PRONOMES PESSOAIS SUJEITOS E O ENSINO DE GRAMÁTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA Kássia Kamilla de Moura (Mestranda PPgEL/UFRN) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Martins (DLet/PPgEL/UFRN) INTRODUÇÃO A presente investigação trata do ensino de gramática da língua portuguesa, praticado na rede básica de ensino, mais especificamente, no 6º ano do ensino fundamental II; nesse sentido, os objetivos da nossa investigação distendem-se em três eixos, são eles: 1) analisar do manual didático da coleção Português Linguagens, Cereja e Magalhães (2009), observando a exposição/tratamento ao processo de variação/mudança no paradigma pronominal, notadamente os pronomes pessoais sujeitos, quais sejam: 2ª pessoa do singular (tu/ você), 1ª pessoa do plural (nós/a gente) e a 2ª pessoa do plural (vós/ vocês), 2) analisar/confrontar os postulados da Gramática Tradicional (GT), a respeito dos pronomes pessoais sujeitos – aqueles apresentados por Bechara (2010) e Cunha e Cyntra (2008) – bem como os resultados descritos em estudos linguísticos acerca do paradigma pronominal em uso no Português Brasileiro (de agora em diante, PB) (CASTILHO, 2010; LOPES e MACHADO, 2005; RUMEU, 2008 e LOPES et al., 2009) e, por fim, 3) faremos uma breve discussão sobre o papel da escola apoiados nos apontamentos deixados por Bortoni-Ricardo (2004); Vieira (2007) e Parâmetros Curriculares Nacionais-PCN (cf. BRASIL, 1998). Esta pesquisa é motivada pelos seguintes questionamentos: i) Em decorrência da entrada dos pronomes você(s) e a gente quais outras mudanças foram ocasionadas na língua? ii) Quanto à desinência verbal, houve alguma perda com a entrada dos novos pronomes você(s)/ a gente? A investigação proposta está baseada nos aportes teórico-metodológicos da sociolinguística variacionista Weinreich, Labov, Herzog, (2006 [1968], doravante WLH), uma vez que segundo essa teoria a variação e a mudança linguística só pode ser estudada tendo em vista dados reais. Ainda, segundo a teoria da variação e mudança, toda língua sofre variação e essa variação acontece de forma sistemática. Pois, as línguas não constituem realidades estáticas, o que nos permite desvendar o aparente ‘caos’ linguístico em que elas estão imersas. Desta forma, a mudança não afeta a estrutura da língua; ou seja, a língua continua estruturada enquanto as mudanças vão ocorrendo. De acordo com WLH, o lugar da mudança linguística é a comunidade de fala (o grupo social). Ainda, de segundo com autores, fatores linguísticos e sociais estão fortemente correlacionados no desenvolvimento da mudança linguística. WLH sugerem um modelo de língua que acomoda os usos variáveis e seus determinantes sociais e estilísticos, os quais não só levam a descrições mais adequadas da competência linguística, como naturalmente suscitam fundamentos para uma teoria da mudança linguística que ultrapassa os paradoxos estéreis contra os quais a linguística histórica tem se debatido por mais de meio século. Destarte, a variação não é aleatória, desregrada ou caótica. Pelo contrário, se mostra sempre motivada, tanto por fatores linguísticos (estruturais) quanto extralinguísticos (sociais ou estilísticos). Nessa perspectiva acreditamos que os falantes marcam sua história e identidade pessoal, assim como suas características socioculturais, econômicas e geográficas no tempo e no espaço, em sua língua. E, desse modo, a língua possui uma função social, como meio de comunicação e como modo de identificar grupos sociais. Dessa forma, por ser a língua algo inato, as crianças ao chegarem à escola já dispõem de conhecimento acerca da gramática da sua língua. Assim, defendemos que a escola é um lugar favorecedor para a ampliação dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida, uma vez que a escola tem condições de propiciar um maior convívio social e por meio desse uma maior acessibilidade as variações linguísticas. Logo, esperamos encontrar, em nossas salas de aulas, práticas pedagógicas de ensino de língua materna que revelem a influência das diferentes perspectivas de abordagem do fenômeno da linguagem. Afinal, a língua se insere numa realidade histórica, cultural e social, uma vez que existem pessoas que a falam e a escrevem. Ela corresponde a uma atividade social em que os falantes todas às vezes que se põem a interagir, seja por meio da fala ou por meio da escrita, acabam por produzirem uma ação. Nessa perspectiva, a sala de aula se transforma num lugar em que se devem analisar as multiplicidades de formas e uso da língua materna. Quanto ao córpus utilizado na nossa pesquisa, optamos por analisar o Livro Didático de Língua Portuguesa (doravante, LDP), da coleção Português Linguagens por ser o manual didático adotado pelas escolas municipais de Natal, Rio Grande do Norte. E, ainda, por acreditarmos que o livro didático é, em geral, o principal norte para os professores de Língua Portuguesa. A fim de perseguirmos nossos objetivos expostos anteriormente observarem a estruturação gramatical deste manual didático e, mais especificamente, analisaremos como Cereja e Magalhães (2009) expõem/trata o processo de variação/mudança no paradigma pronominal, em especial, os pronomes pessoais na posição de sujeito (caso nominativo), sejam eles: 2ª pessoa do singular (tu/ você), 1ª pessoa do plural (nós/a gente) e a 2ª pessoa do plural (vós/ vocês); e 2) a fim de dar suporte à análise, confrontaremos os postulados da Gramática Tradicional (GT), a respeito dos pronomes pessoais sujeitos – mais especificamente aqueles apresentados por Bechara (2010) e Cunha e Cyntra (2008) – aos resultados descritos em estudos linguísticos acerca do paradigma pronominal em uso no PB (CASTILHO, 2010; LOPES e MACHADO, 2005; RUMEU, 2008 e LOPES et al., 2009) e, por fim, faremos uma breve discussão sobre o papel da escola apoiados nos apontamentos deixados por Bortoni-Ricardo (2004); Vieira (2007) e Parâmetros Curriculares Nacionais-PCN (cf. BRASIL, 1998). 1. Sobre os pronomes pessoais sujeitos em Cereja e Magalhães (2009); Bechara (2010) e Cunha; Cyntra (2008) Nessa seção, observaremos como são exposto/classificado os pronomes pessoais no LDP, da coleção Português Linguagens, do 6º ano do ensino fundamental I(cf. CEREJA; MAGALHÃES, 2009). Embasaremos nossa análise em duas vertentes, a saber 1) confrontaremos os dados da análise aos postulados da Gramática Tradicional (GT) – mais especificamente aqueles apresentados por Bechara (2010) e Cunha; Cyntra (2008) na vertente 2) checaremos os apontamentos do LDP analisado, da GT face aos por estudos linguísticos (CASTILHO, 2010; LOPES e MACHADO, 2005; LOPES et al., 2009 e RUMEU, 2008). Passemos, pois, às análises. Os gramáticos, Bechara (2010, p.131) e Cunha; Cintra (2008, p.190), afirmam que pronomes pessoais do caso reto são formas de pronomes que podem funcionar como sujeitos de uma sentença. Os autores concordam, ainda, que os pronomes pessoais designam as duas pessoas do discurso e a terceira pessoa que seria a ‘não pessoa (não eu, não tu)’. E apresentam as seguintes pessoas do discurso: a) 1ª pessoa>Quem fala-eu (singular); nós(plural); b) 2ª pessoa>com quem se fala-tu(singular); vós(plural); c) 3ª pessoa>de quem se fala-ele/ela (singular); eles/elas (plural). Cunha e Cintra (2008, p. 290, 303) afirmam, ainda, que as pessoas com quem se fala, ou seja, a segunda pessoa pode ser expressa também pelos pronomes de tratamento. Essas formas de tratamento são palavras ou locuções que tem o valor de pronomes pessoais, por exemplo: você, o senhor, Vossa excelência etc. O quadro 1, adaptado de Cereja; Magalhães (2009, p.190), mostra-nos que os autores corroboram com as mesmas asserções defendida pelos gramáticos. Cereja; Magalhães (2009, p.190) fazem uma ressalva na sessão Contraponto concernente aos pronomes você, vocês e a gente e afirmam que alguns especialistas defendem a inclusão desses pronomes no paradigma dos pronomes pessoais pelo fato dessas formas estarem muito utilizadas em lugar dos pronomes tu, vós e nós. Quadro 1 Ainda, na sessão Contraponto, Cereja; Magalhães, 2009, p.190, continua a ressalva dizem que: No passado, o pronome pessoal vós, por exemplo, era empregado com maior frequência do que hoje e servia para alguém se dirigir de modo cerimonioso tanto a uma única pessoa quanto a um conjunto de pessoas. Nos dias de hoje, seu uso se restringe a situações muito formais, como em textos jurídicos, bíblicos e políticos. No lugar dele, emprega-se o pronome de tratamento você ou vocês. Na sessão Contraponto, os autores deixam claro que pronome você pode desempenhar funções de pronome pessoal. Mas, não o reconhece como pronome pessoal. Na citação acima extraída do LDP analisado, percebemos que os autores fazem alusão ao pronome pessoal vós e permite ao leitor ter uma interpretação de que o vós é usado, frequentemente, pelos falantes de português para fazermos referência a pessoa com quem se fala. Os autores do LDP fazem menção a variação tu/ você, ver quadro 2, mas reforça que não deve haver mistura de tratamento entre as duas formas. Quadro 2 Adaptado de Cereja; Magalhães (2009, p.191) Sobre essa ‘ mistura de tratamento’ Lopes e Machado, (2005) em um estudo diacrônico sobre as formas de tratamento em cartas pessoais, as autoras postulam que: A “mistura de tratamento” mais evidente fica por conta do pronomecomplemento de segunda pessoa te que aparece combinando-se a tu, você e você~tu. Tais resultados mostram que o sincretismo entre P2 e P31, causado pela inserção de você no sistema pronominal, dá seus primeiros reflexos formais na combinação de você com te no século XIX. Confirma-se, assim, a hipótese de Silva (1982) sobre a maior invasão da forma te do que da forma teu com o pronome você de segunda pessoa. É importante ressaltar que não encontramos nenhuma referência ao pronome a gente no nosso córpus, tão pouco nas GT consultadas. Assim ignora-se o uso recorrente desse A respeito disso, Lopes (1998) postula que A alternância das formas nós e a gente, representando a primeira pessoa do plural, é de uso comum entre os falantes no Brasil.” As gramática normativa, entretanto, por raramente explicar fenômenos já consagrados na língua falada, apresenta, ainda, incoerências quanto à classificação e inserção da forma a gente no sistema de pronomes pessoais e considera o pronome nós como mero plural de "eu", sem discutir o seu uso mais abrangente e genérico de um "eu-ampliado". Exporemos a seguir, no quadro 3, a descrição do paradigma pronominal atual no PB. 1 P2 e p3- faz referência à segunda e terceira pessoa do discurso, respectivamente. Quadro 3 A Adaptado de Lopes (2008) 1.1 Estudos sobre os pronomes pessoais sujeitos no PB Conforme referido anteriormente, sistematizamos nossa análise com embasamento em duas vertentes, a primeira exposta na sessão 1 que foi o confrontamento entre os dados do LDP e os postulados da GT (cf. BECHARA, 2010 e CUNHA; CYNTRA, 2008). Agora, nesta sessão faremos uma breve retomada dos resultados dos estudos de Castilho (2010) Lopes e Machado (2005), Lopes et all (2009) e Rumeu (2008) sobre o processo de variação e mudança envolvendo os pronomes pessoais no (PB). Castilho (2010, p.474) postula que para definir o estatuto categorial dos pronomes é necessário observar alguns pontos: a) as propriedades discursivas, semânticas e gramaticais, bem como a gramaticalização. Do ponto de vista, semânticodiscursivo os pronomes representam as pessoas do discurso, pelo caminho da dêixis, permitem a retomada ou antecipação de participantes, pelo caminho da foricidade (anáfora e catafora). Já na perspectiva gramatical, os pronomes exibem propriedades morfológicas de caso, de numero e de gênero. Morfemas afixais e lexemas distintos expressam essas propriedades. O autor diz, ainda, que os pronomes pessoais (eu, tu, ele, nós) preservam a distinção de caso nominativo (marcado-o por meio dos seus lexemas) herdado do latim vulgar . O pesquisador lembra, também, que essa subclasse do s pronomes (os pronomes pessoais) vem sofrendo mudanças e estudos recentes tem apontado para uma reorganização no paradigma pronominal do PB. Lopes e Machado (2005)2 utilizaram como córpus 41 cartas particulares, escritas no último quarto do século XIX, entre 1872 e 1879 pelo casal carioca Christiano Benedicto Ottoni e Bárbara Balbina de Araújo Maia Ottoni a seus netos, residentes em Paris, Mizael e Christiano, as autoras fizeram um estudo sobre as formas de tratamento utilizadas. Lopes e Machado observaram o fenômeno de pronominalização de vossa mercê > você, que marcou o início do processo de variação entre a concordância de você e do tu com outras formas pronominais de 2ª pessoa e de 3ª pessoa, a fim de identificar a produtividade de cada uma das duas estratégias, no final do século XIX. Esse trabalho buscou, também, mostrar algumas evidências que confirmassem a conjectura de Labov (1990) acerca do comportamento inovador das mulheres frente à mudança linguística. 2 Este trabalho é retomado no volume VI do PHPB. LOPES, Célia; MACHADO, Ana Carolina; PAGOTTO, Emílio; DUARTE, Eugênia; CALLOU, Dinah; OLIVEIRA, Joseane; ELEUTÉRIO, Silvia; MARTELOTTA, Mário. A configuração da norma brasileira no século XIX: análise das cartas pessoais dos avós Ottoni. In: Tânia Lobo, Ilza Ribeiro, Zenaide Carneiro e Norma Almeida (orgs.). Para a História do Português Brasileiro. Vol. VI – Novos dados, novas análises, Tomo II. Salvador: EDUFBA, 2005, p. 781-815. As repercussões gramaticais causadas pela inserção da forma gramaticalizada você atingiu diferentes níveis da língua. Por ter origem em uma base nominal que leva o verbo para a terceira pessoa do singular, o emprego de você na interlocução acarretou algumas modificações, como por exemplo, um rearranjo no sistema pronominal com a fusão do paradigma de 2ª com o de 3ª pessoa do singular e com a eliminação do paradigma de 2ª pessoa do plural. Quanto à mudança categorial de nome para pronome, as autoras assumem o que defende Lopes (1999, 2003) ao estudar a forma nominal a gente, que não se perderam todos os traços formais nominais, assim como não foram assumidos todos os traços intrínsecos aos pronomes pessoais. Essa constatação condiz com dois princípios de gramaticalização discutidos por Hopper (1991): o princípio da persistência e o da decategorização. O primeiro princípio determina que nos processos de gramaticalização alguns traços do significado original aderem à nova forma gramaticalizada e detalhes da história lexical do item podem se refletir em tais formas durante estágios intermediários. Segundo as autoras, no caso de VOCÊ, talvez haja mais resquícios formais do que semânticos. A forma pronominal gramaticalizada VOCÊ mantém traços do significado original, por exemplo, a concordância com verbos na terceira pessoa do singular e a impessoalidade da terceira pessoa que fica evidenciada na expansão do emprego de VOCÊ em contextos de referência indeterminada. O segundo princípio refere-se à neutralização das marcas morfológicas e propriedades sintáticas da categoria-origem (no caso do VOCÊ - nome ou sintagma nominal) e adoção de atributos da categoria-destino (forma pronominal). Desta forma, Lopes e Machado (2005) chegam às seguintes apontamentos: Há preferência pelo pronome TU na maior parte do córpus analisado pelas autoras, principalmente nas cartas do avô. O missivista Christiano prefere o tu combinando com formas de segunda pessoa (te/teu/tua) e o vocês na função de sujeito. Isso confirma de certa forma, os resultados obtidos em outros trabalhos com base em cartas particulares dos séculos XVIII e XIX (cf. SILVA e BARCIA, 2002). Já a avó Bárbara, em suas cartas, deixa evidenciar um maior nível de desprendimento em relação aos preceitos gramaticais ao apresentar maior variação na combinação entre tu e você com formas de segunda e terceira pessoa. As autoras defendem que a presença do VOCÊ nas cartas de Bárbara não estaria só relacionada a uma assimetria de tratamento de superior para inferior, mas, se trataria de “um uso mais generalizado do que um pronome de poder ou de solidariedade” (p.53), visto que a forma inovadora você, cada vez mais, coocorre nos espaços funcionais típicos de tu. As pesquisadoras supõem que os baixos índices de frequência da forma você nas cartas de Christiano possa ser uma estratégia que estivesse emergindo em contextos restritos, discursivamente motivados. O contrário é detectado nas cartas da avó Bárbara, pois não se percebe uma motivação discursiva aparente, mas a generalização de você como forma de 2ª pessoa. O comportamento diferenciado com relação ao gênero (masculino/feminino) parece referendar mais uma vez a hipótese laboviana sobre o inovadorismo feminino na maioria dos fenômenos de mudança com o uso de formas “não-padrão”. Uma das importantes conclusões a que Lopes e Machado chegam é a de que é possível encontrar na escrita de brasileiros cultos, no final do século XIX, o uso de você com formas de tu, denominado pela gramática tradicional com “mistura de tratamento”. Rumeu (2008) em sua pesquisa de doutorado analisa 30 cartas íntimas da família Pedreira Ferraz-Magalhães trocadas entre pai e filhos, mãe e filhos, avô e netos, netos e avô e entre irmãos em que o universo discursivo, na maioria, são questões pessoais. A autora divide o córpus em três períodos de tempo, com um intervalo de 2025 anos cada um. São eles: 1º) 1877- 1897; 2º) 1898-1923; 3º)1924-1948. A pesquisadora investiga o perfil de variação entre as formas de referência a segunda pessoa do discurso (tu/você) considerando as realizações pronominais e verbais, e observar a mescla você com te conforme já constatado em estudos anteriores (cf. ARDUIN, 2005; BARCIA, 2006; LOPES e MACHADO, 2005). Rumeu considera que a inserção do você no quadro pronominal do PB não se deu da mesma forma em todos os contextos morfossintáticos: o pronome - sujeito; o pronome complemento preposicionado e as formas verbais imperativas representam contextos implementadores de formas relacionadas a você. Ao contrário do pronome possessivo, pronome complemento não preposicionado (te) e as formas verbais não imperativas que se mostram como contextos de resistência ao tu. A autora considera que o fato de o você ter advindo de uma forma nominal (vossa mercê), mas referir à segunda pessoa do discurso, impulsionou novos arranjos no sistema pronominal. Novas possibilidades combinatórias de você com te~lhe, você com teu~seu, tua~sua é um sinal de pronominalização de você no PB. Observa-se no você um caráter híbrido concernente à especificação semântico – discursivo, visto que faz referência à segunda pessoa do discurso (traços de propriedade pronominal) no entanto, estabelece concordância com a terceira pessoa gramatical (manutenção do traço original). Um outro arranjo no quadro pronominal ocasionado pela inserção do você foi a passagem do pronome possessivo seu que era de terceira pessoa para o paradigma de segunda pessoa. Essa migração levou a forma dele (de + ele) a se constituir como um possessivo de terceira pessoa a fim de evitar a ambiguidade do possessivo, pois o pronome seu pode identificar tanto a segunda como a terceira pessoa do discurso, desta forma, concorrendo com os pronomes teu/tua. A pesquisadora verifica, a partir da análise, que a famosa “mistura de tratamento”, resistida pelas gramáticas já é evidente nas cartas pessoais da família Pedreira Ferraz- Magalhães, as formas de tu mostram-se preferencialmente combinadas com a segunda pessoa forma, com índices de 90% dos dados. Todavia, as formas de segunda pessoa aparecem, mesmo que timidamente, combinadas com a terceira pessoa formal, em 20% dos dados - em cartas de fins do século XIX e início do XX. Ainda, referente à mistura de tratamento, a pesquisadora encontra um dado interessante de autocorreção. O missivista- Pe. Jerônimo Pedreira ao escrever para seu irmão Fernando emprega uma forma verbal imperativa de tu precedida de você: (1) [...] agradecendo tudo que fez por você, (...) Sêja bem grato [...]. (carta de Jerônimo Pedreira ao irmão Fernando) (RUMEU, 2008, p. 129) O missivista hesita entre as formas verbais imperativas de você ‘ Seja bem grato (...)’ e de tu ‘Sê bem grato (...)’ embalado nessa hesitação, ele chega a rasurar a sua carta, optando pela forma de segunda pessoa tu, o que mostra a mescla de tratamento e a provável integração da forma você no sistema pronominal do PB. Concernente à produtividade das formas tu/você em relação aos subtipos de pronomes/ formas verbais nas cartas em análise os resultados obtidos evidenciam que os ambientes em que o tu oferece resistência são: as formas verbais não imperativas (sujeito não-preenchido), os pronomes oblíquos sem preposição (te) e os pronomes possessivos (teu/tua), corroborando com os estudos de Lopes (2007) e Marcotulio et al. (2007). Lopes et all (2009) usam um córpus composto por 18 cartas, escritas a Rui Barbosa, no período de 1866 a 1899. Os pesquisadores buscavam identificar as origens da variação entre você e tu, além de averiguar se houve a criação de um paradigma pronominal supletivo no PB. A fim de analisar a presença ou não de mistura de tratamento, os autores apresentam um panorama geral das formas de tratamento aplicadas em diferentes categorias gramaticais. Lopes et all (2009) defendem a hipótese de que o pronome você, no processo de mudança nome > pronome, não desprendeu de maneira completa e imediatamente dos seus traços originais da categoria nominal e tão pouco assumiu de modo definitivo as propriedades de pronome. Nas cartas a Rui Barbosa, os pesquisadores consideram as seguintes formas – 1) como realização de 2ª pessoa do singular: tu (sujeito), te (objeto direto), contigo (complemento), teu/tua (pronomes possessivos) e as desinências verbais de segunda pessoa do singular no imperativo ou não; 2) e o você e variantes rotulados como 3ª pessoa gramatical: você (pronome pessoal sujeito), você, lhe, o (objeto), com você (complemento), seu/sua (pronome possessivo) e as desinências verbais correspondentes imperativas ou não. Na análise, foram identificados 322 dados, 69 (21%) de você e variantes e 253(79%) de tu e variantes, dois grupos de fatores foram controlados, são eles: o que controlava as formas precedentes na carta (sequência discursiva) e o grupo categoria gramatical/ função sintática. O emprego do você mostrou-se mais produtivo, com 87 ocorrências (55%), quando realizado na função de 3ª pessoa formal precedido de outra forma de 3ª pessoa. O mesmo foi observado com o pronome tu, com 85% das ocorrências. Lopes et all (2009) concluem que os contextos mais frequentes para a realização do você, na amostra analisada, são: pronome-sujeito (84%, com peso relativo- PR, doravante- PR.97); imperativo (69%, PR.92) e pronome complemento preposicionado (16%, PR.60). Sumarizando, os autores, acreditam que os resultados encontrados nas cartas a Rui Barbosa - parecem indicar vestígios de reestruturação do sistema pronominal do PB. Vale destacar as missivas escritas por Carlos Nunes Aguiar (cartas com maior índice de realização da forma pronominal você), nelas os pesquisadores observaram a variação tu e você na posição de sujeito. Quanto ao preenchimento do sujeito o tu íntimo como sujeito nulo foi a preferência do remetente e o você como pronome sujeito pleno se deu na indicação do discurso indireto em que o falante se reporta ao discurso do outrem. Assim como o estudo de Lopes e Machado (2005), os autores reforçam que reflexos da variação tu e você são identificados, no século XIX, mesmo que de forma tímida. Contudo, a forma você ainda mantém traços formais e discursivos que remetem a uma maior formalidade e distanciamento em relação ao tu íntimo, que não se perderá completamente no século XX. 2. O ensino de gramática e o papel da escola Por muito tempo, o ensino de língua portuguesa foi entendido como o ensino da norma culta ou da gramática normativa. Pessoas letradas eram aquelas que dominavam essa gramática com precisão e tentavam traduzi-la fielmente na fala. Esse mito do “bem falar” parece ter sido historicamente o fomento da “boa” comunicação e expressão. Até então, as ocorrências de variações nos usos da língua eram encaradas como erros cometidos por pessoas iletradas que não tiveram acesso ao ensino escolar. Faz parte da formação de qualquer indivíduo que ingressa no letramento escolar estudar a sua língua materna. Mas o que isso significa? Entender o ensino de língua portuguesa como ensino de língua materna é, basicamente, desconsiderar que o aluno/falante, ao chegar à escola, já traz consigo um domínio gramatical da estrutura de sua língua, por isso constrói enunciados gramaticalmente aceitos e interage socialmente por meio da linguagem verbal, ou seja, é competente linguisticamente (Cf. BORTONIRICARDO, 2009). Isso implica dizer que a interação que antes era estabelecida mais no plano da oralidade, passará a ocorrer também por meio da língua escrita, com a aprendizagem do código escrito pelo aluno/falante. Logo, entender o ensino de língua materna nessa perspectiva é reconhecer que não faz sentido estudar o que já sabemos, mas sim procurar aprender o novo refletindo sobre os conhecimentos já adquiridos, buscando aperfeiçoar cada vez mais a capacidade de utilização da linguagem verbal, em um processo contínuo de apropriação de novos saberes, a partir dos usos autênticos da linguagem em contextos reais de interação. A respeito da variação e ensino, avoquemos a essa discussão a presença dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), importa-nos lembrar que, nesse documento, faz menção a variação das línguas, quando diz: A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em ‘Língua Portuguesa’ está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. [...](BRASIL, 1998, p.29) Percebemos, nessa passagem, uma clara definição pela natureza reflexiva que o ensino de língua reivindica na perspectiva assumida pelos Parâmetros. Com relação à variação no evento comunicativo de letramento em sala de aula e a postura do professor, Bortoni-Ricardo (2004, p.37) aponta que “É no momento em que o aluno usa flagrantemente uma regra não-padrão e o professor intervém, fornecendo a variantepadrão, que as duas variantes se justapõem em sala de aula”. Neste ponto pode residir a dúvida dos professores sobre como agir. Mas recentes estudos linguísticos defendem que não se pode considerar um erro o uso do dialeto não-padrão por parte do aluno, considerando o suposto “erro” apenas uma diferença entre duas variantes. Bortoni-Ricardo (2004, p.42, grifos da autora) apresenta dois componentes importantes que devem estar presentes nas estratégias dos professores: “a identificação da diferença e a conscientização da diferença”. Identificar as diferenças nos usos linguísticos dos alunos é uma tarefa que exige muita atenção. É preciso criar momentos em sala de aula nos quais os alunos possam se expressar livremente, como em aulas de interpretação textual, por exemplo, nas quais eles poderão debater oralmente com o professor e este poderá identificar possíveis variações linguísticas. No entanto, segundo afirma Bortoni-Ricardo, muitas vezes a identificação fica prejudicada por conta da falta de conhecimento dos professores de determinadas regras ou até mesmo porque o docente tem internalizada em seu repertório aquela variação e, por isso, não perceber o desvio do aluno. Segundo a autora esses casos são “invisíveis” aos professores. Quanto à conscientização exige-se ainda mais cuidado. Nesse caso, o objetivo é alertar o aluno quanto às diferenças entre os dialetos, indicando ainda em que condições cada um deles pode ser usado, para que o aluno possa aperfeiçoar sua competência comunicativa. Todavia é necessário ter cuidado com a forma de abordar essa questão com o aluno. Bortoni-Ricardo alerta também para os possíveis prejuízos com interrupções inoportunas: “Às vezes, será preferível adiar uma intervenção para que uma ideia não se fragmente, ou um raciocínio não se interrompa”. (2009, p.42). A autora lembra ainda da importância de respeitar “as características culturais e psicológicas do aluno”; uma intervenção inadequada pode gerar insegurança no aluno e reprimir seu desenvolvimento cognitivo. CONCLUSÕES Desta forma, não podemos pensar que os livros didáticos são escritos para alunos “ideais”, isolados das interferências contextuais do seu cotidiano3. Pois, em sala de aula o professor se depara com alunos “reais” que apresentam comportamento condizente com sua bagagem sócio-cultural. Cabe ao professor recorrer às contribuições da sociolinguística, uma vez que, por meio delas, o professor pode iniciar seu trabalho a partir dos usos de seus alunos, incorporando e valorizando essa expressão em suas aulas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECHARA, Evanildo. Gramática Escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em Língua Materna: a sociolingüística em sala de aula. 6ª Ed.São Paulo: Parábola Editorial, 2004 BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998 CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. COELHO, I. L.; GÖRSKI, E. M. A variação no uso dos pronomes tu e você em Santa Catarina. In: LOPES, C.; REBOLLO, L. (orgs.) Formas de tratamento em Português e Espanhol: variação, mudança e funções conversacionais. Rio de Janeiro (no prelo). 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