A metapsicologia do ato em sujeitos que realizam o ato de cortar-se Autora: Viviana Senra Venosa (IP USP, Proata/Unifesp-EPM, Aspirante a Membro do de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae) Coautor: Nelson da Silva Jr. (IP USP, Membro do de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae) Pretendemos apresentar formulações iniciais sobre a metapsicologia do ato, a partir de vinhetas clínicas relacionadas a sujeitos que realizam ou realizaram, em algum momento de sua vida, o ato de cortar deliberamente seus corpos, infligindo escarificações, com o uso de objetos pontiagudos ou com lâminas. Não à toa optamos por utilizar aqui o termo “ato” conjugado à esta realização, no corpo, do corte. A intensão é evitar um possível juízo, implicado em denominações como “mutilação” ou “automutilação”, que denotam da perda parcial ou total de parte do corpo. Antes de prosseguirmos, porém, vale dizer que as indagações desta pesquisa estão em andamento, portanto, mais questões que respostas serão levantadas neste trabalho. Também acrescentamos que estas indagações metapsicológicas surgiram a partir dos atendimentos à pacientes diagnosticados com transtornos alimentar, atendimentos estes que foram efetuados no contexto de uma instituição de tratamento para tal. Assim, propomos aqui recuar alguns passos, e levantar questões sobre o modo de funcionamento bulímico. Cássia cumpria sua proposta de jejum religiosamente, durante todo o prosseguir do dia. Ao cair a noite, a moça chegava a casa e “caia de boca” em panelas de feijão e arroz gelados, macarrão, copos de leite com achocolatado, pacotes de salgadinho e tudo o mais que ela pudesse encontrar em sua geladeira e despensa. Logo após, arrependida e sob a tirania do mandato superegóico: “assim você vai engordar!”, ou bem ela iniciava uma longa série de vômitos ou tomava uma quantidade tão substancial de laxantes quando o que havia ingerido em comida. Nas sessões, ela chamava estes episódios de “recaídas”. Cássia não se cortava. Mas carregava no corpo esse impulso ao agir. A bulimia – literalmente fome de boi – caracteriza-se pela enorme ingestão de alimentos num curto período de tempo – o chamado episódio de compulsão alimentar –, seguido de um comportamento compensatório, seja por provocação de vômitos, uso de laxantes ou prática extenuante de exercícios físicos. Sobre, este funcionamento das patologias da alimentação autores como Brusset (2003), Fernandes (2006) e Bidaud (2010), propõe que o ato bulímico pode ser pensado como um ato impulsivo, pois não é vivido como completamente absurdo pelos sujeitos. Neste sentido, estaria fora da fantasmática contida no ritual obsessivo-compulsivo. Isto é, trata-se de um ato que incide “positivamente” no corpo, mais como um escoamento da angústia, um impulso ao agir, fora de qualquer controle. Segundo Fernandes (2006): Portanto, (...) o termo impulsão parece mais apropriado para caracterizar o comportamento alimentar das jovens bulímicas, por referir-se prioritariamente às ações e não necessariamente aos pensamentos, como ocorre na neurose obsessiva. (...) A compulsão à repetição manifesta-se, então, no nível concreto da repetição de ações circulares da ordem do ingerir e expulsar. (p. 73). Cássia sente-se impulsionada a comer de um tudo, até que seu estômago, a partir do real do corpo, a impulsiona a vomitar e, como se não bastasse, ela ainda recorre aos laxantes e passa as noites com cólicas a evacuar no banheiro. O mandato superegóico opera, portanto, como uma faca de dois gumes: “ah! sim: você VAI engordar” – e ela se deixava cair de boca na comida, e “assim você VAI engordar”, vivido como uma censura, para a qual ela pagava com a obediência de penar em castigos via dos vômitos e laxantes. Dois tons e muitas medidas aumentadas, Cássia conta que se sente como um drogado em fissura pelo objeto tóxico: não tem escapatória. Presas neste imperativo do gozo, estas pacientes que sofrem de bulima relatam, em sua maioria, viver uma espécie de transe hipnótico, de torpor que desliza num vai-evem entre liberação absoluta e submissão total. Entre encher e esvaziar, são sujeitos perdidos que sofrem num destino empobrecido. Brusset (2003) comenta: “a bulimia se torna um tipo de exutório automático, um meio de descarga, das excitações de níveis e de natureza muito diferentes, um tipo de via final comum não específica”. A etimologia da palavra exutório, segundo o Houaiss, vem do radical exutum, que significa: desvencilhar-se; desapossar, esbulhar; acabar com, expelir, jogar fora. Nota-se, então, que algo da desordem do movimento está em jogo nestes casos. Sendo, portanto, da dimensão do agir que se trata. Um agir “positivo”, em contraposição ao agir “em negativo”, da anoréxica, sobretudo se nós lembramos de que se trata de um “comer nada”. Pensemos como se fosse o negativo de uma fotografia, no qual as luzes se apresentam mais escurecidas que os tons que virão a colorir a foto impressa. No funcionamento bulímico, em especial no ciclo: comer compulsivamente e purgar, um carnaval – carne vale – tétrico a_tinge impulsivamente estes sujeitos. É em 1914, em seu texto “Recordar, Repetir, Elaborar”, que Freud utiliza o verbo alemão agierem, a fim de designar a manifestação em ato das fantasias e desejos inconscientes. Segundo Laplanche & Pontalis e Roudinesco & Plon, o termo agieren não é de uso comum na língua alemã. Ainda mais: o termo é quase sempre acoplado com erinnern (recordar), sendo que ambos designam formas opostas de fazer retornar o passado. Assim, cunha-se o conceito mais popularmente conhecido em psicanálise como acting-out, no qual o sujeito põe em ato o recalcado. Neste sentido, também podemos lembrar-nos dos sonhos, via régia para o acesso ao Inconsciente, o estudos dos sonhos é paradigmático do funcionamento psíquico, se não o, um dos pilares inaugurais do campo de investigação da psicanálise. No adormecer e permitir o trabalho envolvido na formação de sonhos, a motilidade do sujeito fica reduzida, permitindo a trajetória em direção à memória e se utilizando da figurabilidade, condensação, deslocamento e elaboração secundária para realizar-se no plano psíquico. Já no acting-out, o sujeito mostra, põe em cena algo do recalcado. O que mostra é também velado, como no sonho, mas, diferentemente, há um uso do corpo em ato para sua “mostração”. Em nossa prática clínica, notamos que um número não ínfimo de pacientes com funcionamento bulímico, para aquém do ciclo: jejum, compulsão, vômitos e ou purgações, também realizavam cortes em seus corpos. Quando, somado à bulimia, há o ato de cortar-se, a tintura encarna em rubro-sangue. Marina fora internada com baixíssimo peso. Marina, menina franzina, de pouca fala e voz suave e fraca, fazia longos jejuns prolongados e, mesmo comendo pouco, vomitava. Queria vomitar tudo o que comia, insistentemente. Marina, menina franzina, cortava seus braços finos, fosse para não comer, fosse após ter julgado comer em demasia e provocado vômitos. Sua vida foi reduzindo-se como seu peso. Limitando-se a evitar a próxima refeição, e a próxima e a próxima. De poucos amigos na escola, passava horas na internet a visitar sites e blogs pró-anorexia e pró-bulimia. Aproximava lâminas de seus braços e cortava nas linhas dos pulsos. Com o tempo, riscos em cicatrizes formavam pautas tortas em seus braços finos. Ela contava que a dor era um alívio: via o sangue sair e sentia-se viva. Pagava, pela sua viva, com o peso de seu corpo-carne. Marina, pobre menina, tinha uma coleção de objetos cortantes: ela os apanhava no chão, na sarjeta, onde encontrasse, e os guardava depois de precária limpeza. Quando era acometida pelo impulso de cortar-se e, por acaso, não tinha nenhum dos instrumentos da sua coleção em mãos, Marina usava o que quer que fosse: a ponta da tampa de uma caneta, a lâmina formada pelo fio de uma folha sulfite, um caco de plástico de garrafa pet. “Que vidros cravam minha língua presa!” – é uma das falas do personagem Leonardo na obra de Garcia Lorca, Bodas de Sangre. A língua de Natália não desenrolava em fala, mas encontrava-se presa ao curto-circuito dos cortes em sua peleinvólucro, alienando-a, desligando-a das motivações de um ideal de eu. Crivada no eu ideal de uma medida exata, sua via esvaia-se por um fio de sangue. Um dia, a pequena Marina resolve fazer uma tatuagem. Procura um estúdio e tatua, em seus tornozelos, respectivamente: ANA e MIA – os nomes de suas melhores “amigas”. É neste momento que seus pais notam seu chamado e que inicia um tratamento. Dos cortes à tatuagem, ambos têm apelo ao olhar do Outro. Ambos convocam. Mas Marina, ao falar de ambos, os difere: “Os cortes são mais um alívio, já as tatuagens significam, para mim, uma força. Eu olho para elas quando me sinto fraca para prosseguir.”. Sobre as diferenças entre cortes e tatuagens, o antropólogo LeBreton (2010), diz que as tatuagens são mais uma maneira de apropriar-se do corpo, pela via estética e lúdica. Já os cortes teriam a ver com uma tentativa de controle da enorme angústia. A dor para escapar de outra dor. Uma dor de inadequação, comum em maior ou menor grau na adolescência, que se precipita no corpo em mutação. Mut-ação. A ação muda de Marina parecia conter o paradoxo de um apelo, inscrito nas fronteiras de sua pele. Mas é apenas quando ela faz uso mais deliberado de uma escrita literal, com a tatuagem, que ela é vista e pode, finalmente, ser escutada. Neste sentido, talvez ambos os atos possam ser compreendidos como acting-out, um agir fora da transferência, que possui o Outro como destinatário do significante sua mensagem velada. No trabalho apresentado por estes autores, na mesa-redonda de ontem, contamos um caso clínico de uma paciente bulímica que se cortava. Estes agires pareciam ter relação com os movimentos intermitentes de sua mãe, que a abandonara muito pequena e, depois, vinha e voltava à sua cidade de origem, sem garantir-lhe a segurança de uma presença. Num momento especificamente delicado do decorrer de sua análise, duas sessões antes de um período do qual se seguiria longas férias da analista, um ato é realizado. Explico: a paciente possuía agendas e cadernos que utilizava como diários, nos quais, no início da análise, ela escrevia exaustivos relatórios de calorias ingeridas e medidas de seu corpo. Posteriormente, conforme o curso de sua análise, ela passara a escrever narrativas mais subjetivas. Quando, por fim, na sessão referida, ela estende seu diário à analista, indagando o que faria com ISSO, a analista toma gentilmente o diário, espalma sua própria mão em uma das folhas em branco e oferece uma caneta a paciente. A paciente circunda a mão da analista, desenhando o contorno na página. O risco, um risco. No retorno das férias, a paciente vem à análise e mostra a mesma página, porém, com o contorno de sua própria mão desenhado por cima da outra, e a página toda rabiscada em lápis de cor vermelho. Ao passo que exclama: “Eu não me cortei!”. Segundo Cassin (2010), o ato analítico comporta essa dimensão subjetiva do próprio analista. É sempre um risco que marca uma passagem. Só pode ser realizado em transferência e é na transferência que algo se inaugura a partir do ato analítico. Realocando o lugar do Sujeito Suposto Saber. O analista sabe sobre o desejo, porém, o que o desejo deseja, é o caminho-questão que o sujeito deve enfrentar. Michele feria-se inúmeras vezes, a ponto de ser internada por infecções decorrentes dos cortes que provocava em seu próprio corpo. Num dos episódios, ao ultrapassar epiderme e derme e alcançara camada de gordura, é invadida pelo ato de retirar a gordura vista nua e crua, a fim de extirpá-la. Um dia, muito angustiada e prestes a se cortar, Michele entra numa tattoo shop qualquer e pede ao tatuador que faça qualquer desenho, em qualquer lugar de seu corpo. Pouco importava. Passa a recorrer também às tatuagens no enrolar de sua trama psíquica. Na psicanálise lacaniana, o conceito de “passagem ao ato” vem propor uma diferenciação neste campo metapsicológico. Este último estaria mais relacionado com um ato não simbolizável, uma espécie de queda no vazio: laisser tomber. Talvez, no caso de Michele, um deixa-se cair nas mãos do tatuador possa ser lido como uma passagem ao ato. As tatuagens não traduziam nada. Desenhos esvaziados, sem destino. Uma queda radical no vazio de sua alma. O que se inaugura, em Michele, a partir da primeira tatuagem, é a vontade de ser enfermeira, pois ela não teria dó de furar as pessoas com agulhas. Mas diz que suas amigas achavam que, como ela gostava muito de moda, devia fazer corte e costura. Agulhas, corte e costura, significantes numa mesma cadeia inaugurada. Ora, muito ainda precisamos avançar em relação a estas questões. No entanto, Fernandes (2006), em seu livro Transtornos Alimentares, adverte para o fato de que o manejo transferencial nestes casos exige extrema delicadeza e criatividade. Sendo assim, mesmo que as questões metapsicológicas ainda pairem no ar, neste trabalho, talvez seja preciso sustentá-las sob o frágil pilar do corpo, que põe em movimento, em agito, seja o corpo dos sujeitos mostrado num acting-out, seja o corpo jogado para fora da cena na passagem ao ato, seja o corpo do próprio analista, como sujeito suposto saber, no ato que se configura em transferência.