I M P O RTÂNCIA CLÍNICA DA DETERMINAÇÃO DE ALANINA AMINOTRANSFERASE EM DADORES BENÉVOLOS DE SANGUE SEM MARCADORES DE INFECÇÃO VIRAL Sandra Pires • Aires Figueiredo • Cristina Sousa • A. Pereira Coutinho • Célia Machado • Beatriz Rodrigues Jorge Pereira • Isabel Neves • Ana Maria Mouro • Gracinda de Sousa • António Sousa Guerreiro RESUMO Abstract A elevação ligeira ou moderada da alanina aminotransferase (ALT), em indivíduos assintomáticos e sem evidência clínica de doença hepática, representa um problema clínico frequente. O presente trabalho pretende avaliar o significado da elevação da ALT e a sua importância clínica no rastreio de patologia hepática. The presence of slightly or moderately elevated serum ala nine aminotransferase (ALT) levels in asymptomatic indivi duals showing no clinical evidence of liver disease is a com mon clinical condition. This study aims to evaluate the signi ficance of elevated ALT levels and their clinical importance in screening hepatic pathology. São estudados 111 dadores benévolos de sangue, do Centro Regional de Sangue de Lisboa, enviados à Consulta de Hepatologia por elevação da ALT, tendo sido excluída infecção pelos vírus da hepatite B e hepatite C. Foram identificados como factores de risco de lesão hepatocelular: consumo excessivo de álcool em 70,1% dos dadores; obesidade em 42%; dislipidémia em 33,6%; diabetes mellitus em 0,9% e contacto com substâncias hepatotóxicas em 0,9%. Não foi possível determinar qualquer factor de risco em 11 casos. Em 46,7% dos dadores havia 2 ou mais factores de risco. Foi feito o diagnóstico de hepatite autoimune em três casos e o de miopatia em um caso. Em 10 casos (9,0%) a elevação de ALT foi circunstancial, não se repetindo em determinações posteriores. Em 37 dadores (33,3%) houve normalização da ALT, como resultado de abstinência alcoólica (21 casos), controlo da dislipidémia (8 casos), emagrecimento (7 casos) e suspensão da exposição a substâncias hepatotóxicas (1 caso). The sample investigated comprised 111 blood donors from the Lisbon Regional Blood Centre (CRSL), who although not infected with hepatitis B or C virus, were referred to hepato logical care because of elevated serum ALT levels. With ref erence to these individuals, the following hepatic cell lesion risk factors were identified: excessive alcohol consumption (70.1% of total); obesity (42%); hyperlipemia (33.6%); expo sure to hepatotoxic substances (0.9 %), and diabetes melli tus (0.9%). Whilst it was not possible to determine any risk factor in eleven cases, 46.7% of donors proved to be at risk from two or more factors. Three diagnoses of autoimmune hepatitis were made, as well as one of myopathy. In ten cases (9% of the total), the elevated serum ALT levels were circumstantial and not present in subsequent tests. The ALT levels of thirty-seven donors were normalised as a result of the following measures: abstinence from alcohol (21 cases); control of hyperlipemia (8 cases); weight loss (7 cases) and cessation of exposure to hepatotoxic substances (1 case). Do estudo pode-se concluir que a determinação de ALT, no rastreio de patologia hepática em dadores benévolos de sangue, mostrou ser importante, uma vez que foi possível uma normalização dos valores da ALT em 33,3% dos casos através da educação para a saúde, com correcção de hábitos de vida, alimentares e/ou alcoólicos, prevenindo assim a evolução para doença hepática crónica grave. In conclusion, the measurement of ALT serum levels in blood donors proved to be important in screening hepatic diseases, enabling as it did the normalisation of ALT serum levels in 33.3% of the sample, and thus preventing the development of chronic liver disease by means of health education aimed at correcting eating habits and the consumption of alcohol. INTRODUÇÃO As aminotransferases são enzimas intracelulares que desempenham um papel muito importante na síntese e catabolismo dos aminoácidos. A alanina aminotransferase (ALT) localiza-se predominantemente no tecido hepático, essencialmente no citoplasma do hepatocito, ao contrário da aspartato aminotransferase (AST), que é NÚMERO 1 encontrada no citoplasma e mitocôndrias de uma grande variedade de tecidos e células (coração, músculo esquelético, eritrócitos e leucócitos, rim, cérebro e fígado). A semivida da ALT é de cerca de 47 horas enquanto que a AST tem uma vida média de 17 horas. Dada esta distribuição, a ALT é considerada um indi- MARÇO 2000 27 I M P O RTÂNCIA CLÍNICA DA DETERMINAÇÃO DE ALT EM DADORES SEM MARCADORES DE INFECÇÃO VIRAL cador mais sensível, e específico, de lesão hepatocelular do que a AST, e é muitas vezes utilizada para documentar a incidência de hepatite viral em estudos epidemiológicos.1 A elevação ligeira ou moderada de ALT em indivíduos assintomáticos, detectada em exames laboratoriais de rotina, representa um problema clínico frequente. Esta situação verifica-se sobretudo em dadores voluntários de sangue, a maioria assintomáticos e sem sinais de doença hepática crónica, que são habitualmente submetidos a rastreio com determinação de ALT e serologia para vírus de hepatite B e hepatite C, a fim de reduzir o risco de hepatite pós-transfusional. Uma vez que a prevalência de patologia hepática é reduzida em dadores voluntários de sangue, a maioria destas alterações não se referem a doença hepática avançada.2 A avaliação dos indivíduos assintomáticos com elevação de ALT deve basear-se numa anamnese e exame objectivo cuidados, sendo importante identificar os factores potencialmente implicados na lesão hepatocelular, nomeadamente: hábitos alcoólicos e medicamentosos, exposição a substâncias hepatotóxicas, obesidade, dislipidémia, diabetes mellitus e factores e comportamentos de risco para hepatite viral. É importante ainda investigar a existência de antecedentes familiares de doença hepática. Existem várias doenças metabólicas, endócrinas e autoimunes que podem cursar com elevação persistente de ALT. QUADRO 1: FACTORES INVESTIGADOS NA HISTÓRIA CLÍNICA DOS D ADORES BENÉVOLOS DE S ANGUE ESTUDADOS ANTECEDENTES PESSOAIS HÁBITOS Nutricionais Alcoólicos (quantificados Medicamentosos Transfusões de sangue e derivados Tatauagens/Acupuntura/Body piercing Comportamento sexual de Risco FACTORES EPIDEMIOLÓGICOS PARA DOENÇA HEPÁTICA Consumo de preparados de ervanária ou medicina tradicional Uso de drogas intravenosas Exposição profissional a substâmcias hepatotóxicas Tratamentos dentários ou parentérios prolongados sem material descartável Viagens a países onde a hepatite viral B tem elevada taxa de endemicidade MATERIAL E MÉTODOS Foram estudados 111 dadores benévolos de sangue, enviados pelo Centro Regional de Sangue de Lisboa (CRSL) à Consulta de Hepatologia do Hospital de Pulido Valente, para investigação da elevação da ALT, sendo excluída infecção pelos vírus da hepatite B e hepatite C. Os marcadores virais avaliados pelo CRSL foram AgHBs, AcHBc, e AcVHC. 28 Patologia hepática Cirurgias anteriores Dislipidémia Diabetes mellitus Evolução ponderal Na consulta procedeu-se a uma história clínica cuidada, com exame objectivo completo, dando especial atenção à investigação dos factores associados à doença hepática, que se encontram resumidos no Quadro 1. Quadro 1: Factores investigados na história clínica dos dadores benévolos de sangue estudados Todos os dadores realizaram ecografia hepatobiliopancreática e exames laboratoriais, que incluíram: hemograma, glicémia em jejum, urémia, creatininémia, tempo NÚMERO 1 Patalogia hepática ANTECEDENTES FAMILIARES Diabetes Mellitus Patalogia psiquiátrica de protrombina, electroforese e imunoelectroforese das proteínas séricas, ALT, AST, gamaglutamiltranspeptidase ( GT) e o índice de GT (calculado a partir do valor médio dos valores da razão GT/39, em que 39 é o limite superior do normal da GT), fosfatase alcalina, bilirrubina total, colesterolémia, trigliceridémia, alfa-1antitripsina, ceruloplasmina, siderémia, ferritinémia, capacidade total de fixação do ferro, desidrogenase láctica, creatinoquinase, hormonas tiroideias, anticorpos antinucleares, anticorpos antimúsculo liso e anticorpos antimitocondriais. Pesquisou-se RNA do vírus da hepatite C nos dadores com factores de risco para infecção viral hepática. MARÇO 2000 I M P O RTÂNCIA CLÍNICA DA DETERMINAÇÃO DE ALT EM DADORES SEM MARCADORES DE INFECÇÃO VIRAL Os dadores com: a) Consumo excessivo de álcool : ingestão superior a 80 gramas de etanol diários, nos homens, e a 60 gramas de etanol, nas mulheres; b) Obesidade: índice de massa corporal (peso/altura2) superior a 25, e c) Dislipidémia. casos, ao álcool em 17 e ao álcool e a dislipidémia em 12 (Figura 3); valores elevados de colesterol e/ou triglicéridos foram encontrados isoladamente em 4 casos, encontrando-se associados ao álcool em 13 dadores, a obesidade em 7 e ao álcool e a obesidade em 12 (Figura 4). FIGURA 1: FACTORES DE foram aconselhados a fazer abstinência alcoólica, emagrecimento e dieta hipocalórica e hipolipídica, respectivamente. Naqueles com outros factores de risco, como exposição ou ingestão de substâncias potencialmente hepatotóxicas, foi sugerido o abandono das mesmas. 32 Diabetes Mellitus A ALT apresentava um valor médio de 103,0 ± 42,9 UI/L. Numa primeira análise laboratorial foram diagnosticados 1 caso de miopatia e 3 casos de hepatite autoimune. Dos restantes 107 dadores, em 96 casos (89,7%) foi possível identificar 1 ou mais factores de risco de lesão hepatocelular (Figura 1) e em 11 (10,3%) não existia qualquer factor. Foram detectados como factores de risco de lesão hepatocelular, o consumo excessivo de álcool em 75 casos (70,1%), obesidade em 45 (42,1%), dislipidémia em 36 (33,6%), diabetes mellitus em 1 (0,9%) e exposição a substâncias hepatotóxicas - solventes industriais - em 1 (0,9%). Em 50 dadores (46,7%) existiam 2 ou mais factores associados. Considerando isoladamente cada um destes factores: o consumo excessivo de álcool foi identificado como único factor em 32 dadores e associado a obesidade em 17, a dislipidémia em 13, a obesidade e a dislipidémia em 12 e a diabetes mellitus em 1 (Figura 2); a obesidade foi detectada como único factor em 9 dadores, mas estava associada a dislipidémia em 7 NÚMERO 1 Obesidade 9 12 13 Dos 111dadores estudados com elevação da ALT, e sem marcadores de infecção viral pelos vírus da hepatite B e hepatite C, 106 eram do sexo masculino (95,5%) e 5 do sexo feminino (4,5%); com uma idade média de 38,0 anos (18 - 65 anos). Todos os dadores eram assintomáticos. O exame objectivo foi normal em 58 dadores (52,3%). Nos restantes 53 casos foi observado: obesidade em 45 dadores (40,5%), estigmas de doença hepática crónica em 35 (31,5%), hepatomegália em 24 (21,6%) e hepatoesplenomegália em 2 (1,8%). 17 Álcool 1 EM Substâncias hepatotóxicas 1 Para a análise estatística dos resultados foi utilizado o teste t de Student. RESULTADOS RISCO DE LESÃO HEPATOCELULAR DADORES 7 Dislipidémia 4 N= nº de casos FIGURA 2: CONSUMO EXCESSIVO DE ÁLCOOL BENÉVOLOS DE SANGUE 21 EM DADORES 32 12 13 29 17 Alcool Alcool + Obesidade + Disipidémia Alcool + Obesidade Alcool + Diabetes Mellitus Alcool + Disipidémia Outros Factores N= nº de casos MARÇO 2000 I M P O RTÂNCIA CLÍNICA DA DETERMINAÇÃO DE ALT EM DADORES SEM MARCADORES DE INFECÇÃO VIRAL FIGURA 3: O BESIDADE EM DADORES BENÉVOLOS 9 DE SANGUE 7 O valor médio do índice de GT foi de 2,25 nos dadores com consumo moderado de álcool e de 0,90 nos restantes (p< 0,001). Nos casos em que se verificou normalização dos valores da ALT com a correcção dos factores de risco, o valor médio do índice de GT foi de 1,17, enquanto que nos outros foi de 2,41 (p< 0,002). 17 51 resultado de: abstinência alcoólica (21 casos), controlo da dislipidémia (8 casos), emagrecimento (7 casos) e suspensão da exposição a substâncias hepatotóxicas em ambiente profissional (1 caso). Em 10 casos a elevação da ALT terá sido circunstancial, uma vez que em determinações posteriores o valor da ALT foi sempre normal. 12 Obesidade Obesidade + Alcool + Disipidémia Obesidade + Disipidémia Outros Factores Obesidade + Alcool A ecografia hepatobiliopancreática foi normal em 54 dadores (48,6%). A alteração da ecoestrutura hepática sugestiva de esteatose e a hepatomegalia, foram os achados ecográficos mais frequentemente observados, em 40 (36,0%) e 22 (19,8%) casos, respectivamente. Um dador apresentava esplenomegália ligeira, sem alterações do fluxo ou do calibre da veia porta. N= nº de casos FIGURA 4: DISLIPIDÉMIA EM DADORES BENÉVOLOS DE SANGUE Após a identificação do factor de risco e a sua correcção, os 37 dadores foram novamente enviados ao CRSL, bem como os 10 dadores em que a elevação da ALT foi circunstancial. 4 DISCUSSÃO 7 13 60 12 30 Dislipidémia Dislipidémia + Álcool Dislipidémia + Obesidade Dislipidémia +Obesidade + Álcool Outros Factores N= nº de casos Em 24 dadores existiam factores de risco para infecção viral hepática confirmando-se, contudo, serologia viral negativa: 17 com antecedentes de cirurgia; 3 com transfusões de sangue; 3 com comportamento sexual de risco e 1 com tatuagens. Em 37 casos (33,3%) houve normalização da ALT em NÚMERO 1 Em Portugal, o rastreio dos dadores benévolos de sangue é feito através da determinação dos marcadores serológicos de infecção pelos vírus da hepatite B e da hepatite C (AgHBs, AcHBc e AcHC), associados à determinação da ALT e à serologia para o rastreio de outras doenças transmissíveis (AcHIV1/2, AcHTLV I/II e VDRL).3 Actualmente, discute-se o valor preditivo e o custo-benefício da utilização da determinação da ALT, uma vez que os marcadores serológicos virais são cada vez mais sensíveis, reduzindo o risco de hepatite póstransfusional.4 A detecção da elevação, ligeira ou moderada, da ALT, tem sido interpretada como indicador de lesão hepatocelular e representa um problema clínico frequente, sobretudo quando detectado em indivíduos assintomáticos e sem evidência clínica de doença hepática. Numa primeira abordagem torna-se essencial a confirmação analítica dos valores da ALT. Num estudo realizado por Friedman e col.,2 cerca de um terço dos dadores de sangue tiveram apenas um valor elevado da ALT no seguimento efectuado. Sabe-se que a vida média da ALT é de cerca de 47 horas e que, embora esta exista em MARÇO 2000 I M P O RTÂNCIA CLÍNICA DA DETERMINAÇÃO DE ALT EM DADORES SEM MARCADORES DE INFECÇÃO VIRAL maior quantidade nos hepatocitos, uma pequena porção também é muscular,5 por isso, o esforço físico intenso pode estar provavelmente na origem de elevações ligeiras e transitórias da ALT, como sugere um número de casos em que se fizeram colheitas de sangue pouco tempo após a realização de exercícios físicos.6 Neste estudo, constatamos que a elevação da ALT terá sido circunstancial em 10 dadores, uma vez que mantiveram valores normais nas determinações seguintes. No estudo de indivíduos com elevação persistente da ALT é importante fazer o rastreio de doenças metabólicas, autoimunes e endócrinas, uma vez que numa fase inicial estas doenças podem manifestar-se apenas pela alteração laboratorial, sem qualquer sinal ou sintoma.7,8 Fez-se o diagnóstico de hepatite autoimune em 3 casos e de miopatia em 1 caso. No que respeita à hepatite C é importante realçar a necessidade de excluir infecção viral oculta (sem a presença de anticorpos para o vírus da hepatite C), sendo necessária a pesquisa do RNA do vírus da hepatite C pelo método de PCR.9 Excluída esta última, resta ainda a presença de novos vírus não A-E, como VHG/GBV-C, mas a prevalência da infecção por estes vírus, em indivíduos com elevação da ALT de etiologia desconhecida, parece ser baixa.10 No entanto, são encontrados mais frequentemente em grupos de doentes com factores de risco para hepatite viral, como o uso de drogas endovenosas e em doentes submetidos a hemodiálise.11 Através de uma história clínica e de um exame objectivo cuidados é possível identificar factores de risco potencialmente hepatotóxicos, que podem condicionar a elevação da ALT. A elevação dos valores da ALT por vezes é multifactorial, estando presentes mais de um factores de risco. Verifica-se a presença de dois ou mais factores de risco em 50 casos. No entanto, não foi possível apurar qualquer etiologia em 11 casos. O consumo excessivo de álcool pode provocar lesão hepatocelular por vários mecanismos, quer pela produção de metabolitos tóxicos durante a metabolização do etanol a nível hepático, que provocam agressão da membrana celular, quer através da indução de citoquinas, ou pela alteração da resposta imunitária a proteínas hepatocitárias. Todos estes mecanismos condicionam alterações histológicas, algumas reversíveis, levando ao desenvolvimento de esteatose, processo inflamatório local e necrose com fibrose e regeneração do tecido hepático. A elevação da ALT raramente se correlaciona com a gravidade de lesão hepatocelular em doentes com ingestão de álcool,12 no entanto, a NÚMERO 1 abstinência alcoólica pode levar à normalização dos valores da ALT, sem que se verifique a regressão dos achados histológicos.13 Neste grupo, 75 (70,1%) dadores de sangue tinham um consumo excessivo de álcool e em 21 casos constatou-se normalização dos valores da ALT após abstinência alcoólica. Em indivíduos com hábitos alcoólicos moderados e/ou doença hepática de etiologia etanólica, o valor da GT encontra-se habitualmente elevado. A sua especificidade como marcador de doença hepática alcoólica é baixa quando utilizado isoladamente, mas aumenta quando associado a elevação crónica das transaminases. 14 Excluídas a infecção viral, o consumo excessivo de álcool e a patologia autoimune e genética, a elevação persistente da ALT tem sido atribuída a uma entidade denominada esteatohepatite não alcoólica. Esta designação foi utilizada, pela primeira vez, em 1980, para descrever os achados clínicos e patológicos de doença hepática não etanólica observados, muitas vezes, em doentes com doença hepática de etiologia etanólica.15 O seu diagnóstico assenta na exclusão rigorosa do consumo de álcool e de outras formas de doença hepática crónica e em alterações histológicas características. Habitualmente está associada a obesidade em 40%, a dislipidémia em 20% e a diabetes mellitus em 20% dos casos. As duas alterações metabólicas, principalmente implicadas na esteato-hepatite não alcoólica, são a resistência periférica à insulina e a elevação de ácidos gordos fornecidos ao fígado. De facto, em indivíduos obesos, a lipólise dos depósitos adiposos periféricos está muito aumentada e grande quantidade de ácidos gordos são fornecidos ao fígado, levando a um aumento da síntese e da secreção de triglicéridos. Ambos têm efeito lesivo sobre a membrana celular do hepatocito. O emagrecimento, através de dieta hipocalórica, é acompanhado de uma melhoria destas alterações do metabolismo hepático dos lípidos, levando a uma normalização das enzimas hepáticas, nomeadamente da ALT.16 A correcção dos valores de colesterol e de triglicéridos séricos também produzem o mesmo efeito nos valores da ALT. No grupo considerado, a obesidade era o único factor detectado em 9 dadores e a dislipidémia em 4, mas havia associação destes dois factores em 7 casos. Efectivamente, registou-se uma normalização dos valores da ALT em 8 casos, com o controle dos valores do colesterol e/ou dos triglicéridos, e em 7 casos com o emagrecimento. Assim, neste grupo, os factores de risco de lesão hepatocelular foram, por ordem decrescente: o consumo excessivo de álcool, a obesidade e a dislipidémia. Estes resultados foram praticamente sobreponíveis a estudos MARÇO 2000 31 I M P O RTÂNCIA CLÍNICA DA DETERMINAÇÃO DE ALT EM DADORES SEM MARCADORES DE INFECÇÃO VIRAL anteriores,17,18,19,20 embora nestes a prevalência de obesidade e dislipidémia seja superior à do consumo de álcool. Os vários factores etiológicos da elevação da ALT em indivíduos assintomáticos variam consoante a população escolhida, a sua área geográfica, hábitos e costumes. O valor da ecografia abdominal na investigação de doença hepática não é claro e existem estudos contraditórios, sobretudo no que diz respeito a avaliação da inflamação e fibrose.21 Em relação à esteatose a proporção de lípidos, necessária para provocar alteração na ecogenicidade do parênquima, tem que ser superior a 10% de todo o tecido hepático. Sabe-se que a esteatose hepática está associada à obesidade e que o grau de esteatose se correlaciona com o aumento da massa corporal, tanto em adultos como em crianças.22,23 A maioria dos dadores tinham alterações compatíveis com esteatose. Este facto pode ser explicado pela presença de vários factores que condicionam a deposição de lípidos no tecido hepático, como sejam: o consumo moderado de álcool, a obesidade e a dislipidémia. A ausência de esteatose hepática na ecografia não exclui esteatohepatite.24 32 A detecção, correcção e eliminação dos factores de risco para lesão hepatocelular podem levar, em alguns casos, à normalização laboratorial, evitando-se o recurso a meios de diagnóstico mais invasivos, como a biópsia hepática. A biópsia hepática é muitas vezes necessária para confirmar uma suspeita diagnóstica, no entanto, não é claro se esta melhora significativamente o valor preditivo do diagnóstico clínico.25 Este ponto é ainda controverso. Existem trabalhos que demonstram que a biópsia hepática não parece ser um factor imprescindível na avaliação clínica dos indivíduos com elevação crónica, não vírica, da ALT,20,26 no entanto, outros autores afirmam o contrário.25,27 Recentemente, na Reunião de Consenso organizada pela US National Institutes of Health, em Dezembro de 1998, sobre esteatohepatite não alcoólica, foi acordado, por unanimidade, a necessidade de biópsia hepática no diagnóstico da esteatohepatite não alcoólica, sobretudo para estabelecer o grau de fibrose e de inflamação habitualmente detectado por métodos clínicos e/ou imagiológicos.24 No grupo considerado no presente trabalho, em 37 dadores foi possível determinar e corrigir o factor de risco que condicionava a elevação persistente da ALT e em 10 constatou-se elevação circunstancial da ALT. Estes dadores foram reenviados para o CRSL, não sendo necessária a realização de biópsia hepática para o diagnóstico e orientação terapêutica. NÚMERO 1 Deste estudo podemos concluir que a determinação de ALT no rastreio de patologia hepática, em dadores benévolos de sangue do CRSL, mostrou ser importante, uma vez que foi possível uma normalização dos valores da ALT em 37 dadores (33,3%) através da educação para a saúde, com correcção de hábitos de vida, alimentares e/ou alcoólicos, prevenindo assim a evolução para doença hepática crónica. Neste grupo evitou-se ainda o recurso a biópsia hepática. Foram diagnosticados precocemente três casos de hepatite autoimune e um de miopatia. Os factores não víricos, potencialmente hepatotóxicos, implicados na elevação persistente da ALT, foram o consumo de álcool (70,1%), a obesidade (42,2%) e a dislipidémia (33,6%). Assim, na nossa prática clínica e perante indivíduos assintomáticos com elevação persistente de ALT podemos, através de uma história cuidada e de uma correcta identificação dos factores de risco de lesão hepatocelular, e sua correcção precoce, prevenir a evolução para doença hepática crónica. REFERÊNCIAS 1. De Ritis F, Coltorti M, Giusti G. Serum transaminase activities in liver disease. The Lancet 1972; 1:685-687. 2. Friedman LS, Dienstag JL, Watkins E, et al. Evaluation of blood donors with elevated serum alanine aminotransferase levels. Ann. Intern. Med 1987; 107:137 3. Regulamento sobre transfusão de sangue. Diário da República – II série. Desp. 19/91 (1991). Desp. 30/95 (1995). 4. Busch MP, Korelitz JJ, Kleinnan SH et al. Declining value of alanine aminotransferase in screening of blood donors to prevent post-transfusion hepatitis B and C virus infection. Transfusion 1995; 35:903-910. 5. Capron JP. 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