Patrícia de Moraes R. Nascimento O caso de Marina. Quando uma mulher teme deixar de ser menina O presente artigo pretende refletir o curso de um processo psicoterápico e as dificuldades e conquistas existentes numa clínica-escola onde uma paciente com sintomas histéricos é atendida, considerando as percepções de uma aluna estagiária do 5o ano de Psicologia e o desenvolvimento do caso clínico. > Palavras-chave: Histeria, imaturidade, relacionamento, espírito pulsional > revista de psicanálise > número especial, maio de 2005 artigos > p. 66-70 This paper presents the psycotherapic process as well as the difficulties and successes faced at a school-clinic in the treatment of a patient suffering from hysteria. The approach was done according to the insights of a 5th-year-student who followed-up the clinical case. > Key words: Hysteria, immaturity, relationship, spirit >66 Mandacaru quando fulorá na seca É um sinal que a chuva chega no sertão Toda menina que enjoa da boneca É sinal de que o amor já chegou no coração Meia comprida Não quer mais sapato baixo Vestido bem cintado Não quer mais vestir gibão Ela só quer Só pensa em namorar Ela só quer Só pensa em namorar De manhã cedo 1> Músico e repentista brasileiro. Já está pintada Só vive suspirando Sonhando acordada O pai leva ao doutor A filha adoentada Não come nem estuda Não dorme nem quer nada Mas o doutor nem examina Chamando o pai de lado Lhe diz logo em surdina Que o mal é da idade E que pra tal menina Não há um só remédio em toda medicina (Luiz Gonzaga,1 Xote das meninas) A compreensão da histeria e do seu tratamento no “setting terapêutico” é complexa e difícil, principalmente quando se trata de uma aluna-estagiária e de uma paciente com esse diagnóstico. As dúvidas e a insegurança são elementos constantes, todavia o desejo de acolher o paciente torna as dificuldades coadjuvantes. O objetivo deste artigo é compreender os sintomas histéricos de uma paciente com aparência imatura e infantil, que possui um discurso intrigante e, ao mesmo tem- Marina – Mulher que teme deixar de ser menina A primeira impressão que tenho ao olhar para ela é que se trata de uma menina indefesa, triste e cheia de dúvidas, sem saber o que fazer com suas constantes sensações de sufocamento, as quais entendo como crises de angústia. Marina, 21 anos, chegou ao consultório trazendo a queixa de fortes dores no peito, de que o seu coração está sendo pressionado e de que iria parar de bater. Os sintomas iniciam-se com falta de ar e, aos poucos, ela passa a sentir um “nó” na garganta, como se ficasse “tampada”, impedindo-a de respirar. Logo após, menciona que o seu coração fica pressionado. Marina relata que seu desespero permite que essas sensações sejam ainda piores. Todavia, em nenhum momento associa os seus sintomas corpóreos a situações da sua vida. ... constrição na garganta, latejamento nas têmporas, zumbido nos ouvidos, ou partes desse complexo de sensações. Essas sensações-aura, como são chamadas, também surgem, nos pacientes histéricos, como sintomas isolados, ou representam em si mesmas um ataque. (Freud, 1888) Percebo que na fala da paciente existe uma distinção entre vontade própria e “vontade dos seus órgãos”, isto é, para cada manifestação de sintoma no seu corpo, a sua atitude para remissão é diferenciada, “me faltou o ar, não conseguia respirar, meu pai me deu própolis para abrir os pulmões, mas não adiantou fui para o hospital onde fiz inala- artigos ... uma dor histérica é descrita pelos pacientes como extremamente dolorosa; uma anestesia e uma paralisia podem com facilidade tornar-se absolutas; uma contratura histérica causa a maior retração de que um músculo é capaz. (Freud, 1888) po, encantador, do ponto de vista terapêutico, aos olhos de uma aluna de Psicologia do 5o ano. pulsional > revista de psicanálise > número especial, maio de 2005 Introdução A histeria pode ser considerada um capítulo à parte na psicanálise dada a sua importância e discussão no decorrer das décadas. O indivíduo histérico foi considerado maldito por povos antigos, sendo exorcizado e lançado em fogueiras (Freud, 1900). Após estudos realizados por Charcot, a compreensão da doença tornou-se mais adequada, considerando a situação do paciente e não diagnosticando-0 como louco ou perturbado. A histeria é uma neurose baseada em modificações fisiológicas do sistema nervoso, e conhecer sua sintomatologia é importante para um diagnóstico preciso. Dentre os sintomas podem ocorrer ataques compulsivos, paralisias, distúrbios da atividade sensorial e contraturas. As manifestações histéricas são normalmente descrita pelos pacientes como exageradas e insuportáveis. >67 artigos pulsional > revista de psicanálise > número especial, maio de 2005 >68 ção” (sic). Em outras situações afirma que, durante uma crise de falta de ar, procura sentar-se com a postura correta para “esticar” os pulmões, assim a respiração encontra mais espaço para circular, ou “escolhe” entre falar e respirar, pois dessa forma não se sentiria cansada e sufocada. Marina fala também por meio dos seus desenhos. Nos seus traços e formas, percebo a sua fragilidade, insegurança e, em alguns momentos, imaturidade. Em nosso terceiro encontro, ela trouxe uma pasta que continha todos os seus trabalhos desde a infância, produções simples como casinhas, pipas e árvores, até que passou a reproduzir pessoas, figuras e objetos, em especial flores e personagens de ficção infantil, como Harry Potter. Ela conta que desenhar é um de seus maiores prazeres; dessa forma sente-se tranqüila, podendo se concentrar e esquecer seus problemas. Este hábito a acompanha desde criança. Relata que costumava desenhar quando se sentia triste. A história de Marina foi cercada de momentos difíceis no seu relacionamento familiar, levando-a a se isolar. Seus pais se separaram quando tinha 14 anos. A forma como o fato se deu foi dolorosa, pois o pai sempre mencionava que tinha uma amante. Todavia, dessa vez, ele acabara de ter uma filha com outra mulher, obrigando Marina a visitar o bebê no hospital, recomendando que tratasse bem a sua mulher e a criança. Logo após, a sua mãe fez o pedido de divórcio. Ao relatar esses fatos, demonstra estranheza, como se a sua história fosse tão absurda que necessitasse r elatar como algo distante, um filme, em que o personagem não seria ela. A relação de Marina com o pai aparece nas suas palavras como superficial e obrigatória, limitando-se a visitas quinzenais e a raras ligações durante a semana. Todavia, o pai é citado em vários momentos durante a terapia, seja contando um relato de passeio no shopping, seja numa discussão com a mãe ou os irmãos, o pai aparece como aquele que opina ou reprime, nunca como quem oferece atenção e apoio, o que remete à idéia de ser muito ligada emocionalmente a ele. Marina conta que passou a viver melhor depois da separação dos pais. Antes, o sistema familiar era rígido, por causa da formação alemã paterna. Todas as atividades eram realizadas de acordo com horários predeterminados. Não podia, por exemplo, ficar de pijama em casa, “ao acordar era preciso vestir-se e colocar sapato como se fosse passear” (sic). Relata também que não ficava à vontade na própria casa quando o pai ali residia. Depois da saída dele, a rotina da mãe e dos irmãos mudou; era permitido ficar de pijama em casa, almoçar na hora que tivesse fome, e não com hora marcada. Nesse relato, percebo que o papel do pai era inserir Marina na civilização, ajudá-la a perceber que crescer não era uma opção e sim uma necessidade. Todavia, ela não desejava isso. Pelo contrário, preferia continuar sendo menina; afinal, meninas não têm horários nem responsabilidades; crescer implica mudanças. As sessões com Marina trouxeram várias características da sua personalidade que me levaram a perceber algumas ausências no seu discurso no que diz respeito à sua vida sentimental. A psicoterapia é realizada semanalmente desde maio de 2004 e, nesse Percebo que Marina suspendeu possíveis relacionamentos amorosos, como se não houvesse lugar para um homem (que não fosse o pai) em sua vida. Várias são as desculpas: falta de tempo, estudo excessivo, a imaturidade dos rapazes e até mesmo o fato de o pai ter traído a mãe no passado. Marina demonstra profunda preocupação em não ser “enganada” por algum homem, como fora a sua mãe, tornando mais difíceis os seus relacionamentos. ... acha-se a suspeita de que essa fase de ligação com a mãe está especialmente relacionada à etiologia da histeria, o que não é de surpreender quando refletimos que tanto a fase quanto a neurose são caracteristicamente femininas, e, ademais, que nessa dependência da mãe encontramos o germe da paranóia posterior nas mulheres, pois esse germe parece ser o surpreendente, embora regular, temor de ser morta (devorada?) pela mãe. (Freud, 1931) A mãe é descrita por Marina como uma boa mulher enganada pelo esposo. Todavia, existiam fatos no seu relato que me intrigavam. A mãe de Marina era sempre a pessoa a quem ela buscava para receber conselhos, mas não parecia uma figura forte em quem a paciente se sustentava, mas sim a cuidadora. “Todas as noites minha mãe vai até meu quarto para me cobrir, acho que é normal, né? Toda mãe vê o filho como um bebê, eu não ligo” (sic). Em todo o processo psicoterápico, Marina trouxe uma intensa carga de imaturidade às sessões, seja na fala, nos desenhos ou em seu comportamento. Vários foram os momentos em que eu parecia diante de uma menina de 14 anos, indefesa e sem experiência alguma de vida. Acredito que a mãe contribuiu grandemente para esse fato. Percebo no discurso de Marina que a mãe fazia questão de “fazer a manutenção” desse comportamento com a filha, cobrindo-a à noite, incentivando comportamentos infantis e se fazendo presente em diversos momentos da vida de Marina. artigos > Que existe uma relação entre a inibição e a ansiedade é algo evidente. Algumas inibições obviamente representam o abandono de uma função porque sua prática produziria ansiedade. Muitas mulheres manifestamente temem a função sexual. Classificamos essa ansiedade sob a histeria, do mesmo modo como fazemos em relação ao sintoma defensivo da repulsa que, surgindo originalmente como uma reação preterida à experiência de um ato sexual passivo, aparece depois, sempre que a idéia de tal ato é apresentada. Além disso, muitos atos obsessivos vêm a ser medidas de precaução e de segurança contra experiências sexuais, sendo assim de natureza fóbica. (Freud, 1926[1925]) A mãe: manutenção da imaturidade pulsional > revista de psicanálise > número especial, maio de 2005 tempo, raras vezes Marina falou de relacionamentos amorosos. Quando o assunto era abordado afirmava: “Os meninos de minha idade são moleques, vou começar fazer novas amizades em meu novo serviço” (sic). Sua intimidade parecia inexistente, resumia-se a curtos namoros ou a estar com um rapaz por uma noite em festas ou boates. Também não teve experiência sexual. Quando questionada, afirma que se apaixonou apenas quando menina na escola e nunca mais. >69 pulsional > revista de psicanálise > número especial, maio de 2005 artigos Consciência ou espíritos? As crenças de Marina estiveram sempre presentes nos nossos encontros. Marina é “espírita” e freqüenta reuniões com os familiares. Conta que costuma desenhar, todavia afirma que esses desenhos são solicitados por crianças já falecidas. Diz que não as vê, apenas sente como deve fazer os traços. Numa sessão, trouxe os seus trabalhos para eu conhecer. Percebi que uma das suas produções lembrava a própria Marina: uma menina pequena, ruiva, com aparência assustada, e de mãos dadas com a mãe. Marina afirmou que essa associação com ela era impossível, pois o desenho fora solicitado por uma menina que não conhecia. A paciente conta que era “perseguida” por espíritos desde a infância: “Via as coisas, mas ninguém acreditava, até que um dia minha tia disse que eu precisava trabalhar isto, era um dom” (sic). Marina freqüenta reuniões dessa religião desde aquela época. Os seus pais e demais familiares possuem a mesma crença. >70 Voltando ao começo Até a conclusão deste artigo, Marina foi atendida em vinte sessões. Restam três a serem realizadas. Nesse processo, os seus sintomas de pressão no peito e de falta de ar foram se dissolvendo e dando lugar a desejos, conflitos e relacionamentos familiares mal resolvidos. A psicoterapia realizada com Marina me fez perceber a dificuldade de ouvir o paciente e de compreender a sua fala, associando-a aos seus sintomas corpóreos, principalmente em um caso de histeria. Todavia, testifica que o corpo fala. Dores não devem ser sim- plesmente medicadas, mas estudadas e compreendidas. No decorrer da psicoterapia, a evolução da paciente e o vínculo estabelecido me motivaram a acreditar em minhas percepções pessoais, a arriscar intervenções que davam certo. Foi extremamente gratificante todo o processo psicoterápico. Marina foi a primeira paciente que acompanhei, sozinha no setting, durante o ano letivo, sempre com o importante apoio da supervisora e de meus colegas, é claro. Referências BOLLAS, C. Hysteria. São Paulo: Escuta, 2000. FREUD, S. (1888). Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1967. v. I. _____ (1926[1925]). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1967. v. XX. _____ (1931). Sexualidade feminina. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1967. v. XXI. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. (1967). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1970. Artigo recebido em dezembro de 2004 Aprovado para publicação em março de 2005