O DINAMISMO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA DA ESCOLA

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XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, São Paulo, 2009, pp. 1-17
O DINAMISMO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA DA ESCOLA ITINERANTE DO MST E O
ENSINO DE GEOGRAFIA1
THE DYNAMISM IN THE MST ITINERANTE SCHOOL PEDAGOGICAL PRACTICES
AND THE TEACHING OF GEOGRAPHY
Luciele Alves Fagundes2
Cesar De David3
Resumo: No ano de 1984 é fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
(MST), o qual incorporou sua preocupação com a educação à luta pela reforma agrária.
Nesse âmbito o MST empreende ações, como a identificação das necessidades
educacionais e a elaboração de materiais didáticos. Tais ações são realizadas por meio da
Escola Itinerante, oficializada em 1996 com amparo legal do Conselho Estadual de
Educação e respaldada na Pedagogia do MST. Funciona como escola pública, de acordo
com a Lei de Diretrizes e Bases, contribuindo para uma educação voltada aos interesses
de determinada população rural. A Escola acompanha os educandos onde eles estiverem,
inclusive nas marchas, que são uma realidade da dinâmica do movimento. Essa
articulação dos instrumentos de luta e o funcionamento da escola favorecem
consideravelmente o ensino de geografia.
Palavras – Chave: Escola Itinerante, Marcha pela Terra e Ensino de Geografia.
Abstract: In 1984, the “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)” was
founded, such movement incorporated its concern about education in order to fight for
agrarian reform. In this context, the MST undertakes actions such as the identification of
needs and the development of educational materials. Such actions are carried out through
the Itinerant School, formalized in 1996, with legal support from the State Education Council
and it is sheltered in the MST Pedagogy. It works like a public school, according to the “Lei
de Diretrizes e Bases”, contributing to an education directed to a determined rural
population. The School accompanies the students where they are, including the marches
which are a reality of the movement dynamics. This articulation between the instruments to
fight and the school operation favors greatly the teaching of geography.
Key-words: Itinerant School, March by the Earth and Teaching of Geography.
1
Este artigo foi construído a partir das reflexões e atividades desenvolvidas no “Projeto Integrado de Trabalho com
Professores e Alunos da Escola Itinerante do MST – Edição 2007”.
2
Autora – Acadêmica do Curso de Geografia – Lic. Plena da Universidade Federal de Santa Maria –
[email protected]
3
Orientador – Prof. Adjunto do Depto. de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria –
[email protected]
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FAGUNDES, L. A. e DAVID, C.
Introdução
O movimento social é visto por Fernandes (1996) como uma forma de
organização da classe trabalhadora, tomando por base os grupos populares, ou as
camadas populares, ou ainda, os setores populares. Para Souza (2006), o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ultrapassa os limites do tradicional
conceito de movimento social, possui conduta de movimento reivindicativo, político e
antagonista, pois carrega características de sujeitos coletivos que estão na esfera do
Terceiro Setor. É um sujeito coletivo político com origens organizacionais em matrizes
sindicais, marxistas e religiosas, que geraram a autonomia do movimento social.
Na segunda metade dos anos 80 diversas ocupações foram realizadas, por
agricultores sem-terra e moradores da cidade que expulsos do campo, migraram para a
cidade, mas continuaram trabalhando no campo, cortando cana, colhendo laranja, etc.
Em 1984, é fundado o MST em Cascavel/PR, resultado de duas ocupações das
fazendas Macali e Brilhante, em Ronda Alta/RS.
Com a atuação do movimento surgem algumas indagações que irão motivar a
criação do Setor de Educação do MST, em 1985:
1 O que fazer com as crianças acampadas?
2 Como garantir escolas nos assentamentos que estavam surgindo?
A partir daí o MST incorpora a educação à luta pela reforma agrária, através da
luta pela educação nos assentamentos e na elaboração de uma política pública de
educação do campo.
As ações do MST questionam a distância entre os conteúdos da escola, da
educação, da política educacional e os saberes originários das trajetórias humanas e
na prática social.
De acordo com Souza (2006) a Educação do Campo muitas vezes é deixada à
margem nas escolas urbanas e na academia pouco se fala, a didática, prática de
ensino e os estágios curriculares são disciplinas orientadas para a realidade urbanoindustrial. Em função disso, surge a necessidade de lutar por um profissional que
tivesse conhecimento ou vontade de aprender as características dessa realidade
(reforma agrária, assentamento). Com isso várias ações são empreendidas pelo
movimento em prol da educação, organizam-se cursos de magistério e de formação de
educadores, a produção de materiais pedagógicos e a parceria com instituições da
sociedade civil e com as Universidades. Em 2004, há a criação de secretarias no
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governo para tratar da Escola do Campo.
Cabe ressaltar, que nesta trajetória de lutas ocorreu a transição da Educação
Rural à Educação do Campo. A Educação Rural tinha como princípio ações que
visavam superar o “atraso” entre os trabalhadores e moradores do espaço rural,
provindas do Estado.
Aqui podemos destacar que a educação rural começa a constar nas
preocupações do governo, como política pública concomitantemente ao início da
industrialização. Ou seja, porque havia a necessidade de preparar a mão-de-obra para
as indústrias, isso nos leva ao fato de que as escolas não foram implementadas de
acordo com a necessidade da comunidade, e sim impostas. Porém, a partir dos anos
noventa tivemos uma expressiva diminuição dessas escolas. Assim, apesar de não
serem do campo e, apenas estarem no campo, as escolas tinham sua relevância na
educação das comunidades rurais.
Já a Educação do Campo é a ação dos movimentos sociais e as parcerias
oriundas da dinâmica social do campo no final do séc. XX e prevê a valorização do
trabalhador que atua no campo.
A luta do MST pela construção de uma escola que seja adequada a realidade da
vida rural é um tensionamento para fazer valer a própria Lei de Diretrizes e Bases da
Educação. Em seu artigo 28, a LDB prevê a "oferta de educação básica para a
população rural" com "adaptações necessárias a sua adequação às peculiaridades da
vida rural e de cada região". O texto da lei define como "adaptações necessárias", entre
outros itens, a elaboração de “conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às
reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural”.
Na prática, conforme Brandão (2005), "os conteúdos desse art. 28 da LDB (...)
não estão sendo efetivamente aplicados na realidade educacional brasileira", segundo
o autor, por dois motivos. Um dos motivos seria o êxodo rural e o outro seria o
transporte de grande parte dos alunos da zona rural para escolas na zona urbana.
A luta do MST, além da própria reivindicação por Reforma Agrária, que viria a
contribuir para a reversão do processo de êxodo rural, também na educação contribui
no sentido de ampliar o alcance real do art. 28 da LDB. A materialização de conquistas
concretas como a aprovação de escolas itinerantes em vários estados, além das
escolas de assentamento e as experiências de educação superior que vem sendo
levadas adiante pelo movimento, tem sido um esforço real no sentido da revitalização
desse pressuposto previsto na "Constituição do Ensino", que se refere a construção de
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"conteúdos e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses doa alunos
da zona rural".
O MST insere-se nas discussões, demandas e proposições que abarcam a
construção democrática no país, explicitando que a reforma agrária não é uma luta
pontual, mas é a busca pela construção de uma outra sociedade, iniciando pela
conquista de políticas públicas para a Educação do Campo.
O MST e a Reforma Agrária
A perspectiva de reforma agrária para o MST compreende a modificação da
estrutura da propriedade da terra, e sua subordinação à justiça social, às necessidades
do povo e aos objetivos da sociedade. Garantindo a segurança alimentar, o combate à
fome e desenvolvimento econômico e social dos trabalhadores. Ou seja, o programa de
reforma agrária do MST não se pauta apenas na distribuição de terras.
De acordo com Göergen (2004, p. 37), o MST e a Via Campesina elegem o
latifúndio e o modelo agrícola como os principais focos de suas ações e propõe um
novo modelo agrícola para o país baseado em seis grandes pilares:
a) distribuição das grandes propriedades, através da desapropriação e
da fixação de um módulo máximo para as propriedades rurais,
construindo as bases para a produção agropecuária brasileira em áreas
de pequeno e médio porte;
b) mudança do modelo tecnológico da agricultura brasileira, substituindo
os insumos externos controlados por transnacionais e adotando
tecnologias de base ecológica em substituição ao modelo baseado nos
agrovenenos;
c) políticas públicas ousadas para defender e alavancar a agricultura
nacional de pequeno e médio portes – crédito, preços, seguro agrícola,
pesquisas públicas, mecanização popular, habitação, educação, etc;
d) organização econômica e política dos agricultores, através de
movimentos sociais realmente representativos, cooperativas de
produção, industrialização, crédito, prestação de serviços;
e) soberania alimentar do povo brasileiro, com política de estoques
reguladores e estratégicos e produção voltada a acabar com a fome do
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povo, garantindo a produção para o auto-abastecimento do mercado
interno;
f) mudança do modelo energético, diversificando as fontes de energia
elétrica e mecânica, diminuindo a dependência e substituindo as
grandes barragens e os combustíveis fósseis por fontes alternativas e
disponíveis na rica natureza brasileira.
Tal proposta implica uma mudança profunda nas relações de poder no campo e
na economia brasileira, visto que a atual configuração territorial do mesmo está
caracterizada pela concentração da terra e dos recursos, características do modo de
produção capitalista, o que traz como conseqüência a luta entre classes.
Pedagogia do Movimento Sem-Terra
A Pedagogia do MST é a maneira pela qual o movimento vem historicamente
formando o sujeito Sem Terra e que no dia a dia educa as pessoas que dele fazem
parte. O princípio educativo desta pedagogia é o próprio movimento. O Sem Terra é um
nome próprio, uma identidade, uma referência política e cultural construída na história
da luta pela terra.
Entre as ações empreendidas pelo MST na esfera da educação podemos
destacar a identificação das necessidades educacionais das crianças, jovens e
adolescentes dos acampamentos e assentamentos, a elaboração de materiais
didáticos e o desenvolvimento de parcerias objetivando a formação na modalidade de
ensino médio (magistério e ensino técnico), educação de jovens e adultos e educação
superior.
Além disso, o MST também busca o fortalecimento da educação básica no
campo e a intensificação das parcerias com sindicatos e universidade e outras
entidades para ampliar a luta e discussão da educação na sociedade.
De acordo com Branford & Rocha (2004), até 2001, cerca de 150 mil crianças
estavam matriculadas em 1.200 escolas primárias e secundárias, nos assentamentos e
acampamentos. As escolas empregavam 3.800 professores, muitos dos quais
treinados pelo movimento. Foram proporcionados treinamentos a 1.200 educadores
que deram cursos para 25 mil jovens e adultos. O MST estava conduzindo cursos de
treinamento para professores de escolas primárias na maioria dos Estados e
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estabelecera parcerias com agências internacionais como a UNESCO e o UNICEF,
bem como a Igreja Católica. Fizeram acordo com 7 institutos de educação superior, em
diferentes regiões, a fim de proporcionar cursos de graduação em pedagogia para
professores do movimento.Tomaram essas iniciativas não só porque o governo
brasileiro requeria maior qualificação para professores especialmente de escolas
secundárias, mas também porque os próprios professores desejavam melhor
formação.
A proposta de educação do campo do MST prevê a dialogicidade e
problematização na elaboração dos princípios pedagógicos, filosóficos e materiais
pedagógicos, a base do conteúdo é a prática social dos sujeitos, o fortalecimento da
identidade sem-terra e a sistematização das informações difundidas e discutidas no
coletivo de educação.
A Escola Itinerante nos acampamentos está organizada em etapas, que
correspondem ao ensino fundamental da pré-escola a 5ª séries, com objetivos e
conteúdos próprios a cada etapa (algumas já oferecem o EJA). Estes conteúdos são
construídos no decorrer do processo pedagógico, considerando e respeitando os
conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade, contextualizando-os e
dando prioridade àqueles considerados socialmente úteis e com sentido concreto para
as vidas dos educandos.
As etapas previstas na Proposta Pedagógica da Escola Itinerante caracterizamse por flexibilização pela integração. A organização curricular prevista para cada etapa
possibilita a apreensão e a sistematização de conhecimentos conforme o processo de
cada educando.
No momento em que a criança construir as referências correspondentes a cada
etapa, ela passará para a seguinte, ficando claro que o ingresso ou a passagem das
etapas poderá acontecer em qualquer época do ano letivo, a partir de avaliação
realizada pelos educadores.
Sendo esta uma Proposta Pedagógica específica e diferenciada, não segue as
determinações do período previsto na LDB, que prevê 200 dias letivos. No entanto,
respeita o tempo de cada aluno na construção do seu conhecimento. A freqüência e o
horário são fixados a partir do compromisso assumido entre educadores, educandos,
comunidade do acampamento, Secretaria de Educação e MST.
Para Fogaça (2006), o MST, na defesa pela Reforma Agrária com justiça,
constrói muitas lutas. Uma delas é passar aos educandos e educadores o espírito da
conquista por uma terra que liberte das prisões do capital financeiro e de quem o
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controla.
Para Caldart (2001) os sem terra se educam, quer dizer, se humanizam e se
formam como sujeitos sociais no próprio movimento da luta que diretamente
desencadeiam. Estão sendo chamados hoje de lutadores do povo e sua atuação acaba
projetando uma identidade que é sua, mesmo que não esteja como consciência e como
prática em cada um dos sem terra do MST. E nesta perspectiva, podemos dizer que a
herança que o MST deixará para seus descendentes será bem maior do que a
quantidade de terra que conseguir libertar da tirania do latifúndio; será um jeito de ser
humano e de tomar posição diante das questões de seu tempo; serão os valores que
fortalecem e dão identidade aos lutadores do povo de todos os tempos, de todos os
lugares.
Uma das formas de lutar e reivindicar o direito à terra são as marchas. Tais
ações aliadas ao funcionamento da Escola Itinerante proporcionam aos educandos
uma experiência única de aprendizado, principalmente no que tange à geografia.
A Escola Itinerante em Marcha
A Escola Itinerante foi legalmente aprovada no Rio Grande do Sul em 19 de
novembro de 1996, pelo Conselho Estadual de Educação, sendo esta aprovação um
ponto de partida para a aprovação de escolas itinerantes em outros estados da
federação, constituindo escolas públicas que na prática atendem a demandas reais da
comunidade a qual pertencem, no caso, os acampados do Movimento Sem-Terra. A
Escola Base da Itinerante do Rio Grande do Sul funciona no Assentamento Itapuí, em
Nova Santa Rita/RS, ou seja, todos os alunos que estudam embaixo da lona ou nos
outros lugares por onde o movimento passa, estão matriculados nesta escola.
A escola organiza-se por princípios filosóficos e pedagógicos vinculados a
Pedagogia do Movimento Sem-Terra e aos princípios e Diretrizes da Educação Pública
Estadual, buscando desenvolver uma educação como processo permanente de
formação e transformação, voltada para as várias dimensões do ser humano,
abrangendo o conhecimento científico, com conteúdos socialmente úteis e voltados
para o campo, e a construção da memória e dos valores humanistas de forma
participativa e igualitária.
De acordo com Fernandes (2000), as marchas se caracterizam como uma
necessidade de expandir as possibilidades de negociação, para gerar novos fatos. Em
seus ensinamentos, por meio de suas experiências, os sem-terra tiveram diversas
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referências históricas, na mística do movimento: a caminhada do Povo Hebreu rumo à
terra prometida e as marchas das revoluções mexicana e chinesa. Dessa forma, os
sem-terra ocupam a terra, espaços de prédios públicos, espaços diversos para
denunciar os significados da exploração e da expropriação, lutando para mudar suas
realidades.
Dessa forma, como um movimento reivindicatório que é, se utilizam das marchas
como forma de pressionar o poder público, porém a Escola Itinerante não pode parar.
Com isso, em meio às demonstrações de luta do movimento, temos a participação dos
educandos, que assistem às aulas durante o percurso da marcha.
Durante uma marcha, a sala de aula pode ser em locais diferentes e improváveis
como: o meio da rua, quadras de futebol, debaixo de árvores, pátios de escolas
convencionais, entre outros. Enfim, as dificuldades enfrentadas são muitas, mas a
vontade de aprender das crianças é maior, e prevalece.
Em muitas ocasiões o movimento é recebido com hostilidade pela população,
porém no momento que têm a oportunidade de conscientizar as pessoas a respeito dos
motivos da marcha já se pode perceber o apoio de parte da população, assim a marcha
se caracteriza também por um instrumento de pedagogização. Isso acontece muitas
vezes, quando permitido, com a visitação das escolas convencionais das cidades
visitadas.
Nessas ocasiões os educandos têm a oportunidade de aprender na prática, a
realidade em que estamos inseridos. O MST entende a realidade, como o meio em que
vivemos. Como tudo aquilo que fazemos, pensamos, dizemos e sentimos. O jeito de
trabalhar e de se organizar. É a natureza que nos cerca. São as pessoas e o que
acontece com elas. Mas, é também, a realidade mais ampla que a local, e a relação
que existe entre elas, ou seja, são os problemas do nosso dia-a-dia e os problemas
que perpassam a nossa sociedade.
As crianças que participam de uma marcha são incitadas a saber o porquê da
marcha, quais os objetivos, o que é a reforma agrária, e assim aprendem que estão
caminhando porque querem ter um lugar para viver, uma terra para plantar, uma vida
melhor, e assim tornam-se sujeitos de sua própria história.
Nesse ponto, temos o papel dos educadores das Escolas Itinerantes, ou seja, o
professor militante, aquele que tem identificação com os interesses e objetivos da luta
do MST. Aquele que tem consciência de classe, que se identifique como trabalhador.
Freire (1996) nos coloca que nossa prática pedagógica não pode ser neutra, exige de
nós uma definição, uma tomada de posição. Esse deve ser o professor da Escola
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Itinerante, aquele que luta contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação
econômica dos indivíduos ou das classes sociais.
No mês de outubro de 2007, a Marcha Pela Terra, organizada pelo MST, chega
ao município de Santa Maria/RS, e com isso tivemos a oportunidade de vivenciar o diaa-dia da marcha. O objetivo da marcha na cidade seria informar a população acerca
dos motivos da caminhada. O destino final seria a Fazenda Guerra, situada no
município de Coqueiros do Sul/RS.
Entre as atividades realizadas pelos integrantes da marcha, uma delas foi um
debate realizado pelos educadores da Escola Itinerante, o qual era direcionado aos
acadêmicos dos cursos de licenciatura da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Na exposição dos educadores, foi possível perceber algumas dificuldades
enfrentadas pela escola, em relação ao repasse de verbas. Além disso, relataram a
dificuldade em manter os professores nos acampamentos e também em conseguir
professores com formação para ministrar as aulas, pois a maioria não tem formação,
ou apenas o magistério. Mas o que ficou mais explícito foi a demonstração de que o
movimento sem-terra e seus educadores estão realmente engajados na luta pela
educação, mas uma educação de qualidade que forme pessoas críticas e que dêem
continuidade à luta pela reforma agrária no Brasil.
Outra momento foi a troca de saberes entre os acadêmicos da UFSM e os
educandos e educadores da Escola Itinerante do MST, que confeccionaram faixas para
serem expostas no centro da cidade, com o objetivo de demonstrar as reivindicações
da escola (Figuras 1 e 2).
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Figura 1: Confeccionando os cartazes.
Fonte: Trabalho de Campo – 03/10/07– Vinícius Luge.
Figura 2: Escola Itinerante na Marcha Pela Terra.
Fonte: Trabalho de Campo – 03/10/07 – Vinícius Luge.
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Tais atividades foram muito significativas, pois nos proporcionaram a
oportunidade de conhecer melhor a dinâmica do MST através de um dos seus
instrumentos de luta, a marcha, que é um dos meios utilizados para pressionar o poder
público, além de buscar o apoio da população, informando-a sobre as questões que
envolvem a terra, como a estrutura fundiária, entre outros temas.
Além disso, também foi possível perceber o papel da educação para o
movimento, pois apesar de estarem em marcha, a escola estava em funcionamento,
demonstrando sua itinerância.
A Geografia na Marcha pela Terra
A Educação do Campo
Gilvan Santos
A educação do campo
Do povo agricultor
Precisa de uma enxada
De um lápis, de um trator
Precisa educador
Pra tocar conhecimento
O maior ensinamento
É a vida e seu valor
Dessa história
Nós somos os sujeitos
Lutamos pela vida
Pelo que é de direito
As nossas marcas
Se espalham pelo chão
A nossa escola
Ela vem do coração
Se a humanidade
Produziu tanto saber
O rádio e a ciência
E a “cartilha do ABC”
Mas falta empreender
A solidariedade
“soletrar” essa verdade
Está faltando acontecer
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Essa música é cantada pelo sem-terrinhas na Marcha pela Terra e mostra de
maneira
excepcional o significado da luta pela terra e a importância da educação para o MST.
Ou seja, traz a temática da educação voltada para o povo agricultor, além da questão
da ciência que muitas vezes não tem compromisso com a sociedade, não lhes dando
nenhum retorno.
Em função disso, as marchas do MST, quando acompanhadas pela Escola
Itinerante, se colocam como um importante instrumento de ensino-aprendizagem, e
neste contexto podemos destacar o ensino de geografia.
Para o MST, o grande objetivo da geografia é que o aluno compreenda o
processo de produção do espaço e que se localize neste processo, sendo que o eixo
básico dessa produção é o trabalho. Através dele, a sociedade se apropria da natureza
e, nas mais diversas formas de relações, transforma o espaço geográfico, o que vai de
encontro com as reflexões acerca da ciência geográfica, ao entender que o espaço é
resultado da ação do homem nas diferentes épocas em Kaercher et al (2000, p.85):
A geografia ao falar das coisas do mundo da vida, fala dos espaços
construídos pelos homens, que em sua trajetória marcaram os lugares
com os resultados da luta pela sobrevivência. A tarefa da geografia na
análise da sociedade é exatamente debruçar-se sobre a realidade com
o olhar espacial.
Muitos pesquisadores afirmam que a realidade do educando, ou seja, o seu
cotidiano é o ponto de partida para se chegar à explicação dos fenômenos, como no
caso de Pontuschka (1999, p.133):
...as condições de existência dos próprios alunos e seus familiares são
ponto de partida e de sustentação que podem garantir a compreensão
do espaço geográfico, dentro de um processo que vai do particular ao
geral e retorna enriquecido ao particular.
Durante a marcha, os educandos têm a oportunidade de compreender o espaço
geográfico e seu processo de produção, além de outros temas como: orientação
espacial, percepção (auditiva, visual, tátil), orientação (pontos cardeais), zona rural e
zona urbana, relevo, cidadania, hidrografia, os quais estão previstos no Plano de
Estudos da Escola Nova Sociedade.
Em alguns casos a marcha atravessa o estado do Rio Grande do Sul e com isso
as crianças conseguem perceber a nítida diferença entre as regiões do estado, e no
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que implicam tais diferenças, o que não é tão facilmente percebido por alunos que não
ultrapassam os limites do seu município.
Na obra de Branford e Rocha (2004, p. 164), temos um relato de uma educadora
sobre a participação da Escola Itinerante na Marcha pela Terra:
Nossas carteiras e bancos eram o chão duro e frio e o quadro negro eu
pedaço de papel colado à parede, ao corrimão, às árvores, ou seguro,
simplesmente, nas mãos do professor. Aprendemos vendo, vivendo e
fazendo. A gente calculava os quilômetros, metros, centímetros da
estrada a ser trilhada, o número de dias necessários para a chegada à
capital, o que era produzido nas cidades pelas quais passávamos. [...]
Víamos carros, cavalos, carroças, trens, aviões, um helicóptero, barcos,
navios e, dessa forma, estudávamos os meios de transporte.
Nesse relato observamos a dimensão e a riqueza dos momentos que os
educandos podem ter em uma marcha, com a ênfase na geografia do cotidiano.
Para Heidrich & Rego (2006), a itinerância faz da memória geográfica um
importante instrumento. A explicação se faz através de representações e o mapa é
uma representação de categorias geográficas (espaço, território, paisagem, ambiente,
lugares e regiões). Assim, qualquer pessoa pode representar a explicação do mundo
em que vive. A partir dessa explicação, da memória geográfica de cada um, podemos
intermediar a construção de uma explicação coletiva e auxiliada pelos conceitos e
noções científicas.
Morigi (2003) nos coloca que um dos maiores desafios para a educação sempre
foi a relação teoria e prática, com a percepção, cada vez maior, da necessidade da
articulação entre uma e outra. No MST, a defesa desse princípio como fundamental na
proposta de educação busca criar a capacidade de relacionar todas as demais
situações da vida, superando aquela visão de que a escola é lugar de conhecimentos
teóricos para depois, fora dela, serem aplicados na prática.
Buth (2006) acredita que os sem-terra, em acampamentos do MST, possuem
uma trajetória de vida que possibilita o desenvolvimento da consciência social e sua
compreensão como atores sociais. Aí entra o papel da geografia, comprometida com a
formação dos cidadãos, auxiliando-os a entender as desigualdades e contradições da
sociedade.
A geografia no âmbito da educação popular tem sua expressão na Escola
Itinerante do MST e neste contexto também se dá a relação com os movimentos
sociais.
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Considerações Finais
Desde 1985, no início de sua formação, o MST já demonstra sua preocupação
com a educação, uma reivindicação que foi incorporada à luta pela reforma agrária.
Com isso, é importante destacar que a criação do Setor de Educação foi feita de
acordo com a necessidade dos acampados, ou seja, uma ação com o intuito de sanar
demandas da própria comunidade, o que caracteriza a Educação do Campo,
pretendida pelo MST.
Tal educação é voltada aos anseios do trabalhador do campo, ou seja, está
fundamentada na Pedagogia do Movimento Sem-Terra. Em vista disso, a legalização
de exeriências pedagógicas como a escola itinerante contribui para ampliar o sentido
real de pressupostos previstos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96), quando fala no art. 28 que a oferta de educação básica para a população
rural deve conter “conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais
necessidades e interesses dos alunos da zona rural”.
A Escola Itinerante se caracteriza como educação popular, ou seja, o
aprendizado é constante e toda forma de relação é entendida como um aprendizado.
Todo indivíduo tem o que ensinar e tem o que aprender, portanto todos aprendem e
ensinam no seu fazer diário. A educação popular é utilizada pelas classes populares
como forma de resistência ao sistema vigente.
Outra característica marcante do MST é a coletividade, ou seja, todos aprendem
que o coletivo é o grande sujeito da luta pela terra. As ocupações, as marchas, os
assentamentos, os acampamentos, são obras coletivas e é fazendo parte do coletivo e
das obras coletivas que as pessoas se educam, preservando sua memória e
projetando o futuro.
O MST também se preocupa com a questão dos valores humanos como a
solidariedade, a lealdade, o espírito de sacrifício pelo bem estar do coletivo, o
companheirismo, a sobriedade, a disciplina, a indignação diante das injustiças, a
valorização da própria identidade sem terra, a humildade, nesta sociedade que dia a
dia se degenera por meio do individualismo, do consumismo, da apatia social, mas
acredita que assumindo a tarefa de educar e reeducar as pessoas em seus valores,
pode ajudar a realizar o que projeta em sua história.
A Escola Itinerante acompanha seus educandos onde estiverem, visto que as
atividades do MST ocorrem em diferentes locais. Essa condição de itinerância da
escola lhe confere inúmeras possibilidades de ensino/aprendizagem, visto que as
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crianças têm acesso às inúmeras especificidades de cada local.
Um dos principais objetivos das marchas MST é a pedagogização, não só da
população das cidades visitadas, mas também dos próprios integrantes do movimento,
que ao participarem da marcha reafirmam sua militância na luta pela reforma agrária.
Os educandos da escola também assumem um papel na dinâmica do movimento ao
participarem das marchas, ou seja, eles não estão ali apenas acompanhando seus
pais. Estão reivindicando seus direitos à educação, saúde, moradia, enfim exercendo
sua cidadania.
O ensino de geografia ganha destaque em uma Marcha pela Terra do MST, os
deslocamentos por vários lugares facilitam o ensino de vários temas, aliando a teoria à
prática, educando para a ação transformadora.
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Referências Bibliográficas:
BRANFORD, Sue & ROCHA, Jan. Educação no MST. In: Rompendo a cerca: a
história do MST. São Paulo: Casa Amarela, 2004.
BRANDÃO, Carlos da Fonseca. LDB passo a passo: Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), comentada e interpretada artigo por artigo.
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