delineamento das políticas publicas a serem implementadas pelos
municípios consorciados que viabilizou a criação do Consorcio.
2.2. Finalidades Gerais e Específicas do Consórcio: Da Gestão Associada, Gestão
Cooperadas e Coordenada
Para Vital Moreira (1997, p. 360), a característica básica do consórcio (público ou privado) “é a de
que ele visa realizar interesses comuns aos entes consorciados, mas com respeito da titularidade
deles pelos seus membros. O consórcio é um instrumento de realização de interesses próprios dos
consorciados. São, portanto, essencialmente formas de cooperação e não de fusão, integração ou
absorção.”
Desde logo entendemos que a formação do consórcio público não poderia ferir a autonomia dos
entes federativos consorciados, em especial no campo das decisões quanto às políticas públicas a
serem adotadas ou priorizadas por cada município.
Segundo Odete Medauar e Gustavo Justino de Oliveira (2006, p.36) “embora seja inerente à
formação e à constituição dos consórcios públicos a delegação de atividades decorrentes das
competências constitucionais, isso não significa que um ente consorciado renuncie a suas
competências em favor de outro ente ou do próprio consórcio.”
Por outro lado, um dos objetivos da formação do consórcio era retirar da responsabilidade
exclusiva de Belo Horizonte6 e transferir exclusivamente para o Consórcio a competência pelo
planejamento e gestão associada dos equipamentos urbanos Casa Abrigo e Casa de Passagem.
Para contemplar todas as expectativas, foi desenvolvida uma definição geral da finalidade do
Consórcio, que exigiu a distinção entre ações que serão desenvolvidas no exclusivamente âmbito
do Consórcio - chamadas de gestão associada - e as chamadas de gestão cooperada e coordenada
que se desenvolvem no âmbito municipal, com intuito de preservar a autonomia dos entes
federativos consorciados e a esfera de decisões políticas dos gestores públicos.7
O Consorcio foi autorizado a realizar a gestão associada dos equipamentos públicos Casa Abrigo e
Casa de Passagem. Sendo reservada aos municípios a gestão cooperada e coordenada das ações de
enfrentamento e prevenção à violência e discriminação contra a mulher8.
6
Atualmente, embora mulheres de outros municípios sejam atendidas pela Casa Abrigo Sempre Viva, só Belo
Horizonte sustenta o equipamento com previsão orçamentária para 2008 de gastos operacionais aproximadamente de
R$ 121.896,00. Com o Consorcio há previsão de se dobrar a capacidade de abrigamento pelo mesmo custo.
7
CLAUSULA QUARTA. (Dos Conceitos) (...)
XXII. Gestão associada: conjunto de ações de responsabilidade exclusiva do consórcio, conforme as condições
estabelecidas neste Protocolo de Intenções.
XXIII. Gestão cooperada e coordenada: conjunto de ações baseada em consenso que, a critério dos entes consorciados,
podem ter seu planejamento, monitoramento ou implementação delegados ao consórcio para trabalhar em conjunto
com os entes consorciados, com objetivo de ampliar o alcance e aumentar a efetividade das políticas e da aplicação de
recursos públicos.
8
CLÁUSULA OITAVA. (Das finalidades). O presente Consórcio Público é constituído como instrumento
viabilizador de ações associadas, cooperadas e coordenadas entre os entes federativos, para ampliar o alcance,
aumentar a efetividade da aplicação de recursos públicos, alavancando assim o impacto das políticas públicas de
responsabilidade partilhada entre os entes consorciados. Assim, o objetivo de interesse comum a ser realizado pelo
49
2.3. A Estrutura Organizacional do Consórcio
A estrutura organizacional do Consórcio é enxuta, e – esperamos – eficiente. Ela é composta de
Presidência, Assembléia Geral, Diretoria Executiva, Conselho Fiscal, Conselho de Gestão e
Superintendência.
Por imposição legal, o Presidente(a) do Consórcio será sempre um dos Chefes do Executivo dos
entes consorciados. Ele(a) representa o Consórcio judicial e extrajudicialmente, ordena as
despesas e responsabiliza-se pela prestação de contas, alem de nomear e exonerar “ad nutum” o
Superintendente do Consórcio. O Presidente(a) é eleito pela Assembléia Geral.
O Superintendente é um cargo chave pois irá exercer a atividade executiva, uma vez que o
Presidente, por motivos óbvios, não poderá se dedicar integralmente ao Consórcio. Sua relação
com o Presidente deve ser de total confiança, pois, afinal, o Superintendente vai executar, mas o
Presidente é quem irá se responsabilizar pessoalmente pela gestão do Consórcio.
A contribuição do Projeto Governança foi importantíssima durante todo o processo, mas foi
fundamental para a construção do perfil de Superintendente que será adotado pelo Consorcio. A
experiência canadense levou à incorporação do mecanismo de tomada de decisão através do
consenso9 que, substitui o debate e a votação por maioria pelo processo de diálogo e negociação,
para que a tomada de decisão se dê da forma mais informada possível.10 O Superintendente é o
catalizador deste processo, cabe a ele centralizar e repassar as informações ao Presidente, aos
membros dos Conselhos e Diretoria com fins de promover o diálogo e negociação sobre as
decisões a serem tomadas.
O Superintendente, assim como outros eventuais servidores do Consócio, serão empregados
públicos, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. A opção pela adoção do regime
celetista se deu, mormente, pela dificuldade de se justificar servidores públicos estatutários em
uma entidade composta por diversos entes. No caso dos empregos públicos a extinção do
Consórcio automaticamente extingue a relação de emprego e, após pagas as devidas verbas
rescisórias, nada mais pode ser exigido dos municípios consorciados.
Consórcio é a prevenção e enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, entendido como uma
das formas de violação dos direitos humanos. Para a efetivação deste, são finalidades do Consórcio:
I – Planejar, fomentar e implementar a gestão associada e compartilhamento dos seguintes equipamentos públicos:
Casa de Passagem e Casa Abrigo;
II - Planejar, fomentar e implementar ações cooperadas e coordenadas, de caráter emancipatório e inclusivo, para a
prevenção e enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres;
III - Planejar, fomentar e implementar ações cooperadas e coordenadas para combater todas as formas de
discriminação contra as mulheres;
IV – Promover a educação, formação e capacitação na perspectiva de gênero nas diversas esferas públicas e privadas;
V – Promover a capacitação técnica do pessoal encarregado da prestação dos serviços voltados à prevenção e ao
combate da violência contra as mulheres nos entes consorciados;
VI – Promover a prestação de serviços à administração direta ou indireta dos entes consorciados;
VII – Adquirir ou administrar bens para o uso compartilhado dos entes consorciados.
9
CLAUSULA QUARTA. (Dos Conceitos) (...)
XII. Consenso: processo de tomada de decisões que abre oportunidade para todos os consorciados trabalharem como
iguais para alcançarem resultados aceitáveis sem posição de pontos de vista e autoridade de um grupo sobre outro.
10
Os parceiros canadenses organizaram treinamentos com a participação do Diretor executivo do Conselho da Bacia
do Rio Fraser no Canadá. Esta instituição de vanguarda na elaboração de mecanismos de tomada de decisão através
do consenso, foi reconhecida pelo Banco Mundial com o melhor modelo de governança regional especialmente pela
eficácia na solução de desafios usando mecanismos de consenso.
50
Apesar de serem empregados públicos, o ingresso se dará mediante processo de seleção pública de
provas ou de provas e títulos, com exceção do Superintendente que é de livre nomeação. Mas há
previsão de que o Consórcio funcionará, preferencialmente, com servidores cedidos dos entes
consorciados.
A Assembléia Geral, instância máxima do Consórcio, é órgão colegiado composto pelos Chefes
do Poder Executivo de todos os entes consorciados.
A Diretoria Executiva é composta por um membro de cada ente consorciado, indicado pelos
Chefes do Poder Executivo, e pelo Superintendente do Consórcio.
O Conselho Fiscal é composto por cinco conselheiros eleitos pela Assembléia Geral dentre os
indicados pelos Poderes Executivo e Legislativo de cada ente consorciado.
O Conselho de gestão é órgão de natureza consultiva e será composto pelos membros da Diretoria
Executiva, e garante a participação da sociedade civil organizada através de representantes do
Poder Legislativo dos entes consorciados e por representantes dos Conselhos Municipais dos
Direitos das Mulheres ou órgãos correspondentes, assegurando-se a estes últimos pelo menos a
metade de sua composição.
Ressalta-se que as atividades da Presidência, Diretoria Executiva, Conselho Fiscal, Conselho de
Gestão, de outros órgãos diretivos que sejam criados pelos estatutos, bem como a participação dos
representantes dos entes consorciados na Assembléia Geral e em outras atividades do Consórcio
não será remunerada, sendo consideradas trabalho público relevante.
O funcionamento interno do Consorcio está regulado por seu Estatuto, consensualmente
construído e aprovado em meados de 2008.
3. CONCLUSÕES
Após este longo processo de desenvolvimento, onde forma tomadas as decisões possíveis dentro
da legalidade, das opções políticas e das limitações impostas, concluímos que:
A abordagem consorciada dos quatro municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte dá
maior segurança jurídica aos entes consorciados na execução de ações compartilhadas para o
enfrentamento da violência contra mulher pois fortalece o efeito de vinculação dos acordos de
cooperação inter-governamentais entre os entes consorciados, tanto no ato da formação, como no
cumprimento das responsabilidades assumidas.
De um lado a natureza contratual do consórcio garante o cumprimento de responsabilidades
administrativas, técnicas e orçamentárias de cada município consorciado. Do outro lado a natureza
jurídica do consórcio permite ganhos de escala na prestação de serviços, racionaliza a aplicação de
recursos públicos e facilita a captação de recursos por transferências intergovernamentais e outras
fontes não governamentais.
O Consórcio representa um avanço significativo na consolidação de políticas para mulheres, uma
vez que, potencializadas pela ação consorciadas, elas tendem a impactar significativamente nos
quadros de violência e combate à pobreza e na melhoria da qualidade de vida daqueles que
residem nas áreas urbanas.
51
Sob o olhar institucional, um grande ganho foi o reconhecimento pelos gestores públicos que a
problemática da violência contra a mulher é um desafio comum que extrapola as fronteiras
municipais. Chegando-se a conclusão de que a abordagem regional é primordial para a construção
participativa de mecanismos e implementação de ações mais eficientes e eficazes no
enfrentamento da violência contra mulher.
Por sua vez, o cuidado de distinguir, já no Protocolo de Intenções as ações e competências que são
melhor executadas no âmbito do Consórcio e as que devem continuar no âmbito dos municípios,
deixou os gestores públicos mais confortáveis com a não interferência em sua esfera de decisão
política. Estabelecendo-se uma relação mútua entre os governos locais e o Consórcio, respeitando
a autonomia e realidade orçamentária de cada ente.
Como método de trabalho e consolidação da colaboração intermunicipal, com garantia da
sustentabilidade das ações, observamos ser necessário um arcabouço jurídico robusto, estruturas
multidisciplinares e intersetoriais e envolvimento de esferas decisórias dentro dos órgãos
governamentais.
Apesar dos enormes avanços alcançados e das excelentes perspectivas, o Consórcio ainda terá
uma fase de implementação quando prevemos diversos tipos de adaptações que serão necessárias
em virtude da própria realidade, mas estamos confiantes de que o principal já foi feito e que os
resultados positivos logo estarão visíveis.
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48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos
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Brasília, 31 dez. 2003.
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52
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UNESCO. Juventudes e Sexualidade. Brasília: UNESCO, março 2004.
53
Custos de Transação na Governança Metropolitana na RMBH e no Grande ABC Paulista
Gustavo Gomes Machado
Organização territorial do poder e gestão metropolitana em países federativos
As discussões em torno da organização territorial do poder estatal figuram como um dos temas
centrais que movimentam a ciência política na atualidade. A importância dessa temática se deve
em parte ao fato dessa discussão afetar outros problemas de pesquisa nevrálgicos para a ciência
política contemporânea como, por exemplo, a crise da democracia representativa, os sistemas
eleitorais, a reforma do Estado e a implementação de políticas públicas.
Também a questão metropolitana guarda estreita relação com os debates em torno da organização
territorial do poder. Afinal, o atributo principal, que a define, é exatamente o hiato existente entre
a organização do território na forma de municípios e a cidade-metrópole real que extrapola esses
limites institucionais.
Portanto, uma reflexão sobre a organização territorial do poder faz-se mister para os objetivos
desse trabalho. Primeiramente, iremos estudá-la com base nos pressupostos teóricos do
federalismo e de sua evolução. Depois será desenvolvida uma análise comparativa de três regimes
federativos distintos, cujo critério diferenciador é o tema da autonomia municipal. Essa discussão
será pautada pela premissa de que as instituições reguladoras dos conflitos federativos decorrentes
da metropolização são determinantes para os custos de transação relacionados à gestão
metropolitana.
No fim do capítulo, são discutidos os aspectos específicos do federalismo brasileiro que
condicionam a questão metropolitana no país. Nesse instante, são introduzidos alguns dos dilemas
gerais que afetam a eficácia das instituições compulsórias e voluntárias de gestão metropolitana no
Brasil.
Aspectos teóricos do federalismo
Denomina-se federação a forma de Estado composta pela reunião de Estados-membros que
conservam, cada um, certo nível de independência e autonomia, mas que se submetem a uma
única Carta Magna, a Constituição, a qual prescreve a existência de um governo central
representante, perante Estados estrangeiros, da União federal.
O Estado federal foi uma criação das treze colônias inglesas da América do Norte que, ao
proclamarem sua independência da Inglaterra em 1776, uniram-se para adotar a forma federativa
de organização estatal. Em um movimento de forças claramente centrípetas, os recém
emancipados Estados da América do Norte aprovaram, em 1787, a Constituição Federal,
documento escrito que definiu as regras do pacto federativo dos Estados Unidos da América.
Surgiu, então, uma forma de organização do poder estatal distinta daquela concebida na Europa
absolutista, já que, na federação, o conceito de soberania adquire novos contornos. (Baracho,
1986)
Como marco zero do federalismo, a experiência norte-americana fornece os elementos básicos
para um estudo analítico do chamado pacto federativo. O federalismo puro, contudo, tal como foi
idealizado por Hamilton, Madison e Jay, os intelectuais da federação, não existe mais. (Baracho,
54
1986) Grosso modo, o federalismo ganhou novas cores, inclusive em decorrência das variantes de
modelos de federação surgidos à medida que a experiência norte-americana influenciou diversos
países a adotarem o federalismo de acordo com suas especificidades, como é o caso do próprio
Brasil. De fato, o cenário mundial apresenta, atualmente, 22 federações, abrangendo 56% da
população mundial. Múltiplos arranjos institucionais são encontrados nesses regimes
federativos.(Camargo, 2003)
Uma das discussões mais recorrentes da literatura aborda a transição do chamado federalismo
competitivo para o padrão contemporâneo: competitivo/cooperativo, conforme se explicará a
seguir. Tal abordagem surgiu com base nas transformações do federalismo norte-americano e são
um ponto de partida interessante para se problematizar a importância das instituições para a
sustentabilidade e equilíbrio do pacto entre os membros de uma federação.
Segundo análise de Abrúcio e Costa (1999), o federalismo norte-americano atual pressupõe, para
se manter em equilíbrio, um continuum de competição e cooperação. Por um lado, os Estadosmembros acatam a idéia de transferir parte de sua autonomia para um poder unificador, porque,
com a soma das forças, mediante um pacto de cooperação, garantir-se-ia, em tese, um jogo de
soma positiva para as partes. Por outro lado, a garantia de eficácia para essa cooperação passaria
pelo estabelecimento de um contrato escrito entre os entes subnacionais, ou seja, a constituição. A
própria origem etimológica do termo federal, que deriva da expressão latina foedus(pacto), ressalta
a importância da idéia de encontro de vontades subjacente à federação.
A Constituição Federal representa as regras para a interação federativa e remete ao viés
transacional do federalismo. Teoricamente, uma federação é uma sociedade perpétua de Estados.
É sociedade, porque pressupõe acordo de vontades para fins comuns dos entes federados. É
perpétua, porque o Estado federado tende a não admitir sua própria dissolução, porquanto as
Constituições Escritas de países que adotam o federalismo definem restrições ou mesmo impedem
mudanças constitucionais tendentes a abolir a federação.
Ao se comportarem como organizações que se associam os entes subnacionais estão sujeitos a um
estatuto comum, a constituição federal. O estabelecimento de normas para a preservação do direito
dos entes, garantidos por um sistema de controle mútuo dos poderes (checks and balances11), está
na base de um desenho institucional propiciador da sustentabilidadde da federação.
No entanto, essa abordagem contemporânea do federalismo aponta uma condição fundamental
para o equilíbrio federal: a existência de um razoável nível de simetria entre os entes, ou seja, deve
haver um consenso quanto à necessidade da maior proporcionalidade de forças possível entre as
organizações. Os sócios da federação devem manter nível de esperança quanto à simetria de força
e evitar um estimulo à competição não-cooperativa entre eles. (Abrúcio e Costa, 1999)
A ausência do equilíbrio de forças, no pacto federativo, se argumenta, deturpa o Estado federal.
Isso historicamente ocorreu nos regimes federais da América Latina, com forte tendência à
centralização. Baracho comenta acerca da forte relação existente entre federação e democracia:
O federalismo convive melhor com os sistemas democráticos, pelo que é incompatível
com formas autocráticas. As características do federalismo demonstram a
11
O “Checks na Balances” representa o controle mutuamente exercido pelos poderes executivo, legislativo e
judiciário entre si.
55
impossibilidade de sua aceitação pelos processos autoritários, que tendem à
centralização política e, muitas vezes, administrativa. Os autoritarismos dificultam
salvaguardar a estrutura federal. Os regimes autocráticos tendem à centralização,
pelo que se torna incompatível com formas federativas que dão autonomia aos
Estados e às suas comunidades componentes, daí que reduzem os elementos inerentes
ao Federalismo. (Baracho, 1986: 66)
O federalismo clássico na forma dual (União e Estados-membros) se assenta em interessante pacto
federativo em que a competição entre os atores pode propiciar o equilíbrio.
Dentre os autores que enfatizam a importância da competição para a sustentação da federação
destaca-se Thomas Dye, que , citado por Abrúcio e Costa, considera que o estimulo à competição
entre os entes federados favorece tanto o controle do poder central, como também melhora as
condições da execução de políticas públicas. Argumenta-se que, assim como nos cheks and
balances, poderes controlam poderes, no federalismo competitivo, governos controlam governos.
(Abrúcio e Costa, 1999:27) Nesse sentido, Thomas Dye visualiza na centralização e na falta de
competição, condições favoráveis à tirania, ou seja, ao abuso de poder. Ainda para o mesmo autor,
existe uma condição indispensável para o funcionamento do federalismo competitivo: a autonomia
financeira dos entes federados. Segundo ele, os custos para prestação de serviços públicos devem
ser cobertos pelo próprio prestador, já que a dependência de recursos repassados por outro ente
comprometeria o equilíbrio federativo.
A simples competição entre os entes federados, contudo, como o próprio Dye reconhece, pode não
gerar resultados ótimos. Em primeiro lugar, porque a competição generalizada poderia
desestimular a cooperação e gerar distorções quanto à questão da equidade. Se uma parte dos entes
federados possuir condições mais vantajosas (maior poderio econômico), haverá uma tendência de
os estados mais fracos abandonarem o jogo federativo
Talvez isso explique, porque, durante a República Velha, quando era vigente a Constituição
Brasileira mais próxima do modelo norte-americano, dois grandes estados comandavam o país:
São Paulo e Minas Gerais. Durante trinta anos, a política no Brasil girou em torno dessas duas
potências da federação brasileira.
Outro problema, que pode ocorrer no federalismo, competitivo, é observado quando um dos
jogadores não adere efetivamente às transações federativas. Ao invés de competir com os outros,
adota uma postura de free rider(carona), aproveitando-se do esforço dos demais entes federados.
Sabendo que o ente concorrente oferece um serviço público melhor, o free rider não se preocupa
em alcançá-lo, optando, por exemplo, por estimular seus próprios cidadãos a utilizarem os
equipamentos públicos do vizinho.(Ribeiro, 2004)
Um caso típico do federalismo brasileiro exemplificador desse dilema é o que ocorre na área da
saúde em regiões metropolitanas. Os municípios mais pobres preferem comprar ambulâncias e
mandar seus doentes para serem tratados em outros municípios metropolitanos, do que eles
próprios constituírem seus equipamentos de saúde. Opção esta que, na maioria dos casos, é a única
disponível, diante da fragilidade financeira da maior parte dos municípios brasileiros. Tal situação
caracterizaria uma disfunção do pacto federativo brasileiro.
O modelo do federalismo competitivo está inserido no contexto da vigência da concepção
puramente liberal de Estado. No momento histórico em que se passou a legitimar a intervenção do
56
Estado para a correção das falhas de mercado, bem como a promoção do desenvolvimento
econômico, o federalismo nos Estados Unidos começou a se modificar no sentido de uma
expansão das atribuições da União na federação. Essa tendência se acelerou após a grande
depressão de 1929, quando, durante o governo Franklin D. Roosevelt (1933-1945), foi posto em
prática o New Deal.
O New Deal ensejou uma maior concentração de recursos e competências no âmbito do governo
federal, veio acompanhado de importantes mudanças institucionais no pacto federativo norteamericano,12 e destacou o viés cooperativo dos jogos federativos. De acordo com essa corrente, o
governo federal cumpre papel de grande relevância para o equilíbrio da federação, que é
compatibilizar as diversas funções públicas dos níveis de governo. Assim, enquanto Thomas Dye
enxerga de forma negativa a posição da União da federação, a vertente da cooperação federativa
defende a União federal como mediadora por excelência do jogo federativo.
Uma evolução mais recente da teoria do federalismo cooperativo proposta por Elazar, citado por
Abrúcio e Costa, agrega em um único modelo tanto o viés da competição quanto o da cooperação.
Essa versão contemporânea do pacto federativo recomenda o misto de competição e cooperação
entre os entes federados, disciplinados por uma constituição escrita tida como garantia à solidez do
Estado. Aliada a essa perspectiva, está a defesa do pluralismo, entendido, segundo Abrúcio e
Costa sob dois ângulos: “o da defesa do autogoverno, valorizando as potencialidades criativas
dos governos subnacionais; e o da função positiva da parceria, enfatizando conceitos como
tolerância, compromisso, barganha e reconhecimento mútuo entre os entes federativos.”(Abrúcio
e Costa, 1999:30-31)
Dessa forma, no modelo competitivo/cooperativo, os entes federados, visualizam no pacto
federativo, um jogo de soma positiva para todos. A garantia de autonomia entre os entes
federados, que se manifesta pela competição, vinculada a valores de cooperação
intergovernamental, propícia a própria sobrevivência da federação.
Faz-se necessária, no entanto, uma condição para o êxito da competição/cooperação: a existência
de instituições estimuladoras do pluralismo. Tal modelo analítico de federalismo pressupõe
mecanismos institucionais e contratuais que vão além do conteúdo escrito da constituição, os quais
são construídos a cada negociação e barganha entre os entes federativos. Esse modelo analítico
enfatiza o aspecto das transações presentes no federalismo. Nesse sentido, as relações entre entes
federados devem ser pautadas por instituições capazes de garantir aos atores o maior nível
possível de autonomia, simetria, União estimulando a pluralidade, e controlada por esta última, e,
por fim, proteção institucional aos direitos e posições assumidas pelos jogadores. Dessa forma, o
continuum competição/cooperação ofereceria os elementos de sustentação de uma federação.
O lugar dos municípios e das regiões metropolitanas em algumas federações: comparação com
o caso brasileiro
Tradicionalmente, as discussões, em torno do federalismo, repousam sobre o formato dual das
federações, figurando nas análises as relações que se estabelecem entre os Estados-membros e a
União Federal.
12
Uma das mudanças institucionais mais significativas no pacto federativo norte americano, que estavam sintonizadas
com o New Deal, foram as reformas das regras para a eleição de Senadores, que até então eram eleitos pelos
legislativos estaduais, e passaram a ser eleitos diretamente pela população, enfraquecendo assim o poder das elites
políticas estaduais na federação.
57
No estudo dos desafios da governança e da governabilidade metropolitana em países federativos, é
necessário também conhecermos a posição dos governos locais na federação.
Apesar de os municípios, em regra, não serem considerados entes integrantes da federação (exceto
o Brasil), normalmente, os problemas de gestão metropolitana repousam com maior vigor nas
relações intergovernamentais entre governos locais, embora em algumas situações, a ocorrência de
regiões metropolitanas interestaduais(por exemplo, Nova Iorque e a Ride13 de Brasília) imponha
dilemas que afetam também as transações entre Estados-membros.
Importa notar que o problema da gestão metropolitana é, ao menos em tese, mais complexo em
países federativos do que em Estados unitários, pois conforme a observação de Paranhos:
A questão em debate é: como fazer a dimensão legal-institucional desse fenômeno
[metropolitano] acompanhar a sua realidade territorial, socioeconômica e funcionalprodutiva? De modo mais específico, o problema está em que, nos Estados Unitários,
apesar da autonomia municipal assegurada nas Constituições, o Governo Central tem
poder suficiente para constituir entidades supramunicipais. Já nos Estados
Federativos, a criação de entidades supramunicipais implica uma renegociação de
poderes, competências e recursos, a partir do que já estiver garantido na Constituição
Federal. Será necessário repactuar esses atributos, pensando em aperfeiçoar a
relação custo-benefício da administração pública, dentro do objetivo geral de prover
bens e serviços à população para satisfazer suas necessidades básicas e melhorar
progresivamente a qualidade de suas condições de vida, homogeneizando e
universalizando o "direito à cidade" para toda a população metropolitana. (Paranhos,
2005:141)
O padrão institucional do município na federação é fator determinante para a medição dos custos
de transação envoltos aos problemas de governança e governabilidade metropolitana. Uma das
questões-chave a esse respeito se refere ao nível de autonomia que os municípios possuem nos
regimes, e esse é um fator importante a ser considerado nas transações intergovernamentais no
complexo metropolitano.
Processos de gestão metropolitana são reconhecidos como tensos, principalmente, quando são
preservados níveis locais de administração. Ao comentar as experiências latino-americanas de
gestão metropolitana, Paranhos ressalta:
“como a autonomia municipal é essencial para a gestão local, é muito compreensível
uma resistência natural para a aceitação de uma outra esfera de territorialização da
federação, principalmente quando se pretende uma autoridade metropolitana
controlada pelo estado federado ou pela União.” (Paranhos, 2005: 33)
A coexistência entre governos locais e metropolitanos remete a uma tensão entre processos que
buscam conferir maior governabilidade regional mediante reconhecimento legal-institucional da
área metropolitana. (Fernandes, 2004)
13
A sigla Ride significa Região Integrada de Desenvolvimento.
58
Dessa forma, os impasses existentes, entre a gestão metropolitana e os governos locais, remetem à
importância do estudo das instituições que regulam a coexistência de desses dois níveis de poder.
Ao tomarmos como critério o nível de autonomia dos governos locais, podemos classificar as
federações em três grupos, de acordo com experiências concretas de federalismo.
No primeiro grupo, encontram-se as federações que definem o governo local como mera instância
administrativa, que, embora dotada de personalidade jurídica própria, pode ser modificado a
qualquer momento pelo poder legislativo de esferas superiores de governo.
No segundo grupo, posicionamos as federações em que o nível de autonomia dos municípios é
maior, podendo estes se autogovernarem em determinados assuntos, independentemente, dos entes
governamentais superiores, mantendo, porém, algum nível de subordinação formal em relação aos
entes federados superiores.
No terceiro grupo, temos as federações em que os municípios são extremamente autônomos, com
manifestações formais dessa condição a ampla autonomia para a auto-organização administrativa,
legislativa e financeira, assim como restrições constitucionais para os entes governamentais
superiores mitigarem essa auto-regulação dos governos locais.
Para problematizar essa classificação das federações em três grupos, iremos abordar três casos.
Cada um é representativo desses três níveis de autonomia municipal: o Canadá, os Estados Unidos
e o Brasil.
Municípios e regiões metropolitanas na federação canadense
No primeiro grupo, caracterizado pela autonomia restrita dos governos locais, está o caso do
Canadá. Nessa federação, a municipalidade é uma jurisdição governamental criada, estruturada, e
passível de modificação legal pela instância de governo, imediatamente, superior à província.
De acordo com Daniel Burns (2005), a Constituição do Canadá inspira-se na tradição britânica,
com algumas partes expressas por escrito e outras não. Enquanto, na Grã-Bretanha, a soberania
nacional é baseada no Parlamento e na Coroa, no Canadá é compartilhada entre o Parlamento
Nacional e os poderes legislativos das dez províncias. Na divisão de poderes entre o governo
central e as províncias, estas são responsáveis por legislar sobre o governo local. Portanto, na
federação canadense, as municipalidades não configuram uma esfera de governo e não possuem
status constitucional. Como se definem e o que podem fazer dependem dos poderes legislativos ou
dos governos das províncias.
A província, normalmente, edita legislação que organiza o governo local, estabelecendo
detalhadamente os deveres e poderes dos municípios.
A restrita autonomia e a ausência de status constitucional do município, no Canadá, reduzem
custos de transação para mudanças institucionais relativas à organização do território, como no
caso das regiões metropolitanas.
As escolhas institucionais para organização das regiões metropolitanas variam de acordo com a
legislação própria de cada província e com especificidades do processo histórico local. Entretanto,
59
pode ser identificado um padrão no Canadá de constantes reformulações das fronteiras municipais
para melhor adequação ao processo de metropolização.(Burns, 2005)
Com exceção da província de Vancouver, onde o organismo regional da área metropolitana se
dedica apenas a atividades de planejamento regional e de trânsito, houve reformas municipais
profundas em regiões metropolitanas de províncias como Nova Scotia, Quebéc e Ontário. Burns
(2005) revela que as cidades de Halifax, Québec, Hull e todos os municípios na ilha de Montreal,
que antes estavam organizadas em numerosos governos em suas regiões, cada qual contando
também com alguma forma de organismo regional, foram transformadas em municípios singulares
englobando toda a extensão geográfica metropolitana. Tais reformas foram orientadas por
diretrizes de maior convergência entre a capacidade fiscal e técnica dos municípios e suas
responsabilidades, em um momento de “restrições substanciais de gastos em todo o setor
público.” (Burns, 2005:169).
A autonomia municipal é bastante restrita na província de Ontário, e têm uma explicação histórica.
Durante os anos da grande depressão, boa parte dos municípios de Ontário foi à falência e eles
foram submetidos ao controle do governo da província. Foram editadas novas normas para
garantir que os municípios assegurassem uma situação financeira equilibrada. Segundo Burns
(2005), desde então,
“os municípios não podem apresentar déficit operacional e, caso este ocorra ao longo
do ano, tem de ser retificado no ano seguinte. Além disso, qualquer plano de
empréstimo de capital desenvolvido por um governo local precisa ser aprovado pelo
Conselho Municipal de Ontário. Os municípios não podem pedir empréstimos de
capital, se isto comprometer sua eficácia operacional. O resultado deste sistema, e de
sistemas similares aplicados nas outras províncias, é que o setor municipal canadense
apresenta superávit todos os anos na prestação de contas em nível nacional.” (Burns,
2005: )
Em Ontário, a legislação provincial prevê um interessante expediente por meio do qual os próprios
municípios podem ampliar suas fronteiras geográficas e negociar entre si fusões e anexações.
Nessa província, um município pode propor a anexação territorial a outro, que pode aceitar ou
rejeitar a proposta. Se a transação não for bem sucedida, o município responsável pela proposta
poderá apelar ao Conselho Municipal de Ontário, que, como um magistrado, detém poderes para
impor legalmente sua decisão às partes. Segundo Burns (2005:170), “ao longo da maior parte da
história de Ontário, esta tem sido a forma pela qual as cidades ampliam suas fronteiras.”
O método mais freqüente de reorganização municipal, em Ontário, tem sido a aprovação de leis
provinciais. O mais representativo desses casos foi a criação por lei de governos regionais: a
começar pelo município da Região Metropolitana de Toronto, na década de 1950. Até 1970, foram
criados municípios regionais em todas as localidades que sofreram processo de metropolização na
província, englobando todas as áreas adjacentes a Toronto e também a Ottawa e a Hamilton. Tais
governos constituíam uma nova esfera administrativa, possuindo geralmente Câmaras Municipais
com uma combinação de representantes eleitos, anteriormente, na esfera inferior e outros eleitos
diretamente pela população.
Normalmente, a criação desses governos regionais, em áreas metropolitanas, fundamentou-se em
três ordens de fatores: a administração do crescimento, a obtenção de maior equidade nas finanças
60
públicas e a organização dos serviços de policiamento em áreas geográficas maiores e mais
eficazes. Burns ressalta que a metropolização
“gerou a necessidade de se mobilizar uma soma significativa de capital e de se criar
organizações prestadoras de serviços públicos com capacidade técnica e profissional
para administrar a maior demanda. A equidade nas finanças públicas significava
que esses custos poderiam ser distribuídos pela base de impostos de toda a região, e
não apenas das áreas em crescimento acelerado. Depois, pelo mesmo motivo, a base
de impostos regional foi utilizada para financiar a educação e a quota de serviços
sociais em escala local.”(Burns, 2005:170)
Mais recentemente, na década de 1990, a reorganização dos municípios foi bastante pautada pela
agenda de reformas do setor público canadense, com particular ênfase na melhoria da qualidade do
gasto governamental.
Muitos municípios desapareceram do mapa, por serem considerados de menor escala. Foram
incentivadas fusões de governos locais. Nas três principais áreas metropolitanas, a fusão foi
imposta por lei. O foco das mudanças foi o alcance da escala correta para a gestão, o controle de
custos, o aperfeiçoamento da prestação de contas e a simplificação geral da governança e da oferta
de serviços públicos. (Burns, 2005)
Como se pode notar, o federalismo canadense oferece custos de transação vigorosamente baixos
para a implantação vertical e compulsória de sistemas de gestão metropolitana.
Municípios e regiões metropolitanas na federação brasileira
Em nossa classificação das federações segundo o grau de autonomia dos governos locais,
chegamos finalmente ao terceiro grupo, cujo modelo federativo que ilustrará nossa análise é
exatamente o brasileiro.
O Brasil foi a primeira federação do mundo a definir o município como ente federativo
expressamente em sua constituição escrita (Camargo, 2003). Mais que mero discurso retórico do
texto constitucional, existem três argumentos básicos que tornam o Brasil virtualmente
incomparável no que se refere à autonomia formal dos governos locais.
O primeiro argumento enfatiza que o município no Brasil edita leis próprias pelo seu poder
legislativo, a Câmara Municipal. Nas palavras de Paranhos (2005:146), “a autonomia política é
um fato, já que as autoridades locais são todas elas eleitas sufrágio universal”.As leis federais
e estaduais não valem mais nem menos que as leis municipais aprovadas. São três níveis
diferentes de produção legislativa, e cada nível é responsável pela regulação de assuntos
estipulados diretamente na Constituição Federal.
O segundo argumento salienta que os municípios elaboram e aprovam de maneira autônoma sua
Lei Orgânica e é desnecessária a consulta aos entes federativos superiores. Logo, os governos
locais se auto-organizam pelas normas gerais da Constituição Federal e por meio das Leis
Orgânicas, aprovadas pelas Câmaras Municipais.
O terceiro argumento ressalta que a autonomia financeira local é formalmente definida, e os
municípios detêm poderes para estabelecer e arrecadar tributos de forma autônoma, nos
61
limites da constituição. Para Paranhos (2005) a autonomia financeira dos municípios
brasileiros
“é mais duvidosa em alguns casos, apesar de que todas têm recursos próprios,
mas estes geralmente não são suficientes para cobrir todas as necessidades
operacionais e de investimentos. Estes recursos são geralmente complementados
por transferências da esfera nacional e intermediária, que nem sempre são
programadas. De um certo tamanho populacional para baixo, os municípios
dependem cada vez mais dessas transferências para poder realizar seus
programas de ação.”(Paranhos, 2005:146)
Ademais, vigora no Brasil um formato institucional padrão de município, não havendo distinções
de espécies e escalas de governos locais, tal como ocorre nos Estados Unidos. Todos os
municípios são presumidamente iguais no jogo federativo.
A força do poder local na federação brasileira sugere custos de transação mais complexos para
gestão metropolitana em relação aos Estados Unidos, e, principalmente, em relação ao Canadá.
Esse formato singular do município brasileiro guarda sua origem no processo histórico de
colonização e recrudesceu com o retorno da democracia em 1988. Desde o período colonial, as
instâncias locais de poder surgiram como organizações de primeira grandeza no relacionamento
entre governo e sociedade. Na administração colonial, havia lugar de destaque para o governo
local, que, durante muito tempo, foi atribuição das Câmaras Municipais. Estas freqüentemente
comunicavam-se diretamente com o rei de Portugal, indiferentemente à hierarquia administrativa
superior da colônia. Castro (2001) relata que o primeiro município do Brasil foi a Vila de São
Vicente, fundada por Martim Afonso, em 1532, tendo se constituído primeiro governo autônomo
das Américas.14 Acrescenta ainda que:
A distância da metrópole, as preocupações da Coroa com a Guerra da Espanha e as
Índias, a vastidão territorial da colônia, tudo isso, aliado, ao sentimento nativista do
povo que se formava e se expandia, está a explicar a vitalidade das instituições
municipais.( Castro, 2001:39).
Assim, o grande realce dado pela Constituição Federal de 1988, é, na verdade, o cume de um
processo histórico de origem secular.
Na edição da Constituição Imperial de 1824, o poder das Câmaras Municipais era tão expressivo
que o imperador Dom Pedro I submeteu o texto constitucional às aprovações dos legislativos
municipais. A primeira Constituição da República de 1891, por sua vez, já se referia
expressamente à autonomia municipal.
A autonomia municipal sofreu refluxo durante o governo no período conhecido como Estado
Novo. Nos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1946, insurgiu um grupo de parlamentares que
pregavam a restauração da autonomia municipal, diminuída pela Constituição de 1937. Desde uma
14
Um aspecto interessante da Constituição de 1824 era a existência de espécies diferentes de municípios. Essa
tradição de distinção de governos locais, de acordo com a escala, foi suprimida com o advento da República.
62
época ficaram conhecidas como municipalistas as lideranças que pugnavam pela autonomia
municipal. (Dallari, 1977: 443).
Os municipalistas tiveram forte influência na confecção da Constituição de 1988, que apostou no
fortalecimento municipal para fazer contraposto a uma maior centralização federativa, ocorrida
durante o regime militar. O movimento municipalista está corporificado em inúmeras associações
de municípios, e seu principal pleito, atualmente, é a redefinição dos mecanismos de distribuição
das receitas públicas, de maneira que os governos locais aumentem seu percentual no cômputo
total das arrecadações na federação.
Como menor unidade político-administrativa da federação brasileira, o município se posiciona
logo abaixo dos Estados-membros. Todavia, os governos locais não são hierarquicamente
inferiores aos estados segundo a Constituição de 1988, de maneira que só em condições muito
especiais, definidas na Constituição, o município estará sujeito a uma intervenção compulsória do
Estado-membro.
Os municípios podem ser subdivididos em distritos ou subprefeituras, mas essas circunscrições
são órgãos criados e vinculados pelo poder executivo e político concentrados na pessoa do
prefeito, o único membro do governo local eleito por sufrágio universal. Os ocupantes de cargos
dessas subdivisões administrativas dos municípios são de livre nomeação e exoneração dos
prefeitos.
Os membros do poder legislativo municipal, os vereadores, são eleitos por sufrágio universal. As
Câmaras Municipais editam leis que regulam assuntos como impostos sobre a prestação de
serviços e propriedade imobiliária urbana, sobre a já mencionada organização administrativa,
assim como sobre uso e ocupação do solo, meio ambiente, patrimônio histórico, posturas, entre
outras questões.
Na federação brasileira, a divisão de responsabilidades é baseada em uma regra constitucional
segundo a qual as competências da União e dos municípios são definidas expressamente na
constituição, restando aos Estados-membros as chamadas competências residuais, ou seja, as
responsabilidades não expressamente escritas na constituição. Essa regra se mostra pouco clara
nas áreas metropolitanas, onde a sobreposição de circunscrições governamentais tende a ser a
regra e não exceção.
Ademais, como o grosso das receitas fiscais brasileiras se baseia na arrecadação de tributos sobre
patrimônio e circulação de riquezas, os grandes centros industriais e de serviços são beneficiados
com mais recursos, ao passo que os municípios menores e as cidades-dormitório são sobremodo
dependentes de transferências financeiras do Estado-membro e da União. As negociações de
interesses comuns e a promoção da equidade entre as cidades por iniciativa própria são
dificultadas por uma regra legal segundo a qual uma cidade não pode realizar investimentos em
outra, salvo em casos excepcionais. 15
15
Um exemplo excepcional que ilustra essa questão são as iniciativas de cidades ricas construírem aterros sanitários
em municípios periféricos para disposição final de lixo nessas localidades. Em tais situações, as câmaras municipais
têm autorizado por lei suas respectivas prefeituras a realizarem esse tipo de investimento na medida em que o
município-beneficiário é, na prática, o próprio investidor.
63
Nas áreas em que os problemas decorrentes da escala regional se sobressaem, sobram evidências
de que a questão da governança metropolitana, no Brasil, constitui um grande impasse
institucional.
Embora os municípios possuam autonomia para estabelecerem entre si acordos formais e
informais para a resolução de problemas comuns, as experiências de cooperação entre municípios
colecionam muitos fracassos, em geral, decorrentes de razões como a falta de interesse das
lideranças locais, de recursos específicos, de apoio dos governos federal estadual e também a
ausência de sintonia entre as organizações supramunicipais e as máquinas administrativas de cada
município.(Krell, 2003)
Assim, a experiência empírica da evolução recente dos municípios, na década de 1990, revela que
preponderam forças competitivas sobre as cooperativas entre os municípios.
São relativamente rarefeitas as experiências de pactuação de organizações horizontal-voluntária de
municípios para a gestão de problemas comuns. Em geral, os casos mais expressivos de
cooperação intermunicipal que alcançaram relativo sucesso, são fundadas em políticas de
incentivos seletivos implementadas pelas instâncias estadual e federal. É o caso, por exemplo, da
experiência dos Consórcios Intermunicpais de Saúde em Minas Gerais, que, de acordo com Faria e
Vasconcelos (2004), dependeram da decisiva articulação estadual dos Consórcios Intermunicipais.
Os estados e a União podem estabelecer mecanismos de incentivos seletivos para a indução de
práticas de cooperação intermunicipal, mas não podem fazê-lo de maneira formalmente
compulsória. Krell salienta que, ao contrário de países como Portugal e Alemanha, “a autonomia
jurídica dos municípios do Brasil é tão abrangente que União e Estados não são capazes de obrigar
os municípios, por lei, a formar associações, consórcios ou colaborar entre si para executar
determinadas funções públicas em conjunto.”(Krell, 2003:69)
O único dispositivo da Constituição Federal de 1988 que pode sugerir algum nível de
possibilidade de se obrigar os municípios a se integrarem para a administração de interesses
comuns é exatamente o que disciplina a criação de regiões metropolitanas e outras formas de
organização regional:
“CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS
Art. 25. (...)
§ 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios
limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas
de interesse comum.” (Brasil, 1988)
Essa possibilidade de integração compulsória de municípios integrantes de regiões metropolitanas
pelo estado é combatida, veementemente, por algumas lideranças municipalistas e da sociedade
civil organizada, como no caso da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental – FNSA16, que faz
16
A Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental é composta pelas seguintes entidades: FNRU – Fórum Nacional de
Reforma Urbana ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento FNU/CUT – Federação
Nacional dos Urbanitários/CUT FISENGE – Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros IDEC – Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional CONAM –
Confederação Nacional das Associações de Moradores REBRIP – Rede Brasileira pela Integração dos Povos CMP –
64
oposição à organização pelos governos estaduais dos serviços de saneamento em regiões
metropolitanas, conforme se verifica em documento divulgado pela entidade:
“Os itens que queremos preservar na Política Nacional de Saneamento são os
seguintes: (...) A manutenção da titularidade municipal, em qualquer situação, dos
serviços de saneamento e repudia qualquer tentativa de ter tais competências
subtraídas. Em regiões metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões, aonde
hoje já ocorrem o fornecimento de água no atacado ou o tratamento de esgotos
conjunto; com a respectiva distribuição de água e coleta de esgotos no “varejo” é
necessária a instituição legal de contratos de fornecimento entre prestadores de
entes federados diferentes que definam as condições em que tais serviços devem ser
prestados.”(FNSA, 2005)
Os estados que tentaram implementar legislações mais restritivas da autonomia municipal em
matéria de organização de serviços metropolitanos, como no caso do Rio de Janeiro, iniciaram
batalhas judiciais com os municípios.
O que se depreende desse contexto nada favorável para transações metropolitanas é que as
lideranças dos Estados-membros, em geral, podem tender a serem negligentes com a organização
compulsória das regiões metropolitanas em nome da preservação de boas relações políticas com os
governantes locais.
As possibilidades da organização vertical-compulsórias das regiões metropolitanas tendem,
portanto, a oferecer custos de transação elevados para os governos estaduais. Disso resulta que as
regiões metropolitanas formalmente instituídas, segundo análise de Moura e outros,
“não se ancoram em um arcabouço institucional que efetivamente estruture sua
complexa dinâmica. Reconhecidamente, são espaços de expressão econômica e
social, porém não de direito, pois não circunscrevem territórios aptos a normatizar,
decidir ou exercer o poder, situando-se num hiato entre a autonomia do município –
reforçada na Constituição de 1988 – e a competência da União quanto à gestão para
o desenvolvimento. (...) A realização de pactos social e territorial esbarra na
fragilidade do complexo ambiente jurídico-institucional das regiões, sob pressão de
hegemonias e poder político, e de disputas político-partidárias, que prejudicam a
tomada de decisões de âmbito regional.” (Moura e outros, 2003:52 e 53)
Diante das limitações que as experiências de gestão metropolitana organizadas de forma vertical
têm apresentado no Brasil, a alternativa da organização horizontal das áreas metropolitanas tem
sido defendida por operadores de políticas públicas, como por exemplo, o governo federal, por
meio do Ministério das Cidades.
Os principais instrumentos jurídicos desses formatos voluntários de cooperação
intergovernamental são os convênios e os consórcios. Os primeiros destinam-se ao
estabelecimento de acordos mais precários, com prazo de validade curto e atrelado ao
desenvolvimento de um programa ou projeto específico.
Central de Movimentos Populares; MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Instituto PÓLIS ONG Água
e Vida União Nacional de Moradia Popular Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor.
65
O segundo instrumento, o consórcio público, tem por função a articulação intergovernamental em
bases mais duráveis, tendo sido bastante reforçado recentemente com emenda constitucional n.º19,
de 1998, a qual criou o conceito de “gestão associada de serviços” através de consórcios públicos.,
e com a recém publicada Lei Federal n.º 11.107 de 2005, que regulamentou a matéria. Uma grande
questão que está na agenda dos consórcios intermunicipais existentes no Brasil é exatamente a sua
adaptação a esse novo modelo jurídico de cooperação horizontal estipulado pela lei federal.
Esse incentivo em direção à cooperação inter-governamental voluntária nas áreas metropolitanas
ocorre ora consoante à legislação estadual ora à sua revelia, orientado pela tentativa de se superar
as limitações do poder municipal em responder a questões que ultrapassam os limites políticoadministrativos dos municípios. Tais experiências, no entanto, de acordo com Moura e outros,
enfrentam o que o ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, uma das principais lideranças do
Consórcio Intermunicipal do ABC paulista:
“chamava de “forças centrífugas”, quais sejam, forças contrárias ao processo
de integração regional e que provêem de diferentes origens e interesses, sejam
político-partidários, sejam de lideranças de instituições da sociedade civil, além
dos conflitos municipais decorrentes de diferentes objetivos, dada a diferente
problemática enfrentada, e aqueles, não desprezíveis, de natureza simbólica.”
(MOURA e Outros, 2003: 54)
A título de síntese, o que se pode extrai dessa análise introdutória é que, seja ela compulsória ou
voluntária, a gestão das regiões metropolitanas é pautada por elevados custos de transação, em boa
medida, por conta da fragilidade das instituições regulatórias das relações intergovernamentais no
Brasil.
Custos de transação comparados na gestão da RMBH no Grande ABC
Até aqui, esse estudo fez o uso do método comparativo para pontuar aspectos singulares do
federalismo e das relações intergovernamentais brasileiros cuja contribuição foi um apoio à
construção do argumento de que os problemas de gestão metropolitana no Brasil podem ser
explicados pelos custos de transação a que estão sujeitos a governança e a governabilidade
metropolitana no Brasil.
Do ponto de vista metodológico, o exercício investigativo desenvolvido até o momento analisou
as constantes que afetam tanto a RMBH e o Grande ABC, as instituições federativas brasileiras.
Exerceremos, agora, o estudo comparado das variáveis dessas duas experiências de gestão
metropolitana.
O estudo comparado das experiências da Região Metropolitana de Belo Horizonte, RMBH, e do
Consórcio do Grande ABC com base conceito de custos de transação permite-nos, em uma análise
geral, propor quatro períodos distintos para a trajetória da gestão das regiões metropolitanas nos
casos estudados.
O primeiro período, designado tecnocracia esclarecida, coincide com o apogeu do regime militar
no Brasil. A União federal constituiu nove regiões metropolitanas (dentre elas a RMBH)
fortemente controladas pelos governos estaduais, e as dotou de canais de financiamento tais como
o Banco Nacional de Habitação(BNH) e o Plano Nacional de Saneamento(PLANASA). Nesse
período os custos de transação na gestão metropolitana eram baixos, uma vez que favorecidos pela
66
repressão aos movimentos sociais, pela ausência de eleições diretas para governador do estado e
prefeito de Belo Horizonte (governador e prefeitos biônicos) e pela dependência financeira dos
municípios de transferências de recursos da União e do estado.
O segundo está relacionado ao início do processo de redemocratização, e fica singularizado pela
influência que a crise fiscal da União e a reedição de eleições diretas para a escolha do governador
e dos prefeitos de cidades antes definidas como de segurança nacional teve no funcionamento da
gestão metropolitana. Nesse momento ocorre o surgimento de novos atores na gestão
metropolitana, e tais mudanças sinalizaram uma elevação dos custos de transação.
O terceiro período tem como marco zero a constituinte de 1988, que elevou o status do município
na federação brasileira. Nesse período, observa-se o fenômeno do “municipalismo a todo custo”,
termo cunhado por Fernandes (2005) para se referir ao processo de descentralização observado no
Brasil após a constituinte.17 Na RMBH, os atores que criaram seu espaço, no período anterior,
fortalecem-se, concebem, na constituinte mineira de 1989, um modelo de gestão sintetizado na
Assembléia Metropolitana (AMBEL), cuja principal característica é a ampliação formal do poder
dos municípios no processo decisório metropolitano.
O Grande ABC paulista como objeto de nossa análise, surge paralelamente à terceira fase
temporal da RMBH, quando foi criado, em 1990, o Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto
Tamanduateí e Bilings. O municipalismo a todo custo, entretanto, também mostra sua força na
região em 1992, quando as eleições municipais arrefecem a articulação regional.
O quarto período, ainda em curso, refere-se ao aparente ressurgimento da questão metropolitana
na agenda política, cujos sinais, como se verá, já tem produzido decisões de caráter
recentralizador dos arranjos metropolitanos. Nesse período, alguns setores da sociedade civil
organizada já internalizam a questão metropolitana, e se posicionam como novos atores na
dinâmica das transações metropolitanas. Aparentemente, o aprendizado proporcionado pelo
municipalismo a todo custo na década de 1990, favorece uma compreensão pelos atores da
interdependência real dos municípios na área metropolitana e da necessidade de maior presença do
Estado e da União no planejamento metropolitano.
Esse período se inicia mais precocemente no Grande ABC, onde a articulação regional se fortalece
e se torna menos vulnerável à sazonalidade do processo político-eleitoral, e também com a
participação do governo estadual e da sociedade civil nos mecanismos de cooperação voluntária.
No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, esse período é mais recente e é marcado pela
retomada da agenda metropolitana pelo governo estadual, pelo arrefecimento do processo de
municipalização de serviços de interesse comum e pela reforma da legislação metropolitana da
RMBH.
17
O termo município autárquico, apresentado por Abrúcio e Soares(2001) é expressão alternativa que, grosso modo,
define o mesmo fenômeno nomeado municipalismo a todo custo por Fernandes(2004)
67
A trajetória da Região Metropolitana de Belo Horizonte
O período da tecnocracia esclarecida na RMBH18
Fenômeno associado ao processo de desenvolvimento industrial brasileiro, a metropolização
configurou determinadas áreas no território nacional, notadamente em torno das capitais estaduais,
onde estavam presentes grandes manchas urbanas divorciadas da multiplicidade de municípios
sobre os quais estas se expandiam. Os dilemas da metropolização induziram experiências
interessantes de envolvimento de municípios no sentido de eles potencializarem acordos de gestão
integrada de seus interesses comuns. 19
No campo técnico, a idéia de gestão metropolitana consolida-se no Seminário do Quitandinha,
promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em 1963. Nesse encontro técnico, a
questão metropolitana foi amplamente debatida e nele surgiram propostas que convergiam para a
necessidade de institucionalização de um aparato jurídico-administrativo específico para o
planejamento e administração integrados das regiões metropolitanas.(Machado, 2002)
A Constituição de 1967, marco jurídico do regime autoritário estabelecido em 1964, incorporou
em seu texto uma preocupação com a questão metropolitana, permitindo à União criar, por lei
complementar, regiões metropolitanas constituídas por municípios pertencentes à mesma
comunidade sócio-econômica, para a realização de serviços comuns. A mesma constituição,
entretanto, sugere a permanência da titularidade desses serviços comuns com os municípios, ao
lhes facultarem a possibilidade de celebrarem convênios para a exploração de serviços públicos de
interesse comum.(Jobim, 2006)
A Constituição de 1967 foi regulamentada pela lei complementar n.º 14, de 1973, que definiu o
modelo de gestão e também criou oito regiões metropolitanas no Brasil, dentre elas a de Belo
Horizonte. Basicamente, esse modelo pode ser caracterizado como “estadualista”, ou seja,
controlado pelos governos estaduais correspondentes, na medida em que o comando da gestão de
cada região metropolitana foi atribuído a um conselho deliberativo composto por cinco membros
nomeados pelo governador do estado. Um deles deveria figurar em lista tríplice que era elaborada
pelo prefeito da capital, outro mediante indicação dos demais municípios integrantes da região
metropolitana, e os três restantes de livre indicação do governador.
A lei complementar n.º14/73 estabeleceu confusão jurídica quanto à titularidade de serviços de
interesse comum ao atribuir ao conselho deliberativo metropolitano a competência para conceder a
prestação de serviço de interesse comum a entidade estadual.
O modelo de gestão recebeu críticas de juristas tais como Grau(1983), pelo fato de a legislação
brasileira não ter resolvido o problema fundamental da questão metropolitana, que é o de
estabelecer com clareza a titularidade dos serviços de interesse comum em regiões metropolitanas,
ou seja, definir a qual ente de governo compete a execução de funções públicas tais como o
transporte, o saneamento e o controle do uso e ocupação do solo.
18
O nome dado a esse período da gestão na Região Metropolitana de Belo Horizonte se inspira, ainda que de maneira
lúdica, no período conhecido como “”despotismo esclarecido” vivenciado pela Europa no Século XVIII, quando as
indisposições geradas pelo confronto dos Estados Absolutistas de então com as idéias iluministas fez muitos monarcas
da época buscarem justificativas para seu poder absoluto assentadas(...) Os historiadores denominam tais monarcas de
“déspotas esclarecidos”.
19
Citamos os casos da área metropolitana de Porto Alegre e São Paulo, que possuíam já na década de 1960
experiências embrionárias de gestão metropolitana.
68
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, ao julgar recente controvérsia a respeito
da titularidade de serviços em regiões metropolitanas, fez este comentário sobre essa legislação
federal:
“Não se sabia de quem era a competência executória ou administrativa da
unidade regional, ou seja, quem seria o titular da competência de prestar os
serviços de natureza comum. Diante da confusão trazida pela legislação e pelo
total descaso com a nova organização intermunicipal por parte da União, na
prática, os Estados acabaram estruturando o funcionamento das Regiões
Metropolitanas, muitas vezes obtendo a concessão municipal do serviço de
maneira informal. É dessa época a criação de empresas e autarquias estaduais
também para conferir aplicação e execução aos serviços das Regiões
Metropolitanas...(Jobim, 2006:17)
Ao optar por esse modelo de organização das regiões metropolitanas de maneira compulsória,
porém confusa do ponto de vista jurídico, o governo federal estabeleceu um modelo de gestão
propenso a tensões, que, entretanto, foram amortecidas até o momento em que o contexto vigente
reunia um conjunto de condições favoráveis, principalmente:
• a presença de governadores e prefeitos biônicos como atores de peso nas regiões
metropolitanas. Os prefeitos e o governador biônicos eram aqueles nomeados pela União
para assumir a chefia do poder executivo em municípios ou estados caracterizados como
de segurança nacional. Essa determinação garantia maior controle do governo central sobre
essas regiões e tendia a reduzir a influência da população e de políticos locais no processo
de gestão, reduzindo assim custos de transação para a implementação de diretrizes
nacionais na administração das regiões metropolitanas.
• A dependência financeira dos municípios de transferências da União. Essa situação
permitiu ao governo central vincular a liberação de recursos à adesão voluntária dos
municípios às diretrizes da política nacional de desenvolvimento urbano, principalmente,
nas áreas de habitação, saneamento e transportes.
O governo federal, então, estruturou uma política nacional para as regiões metropolitanas que se
baseou no tripé recursos financeiros, centralização decisória e tecnocracia (Machado, 2002) ,
efetivando um conjunto de medidas que, em linhas gerais, amortizaram os custos de transação
para a gestão metropolitana naquele período.
No eixo centralização decisória, a União definiu na Lei Complementar n.º 14, de 1973, um modelo
de gestão padronizado para as regiões metropolitanas criadas à época, em que o controle do poder
decisório ficava nas mãos dos governos estaduais, com uma participação formalmente simbólica
dos governos locais na gestão metropolitana.
No eixo recursos financeiros, o governo federal estabeleceu uma farta carteira de recursos com
destinação vinculada à gestão metropolitana. Com uma minirreforma tributária, o governo federal
vinculou parcelas dos recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e
Gasosos (IUCLG) e da Taxa Rodoviária Única aos sistemas estaduais de gestão metropolitana.
No caso do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos, o Decreto-lei
Nº 1.555, de 27 de maio de 1977, ao estabelecer normas para a distribuição e aplicação dos
recursos arrecadados, determinou: “Art. 3º Os Estados onde existem regiões metropolitanas
69
aplicarão, no mínimo 50% (cinqüenta por cento) das parcelas que lhes competirem em projetos e
programas específicos dessas regiões.”(Brasil, 1977)
Outra medida nesse sentido foi a criação de incentivos seletivos para os municípios colaborarem
com a gestão metropolitana. Dessa maneira, colaborar com os programas federais e estaduais de
gestão metropolitana passou a ser requisito técnico para os governos locais acessarem recursos de
fontes como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), o Banco Nacional da
Habitação(BNH), a Empresa Brasileira de Transportes urbanos e do Plano Nacional de
Saneamento Básico(PLANASA). Dentro dessa diretriz, a Lei Complementar n. º 14, de 1973,
determinou em seu artigo sexto que “os Municípios da região metropolitana, que participarem da
execução do planejamento integrado e dos serviços comuns, terão preferência na obtenção de
recursos federais e estaduais, inclusive sob a forma de financiamentos, bem como de garantias
para empréstimos.” (Brasil, 1973)
No eixo tecnocracia, algumas evidências do apego a essa diretriz para a gestão das regiões
metropolitanas foram a ênfase da lei federal n.º 14/73 a uma gestão metropolitana mais técnica, e
menos política. Além de induzir a criação pelos estados de uma entidade da administração
indireta, portanto, dotada de maior autonomia, para ser responsável pela “unificação da execução
dos serviços comuns”, a mesma lei definiu como critério para ser membro do Conselho
Deliberativo Metropolitano, possuir “reconhecida capacidade técnica ou administrativa”.(Brasil,
1973)
Outro indicativo da ênfase na técnica da política metropolitana nacional foi o programa de
repasses para o planejamento urbano, que antecedeu a própria instituição das regiões
metropolitanas. Nesse sentido, foi instituído o Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo
(SERFHAU), responsável pela elaboração da política nacional de desenvolvimento urbano e
principal financiador de planos diretores para as grandes cidades do país.(Azevedo, 2002). Com
esses recursos, até 1975, foram elaborados Planos Metropolitanos de Desenvolvimento Integrado
para Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Fortaleza. (Steinberguer, Marília. Apud: Azevedo,
2002:10).
Esse período é denominado, por Ribeiro e Cardoso, como tecnoburocratismo desenvolvimentista,
época em que o planejamento urbano é entendido como instrumento de racionalização
administrativa, em sincronia com a concepção desenvolvimentista de Estado, formulada pela
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). (Ribeiro e Cardoso, 1990 Apud: Azevedo,
2002)
O que se percebe é que a robusta estrutura institucional-burocrática federal, para a implementação
de políticas urbanas, é um atestado da prioridade que os militares deram à temática urbana e
metropolitana. Definidas com objetivos e instrumentos no nível federal, as diretrizes da política
nacional para as regiões metropolitanas reproduziram-se de maneira diferente em cada estado da
federação.
Minas Gerais foi um estado que definiu como prioridade a questão metropolitana. Antes mesmo
da instituição da RMBH em 1973, o governo mineiro já havia constituído grupo de trabalho
específico para desenvolver o Plano Metropolitano de Belo Horizonte com recursos do SERFHAU
(Machado, 2002). Desse grupo se originou uma autarquia em 1974, a Superintendência de
Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), que comandou o
processo de gestão da RMBH ao longo da década de setenta.
70
No mesmo período foram constituídas também: a Companhia Estadual de Habitação, COHAB, a
Companhia Estadual de Saneamento, COPASA e a Companhia Metropolitana de Transportes,
METROBEL, abastecidas com recursos dos fundos e entidades federais de desenvolvimento
urbano que descrevemos anteriormente.
Uma vez criada a rede de incentivos seletivos federais para os municípios aderirem a essas
entidades estatuais, os custos de transação para a o planejamento e execução de programas
dimensionados sob a ótica regional encontravam-se baixos. O momento propício às transações
metropolitanas pode ser exemplificado pelo fato dos principais municípios da RMBH terem
concedido por trinta anos à COPASA, em 1973, a execução dos serviços de saneamento básico.
Outro exemplo foi a delegação pelos governos locais do gerenciamento do transporte e do trânsito
urbanos à METROBEL. Essa companhia, de caráter interfederativo20, se destacou por ter efetuado
uma completa reestruturação do sistema metropolitano de transportes e pela criação do mecanismo
redistributivo denominado Câmara de Compensação Tarifária (CCT), segundo o qual foram
subsidiados os transportes que atendiam os municípios da periferia.
Conforme revelam a Fundação João Pinheiro (2006), Mares Guia(1994), Moraes (1997),
Gouvêa(2005), entre outros autores, parte significativa das diretrizes e projetos desenvolvidos
naquele período nas áreas de transportes, expansão do sistema viário e uso do solo na RMBH
foram definidos pelo PLAMBEL.
A participação dos governos locais na formulação do planejamento da RMBH era restrita, por
força de uma visão prevalecente no staff metropolitano do estado segundo a qual os agentes
políticos, de uma forma geral, tenderiam a criar obstáculos ao planejamento regional.
Centralismo decisório e tecnocracia estavam plenamente associados ao planejamento
metropolitano na década de 1970. O caráter determinista do planejamento, então desenvolvido na
RMBH, era alheio a um maior envolvimento da sociedade civil e das instâncias municipais na
gestão da região, e uma das principais conseqüências disso foi a associação direta da gestão
metropolitana com o regime ditatorial. Tal associação traria dificuldades para o sistema estadual
de gestão metropolitana manter seu espaço no contexto de redemocratização ocorrido na década
de 1980.
Curiosamente, foi uma política estadual de incentivo ao associativismo voluntário de municípios
que fez surgir no período o principal espaço institucional por meio do qual se veicularam
manifestações da insatisfação municipalista em relação ao sistema de gestão metropolitana: a
Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (GRANBEL), criada em
1975.
Na época, o então governador Rondon Pacheco assinou o Decreto n.º 15.374 de 15/02/73, criando
a Superintendência de Articulação com os Municípios - SUPAM, órgão da Secretaria do
Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN-MG), com o objetivo específico de articular o
planejamento em nível municipal e microrregional com o planejamento estadual.
A SUPAM investiu em políticas de incentivo à criação de associações microrregionais com o
intuito de despertar nas lideranças políticas municipais o interesse pela identificação e a solução
20
A União, o estado e os 14 municípios da RMBH possuíam ações da METROBEL.
71
de problemas regionais. O saldo dessa iniciativa foi a criação de 39 associações microrregionais
no Estado de Minas Gerais, ainda hoje existentes, dentre elas a GRANBEL.
O primeiro presidente da GRANBEL foi o então prefeito de Contagem (segundo maior município
da RMBH) Newton Cardoso, que assumiu a bandeira da defesa da autonomia municipal. A
herança dessa contestação à gestão metropolitana teria um efeito marcante para a trajetória da
gestão da RMBH, na década seguinte, especialmente a partir de 1986, quando o líder
municipalista Newton Cardoso é eleito governador de Minas Gerais.
1982: Abertura política, crise fiscal e novos atores na RMBH
O modelo de gestão da RMBH, programado para operar mesmo sem respaldo das lideranças
locais, demonstrou-se incapaz de conviver com as mudanças decorrentes da abertura política e da
crise fiscal no início da década de 1980. Um novo contexto de custos de transação metropolitana
se estabeleceu. Isso ficou nítido logo que se realizaram as eleições diretas para governador,
deputados federais, deputados estaduais, prefeitos e vereadores em 1982. Uma das conseqüências
do retorno do processo político-eleitoral foi o reestreitamento das relações entre líderes estaduais e
municipais, e isso teve reflexo no funcionamento dos órgãos de planejamento metropolitano.
Laços de lealdade e coligações se ampliaram entre os agentes políticos, e, por conseqüência, as
boas relações entre estes atores metropolitanos se tornaram mais importantes. Nesse processo,
fortaleceram-se líderes dos governos municipais, antes alijados do processo de gestão
metropolitana.
Outro fator determinante para os rumos da gestão metropolitana em Belo Horizonte foi a redução
do fluxo de recursos do governo federal para programas e projetos na área de desenvolvimento
urbano, redução esta vinculada à crise do planejamento governamental verificada no início da
década e 1980. Para Haddad (1996) entre alguns motivos que condicionaram a desarticulação dos
sistemas de planejamento no país naquele período está a diminuição na disponibilidade global de
recursos financeiros, a perda de capacidade de captação de financiamentos externos e a opção por
decisões de curto prazo em detrimento das decisões de médio e de longo prazo típicas de um
processo de planejamento.
No bojo desse processo, os recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis
Líquidos e Gasosos e da Taxa Rodoviária Única deixaram, em 1984, de serem vinculados às
regiões metropolitanas. Além disso, em um contexto de crise fiscal e contingenciamento de gastos
públicos, houve cortes nas áreas de habitação, transportes e saneamento.(Azevedo, 2002)
O fortalecimento dos líderes políticos municipais, somado à crise fiscal elevou custos de transação
na gestão da RMBH, uma vez que o sistema de planejamento metropolitano, já criticado pelo seu
caráter tecnocrático, teve que incorporar em sua rotina a habilidade para negociar junto a novos
atores a implementação de programas e projetos. Em 1983, ocorreu a primeira mudança
institucional no aparato de planejamento metropolitano do Estado, desde 1977. Essa reformulação
incorporou novos atores no processo de planejamento metropolitano. Por força do art. 3º do
Decreto nº 22.781/83, o PLAMBEL voltou a estar vinculado ao Conselho Deliberativo da Região
Metropolitana, que, por sua vez, passou a estar vinculado à Secretaria de Estado do Governo e
Coordenação Política.
72
Com essa mudança institucional, o planejamento metropolitano em Minas Gerais foi retirado do
âmbito estritamente técnico e subordinado à coordenação política do governo, aproximando assim
lideranças políticas locais do processo decisório metropolitano.
Outra mudança importante foi a desvinculação do repasse dos recursos federais aos municípios
metropolitanos à anuência do PLAMBEL. Dessa maneira, a autarquia havia perdido um de seus
principais instrumentos de barganha junto aos prefeitos. Ao acarretar a criação de novas regras
para o jogo entre os órgãos metropolitanos e os governos locais, essa disposição minou a
possibilidade da gestão metropolitana vincular incentivos seletivos à execução pelas prefeituras de
projetos afinados com as diretrizes do planejamento metropolitano, elevando, portanto, os custos
de transação para o estado.
Os órgãos de planejamento metropolitano, de raízes pouco porosas à sociedade, teriam que
redefinir sua atuação em um contexto nada favorável: queda dos repasses de recursos federais e
internacionais para a região metropolitana, distanciamento do Sistema Estadual de Planejamento e
forte desgaste junto a lideranças municipais. Vale destacar que se consolidou, entre alguns líderes
políticos, um sentimento de que gestão metropolitana significava a priori intervenção estadual na
autonomia municipal. (Machado, 2002) Tal argumento, paulatinamente, sobrepôs-se ao de se
enfrentar de forma integrada os problemas comuns dos municípios. À medida que avançava o
processo de redemocratização, a gestão metropolitana em Minas Gerais, perdeu espaço,
culminando, como se verá, em um quase completo afastamento do governo estadual da questão
metropolitana a partir de 1989.
A insolvência da gestão da RMBH, logo nos primeiros anos da redemocratização, retrata a força
da dinâmica de poder envolvendo profissionais da política local, estadual e federal nas relações
intergovernamentais. Os elos formados entre esses atores são um condicionante fundamental dos
custos de transação da gestão metropolitana.
O dimensionamento destes elos entre chefes políticos municipais, estaduais e federais é um fator
que pode demonstrar valor heurístico importante na investigação da relação entre os custos de
transação e a trajetória das experiências de gestão metropolitana.
Diferentemente do PLAMBEL, em outros estados da federação, as entidades de planejamento
metropolitano tiveram que enfrentar um cenário mais favorável para transações, durante a
redemocratização, o que determinou, sob diferentes níveis, melhor capacidade de adaptação a
“tempos democráticos” e renovação de sua atuação na década de 1990.
Foi o que ocorreu, exemplarmente, com a CONDER, Companhia de Desenvolvimento do
Recôncavo Baiano, responsável pelo planejamento na Região Metropolitana de Salvador, e que foi
prestigiada pelo governo estadual durante a gestão na prefeitura da capital por partido que fazia
oposição ao grupo político que governava o Estado, sob a liderança de Antônio Carlos Magalhães.
(Souza, 2004)
Na mesma época em que a CONDER e outras entidades de planejamento metropolitano lograram
alguma capacidade de negociar mudanças para se adaptarem e sobreviverem ao contexto
democrático, Minas Gerais era governada por Newton Cardoso, um dos principais líderes do
movimento municipalista, que contestou a gestão metropolitana durante o período militar.
Cardoso, durante sua campanha ao governo do estado, defendeu diversas propostas que se
opunham a gestão da RMBH, como, por exemplo, a extinção da METROBEL. Ao assumir o
73
governo, em 1987, Cardoso, dentre outras ações, extinguiu a companhia de transportes
metropolitanos e demitiu cerca de 70% da equipe técnica do PLAMBEL. (Machado, 2002).
No caso de Minas Gerais, o fenômeno denominado por Fernandes(2004) de municipalismo a todo
custo teve lugar num contexto em que os insulados grupos pró-gestão metropolitana já estavam
enfraquecidos por disputas políticas, pela crise fiscal, pela crise do planejamento governamental e
por uma marcante submissão ä trajetória, na qual os grupos municipalistas dos quais o sistema de
gestão metropolitana era adversário, de repente, assumiram o poder, e passou a dar as cartas.
O ”municipalismo a todo custo” na RMBH
No período em que se consolidou a redemocratização no Brasil, entre 1986 e 1988, foi elaborada e
votada a nova Constituição da República, que, sob a orientação de emendas individuais de alguns
poucos constituintes (Tabela 3, no anexo), atribuiu aos estados a competência para a organização
destas. Essas propostas, contudo, não foram discutidas com profundidade na Assembléia
Constituinte. De acordo com Fernandes:
“nos anais da Constituinte de 1986 a 1988 pode-se notar que não houve
discussão séria em relação à questão metropolitana. O momento era do que
chamo de municipalismo a todo custo, quer dizer, compensar a balança que, por
tanto tempo, estava tão desigualmente pendente para o lado dos governos
centrais e com total exclusão tributária, política, financeira e institucional dos
municípios. O pêndulo foi para o outro lado, de forma a afirmar a autonomia
municipal.” Fernandes ( 2004: 82)
A Constituição de 1988 dispõe uma única vez sobre a questão metropolitana e diz que os estados
poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a
organização, o planejamento e a execução das funções públicas de interesse comum, sem,
contudo, distinguir interesse comum de interesse local. Essa omissão fez prevalecer entendimento,
no início da década de 1990, de que as questões urbanas sempre são de preponderante interesse
local, e, portanto, competências exclusivas dos municípios, esvaziando o apelo do estado instituir
regiões metropolitanas para organizar a gestão regional integrada e comprometendo em parte a
legitimidade política da gestão metropolitana no formato vertical ou compulsório.21
Ademais, um traço marcante da nova Constituição foi a valorização do poder local no contexto
federativo, conforme foi analisado no capítulo 2. O município foi elevado à categoria de ente
integrante da federação, tornando o Brasil um país organizado na forma de um federalismo
tripartite – União, estados e municípios. Além disso, os governos locais adquiriram autonomia
para se auto-organizar e administrar, bem como para estabelecer seus tributos. Houve, de outra
parte, um tratamento superficial da questão metropolitana na Carta de 1998, tendo esta merecido
apenas uma única menção no texto constitucional.
Grosso modo, essa timidez da Constituição de 1988 em relação à questão metropolitana foi
coerente com o momento político em que foi elaborada a Magna Carta. A forma adotada pelo
governo federal para organizar as regiões metropolitanas foi tida como centralizada pelos atores.
O Estado centralizado é, por certo, recorrentemente relacionado a governos autoritários. Vista
como uma contra-medida ao regime ditatorial que se esfacelou no início da década de 1980, a
74
descentralização e a valorização do poder local foram, ao lado da garantia das liberdades
individuais e dos direitos humanos, as principais bandeiras que dominaram o processo de
elaboração da nova Constituição do Brasil.22
Nesse aspecto, a questão metropolitana se colocava naturalmente na contramão da onda de
descentralização, pois, além de estar politicamente associada ao centralismo tecnocrático do
período anterior, devido ao fato de pressupor processos de recentralização da gestão das áreas
conurbadas, entrava em choque com uma das premissas capitais da descentralização, que
pressupunha o “empoderamento” dos governos locais.23
Se em nível federal, o tratamento da questão metropolitana foi tímido, na constituinte do Estado de
Minas Gerais, o tema foi alvo de vários artigos cujo sentido transparece o interesse de alguns
atores em afastar a possibilidade do governo do estado assumir com o mesmo vigor de outrora a
liderança da gestão metropolitana.
A virada observada no início da década de 1980 e aprofundada, em 1988, com a elevação do
status constitucional do município consubstanciou na Constituição de Minas Gerais, de 1989, um
modelo de gestão da RMBH entregue à liderança dos municípios e com uma participação
simbólica do governo estadual. Dando lugar ao Conselho Deliberativo Metropolitano, foi
concebida a Assembléia Metropolitana de Belo Horizonte, AMBEL, órgão colegiado onde todos
os prefeitos e representantes das Câmaras Municipais dos municípios metropolitanos tinham
assento. Enquanto o conselho deliberativo metropolitano possuía cinco membros, com três do
estado, um de Belo Horizonte e um dos demais municípios, na Assembléia Metropolitana,
considerando os atuais 34 municípios integrantes da RMBH, mais de oitenta assembleístas
participavam. Interessante notar que considerada mais democrática que o conselho deliberativo
metropolitano, a Assembléia Metropolitana não incorporou, em seu plenário, representantes da
sociedade civil.
De outra parte, esse rebaixamento estadual, em termos de poder decisório na AMBEL, supõe-se,
tenha gerado maiores custos de transação para o estado executar políticas metropolitanas. Isso
porque mais que minoritário, o Estado-membro tornou-se mero observador nas discussões na
AMBEL, e, paradoxalmente, como competente constitucional pela organização vertical da região
metropolitana, teria que arcar com boa parte dos custos financeiros desse modelo.
O que um rápido ensaio de teoria dos jogos poderia prever se efetivou: o esvaziamento da
Assembléia Metropolitana pelos atores mais importantes – o governo do estado, e as prefeituras de
Belo Horizonte, Betim e Contagem, responsáveis por cerca de 87% da riqueza regional (Machado,
2002). Diante de uma situação claramente desvantajosa, o que se viu foi um progressivo
afastamento do estado do modelo de gestão representado pela AMBEL.
23
Os argumentos a favor da descentralização comumente se alinham à questão da democratização e da eficiência.
Segundo Arretche (2000) e Peters (2004) os que defendem a descentralização argumentam que ela é uma condição
para a democratização uma vez que aproxima governo e cidadãos, potencializando o controle social e participação
pública no processo decisório. Peters salienta ainda que parte significativa das experiências de reforma do setor
público de perfil descentralizante foram justificadas sob o princípio da eficiência, propugnada pela chamada gerência
pública nova ou managerialism. Uma noção fundamental desta corrente é a de que organizações autônomas
descentralizadas, dirigidas por gerentes públicos hábeis e próximos da população, serão mais capazes de alcançar os
objetivos da política pública do que departamentos ministeriais grandes e afastados dos cidadãos.
75
O estado, paulatinamente, desmontou as instituições metropolitanas criadas na década de 1970
ainda sobreviventes. O PLAMBEL e a câmara de compensação tarifária dos transportes foram
algumas delas. Os grandes municípios, por sua vez, deram as costas para a AMBEL, e trataram de
organizar individualmente serviços, em tese, de caráter metropolitano. Já a Assembléia
Metropolitana foi sucessivamente controlada por alianças dos pequenos municípios da RMBH e a
atividade decisória dela ficou restrita a poucas reuniões anuais, quase sempre para deliberar sobre
o aumento de tarifas do sistema de transportes administrado pelo estado.(FJP, 1998)
Formalmente poderosa, na prática, a AMBEL não conseguiu legitimar sua autoridade perante as
diversas instâncias governamentais atuantes na RMBH, conforme reconhece um dos prefeitos que
ocupou a presidência da Mesa Diretora da AMBEL:
"o que existe é um desencontro muito grande. Faltam informações, faltam
condições para que a AMBEL se imponha e até para fazer solicitações " e cada
um desses órgãos "... continuam no caminho deles, (...) fazem o que acham que é
certo, e nós ficamos com o poder na mão e sem condições de fazer nada ".(FJP,
1998:135)
Na esteira desse processo, ocorreu a municipalização da prestação de serviços ou funções públicas
antes executadas em escala regional por entidades estaduais de planejamento metropolitano,
especialmente a gestão dos transportes públicos. Em outras palavras, as reformas de cunho
descentralizante, então implementadas, desbarataram o sistema de planejamento metropolitano da
RMBH e comprometeram a articulação estadual dos interesses regionais em torno de uma
proposta comum.
Ao canto do cisne do modelo vertical de gestão da RMBH implementado na década de 1970,
simbolizado pela extinção do PLAMBEL em 1996, seguiram-se tentativas de restabelecimento de
novas formas institucionais de gestão. Desses movimentos, os principais foram as articulações
promovidas por técnicos da Prefeitura de Belo Horizonte, da Fundação João Pinheiro e da
Secretaria Estadual de Planejamento para a elaboração do plano diretor metropolitano e uma
proposta de emenda à Constituição do Estado redefinindo o modelo de gestão instituído em 1989.
Ambas as propostas de transação foram malsucedidas. Na onda da consolidação do processo de
municipalização de serviços e políticas públicas na RMBH, a agenda metropolitana parecia pouco
atraente aos atores que detinham poder decisório de peso no momento. O insucesso dessas
tentativas de mudança institucional, na gestão da RMBH movidas por grupos técnicos
principalmente, não logrou apoio político suficiente para a sua implementação.
Uma evidência de ineficácia da estrutura legal-formal de gestão da RMBH foi a insistente
aprovação de leis complementares integrando novos municípios à Região Metropolitana de Belo
Horizonte. Alguns destes municípios estão distantes dezenas de quilômetros do pólo
metropolitano e sem qualquer tendência à conurbação ou responsabilidade por funções publicas de
interesse comum. Entre 1988 e 2002, foram inseridos na RMBH 20 municípios, ora por força de
leis aprovadas na Assembléia Legislativa, ora em virtude de emancipações de distritos antes
pertencentes a municípios já integrantes da RMBH. (Machado, 2002) A última incorporação de
municípios à RMBH ocorreu em 2002, consolidando a sua composição atual: 34 municípios.
A ausência de uma estrutura de incentivos para mover os atores a realizar transações
metropolitanas ajuda a explicar a baixa performance no modelo compulsório estabelecido de
76
gestão prescrito para a RMBH. Em termos de gestão metropolitana, o pouco de mais concreto que
se observou na RMBH, no final da década de 1990, veio de organizações com claros incentivos
para apoiarem, de acordo com seus interesses, a governance regional.
Foi o caso da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, operadora do metrô de superfície que liga
Belo Horizonte a Contagem. A CBTU, uma das poucas entidades remanescentes do arcabouçoinstitucional criado pelos militares para a área de desenvolvimento urbano, tornou-se uma
organização pública muito interessada na retomada do planejamento metropolitano na RMBH, por
uma razão muito lógica. A fragmentação institucional no funcionamento dos transportes na região
metropolitana, acarreta uma situação de concorrência predatória entre os sistemas gerenciados
pelas prefeituras, pelo DER e pela CBTU. Como resultado imediato da desintegração dos
transportes na RMBH, o metrô de Belo Horizonte acusava um das mais baixas taxas de
participação no total de usuários de transporte público do país; apenas 3,5% do total de
passageiros. O prejuízo operacional do metrô de Belo Horizonte é brutal, de maneira que o seu
funcionamento depende drasticamente de subsídios do governo federal.
Com o esvaziamento da Assembléia Metropolitana, a GRANBEL, se consolidou como espaço de
articulação dos prefeitos da RMBH para o encaminhamento de reinvidicações junto a órgãos
setoriais do governo estadual. (FJP, 1998)
Outra função assumida pela GRANBEL foi a da promoção de troca informações de interesse dos
municípios, com propósito, segundo o prefeito de Nova Lima de tentar "um entrosamento maior
para que a política não venha a prejudicar ainda mais a Região Metropolitana". (FJP, 1998:129)
A GRANBEL buscava induzir consensos entre as cidades da região metropolitana, "mas que
sempre dependem de acordos com o governo Estadual e com a Assembléia Legislativa”,
acrescentou o então prefeito de Nova Lima (FJP, 1998:129). Outra função desempenhada pela
entidade consistia na assessoria administrativa aos municípios nas áreas contábil, financeira e
tributária. Tais atividades se mostravam de especial valor para os pequenos municípios da RMBH,
cuja frágil capacidade institucional tornava-as dependentes desse tipo de auxílio.
Para o custeio financeiro de suas atividades, a GRANBEL recebe recursos dos municípios
associados, os quais lhe proporcionam uma sede em Belo Horizonte, infra-estrutura e quadro
próprio de funcionários.
A função executada pela GRANBEL na década de 1970, de ser um anteparo ao assim considerado
intervencionismo da gestão metropolitana, tornara-se obsoleta, afinal, agora, todo o poder estava
formalmente com os municípios com a emergência da AMBEL. Entretanto, a GRANBEL se
readaptou, de maneira a capitalizar para si novos papéis perante os municípios que representava. A
associação logrou se consolidar como instrumento para o aumento do poder de barganha dos
municípios da RMBH para a negociação de pleitos junto aos governos estadual e federal.
Um exemplo da função de lobista dos municípios assumida pela GRANBEL foi a iniciativa da
associação de convocar os deputados da bancada mineira no Congresso Nacional, no primeiro
semestre de 1998, buscando garantir recursos no orçamento da União para investimentos de
caráter metropolitano na região. Segundo o prefeito de Nova Lima à época, “o dinheiro está
saindo agora [no segundo semestre de 1998]. Não foi o valor que queríamos - que era bem maior
- mas é fruto de um trabalho de união de 26 municípios. Mas isso deveria ter sido conduzido
através da AMBEL!"(FJP, 1998: 119)
77
Com essa mudança de perfil, revela o já citado estudo da Fundação João Pinheiro:
“a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte GRANBEL-, acaba por ocupar e exercer um papel político que caberia à
AMBEL. Criada em meados da década de 1970 pêlos prefeitos da RMBH para
fazer frente ao autoritarismo do Conselho Deliberativo, a GRANBEL tem se
posicionado como espaço da negociação, onde têm sido celebrados acordos
entre os municípios e entre esses e os órgãos setoriais da administração
estadual, funcionando como um fórum de lobby dos prefeitos metropolitanos no
encaminhamento dos seus pleitos ao governo do Estado(FJP, 1998: 118)
Conforme iremos analisar posteriormente, a GRANBEL, além de ter a mesma natureza jurídica
sob o aspecto formal, desenvolve funções semelhantes a algumas atividades do Consórcio do
Grande ABC.
Lamentavelmente, ao contrário do Consórcio do Grande ABC, a GRANBEL tem despertado
pouca atenção de pesquisadores da temática metropolitana. Essa indiferença inviabiliza uma
análise mais detalhada desse importante player que atua na RMBH a mais de 30 anos. Fica aqui a
sugestão de uma linha de pesquisa futura que possa evidenciar aspectos interessantes ao tema da
cooperação inter-municipal em áreas metropolitanas.
A integração negociada na RMBH
Na década de 1990, em que preponderou o municipalismo a todo custo na RMBH, ocorreu os
desbaratamento do sistema vertical de planejamento metropolitano, sem que os municípios
conseguissem implementar um modelo alternativo de governança regional. Os efeitos diretos para
a população dessa “década perdida” em termos de gestão metropolitana são de difícil mensuração,
não só devido à complexidade dessa investigação, como também face à ausência de estudos mais
sistemáticos sobre os resultados dessa não-política-metropolitana.
Um dos parcos estudos sobre o tema foi uma pesquisa elaborara pela Universidade Federal de
Minas Gerais que teve como foco principal a cidade de Belo Horizonte. Segundo essa pesquisa,
ocorreu na década de 1990 o esgotamento de capacidade de crescimento diferenciado da RMBH,
ou seja, o diferencial de crescimento em relação à média do crescimento econômico nacional e do
pólo econômico líder, a Região Metropolitana de São Paulo (Lemos, 2004:31). Essa perda de
dinamismo da RMBH, segundo esse estudo da UFMG, deve-se à falta de competitividade da área
metropolitana em eixos nevrálgicos para o desenvolvimento econômico como o dos transportes.
Nesse contexto adverso, entretanto, decantaram-se discussões e debates que têm feito ressurgir
novas propostas para a questão metropolitana, algumas por iniciativa, inclusive, da sociedade civil
organizada. Surgem experiências incipientes de organização da sociedade visando especificamente
a questão metropolitana. São exemplos dessa conscientização da sociedade civil acerca da relação
dos problemas urbanos com a questão metropolitana: a criação da organização não-governamental
Instituto Horizontes24, e também as discussões travadas na II Conferência Municipal de Política
24
O Instituto Horizontes é uma organização não-governamental formada por profissionais liberais, empresários,
notadamente da área de construção civil, e pessoas de diversos segmentos da sociedade, que, segundo seu estatuto, se
propõe a contribuir na definição das prioridades de desenvolvimento da RMBH. A entidade elaborou e tentou
implementar nos últimos anos, sem sucesso, o “Plano Estratégico da Grande BH,” com forte inspiração na
experiência de Barcelona de Planejamento Estratégico.
78
Urbana de Belo Horizonte, quando ficou evidenciado que o problema a ser solucionado na gestão
do sistema de transporte do município de Belo Horizonte remete-se à questão metropolitana. 25
Tal como se verá no caso do Grande ABC, a emergência de atores originários da sociedade civil
nessa temática parece influenciar a dinâmica dos custos de transação metropolitana na RMBH.
Essa conjuntura de um embrionário envolvimento da sociedade civil quanto à questão
metropolitana, somada à experiência vivida dos excessos da municipalização parece cimentar
novas percepções perante os atores na região metropolitana. Uma das percepções que parecem
estar consolidando-se é a da necessidade de o estado retomar um papel relevante nas atividades de
planejamento metropolitano, desde que o faça de maneira negociada. Nossa hipótese é a de que
novos constructos mentais pró-gestão metropolitana, tem matizado os atores a perceberem
vantagens na consideração da questão metropolitana, reduzindo assim os custos de transação nas
negociações.
Para corroborar nossa hipótese acerca do surgimento de construtos mentais pró-gestão
metropolitana entre os atores, citamos algumas evidências: o aparecimento de propostas próquestão metropolitana nas eleições ao governo do estado, em 2002, e para a PBH em 2004; a
criação de um órgão estadual específico para lidar com assuntos urbanos e metropolitanos; a
defesa pela GRANBEL da elaboração de um Plano Diretor Metropolitano definidor de diretrizes
para os planos municipais, a transação entre o Governo de Minas Gerais e o município de Belo
Horizonte que culminou em 2003 com renovação do contrato da prefeitura com a COPASA; e, por
fim, a reforma da legislação metropolitana ocorrida na Assmebléia Legislativa estadual
Um primeiro indício que constatamos foi o aparecimento de propostas de resgate da questão
metropolitana nos planos de governo do então candidato ao Governo do estado, Aécio Neves, em
2002, e no plano do então candidato à reeleição em Belo Horizonte, Fernando Pimentel, em 2004.
Sinalizações públicas semelhantes foram externadas por outros prefeitos em eventos da
GRANBEL com relação ao planejamento territorial metropolitano.
As propostas veiculadas nos referidos planos de governo e as colocações dos prefeitos teriam
pouco valor probatório, se não fossem constatadas decisões importantes em favor da questão
metropolitana nos anos seguintes.
Em janeiro de 2003, o Governo do Estado promoveu uma reforma administrativa que incluiu a
criação da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional e Política Urbana, SEDRU, com
competência similar as do Ministério das Cidades, instituído pelo governo federal na mesma
época. A nova secretaria, aparelhada com uma Superintendência de Assuntos Metropolitanos,
reestabeleceu a política urbana na agenda governamental, e desencadeou tentativas voltadas para a
retomada do planejamento metropolitano.
Uma dessas iniciativas foram reuniões técnicas que emulavam os líderes municipais a elaborarem
planos diretores municipais sob uma perspectiva de desenvolvimento regional integrado. Um
indicador expressivo dos novos constructos mentais dos atores municipais em torno das transações
25
Nesse sentido, ver: Costa, Marco Aurélio. Projeto PBH Século XXI: Avaliação do Sistema de Transportes Coletivos
de Belo Horizonte – 1993/2003. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento e Regional da
Universidade Federal de Minas Gerais. (CEDEPLAR/UFMG), 2004
79
metropolitanas foi a grande aceitabilidade pelos municípios da proposta estadual de
compatibilização do planejamento municipal com o metropolitano. A própria GRANBEL,
realizou diversas reuniões de municípios incentivando-os a absorverem preocupações
supramunicipais em seus planos diretores municipais. Outra iniciativa da SEDRU foi a realização
de concurso de projetos para a contratação de uma organização da sociedade civil para lhe
fornecer subsídios para o planejamento metropolitano e a contratação da Fundação João Pinheiro,
com objetivos semelhantes.
A negociação entre a Prefeitura de Belo Horizonte e a Companhia Estadual de Saneamento que
culminou, em 2003, com a manutenção da gestão regional do serviço de saneamento no município
é outro elemento que remete ao arrefecimento do municipalismo a todo custo. Pelo acordo, o
município adquiriu participação acionária na empresa, transferindo toda a sua infra-estrutura de
saneamento e esgoto à COPASA. Em contrapartida, Belo Horizonte obteve 13,7% do capital da
companhia de saneamento, enquanto o Estado manteve ainda 86%. As demais prefeituras da
RMBH renovaram nos anos seguintes seus respectivos contratos de concessão com a COPASA, o
que praticamente assegurou uma gestão regional do serviço público de saneamento na região
metropolitana. Essas transações contrastam com o quadro problemático que tem pautado
renegociações com companhias estaduais de saneamento e municípios em outros estados da
federação, as quais, recorrentemente, acarretam disputas judiciais.26
Um exemplo-final de um ambiente mais favorável a transações metropolitanas foi a aprovação de
uma reforma na legislação metropolitana do Estado na Assembléia Legislativa de grandes
proporções. Elas foram precedidas pelo Seminário Legislativo “Regiões Metropolitanas”, em
2003, quando foi promovida uma discussão pública da questão metropolitana. Os trabalhos
envolveram discussões que duraram três meses, com considerável participação da sociedade civil.
As reformas da legislação metropolitana foram aprovadas em 2004 e em 2005, de maneira
consensual na Assembléia Legislativa – todos os deputados votaram a favor das mudanças –
contendo determinações que seriam inconcebíveis a época da constituinte mineira em 1989. O
novo sistema de gestão da RMBH apresenta os seguintes pontos fundamentais: paridade decisória
entre o estado e o conjunto de municípios na gestão; representação dos municípios mais populosos
e mais ricos diferenciada no órgão deliberativa da gestão metropolitana; definição da titularidade
estadual das funções publicas de interesse comum; participação da sociedade civil no conselho
deliberativo da região metropolitana; e, a criação de uma agência de desenvolvimento
metropolitano, de caráter técnico e executivo.
Não podem ser desconsideradas como importante fator redutor dos custos de transação para que
essa reforma fosse implementada as boas relações entre Governador Aécio Neves(PSDB) e o
Prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT). Embora de partidos políticos adversários em
nível nacional, ambos são bem relacionados e tem demonstrado publicamente afinidade para o
desenvolvimento de projetos de interesse comum. Há que se fazer referência também à grande
aceitação do governador entre os demais prefeitos da RMBH: na campanha de reeleição de Aécio
Neves, em 2006, este recebeu, publicamente, o apoio de 30 dos 34 prefeitos da região.
26
Nesse sentido, reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, de Luciana Nanci: “Estados e municípios
brigam por gestão do saneamento”, disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/32413,1
80
De outra parte, o governo do estado, com o intuito de cultivar boas relações com as prefeituras da
região metropolitana, tem procurado alinhavar a adesão a projetos de impacto na regional, como
por exemplo, o aeroporto industrial de Confins, o novo centro administrativo estadual e a Linha
Verde.
Esse movimento de pêndulo do planejamento na RMBH, dessa vez no sentido uma re-integração
pautada por acordos, ainda está em curso, mas, considerando sua característica de adesão
voluntária dos municípios até momento aos projetos estaduais, aponta para um período novo de
negociações, diferentemente da gestão metropolitana observada na década de 1970.
A Trajetória do Grande ABC paulista
A experiência de articulação regional da Região do Grande ABC envolve sete municípios da
Região Metropolitana de São Paulo: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Rio Grande da
Serra, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires e engloba três estruturas institucionais: o Consórcio
Intermunicipal, a Câmara Regional e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC
(GABC). Seu marco zero é a fundação, em 1990, do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto
Tamanduateí e Bilings.
Importa salientar que a experiência de articulação regional se desenvolveu em uma fração do
território da maior conurbação da América do Sul, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP),
que foi institucionalizada, em 1973, juntamente com a Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A título de introdução, essa seção merece breve comentário sobre o sistema de gestão verticalcompulsório estabelecido para a RMSP, de maneira que possa ser desenvolvida uma análise
contextualizada do Consórcio do Grande ABC nesse aglomerado maior composto de 39
municípios.
O sistema de gestão da região metropolitana de São Paulo criado na década de 1970 foi bastante
atuante, comparável em termos de capacidade de implementação de programas e projetos à
RMBH. Houve também um refluxo da gestão da RMSP com a redemocratização, embora,
aparentemente, esse processo tenha sido menos drástico que na Região Metropolitana de Belo
Horizonte.
Não obstante os antigos órgãos colegiados da década de 1970 - Conselho Consultivo e
Deliberativo - não tenham sido mais convocados após a redemocratização(Azevedo, 2002), o
governo estadual manteve funcionando alguns órgãos próprios de vocação metropolitana, como a
Secretaria de Transportes Metropolitanos, a Empresa Paulista de Planejamento
Metropolitano(EMPLASA), a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São
Paulo(EMTU) e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Permanece atuante,
também, tal como na RMBH, a Companhia Estadual de Saneamento criada em São Paulo por
incentivo do PLANASA, a SABESP.
A legislação sobre a gestão metropolitana do estado, a Lei Complementar n.º 760/94, também não
foi antiestadualista como a legislação metropolitana da RMBH de 1989. De fato, a organização da
RMSP criou um conselho de desenvolvimento com composição paritária entre estado e
municípios, diferentemente da RMBH, onde prevalecia uma Assembléia Metropolitana
essencialmente municipalista.
81
A manutenção pelo estado de uma estrutura institucional de gestão metropolitana na década de
1990 não deteve, contudo, um amplo processo de municipalização de diversas funções públicas,
condizente com o municipalismo a todo custo desencadeado pela diretriz de descentralização de
políticas públicas definida na Constituição Federal. Houve também tendência à ação mais setorial
e menos global do estado na região metropolitana. (Azevedo, 2002)
Estão presentes, na RMSP, diversas tensões entre o estado e os municípios que acusam tentativas
de emancipação dos governos locais em relação aos órgãos e mecanismos estaduais de gestão
metropolitana. As disputas mais nítidas estão nas áreas de saneamento básico e transportes. 27
No que toca ao tema do saneamento, alguns municípios romperam contratos de concessão de
serviço com a SABESP, em contextos normalmente permeados por disputas na esfera judicial.
Recentemente, o município de São Paulo, sob a administração Marta Suplicy(PT), tentou assumir
o controle dos recursos hídricos hoje administrados pela SABESP.
A EMPLASA desenvolve atividades de planejamento metropolitano e não se envolve
explicitamente na implementação de políticas públicas. Presta assessoria técnica aos municípios
para a elaboração de planos diretores municipais, regionais e elabora estudos de caracterização de
uso e ocupação do solo. A RMSP conta ainda com um plano metropolitano desde 1994, elaborado
com a finalidade de detectar as carências e potencialidades da região até 2010.(Azevedo, 2002).
Esse plano foi revisado nos últimos anos pela EMPLASA.
Dentre os obstáculos atuais da gestão metropolitana vertical da RMSP, Azevedo enumera: a não
implantação da estrutura prevista na lei; a ausência de uma política regional; a escassez de
recursos financeiros; as disputas político-partidárias; os conflitos de jurisdição em relação à
legislação federal, estadual e municipal e a desigualdade econômica inter-regional. (Azevedo,
2002:188).
Todos esses obstáculos à efetivação da gestão metropolitana têm feito surgir espaços e alternativas
setoriais ou de menor escala para organização de interesses comuns na RMSP. São casos
emblemáticos dessa dinâmica o sistema de proteção aos mananciais sob a tutela da Secretaria de
Recursos Hídricos do estado de São Paulo e a estruturação sub-regional do Grande ABC, que
serve de exemplo para o surgimento de outras experiências de articulação em menor escala de
municípios da região metropolitana.28
O impulso inicial da formação do Consórcio do Grande ABC está relacionado exatamente à
proteção dos mananciais localizados na região. O fato de a formação da articulação
intergovernamental no ABC estar relacionada originalmente à gestão de recursos hídricos - os sete
territórios abrigam um grande manancial para abastecimento da Grande São Paulo – chama a
atenção para a importância que a existência de um elemento físico comum aos municípios teve
para a sua integração em um projeto de cooperação. Esse foi, todavia, apenas o ímpeto inicial: o
consórcio em curto espaço de tempo ocupou-se de outros assuntos de interesse comum dos
municípios.
27
Entrevistas com Klink e Minciotti.(2006)
Tramita na Assembléia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que reformula o sistema de gestão da RMSP, no
qual uma das novidades é a criação de sub-regiões dentro da região Metropolitana.
28
82
O adensamento de responsabilidades do consórcio, incomum no repertório das experiências de
relações intermunicipais no Brasil29, faz-nos supor a existência de custos de transação aceitáveis
que permitiram a essa experiência não apenas ampliar seu campo de atuação, como também se
manter vivo após dezesseis anos da sua criação. É o que passaremos a analisar nas seções
seguintes.
O municipalismo a todo custo no Grande ABC
O Consórcio do Grande ABC foi entronizado como experiência de administração metropolitana
voluntária, em 19 de dezembro de 1990, com a criação do Consórcio Intermunicipal das Bacias
do Alto Tamanduateí e Bilings.e a instalação do Conselho de Municípios, situado em Santo André.
O Consórcio foi registrado como sociedade civil de direito privado, cujos sócios são os sete
municípios da região do GABC.
Segundo (Reis, 2005) o Consórcio Intermunicipal foi criado com o objetivo de representar os sete
municípios em assuntos de interesse comum, além de defender políticas consensuais para o
desenvolvimento da região, independentemente, em tese, das diferenças político-partidárias. O
Consórcio Intermunicipal do GABC se estrutura basicamente por meio de uma organização
administrativa formada por: Conselho de Municípios, Conselho Fiscal, Conselho Consultivo e
Secretaria Executiva. A presidência do consórcio foi concebida originalmente para ser rotativa e
ser exercida por um dos prefeitos dos sete municípios, eleito entre seus pares para um mandato de
um ano. Os seus recursos financeiros são definidos de acordo com cotas de contribuição anual dos
municípios integrantes, proporcionalmente às receitas de cada prefeitura30.
A natureza jurídica de direito privado limitou o consórcio a funcionar, sobretudo, como um fórum
de debates e de articulação dos municípios do Grande ABC, impedindo-o de promover a execução
direta de programas e projetos de interesse comum, salvo a contratação de estudos técnicos para
subsidiar acordos e negociações promovidas pela associação. Sintomático dessa limitação foi a
tentativa realizada pelo consórcio de obter financiamento externo, com aval do governo federal. A
solicitação foi negada, segundo Reis sob essa justificativa:
“o consórcio não satisfazia os critérios necessários, por não possuir as
exigências legais para ser tomador do empréstimo para financiamento de
projetos. O governo federal não poderia ser avalista porque o Consórcio
Intermunicipal não poderia ser executor dos projetos por não possuir
personalidade jurídica que permitisse dar garantias de crédito, ou seja, por não
possuir em caixa recursos para contrapartida também não poderia responder
pelo orçamento das sete prefeituras.” (Reis, 2005:55)
Em seu primeiro ciclo de vida, o consórcio firmou-se como entidade de articulação de políticas
públicas integradas, abrigando grupos temáticos formados por técnicos das sete prefeituras,
utilizando-se de recursos próprios dos municípios bem como de outras fontes de financiamento.
São ilustrativas as iniciativas da entidade em provocar o governo estadual a viabilizar projetos de
interesse comum dos municípios. O consórcio ainda tentou encaminhar emendas ao orçamento da
União, focando questões regionais. Ademais, tentou, sem sucesso, influir no processo de
elaboração da lei de organização regional do estado. Reis (2005)
29
Os Consórcios Intermunicipais adotam, em geral, finalidade monotemática, e os mais comuns são os de saúde, por
força da legislação do Sistema Único de Saúde, SUS, que incentiva o associativismo municipal.
30
Esse modelo institucional de funcionamento do Consórcio é muito semelhante ao da GRANBEL, na RMBH.
83
Não obstante sua consolidação como instância de articulação regional, o consórcio foi afetado
negativamente pelas eleições municipais de 1992, uma vez que os novos prefeitos que assumiram
os executivos municipais, em sua maioria, não estavam comprometidos com o projeto de
integração regional. Ainda segundo Reis (2005), o esvaziamento do consórcio liga-se ao fato de
boa parte dos novos prefeitos serem, segundo a autora, de perfil político conservador,
contrapondo-se aos líderes progressistas que os antecederam.
As eleições de 1992, como mencionado, trouxeram descontinuidade ao processo, fizeram-se sentir
pelo esvaziamento, a ponto de 1994, terem ocorrido somente duas reuniões de prefeitos, com a
presença de apenas três dos sete municípios consorciados. O arrefecimento da articulação no
GABC corrobora o argumento de Moisés, que salienta:
“o acordo de cavalheiros entre prefeitos, informal, comum em articulações
políticas, é insuficiente quando se pretende implementar o compartilhamento de
serviços de natureza continuada, pois não fornece a necessária segurança
institucional exigida para o seu desenvolvimento.” Moisés ( 2001:125)
A formalização de acordos entre as prefeituras, os chamados consórcios, visa a dar sustentação
institucional a tais articulações entre prefeitos, mas não impede muitas vezes, que disputas
políticas sazonais se reproduzam no relacionamento entre líderes no âmbito regional. A ausência
de instituições sólidas e confiáveis para dar sustentação aos acordos intermunicipais parece ser
elemento-chave que elevava custos de transação para efetivação da gestão compartilhada de
serviços comuns mediante consórcios públicos naquele período.
O vazio decorrente dessa desarticulação do consórcio deu-se, todavia, no mesmo momento em que
o Grande ABC enfrentava uma crise econômica marcada pela evasão de empresas e queda das
arrecadações municipais. Isso evidenciava a necessidade de um projeto comum de superação das
adversidades da região. A crise parece ter aguçado a identidade regional do GABC e incentivou o
envolvimento da sociedade civil à causa regional, em 1994, com a criação do Fórum da Cidadania
do Grande ABC.
Nas eleições de 1994, o Fórum da Cidadania lançou a campanha “vote no ABC”, conclamando a
população a votar em candidatos a deputado federais e estaduais com origem na região,
provocando assim uma espécie de voto distrital informal. Dessa maneira, a identidade regional, de
origem histórica, passou a pautar com mais força a atuação dos atores políticos regionais, que,
organizados na chamada “bancada do ABC”31, evocaram para si a função de serem representantes
regionais nos parlamentos estadual e federal.
A integração negociada no Grande ABC
Na esteira da forte identidade regional, a articulação do Grande ABC ganhou fôlego novo com o
maior envolvimento do governo do estado e da sociedade civil proporcionado pela criação, em
1997, da Câmara do Grande ABC, fórum intergovernamental e social de planejamento,
formulação e implementação de políticas públicas.
31
Verificamos na imprensa da região o acompanhamento corriqueiro da atividade parlamentar dos membros da
“bancada do ABC.”
84
Impulsionada inicialmente por um decreto do governo estadual que prevê a criação de câmaras
regionais em todo o estado, a Câmara do Grande ABC consolidou-se a partir da grande rede
governamental e social que aderiu à iniciativa. A câmara é constituída por um Conselho
Deliberativo, uma Coordenadoria Executiva e por Grupos Temáticos. Em todas as instâncias, o
processo decisório é pautado pela busca do consenso. O Conselho Deliberativo é composto pelo
Governador do Estado (que é presidente de honra da câmara), por dois secretários de estaduais,
pelos sete prefeitos da região, pelos Presidentes das Câmaras Municipais, pelos deputados
estaduais e federais da Região (Bancada do GABC), por cinco representantes do Fórum da
Cidadania do Grande ABC, por cinco representantes das organizações representativas de
trabalhadores e por cinco representantes das organizações representativas do setor econômico.
(Clemente, 1998)
Ainda segundo Clemente (1998), a Coordenadoria Executiva é composta por um representante do
Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, pelo governo do estado, por um representante do
Fórum da Cidadania do Grande ABC, um representante das organizações representativas de
trabalhadores e por um representante das organizações representativas do setor econômico.
Compete ao colegiado da Coordenadoria Executiva gerenciar os trabalhos temáticos e acompanhalos, viabilizando sua integração e divulgação, e garantindo o apoio logístico. Os grupos temáticos,
interdisciplinares e inter-institucionais, são compostos de acordo com a matéria ser tratada
buscando a formalização de termos de acordo integrados para cada tema. Sua composição é aberta
aos interessados, com a representação de entidades comunitárias, trabalhadores, empresários,
prefeituras e governo estadual.
Um aspecto interessante, constatado nos levantamentos realizados no GABC, foi que muitas vezes
os setores da sociedade civil que mais se envolveram na articulação regional tinham interesses
específicos diretamente vinculados à cooperação. Exemplarmente, foi constatado o caso dos
empresários e sindicalistas ligados ao setor petroquímico, que desde à época da Criação da
Câmara do Grande ABC foi um dos setores mais motivados em participar das articulações
regionais.32
Uma explicação para o envolvimento do setor petroquímico com a governança do Grande ABC é
o fato de esses atores terem compreendido a estreita sintonia entre a cooperação inter-regional e os
projetos de expansão da indústria petroquímica. A articulação regional beneficiou o setor de três
maneiras. Em primeiro lugar, o consórcio liderou um lobby para que houvesse mudanças na
legislação estadual de proteção dos mananciais na região, que era proibitiva a projetos de
ampliação de plantas industriais. O consórcio atuou também como lobista junto ao governo
federal, para que este forçasse a PETROBRÁS a realizar investimentos para ampliar o
fornecimento de matérias-primas para as indústrias locais. Finalmente, a Agência de
Desenvolvimento do Grande ABC desenvolve projetos que incentivam o fortalecimento da cadeia
produtiva petroquímica na região, atendendo assim aos interesses dos empresários e sindicalistas.
Outras categorias da sociedade civil também se envolveram com a experiência de articulação
regional, recorrentemente, por razões muito lógicas, percebendo na integração regional,
oportunidades. Um espelho dos setores da sociedade civil mais interessados na governança
regional é a lista das empresas e de entidades que possuem cotas na Agência de Desenvolvimento
do Grande ABC: empresas do pólo petroquímico, instituições de ensino superior e os principais
sindicatos da região. Curiosamente, a indústria de automóveis, símbolo nacional do GABC,
32
Entrevistas com Reis e Romano(2006)
85
participa pouco da articulação regional.33 Se essa participação interessada da sociedade civil for
um padrão, podemos sugerir, como uma explicação ao não envolvimento da industria automotiva,
o fato de esse setor não ter visualizado benefícios na governança regional para seus interesses
particulares.
O processo de execução dos acordos na Câmara do GABC tem perfil caleidoscópio, na medida em
que diversos atores, públicos ou privados, poderão ser os responsáveis pela implementação.
Segundo Clemente:
“A etapa mais difícil é a de obtenção do acordo. A implementação é
conseqüência do acordo firmado. Cada termo de acordo implica uma despesa
diferente, determinando a respectiva fonte de financiamento. Não há gasto
orçamentário fixo, pois os integrantes não são remunerados pela Câmara, e os
trabalhos de secretaria são fornecidos pelo Consórcio Intermunicipal do Grande
ABC, patrocinado pelas prefeituras da região de acordo com a receita dos
municípios envolvidos.” (Clemente, 1998:13)
Dentre os acordos firmados na Câmara do Grande ABC está a criação da Agência de
Desenvolvimento do Grande ABC34, incumbida de induzir formas de superação da crise
econômica regional, e acordos formalizados com o governo estadual para a viabilização de
projetos de interesse comum. Esta é uma evidência de que a articulação regional se consolidou
como instrumento de aumento do poder de barganha dos sete municípios reunidos perante
instâncias governamentais superiores.
Outros acordos formalizados na Câmara do Grande ABC que foram concretizados foram: a) o
plano de macrodrenagem a partir do qual o governo estadual viabilizou os recursos necessários
para a construção de piscinões de contenção de enchentes e as prefeituras cederam os terrenos,
além de se responsabilizarem pela manutenção deles; b) o planejamento do sistema viário dos
municípios, em parceria com a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, EMPLASA; c) o
plano de transportes de massa, que incluiu uma convênio com a EMTU – Empresa Metropolitana
de Transportes Urbanos de São Paulo – para melhoria do sistema de trolebus e outra parceria com
a CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que visa a modernizar o sistema de
transportes. (Lotta e Paulics, 2004)
O que se depreende desses acordos é que a Câmara do Grande ABC logrou alguns resultados,
reduziu custos de transações metropolitanas entre os atores e viabilizando o uso de estruturas de
gestão metropolitana vertical ou compulsória do Governo do Estado de São Paulo para a sua
execução. Entretanto, embora de desenho institucional inovador, a Câmara do Grande ABC
demonstra resultados concretos aquém dos estabelecidos nos acordos, principalmente devido ao
fato da Câmara não possuir recursos próprios nem poder hierárquico perante as diversas
organizações e atores que deveriam ser os responsáveis pelo comprimento dos acordos. “Por não
ter orçamento nem estrutura própria, as ações ficam dependentes de dotações específicas,
provenientes de diferentes organizações, e que às vezes não são executada”, como salientam
33
Entrevistas com Klink e Romano(2006)
A Agência de Desenvolvimento do Grande ABC foi criada a partir de um acordo regional em outubro de 1998
como uma Organização Não Governamental que possui como sócios e respectivas participações: Consórcio
intermunicipal (49%), sindicatos de trabalhadores, associações, empresariais, SEBRAE, cadeias específicas,
universidades (51%)
34
86
Lotta e Paulics (2004:2). Houve dissonâncias entre o combinado e o executado em função da
ausência de autoridade efetiva das decisões definidas na Câmara. Reis ainda acrescenta:
no início um grande projeto foi pensado e armado, mas logo depois se perdeu o
controle, de modo que sua condução é atingida, em algum momento, pela
complexidade das relações políticas entre sujeitos e projeto coletivo. Com
relação às dificuldades internas, um dos um dos aspectos se refere ao fato de
que a Câmara Regional deveria ter se constituído de fato a esfera acima das
demais instituições. Neste espaço deveriam se dar todas as discussões e decisões
sobre as ações prioritárias para a região, sendo que o planejamento estratégico
regional deveria ser instrumento, no sentido de orientar todos os programas e
ações estratégicas com vistas ao desenvolvimento da região. É possível supor
que, do ponto de vista mais organizacional, a Câmara Regional não se impôs
como esfera superior (Reis: 2005:198).
O Grande ABC, de fato, acusa insucessos decorrentes de obstáculos à implementação de acordos.
Desses, merecem ser comentadas as tentativas regionais de frear a guerra fiscal entre os
municípios. Esse é um tema que ganha aliados entre os grandes municípios da região e também
junto ao setor empresarial, mas os custos de transação, para a sua implementação, têm se mostrado
elevados.
Uma das principais razões da freqüência do tema tributário na agenda regional é a relação
estabelecida pelos atores locais entre a crise econômica das sete cidades e o chamado “custo
ABC”.35 Sob essa ótica, o GABC deve se unir para exigir o fim da guerra fiscal praticada por
outras cidades da Região Metropolitana de São Paulo e do próprio estado, que, ao promovê-la,
conseguem “roubar” empresas do Grande ABC. Essa união pressupõe, obviamente,
homogeneidade tributária no próprio GABC para legitimar o pleito de combate à guerra fiscal.
Nesse sentido, são amplamente debatidas medidas políticas e jurídicas junto às instâncias
competentes, cujo objetivo é frear a guerra fiscal prejudicial à competitividade do Grande ABC.36
Nesse campo, todavia, a regra jurídica da autonomia municipal e a assimetria de forças entre os
municípios têm sido obstáculos ao estabelecimento de normas tributárias comuns mesmo entre os
sete municípios do GABC.
Bons exemplos são os acordos firmados no consórcio para ser estabelecido um padrão único de
cobranças do Imposto Sobre Serviços (ISS) no Grande ABC, que não têm sido honrados por
alguns municípios. O prefeito de Ribeirão Pires, um dos municípios mais pobres da região, é
assumidamente arredio aos acordos relacionados à guerra fiscal e se defende:
“Coloquei para os demais prefeitos do Grande ABC que seria uma questão de
sobrevivência para a cidade. Teria que aumentar minha arrecadação porque na
medida em que eles aumentam em progressão geométrica, aqui não é nem em
progressão aritmética. E percebi que, de fato, nenhuma cidade foi afetada
economicamente.”
35
O chamado“custo ABC” denota a existência de uma perspectiva de custos mais elevados para empresas se
instalarem na região em decorrência, entre outros fatores, da sindicalização dos operários e dos salários mais elevados
em relação a outras regiões brasileiras.
36
Entrevista com Jeroun Klink.(2006)
87
“Nós não fizemos campanha dentro de Santo André, São Bernardo. Não vou na
empresa e digo 'olha, vem para cá, que eu te dou isso, aquilo'. Nós ainda não
sentimos um efeito muito grande, mas posso dizer que melhoramos um pouco a
nossa arrecadação. Faço sempre uma analogia: se tivéssemos só mais R$ 10
milhões de arrecadação por ano, que para Santo André, São Bernardo, São
Caetano, Mauá, é troco, resolveríamos o nosso problema. Então, não preciso
ficar buscando muito, vou esperar esse crescimento gradativo. Nosso resultado
aparecerá em 2007.”(Diário do Grande ABC, 2005)
Se por um lado a política de guerra fiscal empreendida pelo município de Ribeirão Pires é
indicador da recorrentemente lembrada fragilidade das práticas de cooperação intermunicipais
entre o municípios no Brasil, em outro giro, demonstra também que as instituições federativas
brasileiras incentivam, com vigor, as práticas de competição e de não-cooperação. Um balanço da
arrecadação total dos municípios do Grande ABC, no ano de 2005, revela queda na arrecadação
em 4 municípios e elevação das receitas em três cidades, dentre elas, o rebelde Ribeirão Pires.37
A guerra fiscal desencadeada pelo prefeito do município mais pobre do GABC pode ser
considerada desleal por seus pares na região, mas, certamente, pode ser bem-vista pelos eleitores
de Ribeirão Pires, e são eles que elegem o prefeito. O Diário do Grande ABC de 23 de dezembro
de 2005 noticiava: “Guerra fiscal beneficia contas de Ribeirão Pires.” No federalismo fiscal, no
curto prazo, parece ser melhor aos olhos do prefeito competir do que cooperar. A presença da
guerra fiscal em uma região brasileira dotada de notáveis e singulares mecanismos de articulação
entre governamental evidencia, portando, que, do ponto de vista do pacto federativo, as
instituições que incentivam o municipalismo a todo custo são mais e vigorosas que aquelas sobre
as quais repousam práticas de cooperação intermunicipal.
Embora não tenha adotado práticas de guerra fiscal strictu sensu, o prefeito de São Bernardo do
Campo adota outras estratégias para competir pela atração de empresas para sua cidade, em uma
clara evidência de que quando o interesse local confronta com regional, o primeiro tende a
prevalecer. No cerne da dificuldade de o consórcio alinhavar uma política fiscal comum para a
região, está o fato das instituições necessárias para a concretização dos acordos tributários estarem
sob o comando exclusivo de cada município, ou seja, normas oriundas da prefeitura(decretos,
resoluções) e das Câmaras Municipais(leis em geral).
Além disso, permanecem ações atomizadas dos municípios em serviços de caráter metropolitano,
conforme atestaram entrevistas com KIink, Reis e Minciotti(2006.) Os municípios mantém
estruturas próprias para gestão de serviços de saneamento e transportes. Outra prática relacionada
ao municipalismo a todo custo foi o fato dos governos locais e do próprio consórcio não terem
avançado na elaboração de um planejamento do uso e ocupação do solo comum, de maneira a
subsidiar da elaboração dos planos diretores municipais, exigidos pelo Estatuto das Cidades.
Uma característica importante de se ressaltar do Consórcio do Grande ABC é que sua estrutura
enxuta é claramente voltada para despesas de custeio administrativo do grande fórum de debates
que representa para os prefeitos da região. Em outras palavras, o consórcio não tem um perfil de
executor de políticas públicas, mas sim de interlocução dos municípios entre si e junto a outras
esferas governamentais.
88
Essa característica pode ser observada na composição do orçamento do consórcio para 2006. O
Consórcio Intermunicipal do Grande ABC consumiu nesse ano orçamento de R$ 1,793 milhão
oriundo da contribuição de cada uma das sete cidades. A equipe da entidade é reduzida, com
apenas 12 funcionários próprios. O orçamento do consórcio nem se compara em termos de volume
aos custos dos programas e projetos dos governos e federal e estadual cuja obtenção é atribuída a
negociações conduzidas pelo Consórcio Intermunicipal.
De outro lado, um orçamento próprio tão baixo do Consórcio intermunicipal em relação aos
programas e projetos que reivindica junto a esferas superiores de governo evidencia que os
municípios parecem pouco propensos a dotar o Consórcio de uma estrutura administrativa capaz
de assumir a gestão de algumas funções metropolitanas. O consórcio é mais um escritório de
projetos do que gestor de políticas públicas. Consegue captar investimentos dos governos federal e
estadual para a região, mas não executa tais projetos. Depende do aceite e das máquinas
administrativas dessas instâncias superiores para lograr resultados satisfatórios. O limite de
atuação do Consórcio é a própria autonomia municipal.
Esse modelo de funcionamento do consórcio, que, embora seja organizado de maneira voluntária,
é fortemente dependente dos níveis superiores de governo – os governos federal e estadual.
Outro aspecto é que preponderam as relações pessoais no entendimento com os níveis superiores
de governo, fortemente sujeito à laços subjetivos dos atores metropolitanos sobre as relações
institucionais. A trajetória do Consórcio do Grande ABC corrobora esse argumento, na medida em
que sua consolidação dependeu substancialmente da liderança pessoal e entusiasmada de Mario
Covas(PSDB), e do prefeito de Santo André, Celso Daniel(PT), tanto no, primeiro mandato quanto
no seu segundo, entre os anos de 1997 e 2001.
Jeroen Klink(2006) revelou em entrevista que o entrosamento entre Celso Daniel e Mario Covas
fortaleceu-se nas eleições estaduais de 1998, quando o prefeito de Santo André liderou uma frente
de esquerda em apoio a Mario Covas no Grande ABC, contra seu opositor no segundo turno nas
eleições, Paulo Maluf(PP). A lealdade entre Covas e Daniel, perseverou após as eleições, criando
relações de confiança que diminuíram os custos de transação das negociações entre as partes.
Klink(2006) sugere ainda na entrevista(2006) que os constrangimentos institucionais à efetivação
da cooperação intergovernamental no Brasil, revelam que, em regra, as práticas cooperativas
dependem de boas relações de natureza pessoal entre dirigentes políticos. Tanto que, comentando
sobre as razões contextuais que favorecem as transações metropolitanas recentes na RMBH, Klink
comparada a amizade que havia no Grande ABC entre o governador Mario Covas e o prefeito
Celso Daniel à boa relação entre o governador de Minas Gerais Aécio Neves(PSDB) e o prefeito
de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT).
Entretanto, o perfil de defensor dos interesses municipais parece ser o que os prefeitos querem
para o Consórcio do Grande ABC, ou seja, uma arena para eles negociarem entre si políticas
regionais supostamente de consenso e aumentarem o poder de barganha das sete cidades perante
os governos estadual e federal. Desejam prejuízos mínimos à autonomia municipal. É um perfil
muito semelhante ao da Associação de Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, a
GRANBEL.
89
Acrescente-se a esse perfil a restrição que os prefeitos têm feito à participação de outros atores
regionais das discussões do consórcio tais como deputados federais e estaduais, bem como a
sociedade civil organizada. Sob esse aspecto, o Diário do Grande ABC fez o seguinte comentário:
“(...) as reuniões entre os prefeitos são fechadas - sem permissão para a
participação da imprensa, algo que era questionado até o ano passado pela
atual diretoria. Também há reclamação de deputados estaduais e federais, que
não têm acesso às informações tratadas pelos administradores e dessa forma se
vêem impedidos de atuar - se é que desejam, porque raramente participam das
reuniões abertas.(...) A participação pública na discussão regional fica restrita à
Câmara Regional - um braço político do Consórcio Intermunicipal, em que
vários agentes se inter-relacionam para formalizar acordos e parcerias.”
À guisa de conclusão, o Consórcio do Grande ABC enfrenta atualmente grandes desafios e
impasses. É uma experiência inovadora, mas novos avanços parecem estar contigenciados por
alguns dilemas: o arrefecimento da participação da sociedade civil, a dependência de boas relações
pessoais e político-partidárias entre os atores e o seu perfil mais de lobista que de gestor, são
alguns dos principais. “Um salto de qualidade é necessário”, na opinião de Klink (2006)
Uma aposta observada na articulação do Grande ABC, nos dias de hoje, é a possibilidade de dotála de instrumentos mais efetivos de planejamento e gestão regional a partir da edição da lei geral
de consórcios públicos, em abril de 2005, pelo Congresso Nacional. Há uma expectativa de que a
adaptação da articulação regional à lei impute-lhe instrumentos que, inclusive, possam traduzir
uma certa autoridade consorcial em capacidade e garantia do cumprimento dos acordos pelos
atores. No entanto, são ainda nebulosas as conseqüências da adaptação da integração regional.
Em outras palavras, ainda não são claros os efeitos de uma possível adaptação do Grande ABC à
nova legislação sobre os custos de transação regionais. A ênfase da nova lei, na gestão associada
de serviços públicos, torna compulsória a execução dos objetivos definidos para o consórcio. O
acordo, balizado em um contrato de consórcio aprovado pelas câmaras municipais e em contratos
de rateio, vincula os orçamentos dos municípios à execução dos objetivos fixados para a entidade.
Além disso, o consórcio, daqui em diante de natureza jurídica de direito público, seguirá todas as
normas a que se sujeita a administração pública: licitações para compras, concurso público para
contratação de pessoal e adequação à Lei de Responsabilidade Fiscal. É certo que, uma vez
formalizado, será alto o custo de transação para os municípios romperem o contrato de consórcio
público, pois isso acarretará multas rescisórias e indenizações por inadimplemento de contrato.
As exigências da equipe técnica aprovada em concurso, o fluxo constante de recursos e restrições
para a desativação irresponsável da associação poderão significar maior autonomia para o
consórcio e menor para os municípios. Possivelmente, a celebração de acordos pelos municípios
amparados na nova lei será mais pesada e sopesada na medida em que estes já não serão meros
acordos de cavalheiros, pelo contrário, implicarão em obrigações contratuais para a prefeitura.
Concordar com uma maior autonomia do consórcio: será esse um dilema para os prefeitos?
90
MÓDULO 3: Artigos Referenciais:
Democracia e Cidadania38
Orlando Alves dos Santos Junior (Fase)*
Será que o Brasil é um país democrático? Sob muitos aspectos não resta dúvida que sim, mas sob
outros podemos levantar diversas dúvidas. Do ponto de vista histórico, a Constituição de 1988
pode ser considerada o marco não apenas da redemocratização brasileira, mas também da
instituição das bases de um regime político no qual a população é chamada a participar e a ter
papel ativo na gestão pública, especialmente no plano local. Há que indagar, porém, sobre os
limites para a consolidação dessa nova ordem democrática, em razão das grandes distâncias
sociais que separam as classes, as regiões, as cidades e até mesmo os bairros, em mundos
contrastantes em termos de condições e qualidade de vida. Neste artigo, pretendemos discutir
exatamente o problema da democracia a partir das condições para sua efetividade no contexto
brasileiro. Para tanto, nos parece fundamental começar discutindo o próprio conceito de
democracia e sua relação com a cidadania.
O que é democracia?
Tomemos como ponto de partida a concepção de Guillermo O’Donnell (Teoria Democrática e
Política Comparada. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 42, n. 4, p. 577 – 654,
1999), na qual um regime democrático tem duas dimensões fundamentais: primeiro, é um regime
representativo de governo, em que o único mecanismo de acesso às principais posições de governo
ocorre por meio de eleições competitivas, resultado da aposta institucionalizada, universalista e
includente que faz uma sociedade, implicando na garantia a todos os indivíduos dos direitos de
votar e de ser votado. Segundo, é um regime em que o sistema legal garante as liberdades e os
direitos considerados fundamentais ao exercício da cidadania política.
Um regime democrático tem duas dimensões fundamentais: primeiro, é um regime representativo
de governo, em que o único mecanismo de acesso às principais posições de governo ocorre por
meio de eleições competitivas, implicando na garantia a todos os indivíduos dos direitos de votar e
de ser votado. Segundo, é um regime em que o sistema legal garante as liberdades e os direitos
considerados fundamentais ao exercício da cidadania política.
Essa definição, para os autores que a adotam, pressupõe que para a efetividade do regime
democrático não basta a realização de eleições; estas devem competitivas, regulares e
institucionalizadas. Como sublinha o próprio O’Donnell (p. 589), as eleições são competitivas
quando “reúnem as condições de ser livres, isentas, igualitárias, decisivas e includentes”. Ao
mesmo tempo, essa definição tem o mérito de afirmar a necessidade de um conjunto de liberdades
que assegura a realização de eleições com essas características (livres e isentas). O autor destaca,
no entanto, que o reconhecimento exato e preciso dessas liberdades apresenta diversos problemas
para a teoria democrática, pois sua determinação não encontraria bases teóricas suficientemente
firmes e claras, já que tais liberdades se baseiam fundamentalmente em juízos de valor. Por
38
Texto retirado de: Santos Junior, Orlando Alves dos...[et al.]. (organizadores). Políticas Públicas e Gerstão
Local: programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003.
* Sociólogo, doutor em planejamento urbano, diretor da ONG FASE – Solidariedade e Educação, e integrante da
coordenação do programa Observatório (IPPUR/UFRJ – FASE).
91
exemplo, sabemos que a liberdade de livre movimento ou a liberdade de expressão são essenciais
porque entendemos que ambas são positivas e fundamentais para a vida dos indivíduos. Mas
dificilmente alguém pode apontar com exatidão o conjunto de liberdades básicas e suficientes para
garantir eleições livres.
Apesar dessas dificuldades e dos elementos de imprecisão que envolvem esse debate, O’Donnell
entende que a melhor perspectiva não é ignorar essas dificuldades nem tentar determiná-las
artificialmente, mas, ao contrário, discutir as razões e as implicações desse enigma, para
compreender por que certos países conseguem ter dinâmicas mais democráticas do que outros. Daí
a preocupação do autor em estabelecer uma definição de democracia que não se restrinja ao
acatamento das regras democráticas, como na visão institucional, chamada assim exatamente por
se restringir à análise da mecânica democrática, ou seja, à dinâmica eleitoral. Em O’Donnell, estão
intrinsecamente vinculadas e são inseparáveis a institucionalização do regime e as condições de
sua efetividade, traduzidas pelas liberdades fundamentais que asseguram a cidadania política.
O’Donnell afirma que os direitos de votar e de ser votado expressos em um sistema legal definem
uma condição na qual cada agente é concebido como indivíduo “dotado de razão prática, ou seja,
que faz uso de sua capacidade cognitiva e motivacional para tomar decisões racionais em termos
da sua situação e dos seus objetivos, e dos quais, salvo conclusiva em contrário, é considerado o
melhor juiz.” (p. 603). O’Donnell chama essa condição, em inglês, de agency, que poderíamos
traduzir pela condição de agente portador de direitos, indivíduo autônomo. Essa condição, de
agente portador de direitos, também é produto de uma decisão da sociedade, já que implica a
institucionalização de “uma visão moral do indivíduo como ser autônomo, racional e responsável”
(p. 615), ou seja, que concebe o indivíduo como “um sujeito jurídico dotado de direitos civis
subjetivos” (p. 603). O que importa dizer que a cidadania política faz parte dos direitos civis, que
historicamente a antecederam, como pode ser confirmado pela análise histórica dos países onde a
democracia surgiu primeiro.
A concepção de agente portador de direitos e a constatação do nexo orgânico e histórico entre
direitos políticos e civis possibilitam afirmar que existe um vínculo entre as condições da
efetividade da democracia e as desigualdades sociais existentes em uma dada sociedade. Ou dito
de outra forma, é impossível a existência real da democracia sem o acesso e a garantia do
exercício dos direitos fundamentais à existência humana, à medida que põe em risco a própria
possibilidade de escolhas racionais fundadas na autonomia e na liberdade de ação dos indivíduos.
O’Donnell identifica dois tipos de pobreza que impedem o exercício dos direitos fundamentais
requeridos pela dinâmica democrática: a pobreza legal e a pobreza material. A primeira, marcada
pela baixa efetividade do sistema legal, que ocorre não só em muitas regiões dos países em
desenvolvimento, mas também nas periferias de muitas cidades. A segunda, evidentemente,
marcada pelas situações de carências básicas para a sobrevivência humana, que decorre da
ausência de oportunidades e de recursos materiais e educacionais.
Assim, o autor destaca duas questões que devem ser enfrentadas pela democracia, por impedirem
o exercício de aspectos essenciais da autonomia requerida pela condição de cidadania: uma, a
questão da miséria; a outra, a questão do constante temor à violência, que marcam a vida de
muitas pessoas pertencentes a grupos discriminados. Ou seja, pessoas ameaçadas fisicamente ou
em situações de carência material extrema não têm condições de participar livremente do processo
político e de exercer sua cidadania.
92
É impossível a existência real da democracia sem o acesso e a garantia do exercício dos direitos
fundamentais à existência humana, à medida que põe em risco a própria possibilidade de escolhas
racionais fundadas na autonomia e na liberdade de ação dos indivíduos. Dessa concepção,
resultam quatro questões fundamentais para a nossa discussão. Primeiro, vemos que o exercício
dos direitos está na base da concepção de cidadania, entendido na sua forma contemporânea, como
direitos civis, políticos e sociais. Segundo, percebemos que a visão moral por trás da concepção
de agentes portadores de direitos funda-se na visão do indivíduo como sujeito dotado de
autonomia (capacidade de se reconhecer), de capacidade cognitiva (ser racional nas suas escolhas)
e investido de integridade de existência (segurança física sem nenhuma forma de coerção).
Terceiro, como o indivíduo não existe isoladamente, mas sua existência depende sempre dos
vínculos sociais que ele estabelece, podemos dizer que a condição de agente portador de direitos é
condição fundamental para a associação e as participações cívica e política na sociedade. Por fim,
essa concepção de democracia subentende a admissão de uma noção de cidadania que incorpore
não apenas o exercício de direitos, mas também a aceitação das idéias de divergências, conflitos e,
por que não, de disputa pelo poder.
A dinâmica democrática tem como característica singular exatamente a disputa em torno das
dimensões que definem a cidadania, ou seja, em torno dos aspectos em que a condição de agente
portador de direitos está em jogo. Como sublinha O’Donnell (p. 627), a condição de
indeterminação das liberdades políticas, a permanente possibilidade de extensão ou retração dos
direitos sociais e civis “constituem o campo no qual se realiza a competição política na
democracia, e assim deverá continuar.” E apesar de todos os problemas referentes aos conflitos em
torno dessas definições, concordamos com O’Donnell quando afirma que o regime democrático –
a atribuição universalista de liberdades políticas e a aposta includente – gera “possibilidades de
habilitação de que todos os outros tipos de regime político são deficientes.” (Ibid.)
Nesses termos, O’Donnell aponta a necessidade de discutir a efetividade de um regime
democrático, entendendo por efetividade “o grau em que esse sistema de fato ordena as relações
sociais” (p. 620). É exatamente essa discussão que pode elucidar algumas das características da
fragilidade da democracia brasileira.
Analisando um regime democrático concretamente, podemos dizer que: (i) por um lado, sob o
ponto de vista formal/legal, as dimensões de um regime democrático estão ancoradas em um
sistema legal, definido pelo Estado Nacional enquanto entidade territorial, que estabelece os
limites de quem é portador dos direitos de cidadania e que garante a atribuição universalista e
includente desses direitos; (ii) por outro lado, sob o ponto de vista da efetividade, o regime
democrático depende das condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania, das quais
depende a constituição da condição de agentes portadores de direitos, ou seja, a habilitação dos
cidadãos para participar da dinâmica democrática.
Entendemos, dessa forma, que a habilitação dos cidadãos à dinâmica democrática está relacionada
à concepção de agente portador de direito, como condição fundamental para a efetividade da
democracia, e associada não apenas à existência dos direitos formais, mas às possibilidades de
inclusão social dos indivíduos no conjunto de laços, de valores e de normas que expressam a
aposta da sociedade na vida democrática. Ou seja, a habilitação diz respeito às condições
necessárias ao exercício da autonomia requerida pela condição de sujeito dotado de razão,
investido de integridade física e capaz de tomar decisões segundo seus interesses.
93
Democracia e Governo Local
Considerando nossa concepção de democracia, interessa-nos agora discutir o papel e as
possibilidades do governo local no aprofundamento da dinâmica democrática e no enfrentamento
do quadro de desigualdades sociais. A importância dessa discussão é reforçada pelo fato de a
relação do cidadão com o regime (de natureza nacional) ser mediada, em muitos aspectos, pelo
município como entidade política e administrativa autônoma. Além disso, essa mediação cresce
como resultado da descentralização política institucional em curso, que vem fortalecendo a esfera
local de governo por meio da atribuição de novos papéis aos municípios e da municipalização de
diversas políticas públicas, antes sob responsabilidade direta de âmbitos mais centralizados do
governo.
É verdade que, sob o ponto de vista formal/legal, é o Estado Nacional como entidade territorial
que estabelece os limites de quem é portador dos direitos de cidadania, ou seja, que garante a
atribuição universalista e includente desses direitos. No entanto, tendo em vista a relativa
autonomia da esfera local de governo, o exercício efetivo da dinâmica democrática no plano
municipal, por meio tanto da competição institucionalizada pelo poder (eleições para ocupação
dos cargos de governo) quanto da garantia dos direitos de cidadania e da extensa participação
política (liberdades associadas), depende da articulação do sistema legal (de caráter nacional) com
o município em pelo menos dois aspectos:
(i) condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania, e
(ii) características locais do contexto social (a realidade concreta), em que se destacam duas
questões, a cultura cívica e a conformação de esferas públicas. Vejamos cada uma dessas
dimensões a seguir.
Condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania.
Apesar de o rol de direitos civis, sociais e políticos fundamentais ser definido pelo sistema legal
em âmbito nacional, os municípios podem ter autonomia em certas esferas capazes de alargar, ou
mesmo de restringir, o exercício efetivo desses direitos. Tomemos, por exemplo, o direito à
informação.
Um município pode ter autonomia para instituir formas mais democráticas de acesso às
informações sobre sua realidade social ou sobre seu orçamento municipal – por meio, por
exemplo, de bancos de dados informatizados ou da divulgação de planilhas orçamentárias de
domínio público –, que podem ser decisivas para tornar a disputa pelos postos no governo mais
competitiva entre os diferentes grupos sociais. E, principalmente quanto aos direitos sociais, os
municípios podem desempenhar um papel terminante no exercício desses direitos, por meio da
regulamentação das políticas urbanas, de educação, de saúde, dos transportes, referentes à criança
e aos adolescentes etc. E na nossa concepção, como vimos anteriormente, a própria definição dos
direitos políticos está associada ao campo mais amplo dos direitos civis e sociais. Portanto, o
alargamento desses direitos pode ser essencial na habilitação dos cidadãos à participação na vida
política da cidade, ou, dito de outra forma, pode ser essencial na constituição da condição de
agentes portadores de direitos.
Apesar de o rol de direitos civis, sociais e políticos fundamentais ser definido pelo sistema legal
em âmbito nacional, os municípios podem ter autonomia em certas esferas capazes de alargar, ou
mesmo de restringir, o exercício efetivo desses direitos.
94
Ao assumirmos a concepção de agentes portadores de direitos e ao trabalharmos com o nexo entre
direitos políticos, civis e sociais, estabelecemos um vínculo indissociável entre a questão da
democracia e a das desigualdades sociais, mesmo reconhecendo os limites de indeterminação que
o cercam. Também aqui sabemos que existe um componente macroeconômico e político, de
natureza nacional e internacional, mas o que queremos salientar é que a expressão dessas
desigualdades no plano local pode variar segundo a autonomia e as opções dos municípios.
No Brasil, são diversos os exemplos de inovações no plano local em torno da atribuição de novos
direitos sociais. E concretamente percebemos que os municípios brasileiros têm-se diferenciado no
enfrentamento dos problemas da pobreza e da miséria, por meio de políticas redistributivas da
renda e da riqueza produzidas no espaço das cidades; por meio da inversão de prioridades na
alocação de recursos públicos; de investimentos nas áreas da educação e da formação profissional;
e de políticas de prevenção e combate à violência.
Normalmente associados às políticas sociais, podemos distinguir alguns dos programas inovadores
implementados por esses municípios: de renda mínima/bolsa escola; de habitação para a
população de baixa renda; de urbanização de favelas; de regularização fundiária de áreas de
especial interesse social; de aleitamento materno e de acompanhamento da saúde da ulher;
de financiamento de empreendimentos econômicos populares através da criação de bancos do
povo. No entanto, a questão da participação política não pode ser abordada somente pelo aspecto
do acesso aos direitos de cidadania e do enfrentamento das desigualdades sociais. Há um
componente ligado ao contexto social local que marca as possibilidades de participação dos
cidadãos. Esta é, portanto, a segunda dimensão da articulação entre o sistema legal e o município,
que expomos a seguir.
Características do contexto social local.
Essas caracterisiticas dizem respeito às duas questões – a cultura cívica e a conformação de esferas
públicas – fundamentais para a participação dos cidadãos na dinâmica democrática das cidades.
Para essa discussão, vamos utilizar como referência a abordagem de Robert Putnam (Comunidade
e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas,
1996), para quem o contexto social está relacionado à natureza da vida cívica, que denomina de
“comunidade cívica”, caracterizada “por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por
relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração”
(p.61).
Em uma comunidade cívica, sublinha o autor, a cidadania se caracteriza:
(i)
pelo interesse e pela participação na vida pública;
(ii)
pela igualdade política, o que implica direitos e deveres iguais para todos;
(iii) pelo compartilhamento de valores de solidariedade, confiança e tolerância, sem
negação da existência dos conflitos de interesses; e
(iv)
pela participação dos cidadãos em organizações cívicas, que incorporam e reforçam os
valores e as regras de reciprocidade da comunidade cívica (p. 100-5).
Na abordagem de Putnam, a cultura cívica é a expressão não apenas das regras de reciprocidade,
mas da corporificação de sistemas de participação social, formados pelas associações da sociedade
civil, que representam uma forma de capital social. Partindo desse ponto de vista, nosso
entendimento é que o contexto social local está referido a uma realidade territorial definida
histórica e culturalmente, muitas vezes de forma heterogênea no interior de cada país, que pode
determinar a configuração de diferentes culturas cívicas e, por conseguinte, diferenças
significativas entre distintas sociedades civis e esferas públicas. Em outras palavras,
95
argumentamos que diferenças históricas e culturais podem determinar culturas cívicas
diferenciadas entre os municípios e estabelecer diferentes padrões de articulação entre o sistema
legal e seu contexto social local, gerando, portanto, diferentes padrões de interação entre a
sociedade e as instituições governamentais democráticas.
Em nossa opinião, aqui se apresenta um dos aspectos singulares mais relevantes na dinâmica
democrática municipal, formado pela conformação e pela mobilização de esferas públicas locais, e
por diferentes padrões de interação entre a esfera governamental e a sociedade civil. De um lado, a
sociedade civil se estrutura e se organiza de forma diferenciada em cada realidade local. Acontece
que a estruturação e a organização das associações civis no plano local têm forte incidência na
conformação das esferas públicas locais. Assim, o perfil da sociedade civil quanto à sua maior ou
menor autonomia e quanto à sua maior ou menor mobilização é decisivo para a definição da
dinâmica de participação cívica. Por outro lado, cabe reconhecer que a ação governamental
também é decisiva na conformação da cultura cívica, através da instituição de arenas de interação
entre o governo e as esferas públicas existentes, definindo padrões diferenciados de interação entre
governo e sociedade.
O perfil da sociedade civil quanto à sua maior ou menor autonomia e quanto à sua maior ou menor
mobilização é decisivo para a definição da dinâmica de participação cívica. Assim, não obstante
todas as determinações sobre a institucionalidade democrática de natureza nacional, podemos
afirmar que há certas características da dinâmica democrática que estão relacionadas aos contextos
locais que dizem respeito à articulação entre o sistema legal e os municípios e que determinam a
efetividade da democracia. Dito de outra forma, se a institucionalidade democrática refere-se
fundamentalmente ao sistema legal no plano nacional, o exercício efetivo da cidadania política
refere-se em grande medida à dinâmica democrática municipal.
Com essas considerações, levantamos duas assertivas referentes aos municípios brasileiros:
• Os municípios diferem muito tanto na forma como são garantidos os direitos sociais, civis
e políticos aos seus cidadãos – se de bloqueio ou de ampliação desses direitos –, como no
grau de desigualdades socioeconômicas, em termos de renda, educação e acesso aos
equipamentos e serviços urbanos. Essas diferenças provocam grandes conseqüências na
proporção de pessoas habilitadas a participar das esferas públicas e, portanto, nas
possibilidades de se constituírem governos locais com ampla participação na dinâmica
política municipal.
• Os municípios diferem muito no que respeita à cultura cívica, à dinâmica da sociedade
civil e à constituição de esferas públicas. Não só o grau de associativismo da população é
bastante diferenciado entre as regiões, e mesmo no interior das cidades brasileiras, como
também há diferenças significativas entre os padrões associativos (tipos de associação),
segundo os extratos sociais considerados. Com efeito, as possibilidades de constituição de
esferas públicas e suas dinâmicas políticas são muito distintas consoante os diversos
contextos sociais, heterogêneos e diversificados, da realidade brasileira.
E aqui também percebemos que os municípios brasileiros têm inovado e se diferenciado entre si
quanto à instituição de arenas de intermediação entre o governo e a sociedade civil, traduzidas em
canais de participação dos cidadãos na vida política e social, possibilitando o alargamento da
esfera pública local. Nesse sentido, os municípios – ao estabelecerem esses canais intermediários
entre as associações e organizações de representação de interesses dos cidadãos e as instituições
clássicas do sistema representativo de governo, na forma do Poder Executivo e do Poder
Legislativo – têm desempenhado importante papel nas respostas à crise de representação das
96
instituições políticas, respostas que podem ser decisivas no grau de representatividade e na
legitimidade do próprio governo local.
A estrutura e o funcionamento dos Conselhos Municipais reforçam essa afirmação. Os Conselhos
foram amplamente difundidos a partir da Constituição Brasileira de 1988, e constituem canais de
participação e representação das organizações sociais na gestão de políticas públicas específicas.
Obrigatórios por lei federal em diversos setores (saúde, educação, criança e adolescente,
assistência social e trabalho), os Conselhos Municipais se diferenciam de acordo com o município:
• pelo poder de decisão, deliberativo ou consultivo;
• pelos critérios de representação dos diferentes segmentos sociais, amplos ou restritos; e
• pela dinâmica e pelas condições de seu funcionamento, isto é, os instrumentos e a
• estrutura à sua disposição.
Nesse sentido, entendemos que os Conselhos Municipais são a maior expressão da instituição,
pelo menos no plano legal, de novos canais de interação entre governo e sociedade no âmbito
local.
Para refletir:
1. Na sua opinião, qual a relação entre democracia e cidadania?
2. Como as desigualdades podem interferir na efetividade da democracia?
3. Como o governo local pode interferir na dinâmica democrática?
Para ler mais:
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Democracia e Governo Local: dilemas da reforma
municipal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/FASE, 2001.
97
A Democracia e Suas Dificuldades Contemporâneas
Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello
I - Democracia formal e democracia substancial
Independentemente dos desacordos possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir
em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios
afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que
a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores,
tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente
eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde, resulta que
Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais
resultados. Sem dúvida esta noção, tal como expendida, maneja também conceitos fluidos ou
imprecisos (liberdade, igualdade, deliberações respeitosas destes valores, instituições armadas de
maneira a concretizar determinados resultados). Sem embargo, é dela - ou de alguma outra que se
ressinta de equivalentes problematizações - que se terá de partir para esboçar uma apresentação
sumária de certas relações entre Estado e democracia, algumas das quais são visíveis e outras
apenas se vão entremostrando a uma visão prospectiva.
Seja como for - e até mesmo em razão da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noção de
democracia – é conveniente distinguir entre Estados formalmente democráticos e Estados
substancialmente democráticos, além de Estados em transição para a democracia, tendo-se
presente, ainda assim, o caráter aproximativo destas categorizações.
Estados apenas formalmente democráticos são os que, inobstante acolham nominalmente em suas
Constituições modelos institucionais - hauridos dos países política, econômica e socialmente mais
evoluídos - teoricamente aptos a desembocarem em resultados consonantes com os valores
democráticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em
decorrência de eleições, mediante sufrágio universal, para mandatos temporários; (b) consagrem
uma distinção, quando menos material, entre as funções legislativa, executiva e judicial; (c)
acolham, em tese, os princípios da legalidade e da independência dos órgãos jurisdicionais, nem
por isto, seu arcabouço institucional consegue ultrapassar o caráter de simples fachada, de painel
aparatoso, muito distinto da realidade efetiva.
É que carecem das condições objetivas indispensáveis para que o instituído formalmente seja
deveras levado ao plano concreto da realidade empírica e cumpra sua razão de existir.
BISCARETTI DI RUFFÌA, em frase singela, mas lapidar, anotou que "a democracia exige, para
seu funcionamento, um minimum de cultura política", que é precisamente o que falta nos países
apenas formalmente democráticos. As instituições que proclamam adotar em suas Cartas Políticas
não se viabilizam. Sucumbem ante a irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua
presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais
dominantes, que as controlam, apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as
instituições democráticas em si mesmas, isto é, não lhes devotam real apreço. Assim, não tendo
qualquer empenho em seu uncionamento regular, procuram, em função das próprias
conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas ora abertamente quando necessário, seja por
iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvirtuamentos romovidos pelos
governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais
bem situadas. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer consciência de
cidadania e correspondentes direitos, não oferece resistência espontânea a estas anobras.
98
Ademais, é presa fácil das articulações, mobilizações e aliciamento da opinião pública, quando
necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que os segmentos dominantes detêm
sobre a “mídia” 2, que não é senão um de seus braços.
É que - como de outra feita o dissemos – as nstituições políticas destes países “não resultaram de
uma maturação hstórica; não são o fruto de conquistas políticas forjadas sob o acicate de
reivindicações em que o corpo social (ou os estratos a que mais aproveitariam) nelas estivesse
consistentemente engajado; não são, em suma, o resultado de aspirações que hajam genuinamente
germinado, crescido e tempestivamente desabrochado no seio da Sociedade”.
Pelo contrário, suas instituições jurídico-políticas, de egra, “foram simplesmente adquiridas por
importação, tal como se importa uma mercadoria pronta e acabada, supostamente disponível para
proveitoso consumo imediato. Nestes Estados recepcionou-se um produto cultural, ou seja, o fruto
de um processo evolutivo marcado por uma identidade própria, transplantando-o para um meio
completamente distinto e caracterizado por outras circunstâncias e vicissitudes históricas. É dizer:
instituições refletoras de uma dada realidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como
se ossem irrelevantes as diversidades de solo e de enraizamento”
Em suma: estes padrões de organização política não se impuseram à conta de autêntica resposta a
conflitos ou pressões sociais que os tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos
porque a elite dirigente de sociedades menos evoluídas, de olhos postos nas mais evoluídas,
entendeu que se constituíam em um modelo natural, a ser incorporado como expressão de um
desejável estágio civilizatório. Então, não lhes atribuem outra importância senão figurativa. Daí
que, não estando cerceadas por uma consciência social democrática e correlata pressão, ou mesmo
pelos eventuais entusiasmos de uma “opinião pública”, já que as modelam a seu talante, aceitam
as instituições democráticas “apenas enquanto não interferentes com os amplos privilégios que
conservam ou com a vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores, por detrás de
uma máscara democrática, graças, justamente, ao precário estágio de desenvolvimento econômico,
político e social de suas respectivas sociedades”
De outra parte, esta situação inferior em que vivem os Estados apenas formalmente democráticos
lhes confere, em todos os planos, um caráter de natural subalternidade em face dos países
cêntricos, os quais, compreensivelmente, são os produtores de idéias, de “teorias” políticas ou
econômicas, concebidas na conformidade dos respectivos interesses e que se impõem aos
subdesenvolvidos, não apenas pelo prestígio da origem, mas também por toda a espécie de
pressões. Sendo conveniente aos países desenvolvidos a persistência desta mesma situação, que
lhes propicia, em estreita aliança com os segmentos dominantes de tais sociedades, manejar muito
mais comodamente os governos dos países “pseudo democráticos” em prol de suas conveniências
econômicas e políticas, é natural que existam entraves suplementares para superação deste estágio
primário de evolução.
Resulta deste quadro que as sociedades de incipiente cultura política para poderem vir a se
configurar como Estados democráticos, demandariam mais do que apenas reproduzir em suas
Constituições os traços especificadores de tal sistema de governo. Com efeito, de um lado, teriam
que ajustar suas instituições básicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanismos correntes
de seu desnaturamento e, de outro - o que ainda seria mais importante - empenhar-se na
transformação da realidade social buscando concorrer ativamente para produzir aquele mínimo de
cultura política indispensável à prática efetiva da democracia, única forma de superar os entraves
viscerais ao seu normal funcionamento:
99
(a) as de desfrutar de um padrão econômico-social acima da mera subsistência (sem o que
seria vã qualquer expectativa de que suas preocupações transcendam as da mera rotina da
sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso
(b) à educação e cultura (para alcançarem ao menos o nível de discernimento político
traduzido em consciência real de cidadania) e
(c) à informação, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para não serem facilmente
manipuláveis pelos detentores dos veículos de comunicação de massa)”.
Uma vez reconhecido que nos Estados apenas formalmente democráticos o jogo espontâneo das
forças sociais e econômicas não produziu, nem produz por si mesmo - ou ao menos não o faz em
prazo aceitável - as transformações indispensáveis a uma real vivência democrática, resulta claro
que, para eles, os ventos néo-liberais, soprados de países cujos estádios de desenvolvimento são
muito superiores, não oferecem as soluções acaso prestantes nestes últimos. Valem, certamente,
como advertência contra excessos de intervencionismo estatal ou contra a tentativa infrutífera de
fazer do Estado um eficiente protagonista estelar do universo econômico. Sem embargo, nos
países que ainda não alcançaram o estágio político cultural requerido para uma prática real da
democracia, o Estado tem de ser muito mais que um árbitro de conflitos de interesses individuais.
Cumpre ter presente que acentuadas disparidades econômicas entre as camadas sociais, que já
foram superadas em outros países, inclusive mediante ação diligente do Estado, persistem em
todos aqueles de insatisfatória realização democrática. Nestes, a péssima qualidade de vida de
vastos segmentos da sociedade, bloqueia-lhes o acesso àquele "mínimo de cultura política" a que
se reportava BISCARETTI DI RUFFÌA. Assim, seria descabido imaginar que o papel do Estado
pode ser o mesmo em quaisquer deles.
De fato, para engendrar os requisitos condicionais ao funcionamento normal da democracia ou
promover-lhes a expansão, o Estado não tem alternativa senão a de se constituir em um decidido
agente transformador, o que supõe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos países que já
ultrapassaram esta fase, um desempenho muito mais participante, notadamente no suprimento dos
recursos sociais básicos e no desenvolvimento de uma política promotora das camadas mais
desfavorecidas.
Na medida em que suas instituições e prática estejam votadas a este efeito transformador, caberia
qualificá-los como Estados em transição para a democracia. Entretanto, se, em despeito do formal
obséquio que lhe prestem através das correspondentes instituições clássicas, deixarem de
consagrar-se à instauração das condições propiciatórias de uma real vivência e consciência de
cidadania, não se lhes poderá reconhecer sequer este caráter.
Demais disto, contrariamente ao que pode suceder e vem sucedendo nos Estados substancialmente
democráticos, naquel'outros que ainda estão em caminho de sê-lo, quaisquer transigências com a
rigidez do princípio da legalidade, quaisquer flexibilizações do monopólio legislativo parlamentar,
seriam comprometedoras deste rumo. É que toda concentração de poder no Executivo, assim como
qualquer indulgência em relação a suas pretensões normativas, constituem-se em substancial
reforço ao autoritarismo tradicional, solidificam uma concepção paternalista do Estado identificado com a pessoa de um "Chefe" - e alimentam a tendência popular de receber com
naturalidade e esperançoso entusiasmo soluções caudilhescas ou messiânicas. Em uma palavra:
atribuir ao Executivo – órgão estruturado em torno de uma chefia unipessoal - poderes para
disciplinar relações entre administração e administrados, é, nos países de democracia ainda
imatura, comportamento que em nada concorreria para a formação de uma consciência
100
valorizadora da responsabilidade social de cada qual (que é a própria exaltação da cidadania) ou
para encarecer a importância básica de instituições impersonalizadas como instrumento de
progresso e bem estar de todos. Contrariamente, serviria apenas para reconfirmar a anacrônica
relação soberano-súdito.
Assim, em despeito da generalizada tendência mundial de transferir ao Executivo poderes
substancialmente legislativos, ora de maneira explícita e sem rebuços, como se fez na França (e
logo acomodada pelos téoricos em uma eufêmica reconstrução do princípio da legalidade), ora
mediante os mais variados expedientes ou através de acrobáticas interpretações dos textos
constitucionais, nos Estados que ainda carecem de uma experiência democrática sólida, a acolhida
destas práticas não é compatível com a democracia, ainda que tal fenômeno haja sido suscitado reconheça-se - por razões objetivas poderosas, tanto que se impuseram generalizadamente.
II - A crise dos instrumentos clássicos da democracia
O tópico do fortalecimento do Poder Executivo e correlato declínio do Legislativo, suscita
reflexões que concernem genericamente ao tema das relações entre Estado e democracia,
extravasando em muito o âmbito das considerações feitas quanto à especificidade de suas
repercussões imediatas nos países onde ainda é débil o enraizamento social da democracia.
É sabido que, em despeito da importância atribuível ao Parlamento na história da democracia,
importância esta correlata ao declínio do poder monárquico, o Executivo, sucessor do rei, cedo
começou a recuperar, em detrimento óbvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da
democracia clássica, os poderes normativos que lhe haviam sido retirados. É certo, sem dúvida,
que, na presente quadra histórica, poderosas e objetivas razões vêm concorrendo crescentemente
para isto.
Desde que o Estado, por força da mudança de concepções políticas, deixou de encarar a realidade
social e econômica como um dado, para considerá-la como um objeto de transformação, sua ação
intervencionista operada por via da Administração e traduzida não só em aprofundamento, mas
sobretudo em alargamento de suas missões tradicionais, provocaria, como tão bem observou
ERNST FORSTHOFF, uma insuficiência das técnicas de proteção das liberdades e de controle
jurídico, as quais haviam sido desenvolvidas sob o signo do Estado liberal.
Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepções néo-liberais, nem por isto
reduzir-se-á a intensificação de um controle do Estado sobre a atividade individual. É que o
progressivo cerceamento da liberdade dos indivíduos, tanto como o fortalecimento do Poder
Executivo, arrimam-se também em razões independentes das concepções ideológicas sobre as
missões reputadas pertinentes ao Estado. Um outro fator, de extrema relevância - o progresso
tecnológico – igualmente concorreu e concorre de modo inexorável para estes mesmos efeitos.
Deveras, o extraordinário avanço tecnológico ocorrido neste século, a conseqüente complexidade
da civilização por ele engendrada e, correlatamente, o caráter cada vez mais técnico das decisões
governamentais, aliados à tendência recente da formação de grandes blocos político-econômicos
formalizados, quais mega-Estados, conspiram simultaneamente contra o monopólio legislativo
parlamentar e, possivelmente, a médio prazo, até mesmo contra as liberdades individuais. Senão,
vejamos.
101
Sabidamente, como resultado da evolução tecnológica, as limitadas energias individuais se
expandiram enormemente, com o que ampliou-se a repercussão coletiva da ação de cada qual,
dantes modesta e ao depois potencialmente desastrosa (pelo simples fato de exponenciar-se). Em
face disto, emergiu como imperativo inafastável uma ação reguladora e fiscalizadora do Estado
muito mais extensa e intensa do que no passado. Notoriamente, o "braço tecnológico" propiciou
gerar, em escala macroscópica, contaminação do ar, da água, poluição sobre todas as formas,
inclusive sonora e visual, devastação do meio ambiente, além de ensejar saturação dos espaços,
provocada por um adensamento populacional nos grandes conglomerados urbanos, evento, a um
só tempo, impulsionado e tornado exeqüível pelos recursos conferidos pelo avanço tecnológico.
Tornouse, pois, inelutável condicionar e conter a atuação das pessoas físicas e jurídicas dentro de
pautas definidas e organizadas, seja para que não se fizessem socialmente predatórias, seja para
acomodá-las a termos compatíveis com um convívio humano harmônico e produtivo.
Em suma: como decorrência do progresso tecnológico engendrou-se um novo mundo, um novo
sistema de vida e de organização social, consentâneos com esta realidade superveniente. Daí que o
Estado, em conseqüência disto, teve que disciplinar os comportamentos individuais e sociais
muito mais minuciosa e extensamente do que jamais o fizera, passando a imiscuir-se nos mais
variados aspectos da vida individual e social.
Este agigantamento estatal, manifestou-se sobretudo como um agigantamento da Administração,
tornada omnipresente e beneficiária de uma concentração de poder decisório que desbalanceou,
em seu proveito, os termos do anterior relacionamento entre Legislativo e Executivo. Com efeito,
este último, por força de sua estrutura monolítica (chefia unipessoal e organização hierarquizada),
é muito mais adaptado para responder com presteza às necessidades diuturnas de governo de uma
sociedade que vive em ritmo veloz e cuja eficiência máxima depende disto. Ademais,
instrumentado por uma legião de técnicos, dispõe dos meios hábeis para enfrentar questões
complexas cada vez mais vinculadas a análises desta natureza e que, além disto, precisam ser
formuladas com atenção a aspectos particularizados ante a diversidade dos problemas concretos
ou de suas implicações polifacéticas, cujas soluções dependem de análises técnicas – e não apenas
políticas.
III - Tentativas de resposta à crise da democracia
Estes fatores convulsionantes do quadro clássico da democracia (e não apenas da democracia
liberal), suscitaram respostas tendentes, a neutralizar, ao menos parcialmente, os riscos oriundos
da transferência de poderes do Legislativo para o Executivo e da maior exposição, individual ou
coletiva dos cidadãos, a um progressivo cerceamento das liberdades.
A disseminação do parlamentarismo terá sido, possivelmente, o meio de que as sociedades mais
evoluídas lançaram mão, na esfera política, para minimizar as conseqüências do fortalecimento do
Executivo. Os Estados Unidos da América do Norte constituem-se em exceção confirmadora da
regra. Com efeito, ainda dentro dos quadros tradicionais de organização política, não havendo
irrompido outras fórmulas de estruturação democrática do Poder e ante a presumida
impossibilidade de deter utilmente a aludida transferência de atribuições do Legislativo para o
Executivo, a solução terá sido transformar este último em delegado daquele. Ou seja: se o
Executivo, armado agora de formidáveis poderes, atuar descomedidamente, em descompasso com
o sentimento geral da coletividade, é simplesmente derrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento,
acima de tudo, em um organismo dotado do mais formidável poder de veto: o veto geral; portanto,
uma inversão radical, do modesto e provisório poder de veto típico do Executivo.
102
Na esfera administrativa, ganha relevo crescente o procedimento administrativo, obrigando-se a
Administração a formalizar cuidadosamente todo o itinerário que conduz ao processo decisório.
Passou-se a falar na "jurisdicionalização" do procedimento administrativo, (ou processo, como
mais adequadamente o denominam outros), com a ampliação crescente da participação do
administrado no “iter" preparatório das decisões que possam afetá-lo. Em suma: a contrapartida do
progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do "modus
procedendi" da Administração.
Outrossim, no âmbito processual, mas com as mesmas preocupações substanciais de defesa dos
membros da Sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteção dos
chamados "interesses difusos" ou "direitos difusos", os quais, em última instância, ao nosso ver,
não passam, quando menos em grande número de casos, de uma dimensão óbvia dos simples
direitos subjetivos. De fato, não há sentido algum em conceber estes últimos com visão acanhada,
presa à relações muito típicas do direito privado, inobstante categorizado como noção pertinente à
teoria geral do direito.
IV - Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos
Os valiosos expedientes a que se vem de aludir, minimizaram, mas não elidiram, a debilitação dos
indivíduos perante o Estado, assim como o enfraquecimento da interação entre os cidadão e o
Poder Público. O certo é que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente
invasivos de todos os campos (nada importando quanto a isto que hajam sido autorizados
expressamente ou resultem da generalidade das expressões legais que os ensejam), há diferenças
extremamente significativas que, no caso dos regulamentos, repercutem desfavoravelmente tanto
no controle do poder estatal, quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas
facções sociais. Estas diferenças, a seguir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos
administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das
características de abstração e generalidade também encontradiças nos Regulamentos.
Deveras, as leis provêm de um órgão colegial - o Parlamento - no qual se congregam várias
tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro
de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este órgão do Poder se constitui em
verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção
jurídica, termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre
as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei,
são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o
produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única
linha de pensamento.
Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à
média do pensamento social predominante muito maior do que ocorre quando as normas
produzidas correspondem à simples expressão unitária da vontade comandante do Executivo,
ainda que este também seja representativo de uma das facções sociais, a majoritária. É que, afinal,
como bem observou KELSEN, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições
proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma pluralidade de grupos, inclusive
de minorias, é mais democrático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no
caso do Parlamentarismo, como fruto da vitória eleitoral de um partido. Daí que os regulamentos
103
traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente ou das coalizões partidárias
prevalentes.
Além disto, o próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos,
confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes
superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção
incomparavelmente maiores.
É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das
disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma
fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores
interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis
com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tempestivas alterações e emendas para
obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas, quanto propósitos de favorecimento ou,
reversamente, tratamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de
grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos.
Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa
Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando, em grau
maior, a possibilidade de erros ou inconveniências provindos de açodamento. Finalmente, propicia
um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao
planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos
individuais de cada qual.
Já os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, ensancham as mazelas que
resultariam da falta deles. Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em círculo restrito,
fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, então, de qualquer fiscalização ou
controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se
faz em função da diretriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto
por seus membros. Não necessita passar, portanto, pelo embate de tendências políticas e
ideológicas diferentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim também pode ser alterado
ou suprimido. Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer - e
com muito maior razão - das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é,
descompasso flagrante com seus pressupostos constitucionais e com a teratológica reiteração
delas.
V - Possível agravamento da crise da democracia
Ao que foi dito cumpre acrescer - e é este possivelmente o aspecto mais importante - que, na
atualidade, está ocorrendo um distanciamento cada vez maior entre os cidadãos e as instâncias
decisórias que lhes afetam diretamente a vida. A claríssima tendência à formação de blocos de
Estados, de que a Europa é a mais evidente demonstração, por exibir um estágio qualitativamente
distinto das ainda prodrômicas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento
de fórmulas políticas organizatórias muito distintas das que vigoraram no período imediatamente
anterior e, como dito, um distanciamento, quase que inevitável entre o cidadão e o Poder. Com
efeito, as decisões tomadas pelos Conselhos de Ministros Europeus (os quais não são investidos
por eleições para este fim específico) possivelmente afetam de maneira mais profunda a vida de
cada europeu do que as tomadas pelos respectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelos que
104
receberam mandato expresso para lhes regerem os comportamentos (O chamado “Parlamento
Europeu”, distintamente do que o nome sugere não é um órgão legislativo).
Procederia concluir que um número cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um número
cada vez maior delas e que os modelos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou
assegurar a democracia, estão se esgarçando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a
realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institucionais da democracia
representativa) encontram-se, hoje, provavelmente, muito mais resguardados enquanto valores
incorporados à cultura política do ocidente desenvolvido, do que, propriamente, pela eficiência
dos vínculos formais das instituições jurídico-políticas. Dito de outro modo: a convicção
generalizada de que liberdade e igualdade são bens inestimáveis atua como um freio natural sobre
os governantes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda incólume,
conquanto as instituições concebidas para assegurá-los já não possuam mais as mesmas condições
de eficácia instrumental que possuíram. Para usar uma imagem exacerbada, é como se já houvesse
se iniciado uma caminhada em direção a um “despotismo esclarecido”.
Poder-se-ia entender que os valores próprios da democracia encontram-se tão profundamente
enraizados na consciência coletiva de sociedades politicamente mais evoluídas que se
constituiriam em estágio já definitivamente incorporado, tornando impensável a possibilidade de
qualquer retrocesso, independentemente da intrínseca eficiência das instituições concebidas para
lhes oferecer o máximo de respaldo. Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposição. Ainda
permanece verdadeira a clássica asserção de MONTESQUIEU: “todo aquele que tem poder tende
a abusar dele; o poder vai até onde encontra limites” 11. A História da humanidade, inobstante a
progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito
recentes, que a prevalência de idéias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e
preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as situações coletivas de bem estar e
segurança. E duram tanto quanto duram estas.
No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns à
generalidade da esfera animal. Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem
com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo
temor, também as coletividades humanas, quando ameaçadas pela presumida insegurança ou pelo
risco ao seu bem estar, substituem suas convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já
agora especificamente humanas) racionalizações e atacam com zoológica violência. Surtos de
racismo, de rechaço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerbado, de inconformismo com as levas
migratórias advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposição política,
econômica ou social de outras sociedades - quaisquer deles já prenunciados nas tendências de
grupos políticos ou sociais em algumas sociedades européias - tanto como o recente e devastador
consórcio bélico dos principais Estados desenvolvidos contra um país árabe, o Iraque (cujo
ditador, quanto a isto, em nada é diferente dos demais, distinguindo-se deles apenas em que se
revela mais resistente aos interesses das grandes potências e mais preocupado na defesa dos
pertinentes ao próprio País), demonstram exemplarmente a precariedade das idéias que não se
encontrem alicerçadas, simultaneamente, em interesses e em instituições formais hábeis para
mantê-las consolidadas.
À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes
umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e,
muito mais, portanto, para as possibilidades dos países subdesenvolvidos acederem às condições
propiciatórias de uma democracia substancial. É que os subdesenvolvidos têm sido e são,
105
naturalmente, meros piões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional;
logo, por definição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as
peças.
VI- Globalização e neo-liberalismo: novos obstáculos à democracia
Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores
substancialmente democráticos, como igualdade real e não apenas formal, segurança social,
respeito à dignidade humana, valorização do trabalho, justiça social (todos consagrados na bem
concebida e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988), ficarão cada vez mais distantes à medida
em que os Governos dos países subdesenvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de
desenvolvimento - em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos se entreguem incondicionalmente à sedução do canto de sereia proclamador das excelências de um
desenfreado néo-liberalismo e de pretensas imposições de uma idolatrada economia global.
Embevecidos narcisisticamente com a própria "modernidade", surdos ao clamor de uma população
de miseráveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico
monocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos interessados.
Diga-se de passagem que é incorreta a suposição de que tanto a chamada “globalização da
economia” (com as feições que, indevidamente, se lhe quer atribuir como inerências), quanto o
“neoliberalismo”, constituam-se simplesmente em um estágio evolutivo determinado tão só por
transformações econômicas inevitáveis e, conseqüentemente, que encampá-las nada mais significa
senão adotar uma atitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que
há de incoercível no desenvolvimento histórico. Esta forma de “interpretar” o fenômeno presente é
- como freqüentemente ocorre - apenas uma forma astuciosa de valorizar o próprio ideário e de
desacreditar, por antecipação, as contestações que se lhes possam fazer. É que traz consigo,
implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham, como
ultrapassados (“dinossauros”).
Em rigor, elas nada mais são que “teorizações” pobres, racionalizações, elaboradas para justificar
interesses meramente políticos - e destarte contendíveis - dos países cêntricos e das camadas
economicamente privilegiadas, em cujo bojo e proveito foram gestadas. Com efeito, o modesto
acervo de idéias atualmente difundidas “sub color” de verdade científica universal nada mais é que
o uso de nomenclaturas novas encobridoras de experiências velhas, destinadas a consagrar um
simples movimento de retorno, quando menos parcial, ao século passado, ao “statu quo”
precedente à emergência do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providência.
Relembremos que a partir de meados do século XIX e sobretudo no início do atual irrompeu e
expandiu-se um movimento de inconformismo das camadas sociais mais desfavorecidas cujas
condições de vida, como é notório, eram extremamente difíceis. Fazendo eco a tais eventos,
eclodiram, no campo das idéias e sucessivamente das realizações políticas, manifestações, de
maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes - comunismo e social
democracia - insurgentes ambas contra o quadro político social da época. O manifesto comunista
(1848) e assim também ulteriormente Encíclicas papais (“Rerum Novarum”, 1891,
“Quadragésimo Ano”, 1931) são expressivas de uma visão então crítica e renovadora. Os
resultados concretos deste panorama de insurgência, em suas duas vertentes, foram,
respectivamente, de um lado, a Revolução Comunista de 1917 e implantação de tal regime na
Rússia e, de outro a expansão da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente,
consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os “Direitos Sociais”, na
106
Constituição Mexicana, também de 1917 e ao depois na Constituição alemã, de Weimar, em
1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocupação em
fazer do Estado um agente de melhoria das condições das camadas sociais mais desprotegidas
expande-se ao longo de todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como
Estado Social de Direito ou Estado Providência. De outra parte, o regime comunista, ano a ano se
alastrava, implantando-se em novos países. Paralelamente, o colonialismo e seu sucessor, o
imperialismo das grandes potências do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas
contínua, afligido também por censuras crescentes ao excessivo desequilíbrio entre as nações
(Encíclicas “Mater er Magistra”, 1961, “Pacem in Terris”, 1963 e “Populorum Progressio”, 1967).
Foi, desde o início, o temor de que se expandisse a concepção comunista - radicalmente antitética
à sobrevivência do capitalismo - com sua capacidade de atrair as massas insatisfeitas, ou quando
menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessário combustível para
a implantação e disseminação do Estado Social de Direito. Com efeito, a História não registra
gestos coletivos de generosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja
pródiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio do comunismo
propiciou a irrupção do Estado Providência, sua falência na União Soviética e no Leste Europeu e sinais precursores de seu declínio no Extremo Oriente - está a lhe determinar o fim.
A simples cronologia dos eventos e das correlatas idéias o demonstram de modo incontendível. O
Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo.
Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais,
agora “recautchutadas” com o rótulo de “néo”, propondo liminarmente a eliminação ou
sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o
imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente técnica de “globalização”.
Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de
interesse dos países dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos
temores e percalços que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente,
empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um
retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século
passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes.
No momento, parece que não há mais núcleo algum capaz de contender esta rebarbativa
unaninimidade que se auto lisonjeia com o qualificativo de moderna, categorizando como
ultrapassados quaisquer que ainda não hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamente. A
bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a implosão da União Soviética), com o
confronto de idéias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagônicas, ensejava,
além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natural convite à crítica
de ambas, na trilha da síntese resultante de tal dialética. A momentânea ausência das condições
objetivas para um debate consistente possivelmente é, para os países subdesenvolvidos, um dos
piores dramas deste final de milênio e um dos maiores obstáculos a que venham, finalmente, a
abicar em regimes efetivamente democráticos.
107
MÓDULOS 4, 5 e 6: Artigos Referenciais:
Habitação, Inclusão Social e Governança Urbana Colaborativa
Rosana Denaldi, Jeroen J. Klink, Claudia de Souza
Introdução
O Brasil passou por acelerado processo de urbanização que acentuou as desigualdades regionais e
gerou grande concentração urbana em algumas regiões. Cerca de 30% da população de 170 mil
brasileiros mora em nove metrópoles. Em apenas três regiões metropolitanas -São Paulo, Rio de
Janeiro e Belo Horizonte - encontram-se cerca de 20% da população brasileira. (Censo
IBGE/2000), A pobreza também se concentrou nesses territórios. O Ministério das Cidades, em
parceria com o Observatório das Metrópoles e da FASE, desenvolveu um estudo acerca das
carências habitacionais e de saneamento, que apontou 11 metrópoles em risco, as quais reúnem
209 municípios e concentram 32% da população brasileira, 1,6 milhão de domicílios com déficit
de distribuição de água, 7,2 com déficit de coleta de esgotos e 12,6 milhões com déficit de
tratamento de esgotos. Estas regiões concentram 33% do déficit habitacional, 90% do déficit na
faixa de renda de até 3 salários mínimos e mais de 82 % dos domicílios em favela.
A resolução das questões setoriais como transporte, infra-estrutura de saneamento, meio ambiente
e habitação não se restringem aos limites de um município, particularmente nas regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, caracterizadas pelas intensas
interdependências funcionais entre as cidades que as compõem. Na prática, a articulação
inter/supra-municipal em torno da política habitacional, objeto da nossa discussão, é frágil.
Os arranjos colaborativos no setor habitacional surgem de forma ad-hoc, via convênios
intermunicipais, repasses negociados de recursos voluntários e programas específicos. Pouco
avançamos na criação de novas governanças metropolitanas que aglutinem agentes, escalas e
setores, e a ausência de uma estratégia territorial integrada vem gerando uma série de custos de
oportunidade sócio-econômicos e ambientais nas metrópoles brasileiras.
Este artigo trata da relação entre política habitacional e questão urbana metropolitana no Brasil e
analisa as dificuldades da política urbano-habitacional à luz da fragilidade ou ausência de
governança colaborativa.
Arranjos colaborativos nas regiões metropolitanas brasileiras
É frágil o arcabouço macro-institucional que norteia a gestão, organização e financiamento das
regiões metropolitanas brasileiras, e este traço não mudou significativamente após o processo de
democratização e descentralização que ocorreu a partir de meados dos anos 1980.
Nos anos 1970, por legislação federal, foram criadas nove regiões metropolitanas no país. Essas
regiões se constituíram em torno de capitais de estados que abrigaram o primeiro surto de
industrialização e os conseqüentes fluxos migratórios. Este arranjo estadualizado, que se
configurou em pleno regime autoritário, teve um viés tecnocrata e um alto grau de centralização
108
financeira e de tomada de decisões, com o principal órgão (o conselho deliberativo das regiões
metropolitanas) dominado pelos representantes indicados pelos governos federal e estadual.39
Esse modelo de gestão metropolitana se esgota nos anos 1980, particularmente em função de
fatores como a crise fiscal, a redemocratização e o surgimento de novos atores sociais. Podemos
concluir que o modelo estadualizado não conseguiu desencadear inovação institucional e avançou
pouco no que tange à execução efetiva de funções de interesse comum (Spink, 2005; Souza,
2003). Com poucas exceções, as estruturas institucionais montadas pelos estados nas regiões
metropolitanas limitam-se à função de planejamento e articulação com pouca capacidade de
alavancar a execução efetiva de funções de interesse comum.
Ao mesmo tempo surge um conjunto de arranjos horizontais de associativismo intermunicipal,
cuja escala cresceu no decorrer dos anos 1980 em função do processo de descentralização e
democratização. A figura institucional do consórcio conheceu um crescimento expressivo nessa
década. Nos anos 1980 os primeiros consórcios eram principalmente formas setoriais de
articulação; já nos anos 1990, em algumas regiões, ocorreram inovações em torno de iniciativas
territoriais e multissetoriais.40
Apesar da fragilidade macro-institucional que ainda caracteriza o cenário brasileiro, verificamos
uma série de iniciativas recentes no âmbito do processo de repactuação da federação brasileira
(Klink, 2009). A partir do ano de 2003, o governo nacional, por meio de uma articulação entre o
Ministério das Cidades, o Ministério de Integração Nacional e a Sub-Chefia de Assuntos
Federativos da Casa Civil da Presidência da República, reinseriu o tema da gestão metropolitana
na pauta da agenda política do país. Por meio da retomada da discussão sobre a chamada Emenda
241 da Constituição Federal, no ano de 2005 o governo avançou, após várias discussões
polêmicas, na criação e regulamentação da chamada Lei dos Consórcios Públicos (Lei nº 11.107,
de 6 de abril de 2005).
Referida lei representa um avanço significativo, principalmente em função da precariedade
jurídica dos consórcios existentes (de direito privado). Antes da lei, os consórcios estavam
impossibilitados de prestarem garantias, de assumirem obrigações em nome próprio ou de
exercerem atividades de fiscalização, regulação e planejamento (Dias, 2006). A lei ainda permite
processos de repactuação e consorciamento entre os vários entes federados. Isso quer dizer que o
governo estadual pode fazer parte de um consórcio de municípios, desencadeando trajetórias de
aprendizagem e propiciando um arranjo com elementos de coordenação vertical e horizontal entre
entes federados.41
Além da retomada do tema pelo governo federal, presenciamos, também, um novo ativismo da
esfera estadual em relação ao tema metropolitano, sob uma base metodológica diferente daquela
dos anos 1970, buscando mais envolvimento dos atores locais. Esse protagonismo estadual refletese num conjunto de iniciativas promissoras em vários estados da federação, como Minas Gerais,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraná, entre outros exemplos.42
39
Os municípios não dispunham de autonomia para deliberar sobre a decisão de entrar ou não no arranjo
metropolitano.
40
Ver REIS (2009)
41Teoricamente o governo nacional pode participar de um consórcio intermunicipal, desde que a esfera estadual
também participe do arranjo. Evitam-se, assim, problemas de coordenação em função de articulações diretas entre
governos central e local.
42
Ver DENALDI et al (2009)
109
Conforme argumentam Denaldi, Klink e Souza (2009) não há modelo único de governança. No
Quadro 1 seguinte, adaptamos a classificação de arranjos colaborativos nas áreas metropolitanas
de Rodríguez e Oviedo (2001) para o cenário institucional brasileiro. Analisando esta figura
percebemos que os consórcios públicos e as regiões metropolitanas somente representam dois
instrumentos dentro de um caleidoscópio mais complexo de arranjos colaborativos existentes nas
áreas metropolitanas brasileiras. Classificamos esses arranjos de acordo com o perfil da
articulação governamental (se intermunicipal ou envolvendo várias escalas de poder), e seguinte o
critério da presença de atores não governamentais, isto é, se o arranjo é predominantemente
governamental ou se constitui um mecanismo de articulação com presença importante de atores
não governamentais.
Quadro 1 – Uma classificação de arranjos colaborativos nas áreas metropolitanas brasileiras
Arranjo Arranjo governamental governamental de múltiplas escalas intermunicipal
Arranjo predominamente governamental
Setorial
Consórcios públicos, convênios, contratos de gestão, financiamentos e repasse de recursos voluntários (transporte, habitação, saneamento etc.)
Territorial Consórcio público, região Consórcios de direito metropolitana (regulamentada privado para planejamento regional, de acordo com as Consórcios públicos constituições estaduais)
Consórcios de direito privado de saúde, educação, resíduos sólidos etc.; consórcios públicos; acordos e convênios intermuncipais Arranjo com presença importante de atores não governamentais
Setorial
Territorial Comitê de bacias, câmaras setorais, conselhos, fundos e fóruns setorais (SNHIS, SNHM etc.), grupo gestor setorial, unidades de esgotamento etc. Câmaras, conselhos e fóruns regionais de desenvolvimento, grupo gestor de monitoramento e fiscalização de mananciais e bacias hidrográficas etc.
(*) Pouca presença no cenário institucional brasileiro. 110
Agências de desenvolvimento econômico
Agências de reconversão territorial (*)
Evidentemente, conforme também observam autores como Lefevre (2008), estes recortes são
relativamente aleatórios e incompletos. No caso brasileiro outro critério importante se refere ao
grau de formalização do mecanismo de colaboração. Vários arranjos informais podem
desempenhar papel importante no processo de aprendizagem coletiva rumo às formas mais
institucionalizadas de governança metropolitana.
O Quadro anterior mostra que pode surgir uma agenda metropolitana mais promissora que aquela
proporcionada pelo debate estritamente institucional. Essa nova agenda seria caracterizada pela
busca dos limites e potencialidades com respeito ao aperfeiçoamento e ampliação dos atuais
arranjos colaborativos imperfeitos (second best) nas áreas metropolitanas, pelo uso dos
instrumentos novos e pela reinvenção dos existentes.
Colaboração inter-federativa no setor habitacional
Na área habitacional, a partir de meados da ultima década, vários acontecimentos abrem novas
perspectivas, entre eles, destaca-se a aprovação do Estatuto da Cidade43, a organização
institucional do setor habitacional e a ampliação do atendimento à população de menor renda.
(Bonduki,2009; Brasil, 2004)
A aprovação do Estatuto da Cidade, Lei Nº 10.257/2001, representa a possibilidade de ampliar o
processo de acesso à terra urbanizada, fazendo com que a mesma cumpra sua função social. A
criação do Ministério das Cidades, a formulação da nova Política Nacional de Habitação (PNH) e
do Sistema Nacional de Habitação (SNH) podem contribuir para reunir esforços dos três entes
federativos (União, estados e municípios). Várias iniciativas do Governo Lula, entre elas o
lançamento do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), aumentaram a disponibilização de
recursos para habitação.
O investimento na área habitacional foi ampliado com aumento significativo também dos
subsídios habitacionais, o que possibilitou ampliação do atendimento à população de menor renda.
Em 2007, no segundo governo Lula, foi lançado o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento –
objetivando um crescimento econômico de 5% ao ano no período 2007/2010. O programa foi
dividido em três eixos de infra-estrutura: (1) logística, (2) energética, e (3) social e urbana. O
terceiro eixo inclui, entre seus componentes, urbanização de favelas e de assentamentos precários,
prevendo um significativo aumento dos investimentos e da ampliação do atendimento.
Foram eleitas para atendimento 12 regiões metropolitanas, as capitais e os municípios com mais
de 150 mil habitantes, selecionando-se 192 propostas que beneficiam 157 municípios, sendo
previsto um investimento em urbanização de favelas, até 2010, da ordem de RS 8,3 bilhões.
Entretanto, pouco se avançou na direção da construção de uma agenda de gestão metropolitana. O
Estatuto da Cidade não trata da questão metropolitana e regional. Permanece a dificuldade de
articular a elaboração e revisão dos planos diretores com as estratégias de âmbito regional. Na
escala metropolitana verificamos um padrão de uso e ocupação do solo que fugiu largamente do
controle e da capacidade de mediação dos planos diretores locais. Na prática os gestores locais não
somente se depararam com desafios enormes de aplicar os novos instrumentos do Estatuto em prol
43
Lei Federal nº 10.257 de 10 de junho de 2001.
111
de inclusão sócio-espacial – principalmente em função da força histórica do capital imobiliário nas
cidades brasileiras –, mas também não se mobilizaram para articulá-los em escala metropolitana.
Conseqüentemente, na maior parte das áreas metropolitanas verificamos um verdadeiro
caleidoscópio de planos diretores municipais, com nenhum denominador comum em termos de
índices urbanísticos, instrumentos utilizados, metodologias de elaboração e formas de
acompanhamento, monitoramento e adequação. (Freitas, 2007)
O novo desenho institucional, em especial o SNH (Sistema Nacional de Habitação), não busca
uma conexão mais direta com as novas institucionalidades de colaboração inter-federativa que
surgiram nos últimos anos (e cuja expressão mais clara é a figura dos consórcios públicos). O PAC
priorizou intervenções de caráter metropolitano, mas não estabeleceu como um de seus objetivos o
fortalecimento das articulações regionais.
O caráter do PAC requer, em muitos casos, a articulação de municípios e estado e, em outros, a
articulação entre municípios. Paradoxalmente, a fragilidade dos arranjos institucionais regionais
no Brasil impôs a necessidade do governo federal (Casa Civil, Ministério das Cidades e CEF)
reunir municípios e estados para pactuar a definição das prioridades na fase de planejamento do
programa. Coube ao governo federal acompanhar a execução dos projetos sem contar, na maioria
das regiões, com os referidos arranjos regionais que possibilitariam consolidar os pactos e
viabilizar o planejamento e execução regional desses projetos. Um dos obstáculos institucionais à
execução do PAC é a inexistência de um instrumento de organização e gestão das regiões
metropolitanas.
Para viabilizar estas intervenções foram criados, no âmbito estadual, os GGI (Gabinetes de Gestão
Integrada) com a participação de representantes do governo federal (CEF, Ministério das Cidades,
Secretaria de Assuntos Federativos), governo estadual e outros tomadores de decisão. Também foi
estimulada a cooperação institucional através dos grupos gestores (ou grupos de trabalho) que
reúnem representantes dos governos municipais e estadual. Afirma-se que o objetivo principal é o
de viabilizar a execução das obras e não o de fortalecer a articulação regional, mas que este
ambiente de cooperação poderia ser capaz de gerar instâncias de caráter mais permanente
dependendo da vontade e força política das lideranças locais e regionais.
O caso da bacia de Beberibe, no Estado de Pernambuco, é um exemplo de articulação regional
apoiada pelo governo federal para viabilizar o PAC. Em 2008 foi criado o ‘Grupo Gestor da Bacia
do Rio Beberibe (GGBB),’ com a participação do Governo do Estado de Pernambuco, das
prefeituras de Camaragibe, Olinda e Recife e entidades da sociedade civil,44 Tendo como
principal motivação o lançamento do PAC no final de 2007 e a necessidade de equacionamento
das sobreposições de obras e serviços na Bacia. Cada um dos três municípios da Bacia do
Beberibe – Recife, Olinda e Camaragibe –, bem como o Governo do Estado pleiteavam recursos
do PAC e, para viabilizar o projeto, o governo federal solicitou a compatibilização das várias
intervenções. O reconhecimento da sobreposição e fragmentação de ações e agendas e da
necessidade da participação de todos os atores envolvidos no programa de recuperação da bacia
hidrográfica, impulsionaram a estruturação de um arranjo colaborativo inter-federativo com
44
O Grupo Gestor da Bacia do Rio Beberibe (GGBB) foi oficializado por meio da Portaria Conjunta Nº 013 ( 26 de
agosto de 2008) e pautada por um acordo formal entre o Governo do Estado de Pernambuco, as Prefeituras de
Camaragibe, Olinda e Recife e entidades da sociedade civil.
112
participação da sociedade civil. Apesar de suas vulnerabilidades, o caso da Bacia do Beberibe
mostra um processo de aprendizagem institucional e social.
Em outros casos projetos desenvolvidos com apoio e participação do governo federal não
conseguiram desencadear esforços regionais e aconteceram à margem dos arranjos regionais. Os
casos da ‘Favela Naval’, na Região do Grande ABC, e do ‘Rio do Bugre’, na Região da Baixada
Santista, são exemplos.
O caso da Favela Naval, localizada na divisa entre as cidades de Diadema e São Bernardo do
Campo no Grande ABC Paulista e na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), trata-se de
uma intervenção integrada que exigia a colaboração bilateral entre as referidas prefeituras para
viabilizar a abertura de viário regional e promover a urbanização e recuperação da Favela Naval.
A ausência (ou fragilidade) desta colaboração dificultou e paralisou a execução do projeto. A
partir de 2009 as duas novas administrações municipais estabeleceram um canal de diálogo para
que as intervenções viárias e habitacionais possam ser “casadas” não só espacialmente, mas
também no tempo.
No caso da recuperação do Rio do Bugre, que perfaz a divisa entre as cidades de Santos e São
Vicente, fazia-se necessária a articulação destes dois municípios e do Governo do Estado. A
ocupação habitacional às margens do Rio e que avança sobre ele em palafitas faz-se em condições
de grande insalubridade e risco para os moradores, degradando o ambiente estuarino. A
recuperação ambiental do Rio do Bugre e dos assentamentos localizados a sua margem exige
ações articuladas e intermunicipais. As intervenções realizadas pelos municípios de Santos e São
Vicente no território às margens desse mesmo curso d’água, em tempos diferentes e adotando
metodologias distintas, resultou na irresolução do problema sócio-ambiental.
As tensões e conflitos entre as cidades de Santos e São Vicente em torno da política habitacional,
expõem a fragilidade do arranjo estadualizado das regiões metropolitanas que foi montado ao
longo dos anos 1990. Apesar da existência de um arranjo de colaboração formalizado por meio da
Agência Metropolitana de Baixada Santista (AGEM), a discussão e o planejamento desta
intervenção não foram pautados por aquele organismo de gestão.
A ausência de colaboração regional dificulta o enfrentamento do déficit habitacional e a
recuperação ambiental dos assentamentos precários e das áreas ambientalmente sensíveis e, por
extensão, da cidade como um todo, o que certamente contribui para aumentar a segregação sócioespacial e reforçar as desigualdades regionais.
A ausência de uma estratégia territorial integrada pode comprometer o equacionamento do
problema habitacional. No caso do município de Diadema a articulação regional é condição para o
equacionamento desse problema. O município de Diadema, no Grande ABC Paulista, tem
densidade demográfica das mais elevadas do Brasil - cerca de 12.898,3 hab/km², O déficit
habitacional é de 9.499 habitações (IGBE/FJP-2000) e, de acordo com o Plano Municipal de
Habitação de Diadema (2008), o déficit projetado para 2020 é de 18.368 habitações. Não há terra
vazia, pública ou privada, adequada para atendimento desse déficit e a totalidade do estoque de
terras disponível pode atender apenas 30% do total. Sendo assim, o déficit habitacional de
Diadema terá que ser atendido em outras cidades da RMSP. O Município de Itapecerica da Serra,
também na RMSP, localiza-se integralmente na bacia hidrográfica da Guarapiranga e a legislação
ambiental impõe que a maior parcela de seu território seja preservada para cumprir função
ambiental, de forma que parte do déficit habitacional acumulado (cerca de 6 milhões de
113
domicílios) e da demanda demográfica futura necessariamente, e da mesma forma que no caso de
Diadema, terá que ser atendida em outro município da região.
De forma geral a política habitacional impõe a necessidade premente de articulação e governança
regional, uma vez que:
• a política urbana praticada por um município pode atrair a demanda de outro município ou
expulsar a população de menor renda para municípios vizinhos;
• a dinâmica urbano-regional influencia a formação do preço da terra;
• em regiões metropolitanas expressivo percentual da população mora e trabalha em
diferentes municípios e a solução dos problemas de mobilidade regional relaciona-se à
gestão do uso e da ocupação do solo e à oferta de moradia;
• o estoque de terras adequadas para uso habitacional no município pode não ser suficiente
para solucionar o déficit habitacional acumulado e a demanda demográfica futura e pode
requerer que esta demanda seja atendida em outro município da região;
• muitos setores da cidades e/ou assentamentos precários estão inseridos em áreas de
mananciais ou em áreas de preservação permanente (APP),como mangues, rios e córregos,
que não coincidem com os limites administrativos de uma cidade;
• muitos projetos de recuperação de assentamentos precários tem interface com projetos
viários e de drenagem urbana e requerem definições regionais.
Governança colaborativa e ação regional no setor urbano-habitacional: um impasse
produtivo?
Constatamos que o tema da governança metropolitana voltou à pauta na agenda da política urbana
no Brasil. Entretanto, como mostramos neste ensaio, os avanços ainda são embrionários e a
questão metropolitana continua relativamente à margem dos grandes debates que pautam o rumo
da sociedade brasileira.
O arranjo que norteia a gestão, organização e financiamento das áreas metropolitanas é muito
frágil. Não há um modelo único de governança metropolitana. Os consórcios públicos (o arranjo
mais novo na estrutura de governança regional-metropolitana) e os arranjos estadualizados das
regiões metropolitanas representam dois exemplos de um conjunto mais amplo de experiências de
articulação inter-federativa. Os convênios, contratos de gestão, comitês de bacias, agências e
câmaras de desenvolvimento inter-federativas, entre outros exemplos, são arranjos alternativos (e
imperfeitos), cujo funcionamento, limites e potencialidades, com poucas exceções, não são
explorados nas pesquisas sobre governança regional e metropolitana. Por exemplo, é possível
vislumbrar processos dinâmicos de aprendizagem social, por meio dos quais os agentes desenham
e executam uma série de programas colaborativos voltados à execução de serviços de interesse
comum, enquanto, ao mesmo tempo, evoluem na direção de instituições e arranjos colaborativos
enraizados numa cultura metropolitana mais forte.
O debate sobre a coordenação da política habitacional e de urbanização de assentamentos
precários em áreas metropolitanas no Brasil não pode ser dissociado desta fragilidade estrutural
dos laços de cooperação entre os entes federativos em geral e da governança metropolitana em
particular. Vale lembrar que o caso específico do tema urbano-habitacional se insere no contexto
da autonomização da política habitacional e da descentralização por ausência. (Arretch,1996).
Os avanços mais recentes que ocorreram no setor urbano e habitacional (aprovação do Estatuto da
Cidade, criação do Sistema Nacional de Habitação , aumento dos investimentos) não
114
desencadearam avanços concretos no que se refere à articulação de um arranjo mais cooperativo
para a política urbano-habitacional nas regiões metropolitanas. Apesar da aprovação do Estatuto
da Cidade, a dinâmica do mercado imobiliário excludente e especulativo ainda foge largamente ao
controle dos vários planos, normas e diretrizes que são elaborados pelo conjunto dos agentes, na
maioria das vezes de forma desarticulada, com o intuito de nortear o desenvolvimento. A
estruturação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social mobilizou governos locais e
estaduais, além de representantes da sociedade civil, mas não fortaleceu a agenda metropolitana e,
na prática, apresenta poucos incentivos para a negociação de arranjos colaborativos em escala
metropolitana. O PAC certamente vai melhorar as condições de vida das populações mais
vulneráveis das regiões metropolitanas, mas (não obstante ser um programa que prioriza
intervenções de caráter metropolitano) não pode ser definido como um “programa metropolitano”
no sentido de induzir um processo de pactuação de uma série de agentes e setores em torno de
uma agenda metropolitana.
Cabe destacar que os arranjos colaborativos existentes (consórcios, agências metropolitanas, etc.)
não desempenharam papel relevante nem na operacionalização do PAC, nem na mobilização de
governos municipais em torno da coordenação intermunicipal da política habitacional e urbana.
À luz da análise anterior, quais são as perspectivas para uma governança colaborativa que
beneficie as populações moradoras de assentamentos precários das áreas metropolitanas? Vale
primeiramente ressaltar a necessidade de gerar um arcabouço teórico mais robusto e de produzir
análises empíricas mais detalhadas sobre os limites, os entraves e as potencialidades que cercam a
gama variada de arranjos colaborativos no setor urbano-habitacional. Nesse sentido, no âmbito da
teoria institucional (path dependency/trajetórias e rotas dependentes) e da teoria política e
estruturalista do federalismo (Fiori 1995; Oliveira, 1995) poderemos provavelmente gerar
hipóteses mais detalhadas sobre as fragilidades que caracterizam as estruturas de governança nas
regiões metropolitanas brasileiras.
Lembramos que existe um verdadeiro caleidoscópio de arranjos colaborativos imperfeitos, com
pontos de entrada diferentes (bacias hidrográficas, rios, favelas, sistemas de transporte, projetos de
infra-estrutura com grande impacto,etc.). De acordo com esse prisma, o debate sobre o avanço na
política habitacional de interesse social nas regiões metropolitanas passa pela questão de como
aumentar a eficiência coletiva, o funcionamento e o controle social destes arranjos
incompletos/second best. Não existem respostas fechadas a esta pergunta, mas cabe mencionar
algumas hipóteses a serem exploradas em pesquisas posteriores.
Em primeiro lugar, a União deveria voltar a desempenhar um papel-chave nas áreas
metropolitanas e induzir e mobilizar os agentes em torno de uma agenda de ações articuladas.
Nesse sentido, vale destaque para o tema do financiamento às regiões metropolitanas. Conforme já
observado por vários autores (Rezende, Oliveira e Araújo, 2007), o cenário é pouco animador,
pois as discussões mais recentes sobre a reforma tributária basicamente ignoraram as necessidades
das regiões metropolitanas.
E, para agravar a situação, desde a última reforma financeira de 1966, o federalismo fiscal evoluiu
para um sistema relativamente rígido, com pouca margem de manobra dos governos sub-nacionais
nas decisões de alocação dos recursos e com uma estrutura de transferências intergovernamentais
de baixa capacidade de reação às mudanças no ciclo macro-econômico e em seus efeitos espaciais
(Rezende 2009, mimeo: 2-3).
115
Mas, ao mesmo tempo, é inegável que o governo federal deixou de aproveitar um conjunto de
instrumentos financeiros de fomento à pactuação metropolitana. Por exemplo, o governo poderia
lançar mão de uma estratégia mais agressiva de indução de arranjos colaborativos, integrando
atores, escalas e ações, tanto por meio do repasse de recursos voluntários e negociados, quanto a
partir da utilização das carteiras dos bancos de fomento. Outro tema delicado é a relativa rigidez
de acesso dos governos sub-nacionais aos recursos nacionais e internacionais. Não somente
inexistem mecanismos financeiros específicos para incentivar o acesso ao crédito de arranjos
colaborativos inter-federativos em geral, mas também a regulamentação desta questão para as
novas instituições de governança em particular, como a dos consórcios públicos, deixou lacunas
significativas.45 Em segundo lugar, a atuação da esfera federal na arena metropolitana não pode
acentuar um processo de crescente esvaziamento do governo estadual no pacto federativo, em
geral, e nas suas atribuições de organizar as áreas metropolitanas, em particular.46 Se, por um lado,
o arranjo cooperativo estadualizado na forma tradicional de regiões metropolitanas representa
certa fragilidade, por outro, é preciso reconhecer o papel chave reservado à esfera estadual na
organização de arranjos colaborativos na área metropolitana. Neste sentido, e mesmo que
timidamente, o PAC corretamente reforça o papel dos governos estaduais quando estimula a
criação dos GGIs (Gabinetes de Gestão Integrada). Existem vários instrumentos alternativos para
avançar neste processo de pactuação que re-insira a esfera estadual na agenda de organização e
gestão territorial da área metropolitana. Por exemplo, nas várias áreas temáticas que são de
responsabilidade compartilhada entre os entes federativos a própria União poderia estimular a
cooperação inter-federativa em torno de programas e projetos de reconversão territorial de grande
impacto territorial (portos, ferrovias, estradas, recuperação de bacias, programas de implantação
de redes de infra-estrutura energética etc.). Nesse cenário, a re-inserção da esfera estadual na
agenda metropolitana surgiria no âmbito de um processo mais complexo e aberto de aprendizagem
institucional e social entre os agentes, cujo contorno não está pré-definido, mas que evoluiria a
partir de uma agenda de negociação de conflitos e de execução de programas concretos.
Bibliografia
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Principles and cases. Washington: David Rockefeller Center for Latin American Studies and Harvard University, 2008.
45
Reside aqui uma hipótese importante para verificar a baixa disseminação da figura do consórcio publico.
Na época, as polêmicas em torno da aprovação e negociação da lei do consórcio público ilustraram a preocupação
dos governos estaduais com a articulação direta entre união e governos locais. Ver Dias (2006).
46
116
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117
A Questão Habitacional na Região Metropolitana de Belem
Coleção Habitare - Habitação Social nas Metrópoles Brasileiras - Uma avaliação das políticas
habitacionais em Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final
do século XX
Andréa Pinheiro, José Júlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de Sá e Maria Vitória
Paracampo
1. Apresentação
Este texto é resultado do Workshop realizado em Belém no período de 10 a 11 de dezembro de
2001, com o objetivo de apresentar os resultados de levantamentos preliminares da pesquisa
“Observatório de políticas urbanas e gestão municipal: rede nacional de avaliação e disseminação
de experiências alternativas em habitação popular”, que contou com a participação de 22 pessoas,
entre professores, alunos de graduação e pós-graduação, técnicos da Fase-Belém e o coordenador
nacional da pesquisa.
Os trabalhos apresentados no Workshop envolveram três áreas: primeiro, tecer um breve
diagnóstico da Região Metropolitana de Belém (RMB), Pará (PA), mostrando as relações e a
reconfiguração de conflitos/processos socioespaciais na questão habitacional; segundo, fazer uma
retrospectiva dos programas habitacionais no Brasil e suas intervenções na RMB-PA; terceiro,
apresentar alguns programas e projetos habitacionais considerados mais significativos das
estratégias e conteúdos das intervenções públicas na RMB, compondo um quadro preliminar de
mapeamento das experiências para estudo de casos da pesquisa.
O Workshop buscou ainda mobilizar e consolidar as parcerias institucionais, identificar grupos e/
ou pessoas que já estavam desenvolvendo trabalhos acadêmicos ou relacionados às questões da
habitação na RMB. As apresentações e debates permitiram uma maior aproximação da realidade
local considerando as especificidades do contexto amazônico e as experiências para composição
de tipologia específica a ser elaborada pela pesquisa Rede nacional de avaliação e disseminação de
experiências alternativas em habitação popular.
2. Da questão social à questão habitacional na Região Metropolitana de Belém: a política de
periferização/metropolização da pobreza
2.1. Belém, metrópole da Amazônia: breve histórico
A Região Metropolitana de Belém foi constituída pela Lei Complementar federal n. 14, de
08/06/73, e seus Conselhos Deliberativo e Consultivo foram criados pela Lei estadual n. 4.496, de
03/12/73. Até a metade da década de 1990, estava composta somente pelos municípios de Belém e
Ananindeua, quando houve a sua redefinição físico-espacial, sendo ampliada pela Lei
Complementar n. 27 de 19/10/1995, com a inclusão dos municípios de Marituba, Benevides e
Santa Bárbara. O município de Belém faz parte, juntamente com Ananindeua, Benevides e
Barcarena da Microrregião Homogênea de Belém – MRH-37, segundo a divisão adotada pelo
IBGE para o território paraense (Figura 1). O município de Belém é a capital do estado do Pará e
ocupa a maior porção do território da RMB.
A conurbação das sedes municipais de Ananindeua com Belém não se fez apenas pela
proximidade físico-geográfica entre as duas cidades, mas foi também resultado do avanço das
118
áreas urbanas de Belém no sentido oeste-leste, isto é, no sentido de Ananindeua, por razões
decorrentes da história econômica do Pará com reflexos sobre a capital, cuja síntese aqui vai
exposta para melhor entendimento do conjunto urbano formado pelas duas cidades. Em 1616, os
ingleses já estavam à margem esquerda do Rio Oiapoque; os holandeses possuíam fortificações e
plantações de cana-de-açúcar no Amapá e no Xingu; e os franceses assentaram suas feitorias em
várias ilhas da foz do Rio Amazonas.
A colonização portuguesa na Amazônia se iniciou com a fundação da cidade de Belém em 1616,
para se opor às tentativas dos ingleses, franceses e holandeses de se estabelecerem na região,
ocorreu após a expulsão dos franceses do Maranhão, onde pretendiam instalar a França
Equinocial. Com a construção do Forte do Presépio (depois denominado Forte do Castelo) –
marco inicial de Belém – na confluência da Baía do Guajará com o Rio Guamá (parte meridional
da foz do Rio Amazonas), a cidade recebeu, desde logo, a influência do rio. As primeiras ruas de
Belém surgiram ao lado do Guamá e por ele se orientaram. Eram as ruas do Norte, Espírito Santo
e dos Cavaleiros (estreitos caminhos), hoje, respectivamente, Rua Siqueira Campos e Rua Dr.
Assis e Dr. Malcher. Tal como nos núcleos portugueses do litoral atlântico, a atividade econômica,
na Amazônia, se iniciou com a lavoura da cana-de-açúcar, que, contudo, não progrediu devido às
dificuldades naturais da mata e dos rios. Apesar disso, alguns engenhos reais foram construídos
em Belém, localizados no atual bairro da Cidade Velha (antes chamado de Cidade), ao norte do
Igarapé do Piri, que ia do Arsenal da Marinha até ao Ver-o-Peso, desembocando na Baía do
Guajará, formando, antes, um imenso alagado no terreno onde hoje encontra-se a Praça Dom
Pedro II em frente aos atuais Palácios do Governo e Antônio Lemos.
O Piri e o alagado foram aterrados entre 1803 e 1823. Por dificuldades financeiras e escassez de
mão-de-obra, os senhores de engenho foram levados a fabricar aguardente, de maior consumo e
mais elevado preço, em “molinetes” (pequenos engenhos), instalados do outro lado do Igarapé do
Piri, porque os mesmos eram proibidos de serem erguidos junto aos engenhos reais do bairro da
Cidade. Assim, se formou, ao sul daquele igarapé e contornando a Baía do Guajará, o bairro da
Campina, cuja divisa com o bairro da Cidade era a Travessa São Mateus (hoje, Padre Eutíquio).
Verifica-se, pois, que Belém ficou inicialmente presa ao rio e à baía, sem nenhuma penetração
para o interior (devido ainda à existência de igarapés e igapós). Essa influência se fez, inclusive,
quando a cidade tomou a direção para a Ponta do Mel (depois Vila Pinheiro, hoje Vila de
Icoaraci), pela orla da Baía do Guajará.
Com o insucesso da lavoura da cana-de-açúcar, os colonizadores portugueses, especialmente os
religiosos, com a ajuda dos índios (domestificados e aculturados, conhecedores dos rios e da
floresta), estabeleceram a “coleta das drogas do sertão” (plantas medicinais e aromáticas, cacau,
canela, cipós, raízes etc.), utilizando os rios como vias de acesso, em cujas margens surgiram os
primeiros povoados e vilas da região, a partir das missões, quartéis e fortalezas.
A atividade da coleta se estendeu até os meados do século XIX e seus resultados materiais e
econômicos foram escassos, salvo o relativo progresso que toda a Amazônia, especialmente o
Pará, teve no governo do Primeiro Ministro português Marquês de Pombal (1750-77), durante o
reinado de D. José I. Pombal criou a Companhia de Comércio do Grão-Pará, com sede na cidade
de Belém, incentivando o cultivo do café, fumo, cacau e a pecuária, bem como ampliou a
utilização da mão-de-obra escrava africana47.
47
No Pará, governou Mendonça Furtado, irmão de Pombal, com muito autoritarismo
119
Durante o governo de Pombal, Belém teve um expressivo crescimento demográfico e avançou
para o interior, rumo à mata, afastando-se do rio e da baía, bem como recebeu seus primeiros
equipamentos urbanos. Esse avanço se fez nas partes mais altas do sítio, evitando-se os igarapés e
igapós, do que resultou o perfil irregular da cidade. Alcançou, inicialmente, as áreas que formam
hoje os bairros do Reduto, Batista Campos, Nazaré e Umarizal248, sendo a Avenida Nazaré (antes
Estrada de Nazaré) o vetor que orientou, desde então, o crescimento de Belém rumo ao bairro do
Marco, isto é, no sentido de Ananindeua, oesteleste, prolongando-se pela Estrada da
Independência até São Brás e, daí, pela Estrada Real (depois, Estrada de Bragança; mais tarde,
Avenida Tito Franco; hoje, Avenida Almirante Barroso) até o marco da 1ª Légua Patrimonial349.
O governo de Pombal caiu em 1777 e, simultaneamente, foi extinta a Companhia de Comércio
do Grão-Pará, coincidindo com a queda das vendas das especiarias amazônicas no mercado
europeu, fatos que afetaram a economia do Pará, que se agravou mais ainda com a liberação da
mão-de-obra escrava para a ociosidade.
Na segunda metade do século XIX, começa a desenvolver-se na Amazônia, especialmente no
Pará, a extração da borracha. De início, como prolongamento natural da “coleta das drogas”,
depois de 1880, se fez mais intensamente, devido à demanda cada vez maior e à subida de seus
preços nos Estados Unidos e na Europa, com o crescimento da indústria de artefatos de borracha50.
No rush da borracha, Belém ganhou mais consistência, com a implantação de inúmeros serviços
urbanos, principalmente no governo do Intendente Antônio Lemos (1897-1912): bondes
eletrificados e iluminação pública, serviços de esgoto, limpeza urbana e forno crematório, corpo
de bombeiros, calçamento de ruas e avenidas etc. Foi quando Belém consolidou seu rumo em
direção ao bairro do Marco, a partir da Avenida Almirante Barroso e vias adjacentes. O bairro do
Marco foi planejado dentro do limite da 1ª Légua Patrimonial, com abertura de suas avenidas e
travessas, ocupadas desde logo por inúmeras chácaras. É também da fase da borracha o
crescimento da Região Bragantina com o surgimento dos núcleos agrícolas, inclusive Ananindeua.
Além da agricultura de autoconsumo e para abastecimento de Belém, floresceu também o cultivo
de algodão, malva e fumo51.
Como conseqüência da “camponesação” da Região Bragantina, surgiram, em Belém, indústrias de
tecelagem, calçados, curtição de couro, fumo, doces, refrigerantes, sabão etc., que direcionaram a
segregação para o bairro do Reduto, onde se instalaram algumas delas. A segregação também se
deu em Nazaré, Umarizal e Batista Campos como bairros residenciais, com seus palacetes, que
substituíram as antigas “rocinhas”.
Até l943, Ananindeua pertencia, juntamente com Benevides, ao município de Belém.
Inicialmente, chamava-se freguesia. Depois, esta foi transformada em distrito. Sua sede municipal
48
Neles predominaram as “rocinhas”, que eram casas térreas, com grande varanda, estilo campestre, em torno das quais eram
executadas atividades rurais as mais diversas.
49
A 1ª Légua Patrimonial (4.110 ha) foi doada à Câmara de Belém em 1628, por carta de sesmaria, pelo Governador do Maranhão
e Grão-Pará, Francisco Coelho de Carvalho. A medição e a demarcação só se fizeram, contudo, no século XVIII, ficando-se um
“marco” (daí o nome do bairro do Marco) na extremidade leste da Estrada Real
50
O uso industrial da borracha é de 1770. Ma só em 1842 com o processo de vulcanização é que a borracha passou a ser usada na
industria de instrumentos cirurgicos, laboratorios e pneus (Prado Jr, 1983)
51
A consolidação dessa região se deu graças à facilidade de escoamento da produção pela ferrovia recém-construída e também
devido à chegada de migrantes nordestinos, chegando a se formar ali a maior densidade demográfica da Amazônia
120
surgiu de uma “parada” da extinta Estrada de Ferro de Bragança, que ligava Belém (Estação de
São Brás) à Bragança, com 293 km de trilhos. A estrada foi construída entre 1883 e 1908 – com o
primeiro trecho (Belém-Benevides) inaugurado em 1884 – e extinta em 196452. Pelo Decreto-Lei
estadual 4.505, de 30/l2/43, foi criado o município de Ananindeua (abrangendo Ananindeua e
Benevides), cuja instalação oficial deu-se em janeiro de 1944, sendo nomeado prefeito o Sr.
Claudomiro Belém de Nazaré. Em dezembro de l96l, foi criado o município de Benevides,
desmembrado de Ananindeua do qual era distrito.
A sede municipal de Ananindeua dista de Belém 28 km pela BR-3l6. Essa estrada, em conexão
com a BR-010 (Belém-Brasília), põe Ananindeua em acesso rodoviário com o leste e o sul do
estado, através também da malha rodoviária estadual dessas regiões. Ananindeua limita-se com o
município de Belém, ao norte e a oeste; com o de Benevides, a leste; e ainda com o de Belém, ao
sul, tendo o Rio Guamá como divisor natural. Por muito tempo houve uma discussão sobre os
limites entre os municípios de Belém e Ananindeua, fixados pela Lei estadual 158, de 31/12/48,
depois reafirmados pela lei que reordenou os limites de todos os municípios paraenses (Lei
estadual 2.460, de 19/12/61). Assim, nunca houve razões de ordem legal para essa discussão. A
sede do município detém as seguintes coordenadas geográficas: 1º 23’ 00’’ de latitude sul e 48º
24’ 00’’ de longitude W.Gr. O município fica entre as coordenadas de 1º 10’ e 1º 30’ de latitude
sul e 48º 10’ e 48º 30’ de longitude W. Gr. Sua altitude média é de l7 m acima do nível do mar
(altitude da sede: 25 m), possuindo um clima equatorial superúmido, com chuvas abundantes de
janeiro a maio, temperatura média compensada de 25,6ºC e umidade relativa do ar média de 90%.
Na década de 1960, o estado do Pará sofreu influência da rodovia Belém-Brasília, construída entre
1958 e 1960. Essa rodovia aproximou a economia regional, em especial a do Pará, da economia do
resto do país (Sul e Sudeste, principalmente) mas, em contrapartida, aumentou o fosso já existente
entre as diferenças regionais e desagregou as frágeis indústrias de Belém, pela facilidade da
entrada, na Amazônia, de manufaturados de outras regiões.
Paralelamente, a Belém-Brasília favoreceu o aparecimento de novos núcleos urbanos e um
acentuado crescimento demográfico da RMB, face ao intenso fluxo migratório.
Constata-se um adensamento populacional nas décadas de 1960 e 1970 mais restrito ao município
de Belém53. Até a década de 1960 o centro de Belém já estava consolidado, quando se acelera o
processo de verticalização mais intensa, sendo os terrenos de terra firme concentrados nas mãos de
pessoas com maior poder aquisitivo, com equipamentos e serviços urbanos acelerando o processo
de valorização urbana e especulação imobiliária. Entre 1950 e 1990 as populações de Belém e da
RMB cresceram respectivamente de 255 e 268 mil para 1.099.008 e 1.390.276 milhões de
habitantes..
Cabe ainda acrescentar que cerca de 60 km² de áreas de terra firme da cidade estavam ocupadas
por repartições civis e militares. Merece destaque na ocupação urbana da RMB as áreas de cotas
mais baixas (abaixo de 4,0 metros) e que são sujeitas a inundações a maior parte do ano, as
“baixadas”, são áreas próximas aos canais, hoje definitivamente incorporadas à paisagem da
52
A extinção da ferrovia se fez por causa do sucateamento e obsoletismo do seu equipamento, agravado, como ocorreu, de um
modo geral, com toda a rede ferroviária brasileira, face à prioridade dada, pelo governo do presidente Juscelino, à expansão da
indústria automobilística e conseqüente construção de estradas de rodagem em todo o país.
53
Fazem parte do município de Belém as localidades de Vila do Mosqueiro, Vila de Icoaracy, Outeiro, Val-de-Cans e
Tenoné
121
cidade, onde se instalaram, depois, os migrantes das décadas de 1970 e 1980, junto com a
população local de baixa renda e que se constituem objeto de ações de melhoria de saneamento e
de habitação de baixa renda.
2.1.1. Das “baixadas” às “invasões”: a política de remoção e reassentamento e o processo de
metropolização da pobreza
O município de Belém possui um relevo similar ao da Região Amazônica, onde se verifica a
presença do igarapé, várzea e terra firme. Toda a área urbana está coberta por uma extensa rede de
cursos d’água, porque o município se localiza na confluência da Baía do Guajará com a foz do Rio
Guamá. Esses fatores tiveram grande importância no processo de ocupação urbana da RBM, na
medida em que as áreas de terra firme foram sendo ocupadas pelas camadas de maior renda,
restando somente as áreas alagadas para a população pobre. Essas características geográficas têm
papel fundamental na forma como as questões socioespaciais estão imbricadas nas questões
habitacionais, bem como na forma como a população de baixa renda busca suprir suas
necessidades de moradia na cidade.
Entre os anos 1960 e 1990, podem-se indicar três grandes vetores de periferização/ metropolização
da pobreza, intrinsecamente relacionados à questão da moradia, das lutas e mobilizações pelo
direito de morar na RMB, das baixadas às invasões. Constata-se uma reprodução simultânea de
subespaços físicos e sociais marcados pela segregação e pobreza urbana, entre os quais três se
destacam: as baixadas, invasões de terras e conjuntos habitacionais.
Historicamente podem-se indicar dois grandes eixos de ocupação urbana: a BR-316, em direção
aos municípios de Anaindeua, Marituba, Benevides e Santa Bárbara, e a rodovia Augusto
Montenegro, em direção aos distritos de Icoaraci, Outeiro, Val-de-Cans, Tenoné e Ilhas. As
ocupações coletivas da população de baixa renda se articulam ao processo de
periferização/metropolização da pobreza, com destaque para três vetores:
• as ocupações coletivas na área central da RMB, basicamente nas chamadas áreas de
baixadas restritas
• ao município de Belém, nas décadas de 1960 e 1970 e, em menor volume, nas décadas de
1980 e 1990;
• as ocupações na chamada área de transição após o centro expandido do município de
Belém, formação de bairros com famílias removidas das áreas urbanizadas no centro de
Belém;
• a área de expansão urbana no sentido nordeste da RMB, envolvendo primeiramente os
municípios
• de Ananindeua e ilhas e, posteriormente, os demais municípios que compõem a RMB. Em
Ananindeua e distritos de Belém (Icoaraci e Outeiro), destacam-se as invasões a conjuntos
habitacionais.
2.1.2. As baixadas de Belém e a política de remoção e reassentamento
À medida que os igarapés foram aterrados, surgiram outros bairros compondo a 1a Légua
Patrimonial. As baixadas atingem cerca de 40% do município de Belém, aproximadamente 550
mil habitantes, quase 38% da população total. A rigor, as baixadas são várzeas, compondo cinco
bacias hidrográficas: Una, Reduto, Armas, Comércio e Tuncunduba (Figura 3). São áreas
constituídas por terras cujas curvas de nível não ultrapassam a cota de 4,00 metros. É também
nessas áreas que ocorrem, nas décadas de 1960 e 1970, os maiores conflitos fundiários e as
principais intervenções públicas da política habitacional marcada pelas estratégias de remoção e
122
reassentamento. Pode-se dizer que essas estratégias têm sido o principal objetivo das políticas
habitacionais até os nossos dias.
Surgem, então, nesses subespaços, movimentos populares, mobilizações, manifestações mais
radicais, atos públicos, manifestos de todos os tipos. As principais reivindicações foram por
urbanização, equipamentos coletivos e regularização fundiária. Dentro do município de Belém, os
conflitos fundiários em torno da luta pela propriedade das áreas ocupadas sempre foi intensa.
Ocupou-se um grande número de áreas alagadas: públicas e de particulares, da Igreja,
principalmente áreas da Marinha e da Universidade Federal.
As baixadas surgem como alternativa de moradia da população de baixa renda. Atingem uma
extensão de 39,21% do município de Belém, com densidade demográfica de 159,51 (hab/ha),
envolvendo uma população total de 765,476 habitantes (IBGE, 1991). São descritas pela prefeitura
como áreas de habita ção subnormal, acumulando uma série de carências. A circulação e a
acessibilidade dos moradores é feita por pontes de madeira, verdadeiras vias, quase sempre em
mau estado de conservação devido às chuvas. Por isso, torna-se impossível a implantação de
sistema de água e esgoto e de coleta de lixo e ainda de rede de energia elétrica. Com a
impossibilidade da coleta de lixo, o mesmo é jogado nos canais, obstruindo-os e comprometendo
cada vez mais a qualidade de vida dos moradores, expostos a diversas doenças. Ao lado disso,
existe também a carência de equipamentos coletivos, escolas, postos de saúde, postos policiais etc.
As baixadas ou terras alagáveis abrangem praticamente todo o sítio urbano da cidade de Belém.
Apresentam uma tipologia originalmente bastante segregada, grande densidade demográfica com
base na autoconstrução de moradias (tipo palafitas) em terrenos públicos e/ou impróprias para
ocupação edificada. São 28 canais que cortam a cidade de Belém representando o primeiro vetor
de periferização das camadas mais pobres da população. O saneamento básico é a principal
carência desta área.
A partir da década de 1980, com os projetos de macro e microdrenagem das bacias hidrográficas,
avançou a intervenção das políticas públicas de saneamento e reestruturação urbana das baixadas,
acarretando a remoção de seus moradores para áreas mais distantes do núcleo urbano e a oferta de
novos espaços infra-estruturados ao mercado imobiliário. Com a falta de investimento em políticas
de habitação popular, ampliam-se o déficit habitacional e os conflitos fundiários pela terra de
morar. As famílias expulsas das baixadas e os imigrantes de outros municípios encontram na
prática das ocupações coletivas terras ociosas, também chamadas de invasões, a alternativa para
suprir a carência de moradia, indicando um segundo vetor de periferização da população pobre.
A política de remoção e reassentamento, que permaneceu até o final da década de 1990, tem
contribuído para mudar radicalmente a paisagem das baixadas. A intervenção do poder público,
através de ações de macro e microdrenagem, em diferentes momentos históricos, contribui para a
renovação urbana nestes subespaços.
2.1.3. As invasões em Belém e Ananindeua e a política de urbanização e regularização
fundiária
O crescimento urbano acelerado no município de Ananindeua, nas décadas de 1980 e 1990,
deveu-se principalmente ao movimento organizado54 das ocupações coletivas, atingindo a maior
54
Não se trata de um movimento de ocupação espontâneo, família à família, como ocorreu com as baixadas de Belém nas décadas
de 60 e 70. A prática de ocupações coletivas desenvolvida nas décadas de 80 e 90 se configuram como movimentos organizados
123
taxa de crescimento populacional da RMB, cerca de 16%, enquanto Belém cresceu somente 1,7%.
Na década de 1990, a prática de ocupações coletivas se ampliou para os municípios próximos,
levando à reconfiguração espacial da RMB, mas permanecendo a lógica de periferização e
metropolização da pobreza.
Das baixadas às invasões se reproduzem espaços de desigualdades socioespaciais, de segregação
residencial da população pobre, assim como o agravamento do problema da falta de saneamento
básico, com implicações na qualidade de vida dos seus moradores.
Dentro da trajetória de ocupação urbana da RMB, as baixadas de Belém se destacaram como um
dos primeiros vetores de apropriação do espaço urbano pelas classes populares para suprimento da
necessidade de moradia. Os conflitos urbanos/fundiários, nos anos de autoritarismo das décadas de
1960 e 1970, emergiram, principalmente, das baixadas de Belém nos diversos bairros da 1ª Légua
Patrimonial, onde começaram a ser organizados processos de mobilização coletiva pelo direito de
morar, como parte da luta mais ampla pelo resgate da cidadania e da democracia.
Constata-se, assim, um quadro geral de grande carência e de precariedade das condições de vida
da população residente nas áreas de baixadas, caracterizando-se como subespaços de segregação
sócioambiental. Embora o fluxo migratório relacionado à ocupação das baixadas tenha sido mais
intenso nos anos 1960 e 1970, a produção do espaço urbano em Belém está estreitamente
relacionado à ocupação dessas áreas pela população pobre. As áreas de baixadas estão restritas aos
bairros da 1ª Légua Patrimonial, mais próximas ao centro da cidade e da RMB, onde há a maior
concentração dos serviços e equipamentos coletivos, apresentando uma grande densidade
populacional.
As baixadas ocupam cerca de 40% da porção urbana do município de Belém e têm
aproximadamente 550.000 habitantes, correspondente a 38% da população. Dentre esses, 34%
moram em áreas alagadas, como pode ser verificado na Tabela 5, em que essas áreas aparecem
distribuídas pelos bairros.
Nota-se, no entanto, que a paisagem urbana das baixadas sofreu várias modificações nas últimas
décadas, em função da ação das políticas públicas urbanas e dos movimentos de bairros e seus
moradores. A partir do crescimento da cidade, houve a necessidade de criação de vias de
transporte, acarretando a incorporação das áreas baixas ao conjunto urbano de Belém e a
consolidação dos contrastes urbanos no município. Durante a década de 1980, ocorreu um maior
adensamento populacional nas áreas centrais de Belém através da verticalização, um processo que
se ampliou para as áreas de baixadas próximas, saneadas e valorizadas com os investimentos
públicos e privados, garantindo maior estoque de terras infraestruturadas ao mercado imobiliário
local.
3. Ações de política habitacional no setor formal da RMB
3.1. Política habitacional no Brasil
A questão habitacional no Brasil remonta a uma trajetória problemática de razões estruturais,
políticas e econômicas. Valença (2001) faz uma revisão histórica das políticas habitacionais
por grupos sociais de diferentes interesses, políticos, especulativos ou necessidade de moradia. São áreas, na sua maioria, de
propriedade do poder público, distante dos núcleos urbanos, acumulando praticamente as mesmas carências das baixadas. Em toda
a RMB, são cerca de 400 áreas de ocupação atingindo quase 30% da população total.
124
desenvolvidas pelos sucessivos governos brasileiros desde o final do período militar até o final dos
anos 1990, traçando observações classificadas como de dissolução do modelo nos finais dos anos
1970 ate o caos instalado na década de 1980. A partir de 1986 com o fechamento do BNH,
alternam-se períodos de apatia e confusão.
Com o fechamento do BNH, a política habitacional é deixada de lado, embora o SFH continue
ainda operando minimamente, sendo criada a Secretaria Especial de Ação Comunitária, ligada
diretamente à Presidência, numa demonstração de clientelismo e uma política habitacional acéfala
e sem normas claras. Com o governo Collor, (1990-92) o confisco de valores depositados em
cadernetas de poupança por 18 meses prejudica seriamente o SFH, e instala-se o que Valença
chama de confusão. O Ministério da Ação Social, através da Secretaria Nacional de Habitação,
torna-se o órgão operador a CAIXA, lança programa habitacional para a área social, mas, devido à
grande participação da iniciativa privada, muitas unidades habitacionais produzidas não haviam
sido comercializadas até 1994 (preço incompatível com público-alvo). A partir de 1992, recessão e
comprometimento do FGTS, paralisam aprovações para projetos de habitação.
A apatia volta com o governo Itamar Franco (1993-94), período marcado pela administração da
crise e reforma da CAIXA No primeiro governo FHC (1995-98) ocorre a criação da Secretaria de
Política Urbana (SEPURB), que, junto ao Ministério do Planejamento e Orçamento, propõe e
administra a política habitacional, tendo como órgão executor a CAIXA, os principais programas
são: Pró-Moradia, Pró-Credi e PAR (operação dos sistemas de caderneta de poupança e FGTS)
cujas aplicações na RMB serão comentadas a seguir. Sobre os programas, Valença faz uma
reflexão acerca da mudança de paradigma adotado pela política habitacional. As políticas
anteriores tinham, como eixo principal da ação do governo, a produção de moradias; entretanto, o
presidente FHC deixou de lado a produção e deu ênfase ao conceito de consumo de habitação.
Desde o início do mandato, FHC privilegiou soluções de mercado em detrimento das políticas
sociais. Na área habitacional, sua atuação se restringiu a operar, segundo as leis, os sistemas de
cadernetas de poupança e FGTS.
3.2. Retrospectiva de ações da política habitacional na Região Metropolitana de Belém
Entre 1966 e 1986, a Companhia de Habitação do Pará (Cohab/PA) construiu 19.190 casas para a
população de baixa e média renda no estado – mercado popular. Em Ananindeua, as primeiras 118
unidades foram feitas em 1972, e o volume maior das construções, no período de 1977 a 1986.
Daquele total, 16.004 casas (83%) foram construídas em Ananindeua. Depois de Ananindeua,
Belém foi o município que mais se beneficiou com as construções da Cohab/PA, com 1.200 casas
em Icoaraci e 1.542 na Marambaia. Por sua vez, a Caixa Econômica Federal – mercado
econômico – construiu na RMB 8.672 unidades, sendo 3.566 casas (2.234 em Ananindeua) e
5.106 apartamentos (384 em Ananindeua).
Nos períodos assinalados, das 31.921 unidades habitacionais construídas pela Cohab/PA e
CAIXA, na RMB, 59% delas, isto é, 19.059 se localizaram em Ananindeua. Na mesma época, o
Sistema Financeiro de Habitação (SFH)55 financiou em todo o Pará aproximadamente 100 mil
unidades habitacionais, longe ainda de atender ao déficit habitacional do estado. Segundo
estimativas levantadas pela Cohab/PA (1990), em 1994, o déficit total era de 1.430.000 unidades
55
O setor habitacional do Pará é atendido pela Cohab/PA (mercado popular), que atua na faixa de interesse social de famílias com
renda entre um e 10 salários mínimos; pelo Instituto de Previdência de Estado do Pará e Caixa Econômica Federal (mercado
econômico) e pelos agentes do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), tais como Econômico, Bradesco, Banpará e
Socilar (mercado médio).
125
(890.000, déficit uantitativo, e 540.000, déficit qualitativo)56; de Belém, será de 170.000 unidades
(115.000, déficit quantitativo, e 55.000, déficit qualitativo); de Ananindeua, de 31.000 unidades
(20.000, déficit quantitativo, e 11, déficit qualitativo).
3.3. Programas implementados em Belém entre 1996 e 2001
Onde aparecem os resultados da coleta de dados efetuada nos órgãos responsáveis por ações na
área habitacional, há registros de dois agentes principais, o Governo do Estado e a Prefeitura
Municipal de Belém. No nível estadual, destaca-se a Cohab, enquanto no nível local apenas a
Prefeitura Municipal de Belém possui informações dentro de sua estrutura organizacional57, tendo
inclusive diversos órgãos constituídos no período em estudo como parte de um processo inicial
visando a municipalização da política habitacional.
Em 1998, a estrutura e as responsabilidades dos órgãos da PMB relacionadas com o setor de
habitação e desenvolvimento urbano foram estabelecidas em seis unidades administrativas com
atuação mais direta: Sehab, Seurb, Sesan, Saaeb, Codem e Segep. E outras em que a ação
habitacional aparece como componente de suas intervenções: Funverde, Cinbesa e Funpapa.
A Codem é responsável pela urbanização de áreas mediante convênio com terceiros, e pela
atuação como agente promotor no planejamento e execução de obras ou serviços financiados com
recursos do FGTS/OGU. Essa atribuição deveria ser repassada à Sehab, como órgão responsável
pela política habitacional.
A Seurb e a Sesan elaboram os projetos de desenho urbano e/ou arquitetônicos e também realizam
a fiscalização de obras. Caso o projeto envolva mais de um órgão, a fiscalização também se
desdobra entre os órgãos envolvidos, ou de forma setorial. Com esta forma de trabalho, pode
haver a sobreposição de ações, pois os projetos são acompanhados pela população através da
Comissão de Fiscalização de Obras (Cofis). Segundo o Ibam (1999), com a inserção da Sehab em
1998, deveria ter havido uma revisão das funções entre os órgãos envolvidos, a fim
de promover a readequação de competências.
Devido a problemas de recursos humanos, de forma diferenciada pelas unidades administradoras
(Segep, Cinbesa, Codem), muitas ações, especialmente nos setores habitacionais, de saneamento e
de desenvolvimento urbano, são executadas em conjunto. No entanto, o desenvolvimento dos
projetos é realizado através de contratações de terceiros, sob a forma de consultoria ou prestação
de serviços, restando às unidades o cargo de coordenadora. Com isso, a Sehab possui o papel de
coordenadora dos programas e estudos de caso.
Dentre outros problemas, o trabalho do Ibam (1999) menciona dificuldades de atuação,
principalmente na área de recursos humanos, organização de competências, aparelhos de
56
11Déficit quantitativo: necessidades de novas moradias para atender às famílias que não dispõem de habitações; déficit
qualitativo: necessidades de substituição
das moradias que estão em precárias condicões de habitabilidade, sem nenhum serviço básico (Cohab/PA, 1990).
57
A estrutura organizacional da Prefeitura Municipal de Belém (PMB) em 2001 era formada por dez secretarias, cinco fundações,
três companhias, três autarquias, duas agências distritais e uma administração regional, além da chefia de Gabinete do Prefeito, a
Guarda Municipal e a Coordenadoria de Comunicação Social. Em 1994, foi regulamentado o Sistema Municipal de Planejamento e
Gestão, composto dos seguintes órgãos: 1) de planejamento: Secretaria Municipal de Coordenação
Geral do Planejamento e Gestão (Segep), Núcleos Setoriais de Planejamento (Nusp) e Núcleos Regionais de Planejamento (Nurp);
2) de gestão: os órgãos setoriais da administração direta e indireta, as administrações regionais e os conselhos: Conduma, conselhos
setoriais e conselho regionais (Ibam, 1999).
126
informática. Acrescenta ainda que o nível de informatização dos órgãos encontrava-se
desatualizado e o acesso entre as próprias unidades era restrito, porém havia uma rede privativa
visando ao controle financeiro (já existente na gestão anterior), que disponibilizava dados da
execução orçamentário-financeira.
As ações tomadas pela PMB, desde 1997, foram encaminhadas a partir do Congresso da Cidade,
que procurava a integração das ações municipais com a participação popular. Em 2001 (primeiro
ano do segundo mandato do Partido dos Trabalhadores – PT –em Belém), o Congresso da Cidade
trouxe uma série de inovações para a administração local como forma de dar continuidade ao
processo de participação popular iniciado no primeiro mandato com o orçamento participativo
(Frente Belém Popular, 2000).
Desse modo, com a criação de equipes interdisciplinares, surgiram alguns conflitos na execução
destas ações, como a falta de conhecimento da legislação urbanística, ocasionando contratempos
na realização dos projetos que geralmente precisavam ser reformulados para atenderem às
regulações, além da falta de coordenação sobre as decisões tomadas no orçamento participativo.
Outro problema destacado foi a falta de disponibilidade técnica dos órgãos que resultava em
poucos técnicos em muitos programas, desqualificando o tratamento e o andamento dos projetos.
3.4. Ocupações ilegais
Dadas as limitações de abrangência e de resolução do problema habitacional dentro do setor
formal na RMB. O processo de ocupações coletivas visando a solução de moradia tornou-se
bastante evidente na RMB durante a década de 1990. O problema da moradia se agravou em
Belém, nas últimas décadas, face ao constante aumento dos preços das terras urbanas dos aluguéis
e dos baixos salários e também pela falta de investimento público (setor habitacional) para a faixa
salarial de até cinco salários mínimos. Assim, as classes populares foram, cada vez mais, levadas a
ocupar áreas ociosas nas periferias de Belém, fato que, a partir do final da década de 1970, ganhou
maior expressão, não só local, como nacional, porque essa ocupação não se fez mais de forma
parcelada, passou a ocorrer em meio a choques com o aparato policial acionado pelos proprietários
das terras urbanas. Essas ocupações coletivas de terras para moradia passaram a representar um
foco de resistência da sociedade civil frente ao autoritarismo, envolvendo centenas de famílias,
que, na época, de forma organizada e coletiva, ergueram suas casas e conquistaram o direito de
morar.
As ocupações coletivas de áreas não ocupadas e de conjuntos habitacionais se deram mais
acentuadamente em Ananindeua, onde se localizam cerca de 77% das áreas de terras
desapropriadas, no Estado, e ainda, aproximadamente 55% das áreas não desapropriadas (Figura
9). É preciso ressaltar que muitas dessas ocupações ocorreram próximo aos conjuntos
habitacionais, cujas estruturas físicas e equipamentos urbanos, principalmente o transporte
coletivo, motivaram essa preferência. Isso se deu, com mais intensidade, em Ananindeua.
Também contribuiu para esse avanço, rumo a Ananindeua, a urbanização das baixadas de Belém,
na década de 1980, resultando na valorização do solo urbano, através dos projetos de
macrodrenagem, principalmente, os das Bacias do Una e Tucunduba bem como do projeto
Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada (Cura)58.
58
O Cura é um projeto de serviço integrado de urbanização, incluindo sistema viário, calçamento,
áreas de lazer, pequena parte de macrodrenagem etc., beneficiando
127
Em Belém, a prática de ocupações coletivas de terras para moradia se legitimou nas contradições
do contexto da realidade urbana, imprimindo inúmeras transformações nas relações entre Estado e
classes populares. As lutas pela moradia, que emergiram dessa prática de ocupações coletivas, se
politizaram como fatores de reorganização no resgate da cidadania, colocando o urbano como
espaço socialmente produzido na correlação de forças da sociedade e gerando mobilizações de
diferentes atores sociais.
A partir da metade da década de 1980, acelerou- se o movimento das ocupações coletivas,
dirigindo-se em dois eixos básicos: via BR-316 e Rodovia Augusto Montenegro. As famílias
expulsas das baixadas urbanizadas de Belém e os imigrantes de outros municípios e estalados
passaram a ocupar áreas de terras ociosas na 2ª Légua Patrimonial da RMB.
Intensificaram-se as ocupações de terras, e o poder público não removeu a população, nem
investiu em desapropriações, o que resultou no agravamento das questões socioambientais].
Muitos dos conjuntos habitacionais construídos e não concluídos dentro da 2ª Légua Patrimonial
foram ocupados por posseiros, que conseguiram permanecer em virtude da intermediação do
Estado na desapropriação e negociação juntas às construtoras.Em 2001 havia registro de 21
conjuntos habitacionais ocupados por posseiros na RMB, todos com processos judiciais de
desapropriação em andamento.
Em 1993, quando ocorreu a ocupação dos conjuntos habitacionais, o processo de construção em
alguns conjuntos encontrava-se em fase de conclusão e abandonado pelas construtoras. O primeiro
conjunto ocupado foi o Verdejante.
No ato da ocupação de alguns conjuntos, a polícia de choque foi acionada para retirar os
ocupantes, havendo violência e repressão. A maioria dos conjuntos ocupados fazia parte do plano
PAIH, ainda em conclusão em Ananindeua: (Tauari, Verdejante I, II, III, IV, Xapuri, Mururé,
Xingu, Icui-Guajará e Oásis) e em Belém (Vila Sorriso I e II, Sevilha, Ana Fabiana, Zoe Mota
Gueiros). Estavam concluídos: Carnaúba, Grajaú, Nova Marituba e Antônio Gueiros.
O conjunto Sevilha, constituído de 960 apartamentos, encontrava-se desprovido de infra-estrutura
e saneamento básico. A maioria dos blocos não possuía janelas, portas; as escadas eram
improvisadas com madeira, com alto grau de periculosidade. A energia era suprida por “gatos”,
com risco de acidentes devido ao emaranhado de fios elétricos. No caso da Vila Sorriso,
praticamente, a própria população construiu algumas casas, passando pelas mesmas dificuldades
do conjunto anteriormente citado.
O conjunto Oásis, um empreendimento construído para a classe média alta, foi ocupado pela
Polícia Militar, demonstrando, assim, que o poder público não paga um salário digno que permita
a seus funcionários adquirir casa própria. A ocupação desse conjunto realizou-se de forma
organizada e foi planejada seis meses antes pelos ocupantes. No caso do Nova Marituba e do
Caranaúba, quando ocorreu a ocupação dos imóveis, os proprietários já residentes e outros que,
embora não estivessem morando no conjunto, pagavam prestações abandonaram seus imóveis e
ocuparam outros porque não achavam justo pagar mensalidades, enquanto outros ocupantes
moravam de graça.
os bairros do Marco e Pedreira
128
Constata-se que, quando ocorreu o processo de ocupação, algumas unidades em vários conjuntos
já haviam sido comercializadas, conforme mostra a Tabela 6. O percentual de comercialização, em
relação ao de ocupação, foi baixo – 19,45% foram comercializados e 80,55%, ocupados. Dentre os
conjuntos comercializados, o Verdejante foi o que mais unidades vendeu, com um total de 16,58%
e, conseqüentemente, por ser o conjunto com o maior número de unidades, foi também o de mais
elevada ocupação. O Vila Sorriso foi o que menos unidades negociou:somente um.
4. Projetos habitacionais na RMB, estudos de caso
4.1. O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una
O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una é um empreendimento do governo do Estado, com
a participação da prefeitura municipal, com a finalidade de recuperar as baixadas do Una, através
“da execução de diversas obras de drenagem pluvial necessárias para solucionar os graves
problemas de inundações que ocorrem numa área de 798 ha, correspondente à região alagada da
bacia hidrográfica do Una, onde vivem atualmente cerca de 160.000 pessoas de baixa renda”
(Projeto Una, 1999).
Um dos principais objetivos do programa é eliminar o alagamento com a realização de obras de
melhoramento e/ou abertura de sistemas de saneamento, vias e limpeza urbana, assegurando à
população melhores condições de saúde, habitação, transporte e demais serviços de consumo
coletivo.
A bacia do Una ocupa uma área de 3.664 ha, que corresponde a 60% da área de Belém,
ompreendendo uma porção de terra que se prolonga desde a Baía do Guajará até áreas de
ocupações mais recentes próximas à Rodovia BR-316 e Av. Augusto Montenegro, o restante
pertence às demais bacias. Além desses aspectos, as baixadas da Bacia do Una se constituem num
espaço de precária qualificação urbana, entre outros fatores, por causa da ausência, em grande
parte de suas áreas, dos principais serviços de consumo coletivo.
A Bacia do Una compreende 11 bairros – Telégrafo, Umarizal, Nazaré, Sacramenta, Pedreira,
Fátima (ex-Matinha), São Brás, Marco, Souza, Marambaia e Bengüi. Em sua área de influência
vivem mais de 500 mil pessoas, 1/3 dos habitantes de Belém. Dos 11 bairros compreendidos pela
bacia, nove já foram atingidos pelo projeto, com exceção dos bairros de Nazaré e São Brás. Ao
final do projeto, 4.824 famílias serão desapropriadas e 2.780 serão remanejadas.
Evidentemente que os 798 ha de área alagada não se apresentam de forma homogênea no interior
da bacia. Os terrenos alagados são determinados, basicamente, pela localização dos cursos d’água
(igarapés e canais). Desta forma, a recuperação dessas áreas requer obras específicas, de acordo
com as características e natureza da região. De acordo com o Projeto Una (1999).
Serão implementadas através do Projeto obras de retificação dos igarapés e revestimento de suas
margens; obras de microdrenagem com execução de sarjetas, caixas captadoras de águas pluviais,
redes coletoras e demais dispositivos; obras de implantação de sistemas de abastecimento de água
e esgotamento sanitário; ampliação da coleta e remoção de lixo; implantação de sistema viário
compatível e equipamentos comunitários importantes e necessários, além de outras.
O projeto tem como fonte de financiamento, além do governo do Estado, o Banco Interamericano
129
de Desenvolvimento (BID). O custo total para urbanizar a Bacia do Una está estimado em US$
225 milhões, dos quais US$ 145 milhões equivalem aos recursos externos e US$ 80 milhões aos
recursos adicionais.
Institucionalmente o projeto de macrodrenagem dividiu suas responsabilidades de atuação entre o
governo do Estado e a Prefeitura, cabendo ao Estado a gerência do projeto, além das subgerências
financeira, jurídica, de água e esgoto. À PMB coube a subgerência de relocação, drenagem e
sistema viário.
Quanto à participação popular no projeto, estava vinculada ao momento de efervescência dos
movimentos sociais, quando a mobilização pelo projeto agregou grupos da década de 1970. Na
década de 1980, consolidou-se, a partir do Decreto Estadual 799 de 08/05/1992, tomando a forma
institucionalizada de um comitê assessor, legitimamente constituído por membros do governo,
PMB, sociedade civil organizada, representantes das sete sub-bacias e a empresa consultora do
projeto (Souza, 1998).
Ao comitê assessor cabia assessorar a gerência geral do projeto em relação às preocupações da
comunidade, servir como órgão de consulta em relação ao desenho e urbanização dos lotes,
verificar o cumprimento do código de normas mínimas de autoconstrução na produção das casas,
escolas, parques e outra infra-estrutura, promover ações de educação ambiental e deliberar sobre
outras matérias de interesse direto da comunidade. Cabia também ao comitê promover campanhas
de conscientização dos moradores para evitar a especulação imobiliária, através do exame de
informações relativas aos custos imobiliários na área do projeto, assim como aprovar o Plano de
Reassentamento das famílias que deveriam ser remanejadas como resultado das obras do projeto.
Para a execução do projeto, era necessário um número significativo de remanejamentos, estando
prevista a indenização de todos os imóveis desapropriados. O valor das indenizações foi
determinado por um levantamento socioeconômico e físico-territorial, através de visita às
unidades habitacionais a serem remanejadas. Com o levantamento, os técnicos do projeto
pretendiam conhecer a realidade social e econômica da população diretamente atingida, bem como
identificar as características dos imóveis a serem remanejados.
Assim, o valor real de cada unidade foi determinado “com base na determinação do custo de
reprodução e fatores da depreciação representada pelo uso e pela deterioração decorrente da não
conservação” (Projeto Una, 1999). Porém é importante ressaltar que, para determinar o valor da
indenização, leva-se em conta, ainda, a natureza do remanejamento. Se for total, o valor da
indenização é igual ao valor calculado do imóvel. Se parcial ou com a necessidade de recuo da
edificação, o valor da indenização varia.
Além da indenização e do lote, os usuários de imóveis remanejados totalmente teriam a opção de
receber um lote de terra na bacia. Da mesma forma, lotes seriam viabilizados para serem ocupados
por remanejados, que poderiam ainda dispor do material do imóvel demolido, ou parte deste. Para
viabilizar o transporte do material para o novo lote, no caso do remanejamento total, os usuários
receberiam “o apoio de entidades com caráter de ação social”, além de “acomodações para a
família remanejada durante o período de reconstrução do imóvel, etc.” (ibid.).
4.1.1. O Plano de Reassentamento no Projeto de Macrodenagem da Bacia do Una
A macrodrenagem prescindia de áreas infra-estruturadas para assentamentos de famílias. O maior
130
impacto causado, neste tipo de intervenção no espaço urbano, dá-se pelo processo, muitas vezes
necessário, de remanejar famílias para possibilitar a execução das obras previstas. No projeto de
macrodrenagem, os remanejamentos se fizeram necessários para as obras de retificação dos canais
e aberturas de novas vias.
A realização de remanejamentos estava sujeita a preocupações constantes de uma lista elaborada
pelo Banco Mundial sobre os riscos de “pauperização, presentes em projetos que demandam
remanejamento e reassentamento” (Gabriele, 1998, p. 317), listados a seguir:
• desapropriação fundiária;
• perda do trabalho remunerado;
• perda da casa/moradia – principalmente os que são inquilinos;
• marginalização – com a mudança pode ocorrer a inferiorização da situação econômica e do
status social, devido à localização do novo assentamento;
• aumento do nível de mortalidade – principalmente entre crianças e idosos, provocado por
stress, traumas, separação e por doenças no novo local provocadas pelo nível de
saneamento;
• insegurança alimentar – até que se recomponha o sistema de produção;
• perda do acesso a bens de domínio público (o que algumas vezes pode funcionar como
fonte de renda) – como rio, área de bosque;
• desarticulação social – destruição da coerção social e das relações informais de crédito.
Baseado nestes pressupostos, elaborou-se o Plano de Reassentamento, cuja principal determinação
foi que a distância máxima entre o local de origem e o destino seria de até 1,5 km. Isto, porém,
acabou não se concretizando totalmente, em função do custo elevado que acarretava a
desapropriação de áreas, cujas localizações atendiam a essa exigência, uma vez que os bairros da
Bacia do Una fazem parte da borda do território mais urbanizado de Belém sujeito à acirrada
disputa imobiliária. E também por outras razões de ordem técnica, principalmente quanto à
necessidade de melhoramentos nos terrenos identificados dentro deste limite. Ao total foram
definidas 25 áreas de reassentamento, destinadas às famílias remanejadas, sempre respeitando o
distanciamento máximo de 1,5 km, entre a localização inicial da família e a área de
reassentamento, destino final da família.
Operacionalmente, o Plano de Reassentamento destinado às famílias atingidas pelas obras de
macrodrenagem passa a ser sujeito aos princípios do Projeto de Qualificação Ambiental,
utilizando-se, na prática, de uma definição do Plano Nacional de Habitação publicado em 1996.
Adotou-se a forma autoconstrutiva no provimento habitacional, enquanto representação do
abandono aos modelos padrão, amplamente difundidos nos conjuntos habitacionais. Havia
também em acordo com o Crea, órgão de normatização profissional, a isenção de qualquer taxação
para o projeto e a execução de residências com área construída menor ou igual a 60 m², sem laje
(Ferreira, 1999).
Na prática, o procedimento adotado para as áreas de reassentamento baseava-se na orientação
técnica individualizada para cada família remanejada. Esta orientação era feita por dois
engenheiros civis e um engenheiro chefe integrante da equipe do Projeto Uma, por intermédio de
um escritório responsável pelo gerenciamento da obra, constituído por um subgerente, indicado
pelo governador do Estado, assessoria jurídica, área técnica e área social, englobando orientação
para planta baixa, planta de estrutura, instalação hidrossanitária e elétrica (Projeto Una, 1997).
131
No entanto, este procedimento vinha sendo comprometido pela operacionalização que se fazia
necessária, em função das várias áreas de reassentamento, além do necessário deslocamento da
família remanejada até o escritório do Projeto Una, para que a família ou chefe da família pudesse
ser atendido. Além disso, fruto deste mesmo problema quantitativo, a fiscalização das obras se
fazia de maneira muito descomprometida com o que havia sido definido pelos técnicos no nível de
projeto arquitetônico, sanitário e construtivo, o que gerava uma baixa qualidade social das
construções – entendida como melhores condições urbanísticas, de conforto e sanitárias (Ferreira,
2001), não caracterizando uma melhoria das condições de vida da população.
Tendo em vista essas dificuldades de operacionalização e a necessidade de se delimitar uma área
capaz de evidenciar todo o empenho do governo do Estado na realização das obras, é que uma das
áreas destinadas ao assentamento, denominada à época de Loteamento CDP, atualmente
identificada por Paraíso dos Pássaros, passou a assumir uma importância significativa para os
diferentes órgãos e setores da sociedade participantes do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do
Una.
4.2. O Loteamento CDP: Conjunto Paraíso dos Pássaros
4.2.1. Histórico
Dadas as dificuldades iniciais para o reassentamento de famílias em loteamentos localizados
segundo os critérios do projeto, optou-se pela concentração dos reassentamentos no loteamento
hoje denominado Paraíso dos Pássaros, situado no bairro de Val-de-Cans, no Distrito
Administrativo da Sacramenta (Dasac). A área está localizada nos limites da 1a Légua
Patrimonial, limitada, ao norte, pelos conjuntos Promorar/Providência; ao sul, por uma ocupação
ilegal sem identificação conhecida; a oeste por uma área pertencente à Tropigás e Paragás – que
ainda preserva alguma vegetação originária, embora muito degradada pelas próprias empresas –; e
a leste, pela ocupação denominada Santos Dumont. Este desloca mento atingiu cerca de 28,3% das
famílias a serem remanejadas (Projeto Una, 197).
O loteamento CDP, logo após o início dos remanejamentos, passou a ser conhecido como
Conjunto Paraíso dos Pássaros. Os acessos se restringem a duas possibilidades: a mais utilizada
atualmente é a partir da Júlio César, pela Rua Santo Amaro, originariamente uma via periférica,
parte do sistema viário do Conjunto Providência. O outro acesso pode ser feito pela Rodovia
Arthur Bernardes, passando por dentro do Promorar, até chegar à entrada do conjunto.
A área destinada ao loteamento CDP era originariamente de propriedade de uma empresa de
distribuição de combustíveis, a Petróleo Sabba, que tinha utilizado há muito tempo atrás o terreno
como depósito do seu combustível. A desapropriação por parte do governo do Estado se deu pelo
Decreto n. 901 de 08/05/1993, declarando a área de utilidade pública e interesse social para fins de
desapropriação.
Posteriormente, com o ajuizamento da ação de desapropriação, foi concedida pela Justiça a
emissão de posse da área (Projeto Una, 1997). A desapropriação, no entanto, não correspondeu às
expectativas geradas em torno do montante pretendido de terra para o reassentamento das famílias,
embora o fato não tenha chegado a inviabilizar por completo o seu universo de atendimento das
famílias.
O primeiro embate ocorrido em torno do projeto a ser executado na área ocorreu antes mesmo
de serem iniciados os serviços de terraplanagem, em função das modificações necessárias para
132
a adequação do desenho proposto, uma vez que não ocorreu a desapropriação de toda a área
pretendida pelo governo do Estado. O primeiro projeto apresentado foi completamente rejeitado
pelos movimentos populares representados no comitê assessor, principalmente pela falta de
definição dos equipamentos que seriam construídos na área, pelo tamanho e adensamento dos
lotes que seriam disponibilizados para as famílias.
Os lotes tinham área média de 100 m², com 5 m de testada por 20 m de fundo. Tais medidas não
possibilitam afastamentos laterais, o que inviabiliza o atendimento de condições de habitabilidade
peculiares, como o melhor aproveitamento da ventilação natural para amenizar o desconforto
natural gerado pelas características de clima quente-úmido da cidade de Belém (Hertz, 1998).
Assim mesmo o governo do Estado ainda disponibilizou cerca de 142 lotes, formando a
denominada CDP IV. Enquanto se resolvia o que fazer, as pessoas remanejadas estiveram
completamente abandonadas pelo projeto, foram atendidas com uma péssima infra-estrutura
instalada nesse setor do conjunto, o que redundou no abandono de lotes e na improvisação de
construções que prejudicava muito as famílias remanejadas.
Foi nesse mesmo período que o comitê assessor ao Programa de Apoio a Reforma Urbana (Paru),
vinculado à Universidade Federal do Pará, fez o convite para que esta, utilizando-se do seu quadro
técnico – basicamente professores e alunos de arquitetura e urbanismo, profissionais e estagiários
de serviço social, direito e engenharia civil que prestavam assessoria em determinadas questões
propusesse uma contra-proposta ao governo do Estado. Assim, surgiu uma proposta alternativa,
desenvolvida por alunos como trabalho de conclusão de curso, que buscava traduzir para o
desenho urbano as demandas levantadas pelo comitê assessor59. Este o aprovou e o levou até a
Cohab, que, partindo desse trabalho, apresentou um terceiro projeto tentando consolidar as novas
demandas com o que era prioritário para a própria empresa.
A implementação do projeto aprovado e executado requer atendimento de demandas por
equipamentos urbanos, como creches, feiras, posto de saúde, escolas e áreas de lazer. No caso das
feiras e creches, a localização deveria ser de forma desconcentrada a fim de não dificultar o acesso
das pessoas a esses locais.
Outro problema constatado está relacionada à configuração morfológica dos projetos propostos
para o conjunto, que, inicialmente, evidenciaram pouca consideração a questões referentes à
densidade urbana pretendida pelos estudos. Até mesmo o projeto aprovado não apresentou um
resultado satisfatório em comparação, por exemplo, a parâmetros desenvolvidos por Acioly e
Davidson (1998) em outras experiências de assentamentos.
Comparando-se o primeiro projeto proposto e o efetivamente implementado, percebem-se
melhorias significativas na relação do morador com o espaço em que habita, capaz de atender às
suas necessidades básicas, evidenciadas por dois fatores: o percentual de uso com fins
habitacionais de 88% passou a 50%; o tamanho dos lotes de 96m² (5,00 m x 19,00 m) passa a 108
m² (6,00 m x 18,00m).
Em meados de 1997, o projeto definitivo foi aprovado pelo comitê assessor, estabelecendo-se que
a Cohab seria responsável pela elaboração de projetos arquitetônicos, pela assessoria na
construção e na implantação, pelo gerenciamento das famílias na área, além de buscar a
59
Sobre o projeto alternativo, ver Rocha, Ribeiro e Pinheiro (1997)
133
participação da Universidade para que esta desempenhasse um papel crítico e reflexivo naquele
cenário (UFPA, 1998).
4.2.2. O Convênio Cohab/UFPA-Paru/Fadesp: conceitos e princípios
A partir do Paru, foi firmado o Convênio de Cooperação Técnica conhecido como
Cohab/UFPAParu/Fadesp, em junho de 1998, com atuação prevista para seis meses, estendido até
janeiro de 2000. Entre suas atribuições, houve uma nova estratégia de ação, em que buscou
desenvolver e implementar novas práticas, baseadas numa interdisciplinaridade, com o objetivo de
valorizar a identidade individual e coletiva das famílias na cidade.
A atuação do convênio foi pautada na interdisciplinaridade sugerida como proposta de atuação
apresentada pelo Paru para a gestão do provimento habitacional do conjunto Paraíso dos Pássaros,
baseando-se num trabalho integrado entre professores, técnicos e estudantes de arquitetura e
urbanismo, serviço social e engenharia civil. Para sua efetivação, foi constituído um escritório de
atendimento na própria área do conjunto, com o intuito de dar a orientação necessária em cada
especialidade aos moradores que vinham remanejados das áreas do Projeto de Macrodrenagem da
Bacia do Una.
O objetivo geral era “orientar técnica e academicamente, a forma e a organização de espaços
residenciais e de equipamentos urbanos, tendo em vista o aprimoramento e o desenvolvimento dos
indivíduos e da comunidade em termos sociais, culturais, físicos e ambientais” (UFPA, 1998).
Para isso, foram formulados subprojetos de atuação de cada especialidade, em que se especificou a
responsabilidade de cada um na gestão do conjunto habitacional.
A proposta de gestão apresentada e executada pela equipe do convênio buscou não se distanciar
dos programas e dos objetivos gerais declarados tanto pelo BNH de 1996, no que tange, por
exemplo, à questão participativa, à gestão descentralizada dos assentamentos humanos, ao
abandono dos padrões preestabelecidos de habitação para estas áreas, à necessidade das parcerias,
tampouco se dissociar do Programa Lote Urbanizado, que vinha sendo implementado pela
Companhia de Habitação do Estado.
A interação das especialidades, serviço social, arquitetura e engenharia civil, é outro fator que
assume uma fundamental importância ao se dissociar da prática setorizada, ainda hoje muito
observada na atuação pública. Mesmo com todas as discussões em torno da descentralização, não
só nos assuntos urbanos, mas na própria gestão administrativa dos órgãos públicos, ainda é
complicada essa cobrança no interior da estrutura administrativa existente, vista muito mais como
um objetivo a ser alcançado, talvez o mais difícil, pelos vícios acumulados ao longo dos anos de
atuação.
4.2.3. Projeto de Qualificação Espacial Interativo
Para explicar a origem do conceito identificador do que seja o Projeto de Qualificação Espacial
Interativo proposto pelo convênio, é necessário recorrer a alguns princípios assumidos pelo BNH,
por ocasião da sua publicação, visando a demonstrar à sociedade que o governo federal estava em
sintonia, no discurso, com as discussões ocorridas em Istambul, por ocasião da II Conferência
Mundial sobre Assentamentos Humanos.
Buscou-se, na aplicação do conceito e na metodologia implementada, utilizar princípios como o
134
abandono dos modelos preestabelecidos no atendimento à demanda por habitações sociais, o
trabalho em parceria e a efetiva participação da população alvo nas decisões espaciais individuais
e coletivas (UFPA, 1998).
Na realidade, era necessário que se valorizasse a identidade da família remanejada com o ambiente
de um conjunto habitacional, distante da realidade que estava acostumada a viver. Para que isso
fosse conseguido, utilizava-se a efetiva participação da família no processo projetual da casa,
partindo-se do pressuposto de que o atendimento individualizado
A questão habitacional na Região Metropolitana de Belém com consulta a quadros esquemáticos
representativos dos novos “padrões e subpadrões”, tipologicamente preestabelecidos pelos
técnicos, deveria demonstrar mais claramente à população a possibilidade do reconhecimento
dessas famílias da necessidade de legalidade urbanística (UFPA, 1998).
A produção dos quadros esquemáticos, como parte constituinte do Projeto de Qualificação
Espacial Interativo, serviu para melhor orientar a população no processo projetual das residências
evidenciado por seis temas: legislação pertinente; ocupação dos lotes; conforto ambiental;
instalações hidrossanitárias, elétricas e construtivas; tipologia arquitetônica e relação
custo/benefício.
À primeira vista, ou analisando-se de forma isolada os princípios envolvidos na base de atuação
do Projeto de Qualificação Espacial Interativo, percebe-se a falta de correspondência ao contexto
real da vida dessas pessoas, uma vez que é difícil, para uma população acostumada a traçar suas
“normatizações” a partir de “acordos” ou de relações diretas de vizinhança, exigir-se uma
adequação às novas normas ou novos conceitos de “qualidade espacial” que não partiram dessa
produção espontânea de valores.
O contato direto e efetivo entre os profissionais e a população assistida determina um maior
comprometimento da equipe como um todo, com os resultados que poderão ser alcançados pela
experiência, sejam eles positivos ou negativos. Isto só o tempo poderá dizer. Apesar deste
condicionante, a gestão proposta é completamente distinta da gestão que vinha sendo
implementada em outras áreas destinadas ao reassentamento das famílias, onde não poderia haver
um comprometimento gerado pela vivência mais direta da realidade.
4.2.4. Intervenção social
O trabalho social do convênio na assessoria às famílias remanejadas estava pautado na
preocupação da equipe em despertar o sentimento de cidadania nos moradores ao se perceberem
como sujeitos partícipes da construção de um espaço coletivo com equipamentos urbanos e sociais
de qualidade e capacidade para atender as demandas sociais.
O objetivo específico do segmento de atuação social seria contribuir com o processo de
participação e organização social de famílias em área de reassentamento visando à sua melhor
inserção no novo espaço de moradia e na cidade.
O primeiro contato da equipe com as famílias em via de assentamento ocorria com a participação
na Reunião de Sorteio de Lotes, promovida pela subgerência de Relocação do Projeto Una, com o
objetivo de apresentar às famílias as atividades desenvolvidas pela equipe do Convênio
Cohab/Fadesp/UFPA na área e as informações necessárias sobre o espaço físico do Loteamento
135
CDP, com os respectivos equipamentos e serviços existentes. Desta forma, reafirmava-se a
disponibilidade da assessoria técnica da equipe no processo de produção de sua nova moradia.
Nesse momento a equipe social destacava a importância da participação e organização
comunitáriapara a garantia de uma moradia digna e com qualidade de vida.
O acompanhamento das famílias no pós-assentamento se dava continuadamente no atendimento
que a equipe prestava diariamente no barracão localizado na própria área, onde um plantão social
registrava os mais variados conflitos, problemas e demandas do cotidiano dos moradores do
Loteamento CDP.
O Planejamento de Ação do Serviço Social da equipe social do convênio estava pautada numa
proposta metodológica que congregava as principais demandas dos moradores, incluindo cinco
eixos de intervenção, a saber: organização comunitária, educação formal e ambiental, geração de
renda e esporte/ cultura/lazer.
O estímulo à participação e à organização comunitária dos moradores configurava-se como o
elemento dinamizador de todos os demais eixos de intervenção. As atividades desenvolvidas em
função da organização social concretizavam-se principalmente em reuniões de base (por quadras),
reuniões específicas com representantes de quadra e em reuniões ampliadas com entidades e
organizações.
As reuniões por quadra, coordenadas pela equipe social do convênio, visavam a fomentar o
entrosamento, fortalecer os laços de vizinhança e despertar o sentido da co-responsabilidade
coletiva na melhoria das condições de moradia, encaminhando-se o processo organizativo através
da eleição dos representantes de quadra e suplentes. As reuniões objetivavam a continuidade do
processo de organização comunitária, com o incentivo à responsabilidade dos assentados na
formação de novas lideranças que pudessem construir coletivamente um ambiente saudável de
moradia.
Dando continuidade às etapas metodológicas, realizavam-se reuniões específicas (por bloco) com
os representantes de quadras, garantindo assim o aspecto qualitativo da experiência, através da
capacitação destas lideranças para o bom desempenho de seu papel no encaminhamento dos
trabalhos coletivos da comunidade.
A equipe social procurava assessorar a organização dos representantes de quadras, no sentido
de garantir sua autonomia no encaminhamento das demandas comunitárias através de ações
integradas e específicas. Nessa via eram realizadas reuniões por bloco de quadras para capacitação
e definição de ações prioritárias.
As reuniões gerais com toda a comunidade eram as mais variadas, principalmente no que se refere
ao envolvimento da população no acompanhamento da instalação dos equipamentos sociais e
urbanos na área, fazendo-se a articulação/parceria com os órgãos responsáveis para veicular
informações e agilizar a instalação dos referidos equipamentos. Acompanhar a disposição desses
serviços era uma das ações do trabalho social. Para isso, discutia-se com os moradores e
representantes de quadra a implementação de comissões temáticas em torno de questões
específicas, tais como geração de renda, segurança pública, transporte coletivo etc.
A equipe também participava de reuniões relacionadasao acompanhamento citado, na qualidade
136
de convidada, como um dos atores presentes na dinâmica organizativa da área. Registrava-se a
participação em eventos, tais como as reuniões com a Polícia Militar – para avaliação e proposição
por parte da população quanto ao serviço de segurança pública – e as reuniões com a Secretaria de
Economia da Prefeitura de Belém – para discutir com a população a instalação de um equipamento
de feira na área.
Além das demandas programadas e previstas pela equipe, as chamadas demandas espontâneas, ou
seja, demandas já decorrentes da participação efetiva da comunidade de forma organizada,
vislumbraram uma possibilidade concreta de sustentação do conjunto após a saída da equipe.
Dentre as demandas levantadas, estiveram em pauta o movimento por taxas de energia elétrica e
de água compatíveis com as condições socioeconômicas dos moradores, segurança pública,
conflitos familiares e transporte coletivo (Instituição Selo de Mérito, 1999). Nessas situações,
coube à equipe de Serviço Social, as devidas orientações para que, em contato com os órgãos
responsáveis, encaminhassem suas reivindicações.
Uma das ações mais importantes, e que certamente reflete o diferencial deste tipo de experiência,
foi a realizada no âmbito da geração de emprego e renda. A partir da atuação do convênio, em
julho de 1998, foi realizada uma pesquisa socioeconômica com o intuito de verificar a situação das
famílias moradoras no conjunto. Os dados foram alarmantes, uma vez que, das 487 pessoas
entrevistadas, apenas 150 tinham algum tipo de renda. Destas, apenas 88% possuíam uma renda na
faixa de 0 a 3 salários mínimos, o que revelava a baixa qualidade de vida da população.
A ação desempenhada pela equipe, na tentativa de minorar esta situação, foi esclarecer, ou melhor,
informar sobre os órgãos existentes nas diferentes esferas de governo, que prestassem algum tipo
de treinamento de baixo custo objetivando a qualificação profissional. A seguir, foi estabelecida
uma parceria com a Secretaria de Estado do Trabalho e Promoção Social (Seteps)/Unidade Valde-Cans, para o encaminhamento de moradores do conjunto aos cursos oferecidos pela instituição.
Além disso, a equipe também conseguiu articular a garantia de vagas em outros projetos
desenvolvidos pela Seteps, como o Comunidade Solidária, destinada a jovens em situação de
risco. Garantiu também a participação de moradores da área na seleção de candidatos ao Projeto
Sem Choque, voltado para o conserto de eletrodomésticos, e no Projeto Indústria da Alegria,
direcionado à criação e confecção de artigos relativos a uma Escola de Samba de Carnaval.
Outro ponto positivo foi a constituição de um cadastro de mão-de-obra desenvolvido pela equipe
de engenharia civil, em resposta a uma demanda levantada pelos representantes de quadra que,
juntamente com a equipe social, foi levado até as empresas responsáveis pela implantação das
infra-estruturas do conjunto que ainda estavam sendo realizadas, como o asfaltamento de ruas e a
construção de sarjetas, para que estas viessem a aproveitar a mão-de-obra dos moradores da
própria área.
Neste sentido, foram procuradas duas empresas, a Andrade Gutierrez, que aceitou e se utilizou
deste cadastro a partir de julho de 1999, e a Estacon Engenharia, que não quis nem conversar
sobre o assunto. Mesmo que estas ações tenham um universo temporário de atuação, o que fica e é
visto como um ponto positivo é a disposição dos próprios moradores em buscar uma solução para
o problema, ressaltando- se a orientação dada pela equipe, uma vez que de nada valeria apenas a
vontade em buscar soluções para os problemas, sem conhecer onde e como buscar, o que fica
sempre mais difícil de se conseguir
137
4.3. Projeto de urbanização da área do Paracuri II
A área do Paracuri II configura-se como resultado do processo de urbanização brasileira e, em
particular, do processo de ocupação da Região Metropolitana de Belém. Dentre as 262 invasões
registradas pela Cohab, a área do Paracuri II está localizada no Distrito de Icoaraci, tem uma
superfície de 210.000 m², distante 13 km do centro de Belém, que se encontra habitada por 506
famílias (dados de 1996).
Em janeiro de 1996 o terreno foi invadido, com imediata retirada dos ocupantes que logo depois
voltaram ao local. Em março desse mesmo ano, o local foi destinado pela Cohab para o
remanejamento das famílias que haviam ocupado uma área do entorno do Estádio Edgar Proença
(Mangueirão).
Em dezembro de 1996, a Cohab elaborou uma Proposta Social de Intervenção, com o objetivo
geral de “contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população através da oferta de lotes e
reorganização do espaço físico e ao mesmo tempo garantir o exercício da cidadania” (Cohab,
1999).
O Projeto Paracuri II foi financiado com o orçamento geral da União, com contrapartida do
governo do Estado. As obras iniciaram em abril de 1997 com o fim previsto para dezembro de
1998, no entanto, só foram concluídas em junho de 1999.
A Cohab, através de convênio com a UFPA, disponibilizou equipes de engenheiros, arquitetos e
assistentes sociais, para a viabilização do projeto. Além disso, a área do Paracuri II foi dotada de
equipamentos, tais como delegacia, reservatório elevado, escola de pré-escolar, quadra
poliesportiva e creche.
A partir de um levantamento socioeconômico apresentado à Cohab, em forma de relatório
elaborado pela assessoria do Serviço Social Paru/UFPA, onde se constatou alto índice de
precariedade na área, em junho de 1997, propôs-se desenvolver alternativas tendo, como proposta
básica, a oferta de lotes urbanizados para população com renda de 1 a 5 salários mínimos e outra
proposta constando de lotes urbanizados com cestas básicas de material para a construção de casa
em regime de autoconstrução para população com renda de 2,5 a 12 salários mínimos. Dentre
estas alternativas, está presente o Projeto Integrado de Ações Governamentais na Urbanização da
Área do Paracuri II . A situação atual é que os lotes já foram comercializados, houve a titulação
provisória da terra, a construção do Centro Comunitário e de uma escola de ensino fundamental.
A meta era implementar um Projeto Piloto de Assentamento de 506 famílias (2.530 habitantes),
dotado de infra-estrutura física e social na Área do Paracuri II, no período de julho a dezembro de
1997. O objetivo geral do projeto era contribuir para a melhoria da qualidade de vida da
população, através da integralização das ações governamentais, garantindo o exercício da
cidadania.
O projeto tinha os seguintes objetivos específicos:
• reordenar o espaço físico da área através da oferta de 506 lotes urbanizados e
financiamento de cesta de material;
• organizar as famílias para viabilizar a construção de moradia em regime de
autoconstrução;
138
•
•
•
proporcionar à comunidade contemplada pelo projeto ações para assegurar padrão
satisfatório de
saúde educação e segurança;
viabilizar o reassentamento das famílias já residentes na área bem como daquelas que serão
atendidas pelo projeto.
4.3.1. Dados socioeconômicos das famílias
As famílias residentes na área são predominantemente constituídas de paraenses (72%)
apresentam situação socioeconômica precária, com apenas 14% de empregados e 4% de
aposentados ou pensionistas. Quanto à escolaridade, 60% dos moradores apresentam níveis
variando entre ensino fundamental incompleto e ensino médio completo, sendo que 11% são
declaradamente analfabetos.
Quanto às moradias, verifica-se que 13% são de alvenaria, 70% de madeira e 17% de outras
soluções improvisadas. Destas, 97% são ocupadas como residências; 52% possuem um cômodo,
18% dois cômodos e 6% três cômodos. As condições de saneamento são precárias, 93% das
famílias possuem poços e apenas 22% tem fossa séptica.
As necessidades básicas e as suas principais reclamações por ordem de importância são: segurança
(91%); saúde (78%); educação (77%); transporte (74%); saneamento (72%); lazer (72%); vias de
acesso (43%).
Os seguintes órgãos, com as respectivas competências, estão envolvidos em parceria institucional
no projeto:
• Caixa Econômica Federal – viabilização de financiamento através de recursos do Programa
Habitar Brasil.
• Secretaria Estadual de Segurança Pública (Segup e Polícia Militar do Pará 4º CIPMIcoaraci – implementação do Projeto Povo, com policiamento ostensivo volante, bem
como do Projeto S.A.C. (Serviço de Atendimento do Cidadão) pela Polícia Militar)
• Secretaria Estadual de Educação (Seduc/DEN/DEAF) – implementação do Projeto
Integração Escola/Comunidade.
• Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Pará (Sespa) – ações dentro do Programa
saúde Preventiva
• Secretaria de Estado de Agricultura/Centrais de Abastecimento do Pará (Sagri/Ceasa) –
Projeto Compras Associadas, Projeto Mercearia do Povo e Varejão Móvel, os quais
deverão ser discutidos com a comunidade com vista à viabilidade de suas implementações.
• Secretaria de Estado e Promoção Social (Seteps) – implementação do projeto de
capacitação de recursos humanos da área visando à geração de renda – Seteps/Seju –
Implementação do Projeto Cidadania/Justiça itinerante.
• Companhia de Habitação do Estado do Pará (Cohab/PA) – responsável por toda a
execução técnica e prática do projeto.
• Ação Social Integrada ao Palácio do Governo (Asipag)– responsável por articular com as
instituições governamentais, buscando parceria na execução do Projeto Piloto na Área do
Paracuri II.
• Universidade Federal do Pará – Programa de Apoio à Reforma Urbana (Paru/UFPA) –
elaboração de diagnósticos na área inerentes aos aspectos socioeconômicos da população e
de arquitetura e urbanismo.
139
4.4. A comunidade da Vila da Barca: caracterização geral
A comunidade da Vila da Barca localiza-se às margens da Baía de Guajará, no bairro do
Telégrafo, na cidade de Belém do Pará, compreendendo uma área de 50.100 m². Seu acesso
principal é pela Rua de Belém, sendo limitada pela Travessa Padre Julião, pelas instalações da
Companhia de Embarcações Jonasa e pela Baía do Guajará.
Seguindo o levantamento realizado pela PMB, a comunidade possui uma população estimada para
o ano de 1999 em 1.400 habitantes – dos quais aproximadamente 48% são constituídos pelo sexo
feminino e 52% pelo sexo masculino. Apesar dos dados oficiais levantados, o Jornal Vila da Barca
afirma existirem 3.000 moradores distribuídos em 600 domicílios.
A Comunidade da Vila da Barca possui uma associação de moradores organizada há 17 anos.
Segundo o Jornal Vila da Barca (2000), além da associação de moradores, encontram-se em
funcionamento entidades comunitárias da Pastoral e um Centro Comunitário, bem como a
Associação Carnavalesca Mocidade Unida da Vila da Barca, que existe há 11 anos. Há ainda
pequenos templos religiosos, católicos e evangélicos.
Ainda de acordo com o jornal da comunidade, há um pequeno comércio na comunidade
caracterizado por alguns bares e pequenas mercearias, lojas de venda de frutas e outros alimentos
que são comprados no mercado do Ver-o-Peso e levados para o consumo local da população.
A questão habitacional na Região Metropolitana de Belém Entre as atividades desenvolvidas na
comunidade, encontram-se a de cabeleireiro, venda de açaí e a pesca – a principal delas. O peixe é
pescado na própria Baía de Guajará, onde alguns moradores lançam as redes de seus pequenos
barcos, alimentam suas famílias e o vendem de forma itinerante ou por encomenda, tendo-se
informações sobre a existência da prática da economia de escambo, em que o peixe é trocado por
outros produtos, como arroz e feijão.
Apesar das informações do Jornal da Vila da Barca apontarem para o uso comercial e de
subsistência do rio, o levantamento da Prefeitura de Belém indica que o rio é destinado mais para
o lazer e transporte, supondo-se então que a atividade pesqueira é realizada dentro deste primeiro
objetivo, não excluindo, no entanto, seu destino econômico. Existe também a criação de pequenos
animais, como aves e porcos, existindo inclusive um matadouro na Vila, no qual os suínos, assim
como os peixes são trocados por outros produtos ou comercializados dentro e fora da Vila.
Quanto à situação de trabalho, predomina o comércio informal, havendo poucos trabalhadores
com vínculo empregatício. Segundo os dados da Prefeitura, há o predomínio do trabalho
autônomo, a maioria relacionada com serviços gerais e domésticos e serviços de construção e
reparos de residências, e um grande número de moradores classificados como “desocupados”,
sendo que 45,6% da população tem renda mensal de somente um salário mínimo e 28% de um a
dois salários mínimos. Os dados sobre os graus de escolaridade apontam para 75,2% da população
com o ensino fundamental grau incompleto e 12,4% com ensino médio incompleto.
A partir das análises das fotografias aéreas e da observação in locu sobre a morfologia urbana e
tipologia habitacional do espaço da Vila da Barca, pode-se afirmar que este é caracterizado por um
conjunto de habitações em sua grande maioria com tipologias palafíticas, situadas sobre uma área
140
alagada/alagável, que possui um sistema de circulação desenvolvido sobre estivas de madeira que
conformam um traçado não regular.
Utilizando como base o levantamento realizado pela PMB, verifica-se que 91,7% das habitações
são construídas em madeira, 4,3% em madeira e alvenaria.
O restante é construído com materiais mistos como zinco e madeira, taipa e madeira, plástico e
madeira e somente 0,4% são construções exclusivamente em alvenaria. Em relação ao número de
cômodos das habitações, 27,5% destas possuem mais de quatro cômodos, 17,6% quatro cômodos
e 25% três cômodos. Este é um fator a ser aprofundado na pesquisa de campo, já que geralmente
nessas áreas as habitações possuem um número menor de cômodos.
A construção do sistema de circulação sobre estivas de madeira que permitem a localização das
habitações cada vez mais distantes da terra firme e em direção da Baía de Guajará surpreende pela
técnica e imprevisibilidade dos traçados, constituindo espaços de domínio da população habituada
a tal solução e que já conhece os trajetos.
4.4.1. Origem e construção do espaço
O jornal O Liberal (2000), em entrevistas com moradores antigos, cita que a Vila da Barca surgiu
quando famílias de ribeirinhos e agricultores, em especial oriundos de Igarapé Mirim e
Abaetetuba, buscaram morar próximos à estação de trem que existia na Avenida Pedro Álvares
Cabral, há cerca de 60 anos, para comercializar frutas, verduras e legumes cultivados nas ilhas.
Inicialmente, no local onde hoje se situa a comunidade, foram construídas barracas para a venda
dos produtos e depois de algum tempo estas famílias deixaram de voltar para suas localidades de
origem, construindo habitações próximo a uma “barca encalhada”, surgindo, então, a referência ao
nome da comunidade.
Porém, o Jornal Vila da Barca (2000) afirma que a Vila existe há 50 anos, citando a construção
de habitações próximo a uma embarcação, que nunca foi encontrada, e que, segundo o jornal,
existiria somente na imaginação dos moradores. O relato de alguns moradores contém
informações que apontam para o vínculo existente entre a origem da Vila da Barca e as ilhas
próximas. Das ilhas teria vindo o material construtivo utilizado pelos moradores para fazer as
primeiras pontes de tronco de açaí e a cobertura das habitações.
Na dinâmica do processo de ocupação da Vila da Barca, devem ser considerados não somente a
atuação da comunidade na natureza, mas também os processos naturais ocorridos pela ação da
maré em uma área de orla, ou seja, há uma tensão ou diálogo entre o avanço da comunidade em
direção à água e o avanço da água em direção à área ocupada pela comunidade. Este seria um dos
pontos a serem analisados nas condicionantes do processo de configuração espacial.
4.5. O Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Tucunduba
A Bacia do Tucunduba abrange a totalidade dos bairros de Canudos e Terra Firme, e se estende
por parte dos bairros do Guamá, São Braz, Marco e Curió-Utinga, influenciando diretamente a
qualidade de vida de parte significativa dos moradores do Distrito Administrativo do Guamá
(Dagua), além de atingir o Distrito Administrativo do Entroncamento (Daent) e o Distrito
Administrativo de Belém (Dabel). Possui uma área total de 10,55 km², dos quais 54% é alagável.
É constituída de 13 canais que juntos somam 14.175 m; deste total, 6.040 m são naturais, 5.700 m
já foram retificados de alguma forma, e apenas 1.823 m foram revestidos. A espinha dorsal da
141
Bacia é o Canal do Tucunduba, com uma extensão de 3.900 m, sendo 100% em estado natural,
mesmo habitado por um contingente populacional significativo e influenciando na qualidade de
vida desses cidadãos.
Como o canal do Tucunduba é o principal da bacia, recebe efluentes dos demais para o
lançamento final no Rio Guamá. No entanto, este lançamento está sendo prejudicado por
obstruções, seja em decorrência de barreiras hídricas (movimento das marés), seja pela existência
de moradias no leito do canal e/ou lançamentos de detritos no mesmo.
Como conseqüência, devido também a precipitações pluviométricas, a bacia não oferece a vazão
necessária para o rápido escoamento de todo o efluente captado na área de abrangência, causando
alagamento de grandes áreas, provocando graves prejuízos na qualidade de vida dos moradores
que habitam no leito e na faixa de domínio do canal.
A questão habitacional na Região Metropolitana de Belém Segundo um levantamento inicial
produzido por entidades populares que exercem atividades na área, e por técnicos do Dagua, foi
constatada a existência de aproximadamente 1.400 domicílios localizados no leito e margens
direita e esquerda do Canal.
4.5.1. O Processo de Remanejamento no Projeto Tucunduba
O Projeto Tucunduba é um projeto de saneamento que contempla a execução de obras em aterro,
drenagem e pavimentação do trecho da Avenida Perimetral até a Rua Celso Malcher. Atualmente
está sendo executado o primeiro trecho que se estende da Avenida Perimetral à Rua São
Domingos. A execução do projeto é financiada pela CAIXA em parceria com a PMB, tendo como
órgão executor a Secretaria Municipal de Saneamento (Sesan).
A Sesan, através de uma comissão de remanejamento, iniciou as negociações com as famílias a
serem atingidas pelo projeto no ano de 1999, se estendendo até o ano atual. Em 1997 foram
cadastradas pela Sesan 1.252 benfeitorias construídas na faixa de domínio de abrangência do
projeto.
Até o ano de 2001 foram indenizadas pela Prefeitura Municipal/Sesan um total de 468 benfeitorias
localizadas na área de domínio do Projeto Tucunduba, estando assim distribuídas quanto à sua
localização: Riacho Doce (Av: Perimetral à Rua da Paz) – 148 benfeitorias; Av. Barão de IgarapéMiri – 6 benfeitorias; R. José Priante à R. São Domingos: 95 benfeitorias; Ilha Pantanal – 163
benfeitorias e Passagem Tucunduba II – 56 benfeitorias.
Do total das 468 benfeitorias indenizadas, foram atendidas 692 famílias aproximadamente. No
que se refere ao destino das famílias remanejadas, a Comissão de Remanejamento destaca que há
dificuldades em se obter o controle total dos novos endereços, pelo fato de que, após a assinatura
do acordo e o recebimento da indenização no setor financeiro da Secretaria, perde-se o contato
direto com o morador. Entretanto, há informações de que há preferência das famílias em
permanecerem no mesmo bairro ou em bairros próximos da área ou, como em alguns casos,
retornarem ao município de origem. Do total de benfeitorias indenizadas existe o controle apenas
de 171, o que corresponde a 36,54% do universo total.
No que diz respeito ao procedimento referente à forma como essas famílias foram indenizadas
pelo Projeto Tucunduba, a Sesan utilizou inicialmente duas opões de remanejamento: primeira: as
famílias optavam por receber um lote de 8,00 x1 2,00 m², mais uma unidade habitacional em
142
alvenaria construída pela PMB no Conjunto Eduardo Angelim, localizado na Rodovia Augusto
Montenegro km 13; segunda: as famílias optavam por receber uma indenização de acordo com
avaliação da sua benfeitoria para que pudessem comprar uma outra em um novo endereço. Esta
segunda forma é a adotada atualmente pela Sesan.
4.5.2. O Plano de Desenvolvimento Local (PDL)
As ações a serem executadas no projeto previstas para o período de janeiro 2002 a março 2004:
• realização do processo de consultas sociais: visitas domiciliares, assembléias por rua e
quadras;
• composição do Conselho de Controle Social e das comissões de fiscalização;
• implantação de infra-estrutura urbana: 3.120 m de vias públicas, 320 postes de concreto
para iluminação pública; 4.976 m de rede coletora de esgoto; 4.370 m de rede de
abastecimento de água;
• 1.986,50 m de rede de drenagem urbana; 38.523 m³ de aterro de vias e miolos de quadra e
terraplenagem do terreno destinado à construção das unidades habitacionais;
• construção de 473 unidades unifamiliares, sendo 89 em autoconstrução, 15 unidades
multifamiliares
• com oito apartamentos e adaptação de oito benfeitorias já existentes;
• remanejamento de 609 famílias em situação de risco ambiental, para área contígua ao local
de origem;
• construção de equipamentos urbanos e comunitários: dois centros comunitários, uma
creche com capacidade para atender 150 crianças, um posto de saúde Casa Família, duas
praças e cinco play-grounds;
• recuperação de área degradada com implantação de área verde de 2 ha de revegetação com
árvores
• típicas da Amazônia;
• execução do trabalho social por meio de cinco subprogramas;
• mobilização, organização e controle social, geração de trabalho e renda, educação sanitária
e ambiental, acompanhamento social às famílias remanejadas, serviços de atendimento e
informação.
5. Conclusão
Este texto busca traçar um panorama de ações habitacionais na RMB, levados a efeito entre 1996 e
2001. Na análise do contexto local, tanto do plano físico-estrutural como do setor políticoinstitucional, aspectos ligados à provisão do habitat social demonstram pontos que merecem
destaque e crítica mais aprofundada. Percebe-se a existência de paralelos entre esquemas formais
de solução do problema do déficit habitacional, construção de novas unidades ou de lotes infraestruturados, e políticas de provisão de representativo percentual para a solução de problemas em
áreas ocupadas informalmente.
As soluções urbanísticas, fundiárias ou financeiras, em última instância, institucionais, para não
dizer políticas, ainda estão por serem pesquisadas com rigor capaz de mostrar pontos do
estrangulamento, causas e conseqüências de má atuação pública no setor.
Neste plano político-institucional, nota-se uma falta de coesão entre as unidades governamentais,
necessitando uma readequação de competências e a restrição de suas atuações, que provêm da
falta de articulação e de uma coordenação geral das operações realizadas. Outro problema
143
observado é a falta de capacitação técnica; não há verificação das qualificações; apenas são
realizados, eventualmente, programas de atualização e treinamentos de equipes.
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145
Em Defesa da Locação Social
Maria da Piedade Morais e Bruno de Olivaria Cruz
No Brasil, a exemplo do que ocorre em outros países latino-americanos, as políticas habitacionais
governamentais têm enfatizado a promoção do acesso à casa própria como a melhor forma de
satisfazer as necessidades habitacionais da população, atribuindo um status inferior à moradia de
aluguel.
Nos países desenvolvidos, vários estudos apregoam os impactos positivos da propriedade
imobiliária sobre as crianças, as comunidades e a participação cívica da população. Também
existe uma vasta literatura enfatizando a importância da autoconstrução para promover o acesso à
casa própria entre os pobres urbanos das cidades da América Latina.
A habitação possui o duplo caráter de bem de consumo (necessidade básica) e bem de
investimento, correspondendo ao principal ativo das famílias em todo o mundo. Contudo, as
condições de ocupação da moradia variam profundamente entre os países, independentemente dos
padrões de renda, da região do globo e dos níveis de desenvolvimento.
No Brasil a taxa de domicílios próprios em 2000 era de 74,4%, muito próxima das taxas da
Argentina (74,9%) e da Bélgica (74%), mas muito atrás da Espanha, onde aproximadamente 83%
da população é proprietária da moradia. Por outro lado, em países em estágios muito diferentes do
desenvolvimento como a Alemanha e a Jamaica as taxas de domicílios próprios podem ser
bastante similares (45%), mas muito abaixo das taxas na América Latina. Embora nos países
desenvolvidos predominem o aluguel ou a propriedade nos mercados de habitação formais,
analisando a escolha das condições de ocupação das moradias (tenure choice) nos países em
desenvolvimento podemos encontrar uma multiplicidade de soluções habitacionais, que incluem a
propriedade e o aluguel no mercado formal, a invasão e o aluguel em assentamentos informais até
a coabitação e a ocupação de domicílios cedidos por parentes e empregadores.
A literatura empírica mostra que a tenure choice depende do ciclo de vida das famílias, da renda,
da riqueza, da disponibilidade de crédito, da política tributária e das expectativas inflacionárias,
dentre outros. A baixa capacidade de pagamento e endividamento dos pobres restringe o seu
acesso aos mercados de aluguel e propriedade formais, levando ao aumento dos assentamentos
precários.
No Brasil as despesas com a compra de moradias acabadas e empréstimos hipotecários são ainda
mais desigualmente distribuídos do que a renda do trabalho, de acordo com dados da Pesquisa de
Orçamentos Familiares (POF), enquanto as despesas com a melhoria das condições habitacionais
são bem distribuídas entre todas as classes de renda. Tal fato reflete o esforço das populações de
baixa renda, que têm destinado uma parcela significativa de suas poupanças para a melhoria das
suas condições habitacionais, e mostra a oportunidade para a implementação de programas de
microfinancas para habitação progressiva.
Estudo elaborado pelos autores analisando a tenure choice no Brasil mostrou que o nível de
riqueza é um bom preditor para a propriedade formal e que a renda corrente tem impacto limitado
sobre o regime de ocupação da moradia. Por outro lado, variáveis relacionadas ao ciclo de vida
146
tais como idade do chefe, estado civil e tamanho da família influenciam fortemente a
probabilidade de ser proprietário.
Tais resultados mostram que os policy makers brasileiros, que sempre criaram programas
habitacionais baseados nas faixas de renda familiar corrente, deveriam levar explicitamente em
conta o estágio das famílias no ciclo de vida no desenho dos programas, tais como o aluguel ou a
propriedade para a população jovem ou programas habitacionais especiais para idosos, por
exemplo. Os pobres, os negros e as mulheres com filhos pequenos apresentaram uma elevada
probabilidade de morar em assentamentos informais, mostrando que eles possuem uma
possibilidade de escolha limitada no mercado habitacional. O nível educacional aumenta a
probabilidade de uma boa inserção nos mercados habitacionais formais, seja por meio de compra
ou aluguel. Migrantes há menos de quatro anos no município de residência também possuem uma
probabilidade menor de ser proprietários.
Em suma, os resultados do estudo mostram que os policy makers não deveriam focar apenas no
acesso à casa própria como a melhor solução habitacional, mas que uma maior gama de opções
habitacionais com diferentes modalidades de acesso, preços, qualidades e localizações deveria
estar disponível para as famílias brasileiras, dentre as quais elas pudessem escolher as soluções
mais adequadas às suas necessidades habitacionais. Nesse sentido, a locação social pode-se
configurar numa excelente solução habitacional para jovens em busca de oportunidades de
emprego num mercado de trabalho crescentemente volátil, informal e disperso no espaço, bem
como para migrantes recentes e idosos que não tem condições de contrair um empréstimo, com a
importância dos mercados de aluguel para aliviar o déficit habitacional sendo maior nas regiões
metropolitanas e nas áreas densamente povoadas e com elevado crescimento demográfico.
Maria da Piedade Morais é técnica de Planejamento e Pesquisa e coordenadora de Estudos Setoriais Urbanos do
Ipea. Bruno de Oliveira Cruz é técnico de Planejamento e Pesquisa e diretor-adjunto de Estudos Regionais e
Urbanos do Ipea.
A versão final do artigo pode ser encontrada em Lall, S. V; Freire, M.; Yuen, B.; Rajack, R.; Helluin, J.-J. (eds.)Urban Land markets: improving Land for Successful Urbanization. Elsevier, 2009. Uma versão preliminar do estudo
pode ser encontrada no sítio do Fourth Urban Research Symposium disponível em
http://www.worldbank.org/urban/symposium2007/papers/piedade.pdf
147
Monitorando o Direito à Moradia no Brasil (1992-2004)
Maria da Piedade Morais, George Alex Da Guia e Rubem de Paula
Introdução
O objetivo do artigo é fornecer um panorama geral sobre o grau de implementação do direito à
moradia no Brasil, destacando os principais avanços e retrocessos no alcance desse direito, bem
como os grupos que se encontram em posição mais desfavorável no que se refere às condições de
acesso à moradia e a serviços urbanos adequados. O artigo está estruturado em cinco seções, além
desta introdução. A primeira seção discute os principais instrumentos legais de âmbito
internacional, ratificados pelo Brasil que tratam do direito à moradia. Na segunda seção são
analisados os direitos e principais instrumentos estabelecidos na Constituição Federal, no Estatuto
das Cidades e legislações correlatas. A terceira seção apresenta uma breve resenha sobre
indicadores de direito à moradia. A quarta seção fornece um quadro geral das condições de
moradia da população brasileira para o período 1992-2004, com base em indicadores habitacionais
e de desenvolvimento urbano construídos a partir dos microdados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad), segundo metodologia recomendada pelas Nações Unidas (ONU).
Por fim, a seção 5 apresenta as
principais conclusões do artigo.
O direito à moradia nos instrumentos legais de âmbito internacional
O Direito à Moradia foi citado inicialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
aprovada em 1948, pela Assembléia Geral da ONU, tendo o Brasil como um dos seus signatários.
A declaração estabelece que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si
e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e
os serviços sociais indispensáveis” (art. 25, §1o).
O principal instrumento legal internacional que trata do direito à moradia, ratificado pelo Brasil e
por mais 138 países, é o Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais
(Pidesc), adotado pela ONU em 1966. Pelo artigo 11, §1o, os Estados partes reconhecem o direito
de toda pessoa à moradia adequada e comprometem-se a tomar medidas apropriadas para
assegurar a consecução desse direito.
A conformidade dos países signatários com o Pacto é monitorada pelo Comitê das Nações Unidas
para os Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (CESCR), que estabeleceu diretrizes gerais
sobre a forma e o conteúdo dos relatórios enviados ao Comitê (E/C. 12/1991/1). O Pidesc foi
aprovado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo no 226, de 1991) e pela Presidência da
República (Decreto no 591, de 92), reforçando o compromisso brasileiro no cumprimento do
conteúdo proposto pelo pacto. Além do Pidesc, o Brasil também ratificou as Convenções sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Eliminação de todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher (1979), os Direitos das Crianças (1989) e a Convenção sobre o
Estatuto dos Refugiados (1951). Todas reafirmam a condenação de qualquer tipo de discriminação
– de gênero, raça, idade e nível socioeconômico – relativo ao direito à moradia adequada. Os
pactos e as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil têm força de lei e, desse modo, criam
uma obrigação por parte do Estado brasileiro de fazer cumprir esse direito para todos os cidadãos.
148
Ainda no cenário internacional, a Primeira Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos,
realizada em Vancouver, em 1976, criou o Centro das Nações Unidas para Assentamentos
Humanos (Habitat) que consolidou a questão das cidades como nova estratégia de atuação da
ONU, principalmente nos países em desenvolvimento. A Declaração de Vancouver reafirmou, em
seu § 8o, o direito universal à moradia adequada, destacando a importância da eliminação da
segregação social e racial, mediante a criação de comunidades melhor equilibradas, onde se
combinem diferentes grupos sociais.
A Agenda 21, adotada pela Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992, também destaca a importância da moradia
adequada para o bem-estar das pessoas em seu capítulo 7. Em 1996, realizou-se em Istambul, a
segunda Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos (2a Habitat), que aprovou a Agenda
Habitat, adotada pelo Brasil. O documento tem como principais objetivos a moradia adequada
para todos e o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos num mundo em
urbanização. A Declaração de Istambul reafirmou o direito à moradia na seção III, item 8, que
reitera o comprometimento da comunidade internacional com a realização completa e progressiva
do direito à moradia adequada. Para esse fim, os Estados partes deveriam tomar providências para
garantir a segurança legal da posse, a proteção contra a discriminação e a igualdade no acesso à
moradia adequada e financeiramente acessível para todos.
Em 2000, a Declaração do Milênio incorporou aos objetivos gerais da ONU, os direitos à moradia
e ao saneamento adequados, por meio da campanha Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Em 2001, a Declaração das Cidades e outros Assentamentos no Novo Milênio, aprovada pela
Sessão Especial das Nações Unidas Istambul+5, ocorrida em Nova York, reafirmou os
compromissos assumidos na Habitat.
O direito à moradia nos instrumentos legais de âmbito nacional
No Brasil, o texto constitucional de 1988 determina a prerrogativa para a incorporação de novos
direitos que, até então, não figuravam na Constituição Federal brasileira. O § 2o do art. 5o
estabelece que os direitos expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos
princípios por eles adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil tome parte. Ainda
nesse artigo, a Emenda Constitucional no 45, de 2004, estabelece, em seu § 3o, que os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados na Câmara e no Senado, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, são equivalentes às emendas
constitucionais. Portanto, pode-se afirmar que a Constituição brasileira consubstancia no rol dos
direitos sociais básicos aqueles enunciados nos tratados internacionais, incluindo aqueles relativos
aos direitos humanos. O direito à moradia foi explicitamente incorporado à Constituição Federal
por meio da Emenda Constitucional no 26, de 10 de fevereiro de 2000, que estabelece no artigo 6o
que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição”.
A Constituição Federal estabelece ainda, que é dever do Estado, nas suas três esferas, promover
programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento
básico (artigo 23, inciso IX). O direito à moradia também faz parte das necessidades básicas dos
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que devem ser atendidas pelo salário mínimo (artigo
7o, seção IV).
149
Os artigos 182 e 183 da Constituição Federal que tratam da política urbana condicionam a garantia
dos direitos de propriedade ao cumprimento de sua função social. O princípio da função social da
propriedade já vem sendo tratado desde a Constituição de 1934, quando se inseriu na esfera
constitucional a restrição do direito de propriedade pelo interesse social da coletividade. As
constituições que se seguiram consolidaram a função social como princípio básico da propriedade
nas cidades (MASCARENHAS, 2005). Contudo, foi somente a partir da Constituição de 1988,
que a função social da propriedade pode ser aplicada, ao ficar estabelecido no artigo 182, § 2° que
a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências de ordenação da
cidade expressas no plano diretor.60
A regulamentação dos capítulos de política urbana pela Lei Federal no 10.257, de 2001, intitulada
Estatuto da Cidade, estabeleceu os princípios e diretrizes para o ordenamento territorial e
urbanístico, calcado no princípio da função social e ambiental da propriedade e na garantia do
direito a cidades sustentáveis, “entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer,
para as presentes e futuras gerações” (artigo 2o).
O Estatuto da Cidade define os instrumentos que o poder público pode utilizar para garantir o
cumprimento da função social da propriedade61, da regularização fundiária62 e a gestão
democrática e participativa da cidade.634 No amplo leque de instrumentos para garantir o direito à
moradia, presentes no Estatuto das Cidades, destacam-se aqueles que tratam da segurança da posse
(Usucapião Urbano, Concessão do Direito Real de Uso e Zonas Especiais de Interesse Social),64
considerada pelo UN-Habitat como prerrogativa básica contra despejos forçados.65 Outro
instrumento para garantir a segurança da posse e a qualidade dos assentamentos informais está
presente na Lei Federal no 9.785, de 1999, que prevê a possibilidade de o poder público assumir a
regularização fundiária de loteamentos irregulares e clandestinos sem a observância dos
procedimentos urbanísticos e administrativos previstos na Lei Federal no 6.766 de 1979, conhecida
como Lei de Parcelamento de Solo Urbano. Com isso, são asseguradas, além da segurança da
posse por meio da regularização fundiária, a ação do poder público na oferta de serviços urbanos e
equipamentos comunitários.
O princípio da não-discriminação entre os gêneros, no que se refere à segurança da posse, está
contemplado no artigo 183, § 1o, da Constituição e no artigo 1o, § único, da Medida Provisória no
2.220, de 2001, que estabelecem que o título de domínio, a concessão de uso e a concessão de uso
especial para fins de moradia são conferidos de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a
ambos, independentemente do estado civil. Nesse quesito, destaca-se também a Portaria no 11 do
60
plano diretor é obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes, integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas e de especial interesse turístico.
61
Plano diretor participativo, parcelamento e edificação compulsórios, imposto territorial progressivo no tempo, desapropriação
com títulos da dívida pública, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir (solo criado).
62
Concessão especial para fins de moradia, concessão do direito real de uso e zonas especiais de interesse social
63
Conselhos de política urbana, audiências e conferências públicas, orçamento participativo, iniciativa popular de projetos de lei,
estudo de impacto de vizinhança
64
As Zeis permitiram a flexibilização dos parâmetros urbanísticos e das normas técnicas de prestadores de serviços públicos de
infra-estrutura em assentamentos populares, amparando legalmente as iniciativas locais de urbanização e regularização fundiária,
facultando a melhoria das condições de moradia e minimizando as realocações das unidades habitacionais existentes.
65
. A Campanha pela Segurança da Posse tem como objetivo principal garantir o direito à moradia, particularmente para os pobres
e os sem-teto. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas considera os despejos forçados
incompatíveis com os requerimentos do Pidesc. Em 2005, o Conselho das Cidades aprovou a Resolução no 31 que propõe o
estabelecimento de um processo de discussão entre os órgãos do Poder Judiciário, instituições como o Ministério Público, e o
Conselho das Cidades para tratar da atuação do Judiciário em conflitos relativos aos deslocamentos e despejos forçados de grande
impacto social
150
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que estabelece a mulher chefe de família como
público-alvo dos programas habitacionais com recursos da União.
Em 2002, o novo Código Civil Brasileiro, aprovado pela Lei no 10.406, no artigo 1.288, aborda a
propriedade urbana como um direito amplo, mas não absoluto, que deve ser exercido em
consonância com as finalidades econômicas e sociais, o que possibilita a sua utilização para fins
de regularização fundiária em áreas de interesse social.
Soma-se a esse leque de instrumentos, a MP no 292 de 2006, que altera, de forma significativa, a
Lei Federal no 8.666 de 1993 (Lei das Licitações), no que se refere à doação de lotes para
populações de baixa renda (até cinco salários mínimos). Outra alteração de relevância para o
processo de regularização fundiária feita por essa MP foi a permissão dos instrumentos de
reconhecimento de posse (concessão especial para fins de moradia, concessão de direito real de
uso, aforamento gratuito e o direito de superfície) pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH)
como garantia para a obtenção de financiamento para a construção e melhorias habitacionais
(artigo 4, seção I NR).
Outros esforços com vistas a garantir o direito à moradia, principalmente no que se refere à
segurança de posse, concentram-se no novo modelo de regulação urbana desenhado pelo Projeto
de Lei no 3.057/2000, que dispõe sobre o parcelamento do solo e a regularização fundiária em
áreas urbanas, denominada Lei de Responsabilidade Territorial. Ainda no tema da segurança da
posse, a Lei Federal no 10.741, de 2003, conhecida como Estatuto do Idoso, estabelece em seu
capítulo IX, arts. 37 e 38, o direito à moradia e a prioridade da titularidade da moradia aos idosos
nos programas habitacionais. Em relação ao mercado rentista, o direito à moradia adequada é
assegurado pela Lei Federal no 8.245, de 1993, que garante em seu artigo 2o, § único, a titularidade
de direitos como locatários de imóveis urbanos, o que por sua vez obriga o locador a respeitar a
exigência legal dos moradores, de melhorias das condições habitacionais do imóvel alugado.
A próxima seção resume os indicadores recomendados pela ONU para monitorar os principais
instrumentos legais e agendas que tratam do direito à moradia. A seção avalia em que medida os
avanços ocorridos na legislação de direito à moradia no país se traduziram em avanços concretos
nas condições de habitação e acesso a serviços urbanos da população brasileira.
Indicadores de direito à moradia
A noção de o que vem a constituir uma moradia adequada é o ponto de partida para a construção
de indicadores de direito à moradia. O Comitê da ONU sobre os Direitos Econômicos e Sociais no
General Comment no. 4 on the Right to Adequate Housing, adotado em 1991, identificou sete
componentes básicos para que uma moradia possa ser considerada minimamente adequada: i)
segurança nos direitos de propriedade, que garanta a proteção contra os despejos forçados; ii)
disponibilidade de serviços, equipamentos e infra-estrutura, tais como água, esgoto, coleta de
resíduos sólidos, energia para cocção, iluminação, dentre outros; iii) disponibilidade a preços
acessíveis, para que o preço da moradia seja compatível com o nível de renda da população e não
comprometa a satisfação de outras necessidades básicas das famílias; iv) habitabilidade, no
sentido de fornecer aos seus moradores espaço adequado, protegendo-os de fatores climáticos e
garantindo a sua segurança física; v) acessibilidade a todos os grupos sociais, levando em conta as
necessidades habitacionais específicas de idosos, crianças, deficientes físicos, moradores de rua,
população de baixa renda etc.; vi) localização que possibilite o acesso ao emprego, a serviços de
saúde e outros equipamentos sociais; e vii) adequação cultural, de modo a permitir a expressão
151
das identidades culturais. Essa definição de moradia adequada é semelhante à adotada no § 60 da
Agenda Habitat:
Moradia adequada significa mais do que ter um teto sobre a cabeça. Significa
também privacidade adequada; espaço adequado; acessibilidade física;
segurança adequada; segurança da posse; estabilidade e durabilidade
estrutural; iluminação, calefação e ventilação adequadas; infra-estrutura básica
adequada tal como serviços de abastecimento de água, esgoto e coleta de lixo,
qualidade ambiental e fatores relacionadas à saúde apropriados; e localização
adequada no que diz respeito ao local de trabalho e aos equipamentos urbanos:
os quais devem estar disponíveis a um custo razoável (...) Fatores relacionados
ao gênero e à idade (...) devem ser considerados.
Para o monitoramento da Agenda Habitat, o UN-Habitat propõe a adoção de um conjunto de 20
indicadores-chave, 13 indicadores extensivos e 9 check-lists de indicadores qualitativos (UNHabitat, 2004). Embora todos os indicadores propostos estejam direta ou indiretamente ligados ao
monitoramento das condições de moradia, o UN-Habitat recomenda especificamente para
monitorar a promoção do direito à moradia adequada indicadores relativos à durabilidade
estrutural, à existência de área suficiente para viver, ao preço da moradia em relação ao nível de
renda da população e uma check list relativa ao alcance do direito à moradia para todos os
cidadãos na Constituição e/ou legislação dos países. Também se relacionam com o monitoramento
do direito à moradia os indicadores propostos pelo UN-Habitat (2003) para o monitoramento da
Meta no 11 do 7o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio – até 2020, ter alcançado uma melhora
significativa na vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de assentamentos precários –,
relativos à estimativa do número de domicílios precários, i.e, aqueles que não atendem a uma ou
mais das seguintes condições: i) acesso a água potável; ii) acesso a esgotamento sanitário; iii)
segurança da posse; iv) durabilidade da moradia; e v) área suficiente para morar.
As diretrizes gerais sobre a forma e o conteúdo dos relatórios nacionais a serem apresentados ao
CESCR pelos países signatários do Pidesc (E/C.12/1991/1) também apresentam uma extensa lista
de indicadores, destacando a necessidade de se prover estatísticas detalhadas sobre as condições
de moradia nos países, a existência de leis que afetem o direito à moradia, bem como as medidas
adotadas pelo Estado para colocar em prática esse direito. As diretrizes citam especificamente o
número de pessoas e famílias sem teto, as pessoas com condições de moradia inadequadas e sem
acesso a serviços de infra-estrutura urbana, os moradores em assentamentos informais, os sujeitos
a despejos forçados, as pessoas cujos gastos com moradia são superiores à sua capacidade de
pagamento e as pessoas em lista de espera para obter moradia, dentre outros. Mais recentemente, o
Programa das Nações Unidas para os Direitos Humanos também estabeleceu um conjunto de 15
indicadores para o monitorar o direito à moradia, divididos em nove elementos básicos:
habitabilidade, acessibilidade a serviços, cessibilidade econômica, segurança da posse, população
sem teto, população em favelas, despejos forçados, marco legal e marco institucional da política
habitacional.
O direito à moradia nas cidades brasileiras
Para o monitoramento do alcance do direito à moradia nas cidades brasileiras, além da revisão da
legislação apresentada na seção 2 deste artigo, utilizou-se uma série de 16 indicadores
quantitativos. Procurou-se compatibilizar as recomendações metodológicas contidas nas diretrizes
da ONU com a disponibilidade de informações sobre moradia existentes na Pnad e outras bases de
dados do IBGE, adaptando os indicadores recomendados à realidade socioeconômica do Brasil.
152
Para verificar a conformidade com os princípios de igualdade de oportunidades e de nãodiscriminação no acesso à moradia adequada para todos, apresentam-se os indicadores com os
recortes de gênero, raça, faixa etária e nível de renda. O horizonte temporal analisado engloba o
período 1992-2004.
Como proxy para a população sem teto utilizou-se as pessoas residentes em domicílios urbanos
improvisados.66 As pessoas residentes em setores especiais de aglomerados subnormais foram
usadas como proxy para favels e os residentes em domicílios urbanos do tipo cômodo como proxy
para cortiços. A população com insegurança da posse foi aproximada pelo número de moradores
urbanos com irregularidade fundiária.67
A acessibilidade econômica da moradia foi medida pela proporção de pessoas residentes em
domicílios urbanos com ônus excessivo com aluguel, i.e, aquelas pessoas que comprometem mais
de 30% da renda domiciliar com o pagamento do aluguel. Para a análise da dimensão de
habitabilidade utilizou-se a proporção de pessoas residentes em domicílios urbanos com: i)
adensamento excessivo (mais de 3 pessoas por dormitório); ii) paredes e tetos feitos de materiais
duráveis;68 e iii) banheiro de uso exclusivo do domicílio. Para medir o acesso aos serviços,
equipamentos e infra-estrutura urbana foram considerados indicadores relativos à proporção de
pessoas residentes em domicílios urbanos que: i) usam predominantemente gás ou luz elétrica no
fogão; ii) possuem iluminação elétrica etc.; e iii) têm acesso a cada um dos serviços de
saneamento básico isoladamente, bem como com acesso simultâneo a água canalizada de rede
geral, esgoto de rede geral ou fossa séptica e coleta direta ou indireta de lixo, que é considerado o
padrão de saneamento básico adequado para as áreas urbanas. Por último, construiu-se um
indicador para medir a proporção de pessoas residentes em domicílios urbanos com condições de
moradia adequadas, retirando-se da população total os residentes em dom cílios classificados
como precários pelos critérios do UN-Habitat69.
A análise dos indicadores mostra que houve uma sensível melhoria nas condições de moradia da
população brasileira residente em áreas urbanas entre 1992 e 2004, pois 13 dos 15 indicadores
utilizados apresentaram performance positiva. Os indicadores de saneamento básico apresentaram
os melhores desempenhos, seja quando se analisam os serviços de água, esgoto e lixo
separadamente seja quando nos referimos ao acesso simultâneo aos três tipos de serviços,
passando de 57,4%, em 1992, para 70,8%, da população em 2004. O número absoluto de pessoas
residentes em domicílios adensados também sofreu uma redução de 13,8%. Alguns indicadores
apresentam percentuais de cobertura bastante elevados como é o caso da proporção da população
com acesso a banheiro de uso exclusivo, paredes e tetos duráveis, coleta de lixo, energia elétrica e
gás ou eletricidade para cocção, com níveis de adequação superiores a 95,7%. Um ponto negativo
a observar é que a moradia ficou menos acessível face à renda da população, causando um
aumento na proporção da população urbana que sofre de ônus excessivo com aluguel de 1,7%, em
66
Domicílio localizado em unidades sem dependência destinada exclusivamente à moradia, tais como: loja, sala comercial, prédio
em construção, embarcação, carroça, vagão, tenda, barraca, gruta etc., que estivesse servindo de moradia
67
Moradores de domicílios próprios em terreno de terceiros ou pessoas com “outra condição de moradia.“
68
Para as paredes, são considerados materiais duráveis a alvenaria e a madeira aparelhada. Para o teto, os materiais
duráveis são: laje de concreto, telha e madeira.
69
Domicílios urbanos particulares permanentes que apresentam pelo menos uma das seguintes inadequações: ausência de água por
rede geral canalizada para o domicílio; ausência de esgoto por rede geral ou fossa séptica; ausência de banheiro de uso exclusivo do
domicílio; teto e paredes não duráveis; adensamento excessivo; não conformidade com os padrões construtivos (aglomerado
subnormal); e irregularidade fundiária
153
1992, para 3,5%, em 2004, onerando, sobretudo, a população de baixa renda residente nas
principais regiões metropolitanas.
No que diz respeito aos indicadores de informalidade habitacional verificou-se que ocorreu uma
queda de 347 mil no número de pessoas residentes em cortiços; de 36 mil, no número de
moradores de rua; e de quase 1,1 milhão no número de pessoas com irregularidade fundiária.
Contudo, não foi possível deter o crescimento da população favelada, que apresentou um aumento
de mais de 2 milhões de pessoas em termos absolutos. A proliferação de favelas e outros
assentamentos informais, que correspondem acerca de 4,6% da população urbana e estão
concentrados principalmente nas metrópoles e nos municípios de grande porte, acarreta graves
conseqüências econômicas, sociais e ambientais para as cidades brasileiras.
No geral, verificamos que ocorreram avanços significativos no alcance do direito à moradia para o
conjunto da população brasileira, pois a proporção da população residente em domicílios urbanos
com condições de moradia adequadas aumentou mais de 12 pontos percentuais: de 48% para
60,4%. Essa melhoria nas condições de moradia reflete os esforços empreendidos pelos três níveis
de governo por meio de programas e legislações. Outro ponto positivo a enfatizar diz respeito à
diminuição das desigualdades entre brancos e negros no acesso à moradia adequada. De acordo
com dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) do IBGE em 2004, mais de
81,3% dos municípios possuíam programas ou ações habitacionais: 34,3%, oferta de lotes; 19,8%,
urbanização de assentamentos; 16,2%, regularização fundiária; 43,5%, oferta de materiais de
construção; e 66,5%, construção de unidades habitacionais. São especialmente importantes para a
consecução do direito à moradia adequada para todos as ações de habitação, saneamento,
urbanização e regularização fundiária em quilombos, áreas indígenas, reservas extrativistas,
assentamentos da reforma agrária e assentamentos urbanos informais. Somam-se a essas ações
aquelas relacionadas ao desenvolvimento urbano, como é o caso da Campanha Nacional do Plano
Diretor Participativo (PDP)70.
Entretanto, apesar dos avanços obtidos, o grau de alcance do direito à moradia no Brasil ainda é
bastante desigual entre os diferentes grupos socioeconômicos. A população negra (pretos e
pardos), os pobres (renda domiciliar per capita até ½ salário mínimo), as crianças (pessoas com até
12 anos de idade) os moradores de assentamentos informais apresentam piores condições de
moradia do que a média da população brasileira. Para dar uma idéia da dimensão das
desigualdades raciais que ainda persistem, enquanto o grau de adequação das condições de
moradia entre a população branca é de 70,7%, entre os pretos e pardos é somente 48,2%. Entre a
população pobre o grau de adequação é de apenas 31%, ao passo que 78,7% da população que
ganha mais de 5 salários mínimos vive em domicílios adequados. As crianças também apresentam
níveis de adequação das condições de moradia inferiores aos das demais faixas etárias (49,6%).
Por sua vez, não foram observadas diferenças significativas entre as condições de moradia de
homens e mulheres.
Mesmo com o direito à moradia presente entre os deveres do Estado constantes da Constituição
Federal e de outros normativos legais, ainda existe no país uma vasta gama de necessidades
habitacionais não satisfeitas, configurando violações do direito à moradia, que incidem, sobretudo,
70
Segundo a Secretaria de Programas Urbanos, cerca de 88% dos municípios obrigados a elaborar o PDP estão em
processo de conclusão ou em andamento (SNPU, 2006).
154
nas camadas mais pobres da população. Nas áreas urbanas brasileiras ainda há 59,7 milhões de
brasileiros que convivem com pelo menos um tipo de inadequação habitacional
Conclusão
O governo Brasileiro tem dado importantes passos para o alcance do direito à moradia no Brasil.
Na esfera internacional, o Brasil ratificou os principais pactos, convenções e declarações da ONU
que incluem o direito à moradia como uma parte indissociável para o alcance dos direitos
humanos. No âmbito legislativo nacional, destaca-se a nclusão do direito à moradia entre os
direitos sociais mínimos da população pela Eenda Constitucional no 26, de 10 de fevereiro de 2000
e a homologação do Estatuto da Cidade, que introduziu diversos instrumentos para garantir o
cumprimento da função social da propriedade e para a regularização fundiária de assentamentos
informais e a gestão democrática e participativa da cidade.
Os avanços na legislação e os esforços de investimento realizados pelos três níveis de governo nas
áreas de habitação e saneamento ocasionaram a implementação gradual e progressiva do direito à
moradia no Brasil, com a proporção de pessoas residindo em domicílios urbanos com condições
de moradia adequadas aumentando, de 48%, em 1992, para 60,4%, em 2004. Contudo, apesar dos
resultados positivos alcançados, o direito à moradia ainda não está acessível a todos os cidadãos
brasileiros, pois cerca de 2/5 da população do país apresentam condições de moradia precárias. Os
princípios da igualdade e da não-discriminação no direito à moradia também ainda não foram
alcançados, pois as desigualdades no acesso à moradia adequada entre os grupos raciais e os
estratos socioeconômicos ainda são bastante elevadas, com os problemas habitacionais recaindo,
principalmente, sobre a população negra e pobre, que apresenta baixa capacidade de pagamento
pela moradia e menor acesso a serviços urbanos. A persistência de um número elevado de
necessidades habitacionais insatisfeitas nos grupos de renda mais baixos exigirá um aumento
substancial dos investimentos por parte dos três níveis de governo, notadamente nos setores de
habitação de interesse social, urbanização de assentamentos precários, regularização fundiária e
aumento da cobertura de saneamento básico, sobretudo esgotamento sanitário.
Por último, cabe ressaltar que uma das principais dificuldades para a construção dos indicadores
foi a ausência de um censo específico sobre o habitação, forçando-nos a utilizar proxies que, na
maioria das vezes, subestimavam as dimensões dos problemas habitacionais brasileiros.
Especialmente difíceis de construir foram os indicadores relativos a pessoas em favelas e cortiços,
moradores de rua e pessoas com insegurança da posse, pois não há dados quantitativos precisos
sobre o grau de informalidade habitacional que prevalece no país. Assim, para que possamos
dispor de estatísticas adequadas para monitorar o direito à moradia no Brasil recomenda-se ao
IBGE, ao Ministério das Cidades e aos diversos institutos de pesquisa e planejamento
governamental juntar esforços no sentido de ampliar o leque de informações disponíveis sobre as
condições de moradia no país.
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