Lavras doc._51bcb834240cf

Propaganda
Gisafran Nazareno Mota Jucá
Professor Titular do Curso de História da Universidade Estadual do Ceará, (UECE) e
Professor da Pós-Graduação em Educação da UFC./[email protected]
MEMÓRIA SOCIAL, PATRIMÔNIO IMATERIAL DA HANSENÍASE NO CEARÁ
Memória e Patrimônio se entrelaçam, como expressão ampla de patrimônio cultural,
"para além da pedra e cal", conforme demonstram os estudos transdisciplinares
contemporâneos. Nessa perspectiva, o conceito de "memória social" se nos apresenta
como o ponto de apoio revelador das condições e contradições, presentes nos
discursos e nas práticas, dos médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem que
trabalham com os que foram atingidos pela hanseníase, na verdade, as reais
testemunhas das peculiaridades de suas experiências, confrontadas e
complementadas com a trajetória existencial dos seus filhos. Espaços diferenciados as Ex Colônias de Antônio Diogo, em Redenção, a de Antonio Justa, em Maracanaú e o
Educandário Eunice Weaver, em Maranguape, no Ceará, - mas associados, que se
afiguram como escolas de vida, nem sempre reconhecidas, mas reveladoras de lições
valiosas, transmitidas pela memória social, composta pelo individual e pelo social.
MEMÓRIA SOCIAL, PATRIMÔNIO IMATERIAL DA HANSENÍASE NO CEARÁ
Gisafran Nazareno Mota Jucá
Professor Titular do Curso de História da UECE e Professor e da Pós-Graduação em
Educação da UFC.
A indicação da temática "Patrimônio Material e Imaterial da Hanseníase:
Colônia de Antônio Diogo, município de Redenção, no Ceará." título do projeto inicial ,
sob nossa responsabilidade e da Professora Dra. Zilda Maria Menezes Lima, representa
uma proposta não apenas de dar continuidade ao que já foi levantado a respeito da
hanseníase no Ceará, nos trabalhos publicados, mas em especial busca a revelação de
aspectos ainda não destacados nas pesquisas elaboradas.Os traços comuns,
definidores do peso da doença no meio social onde se propagou são por demais
conhecidos.
A nossa proposta, além de um complemento aos dados e informes divulgados,
almeja ir mais além, na tentativa de descobrir as peculiaridades das práticas narradas,
de acordo com os depoimentos coletados, envolvendo não apenas os atingidos pela
doença, mas os que com eles conviveram, como os médicos e enfermeiros das antigas
colônias, de Antônio Diogo, Redenção/Ce e de Antônio Justa, em Maracanaú/Ce, como
os filhos de hansenianos e os que os trataram ou com eles viveram.
A extensão da pesquisa a esse segundo espaço, reservado aos hansenianos,
decorreu naturalmente da descoberta do se peso, no s histórico estudado, por ser uma
instituição mais nova, fornecedora de mais subsídios acerca da temática em estudo,
incentivando a adoção de uma análise comparativa, entre as duas instituições,
fornecedora de informações e dados, reveladores das contradições entre as
proposições apresentadas e as práticas adotadas, nos dois espaços observados,
permitindo ao pesquisador a ampliação do cenário histórico observado.
Para tanto, além do reconhecimento do valor do material levantado,pela
Professora Zilda, documentos diversos, móveis e instrumentos de tratamento,
fotografias, principalmente em Antônio Diogo, no município de Redenção-Ce, vale
destacar o valor dos depoimentos coletados através das entrevistas realizadas, uma
vez que elas não foram apenas realizadas com o intuito de figurarem como
complemento à documentação levantada, mas as definindo como uma opção
metodológica, capaz de reelar aspectos antes não apresentados pela documentação
oficial, uma vez que o conteúdo de uma entrevista não se apresenta como uma fonte
muda, mas como um testemunho ativo, capaz de dialoga com o entrevistador,
levantando questões indicadoras de novos informes ou revelações, que eram antes
desconsiderados.
A nossa opção metodológica se apoia na revelação dos conceitos de Memória
Individual, Memória Coletiva (HALBWACHS, 2006) e/ou Memória Social,
(FENTRESS;WIICKHAM. 1994), na busca de compreender o enlace entre o individual e
o social, destacando não apenas os traços comuns observados, mas as peculiaridades
vividas e narradas em práticas sociais, onde se envolvem múltiplos sujeitos e grupos,
associados ou diferenciados. A produção do pensar, expressa numa recomposição do
passado traz à luz o que parecia inexpressivo, possibilitando uma melhor compreensão
dos temas tratados, recompostos na dinâmica do tempo histórico, fornecedora do
alicerce a ser moldado e preservado do patrimônio imaterial. (FONSECA,2003,p. 5676;SILVA,1999)
Através do uso da história oral, como opção metodológica, os horizontes
tornam-se mais reveladores, com uma multiplicação de paisagens e imagens evocadas,
reveladoras de experiências diferentes da visão generalizante demonstrada no estudo
dos problemas vividos pelos hansenianos, tão comum no trato da questão sanitária.
Assim, no decorrer da pesquisa, ao término de cada entrevista realizada, uma
faceta nova é revelada, reconfigurando aquele quadro antes consagrado pela tradição
social, fazendo-nos perceber que a hanseníase não deve ser definida apenas com a
configuração do trágico e da dor, nela inseridas, mas visualizando-a como uma
atividade cotidiana de muitos agentes históricos, que se amoldaram ao estágio vivido,
por cada um dos entrevistados.
Por mais amargas que fossem as recordações evocadas, algo mais além das
lágrimas amargas nos foi revelado, pelos depoentes, pois o peso e as consequências da
doença se transfiguravam em suas lembranças e o cotidiano delineado nas narrativas
apresentadas deixou fluir o teor das sensibilidades e do saber viver, diferenciando o
quadro observado do peso de um sofrimento contínuo, sem nenhuma perspectiva de
demonstração do viver e sentir as compensações do dia a dia.
A dor da existência é revelada pelos ex internos e seus familiares, mas as
compensações dos sentimentos pessoais revelam o lado compensatório do cotidiano
de cada um deles, pois por mais atormentadas que sejam suas experiências, no
tratamento e nos tratos recebidos, as manifestações dos sentimentos compensatórios
se apresentam em qualquer espaço social ou experiência prática, deixando
transparecer uma coloração diferente daquele peso em que é configurada a temida
enfermidade. Portanto, saber ouvir e observar as manifestações dos depoentes é outra
via, reveladora dos sentimentos íntimos dos envolvidos no processo vivido.
O "processo civilizador" se expressa numa contradição entre o racional e o
irracional, traduzida na ordem estabelecida, explicada e compreendida através do
"método sociogenético" (ELIAS, 1993,p. 196-197) Situando Nobert Elias, no seu tempo,
compreende-se a razão de tal proposição, mas situando-nos nos dias atuais, outros
pensadores nos fazem repensar o processo civilizatório, cujas origens vão muito além
do território europeu, revelando a riqueza das culturas do Oriente Próximo e do
Oriente. (GOODY,20102,p. 183-205;FERGUSON,2013) E as contradições do processo
civilizador estão bem expressas no trato da hanseníase ao longo do tempo, em
diferentes espaços e culturas.
Diante do exposto, a hanseníase não se afigura como uma doença do passado,
mas como uma moléstia persistente no tempo, em especial em países como o Brasil,
envolvendo diferentes momentos históricos, fazendo-nos refletir sobre o impacto das
moléstias na vida das nações e a fragilidade dos órgãos assistenciais ante o peso das
moléstias, mesmo considerando os avanços obtidos pelos agentes oficiais, como por
entidade filantrópicas e culturais.
O estado brasileiro não pode ser considerado como um omisso constante, pois
a sua ação se revela em diferentes momentos, desde o surgimento das primeiras
medidas assistenciais, até os avanços do presente, quando o tratamento da
hanseníase é enfrentado com outras perspectivas de aplicação, diferentes daquelas
voltadas ao temível mal em décadas anteriores. Mesmo assim, há muito que observar
e nada melhor para uma visão mais reveladora do que ouvir e refletir acerca dos
agentes decisivos do histórico da hanseníase no Ceará, tomando como referência os
ex internos das duas colônias, os médicos e enfermeiros, responsáveis pela aplicação
das medidas assistenciais.
Pela tradição as referências aos atingidos pela hanseníase sempre remetem o
leitor ou ouvinte a um quadro desolador, onde as marcas indeléveis de uma
degenerescência corporal a todos assusta. revelando um perfil humano mutilado,
envolto em posições chocantes, como se não fossem seres humanos normais, capazes
de revelar as diferentes nuances das práticas cotidianas , através das manifestações de
saber viver.
Na revelação da realidade histórica, a diversidade der experiências se
entrecruza dependendo das condições do agir e do vigiar, presentes nos espaços
sociais considerados, muitas vezes definidos genericamente, numa tentativa de
simplificar o que se afigura de forma complexa. Nessa condição divisamos o histórico
dos hansenianos entrevistados e a narrativa por eles apresentada se metamorfoseia
em revelações não aguardadas, pois além da dor constante e do sofrimento
reconhecido como permanente, outras manifestações foram indicadas, pois a vivência
cotidiana os amolda às variedades dos sentimentos íntimos de cada um dos
depoentes, dependendo do momento considerado, pois as compensações cotidianas
se apresentam espontaneamente, de acordo com as intenções almejadas ou os
suportes assistenciais usufruídos.
Nas entrevistas realizadas, as narrativas apresentadas foram além da dor
existencial dos internos, revelando a coloração pouco reconhecida do cotidiano dos
depoentes. Nas palavras do Sr. Antonio Gomes de Sousa, com mais de setenta anos,
quando ingressou na Colônia da Antônio Diogo, não tinha nenhuma marca visível da
doença no corpo."De 2000 para cá foi que piorei, eu aleijei, porque comecei a beber
muito e farrear. Vivia tocando violão, tocando pras mulheres vir atrás de mim," e a
vigilância não se fazia ausente
Aqui sempre era escravidão danada, no tempo da gente era escravidão..., ninguém podia sair
por essa porta.Nós ia por aqui por dentro do algodão, saia correndo no canavial e ia sair lá
perto da lagoa.ia pros cabaré. Era em Maranguape e tinha aqui nas capoeira...Mulher é bicho
bom.Ave-maria, sem mulher não dá.
E ao longo da narrativa, outros companheiros de farra eram rememorados,
como o Manoel Jacinto, o Zé de Morais, o Simões e "tinha outros cabra véi, como o Zé
Ari, o Carnaúba, o Zé Feitosa..." As primeiras palavras do depoimento referem-se a um
estado de sofrimento, logo compensado pela oportunidade obtida de satisfazer os
desejos reprimidos, mas o desenrolar dos eventos evocados deixam explícitos os bons
resultados usufruídos, nas informações prestadas por seu Antônio Gomes
É, tem gente que vem pra cá pra viver.Eu bebi muito, bebendo no meio do mundo, passava a
noite brincando, bebendo e comendo mulher aí no meio da capoeira.Nesse tempo nós se
lascava, a bebida fazia mal e nós nos lascamos de vez.Tem gente que ficava normalzinho,
porque não bebia, não fazia extravagância.Nós só ficava no meio do mundo, com o mulheril
no meio do mundo, sem dormir.Aí eu, o Manuel Jacinto, o Zé Morais, O Carnaúba, tudo
lascado...
A garanti de usufruir bons momentos em geral se associava ao dia do
recebimento das mensalidades, ou quando "as capoeiras" eram ultrapassadas e o cabo
da foice servia de apoio à fuga almejada.após atravessar o canavial, apesar da
proibição estabelecida, porque "se pegasse ia para a cadeia", onde se passava até três
dias dependendo de como era avaliada a infração, pois em determinadas ocasiões até
dez pessoas permaneciam reclusas na cadeia, ali existente.
Um dos depoimentos mais reveladores, marcado pela sinceridade e pelo desejo
de compartilhar as experiências vividas, provavelmente como resultado do
engajamento do entrevistado no Movimento de Integração das pessoas Acometidas
pela Hanseníase, (MOHAN), foi do ex-interno da antiga Colônia Antonio Justa, José
Arimateia Costa, mas conhecido como Pirelli.Em contraste com o seu perfil esguio e
sua baixa estatura, a fluência de sua voz ecoa sonora, refletindo o soeu entusiasmo
pela defesa da causa dos hansenianos e pelo soeu envolvimento com os esforços do
movimento de emancipação dos atingidos pela temível doença.
Para quem não conhece sua trajetória de vida, aquele indivíduo franzino, á
primeira vista, pode afigurar-se como uma vítima fatal, a ser reproduzida como
espelho das vítimas do mal, demonstração chocante e de um amargo existencial, mas
ao ouvi-lo a figura esquálida se metamorfoseia, transfigurada num ardoroso defensor
dos hansenianos e preocupado em demonstrar o seu interesse pela vida.
A solidão que lhe foi imaginada, assim foi contestada: "tive seis companheiras,
mas só casei duas vezes.Só teve um desses amores que me marcaram até hoje." Além
dessas, outras aventuras foram rememoradas e nas suas palavras, "hoje eu vivo só,
mas dou os o meus pulinhos de gato." A sua vontade de viver assim foi traduzida
Eu não tive dificuldade em minha vida afetiva, porque eu fui uma pessoa com a estrela virada
por céus. Porque eu fui muito querido, ainda sou muito querido,...Eu sou uma pessoa que
aprendi no dia a dia, o meu melhor professor foi o mundo. Por quê? Eu soube escolher, não fui
um cara perfeito, tive meus erros, .. mas eu sempre procurei fazer o correto, aprender, falar
bem, ouvir as pessoas, ouvir um noticiário importante, politicamente.Tudo influenciava o meu
dia a dia e hoje eu sou um pessoa que tô preparado pra discursar, como já discursei duas
vezes para o presidente Lula....
E mais reveadora é a sua definição de vida: "a felicidade pra mim é acreditar
que Deus existe e que tudo e possível desde que o senhor se decida a buscar aquilo, a
alcançar aquele seu objetivo..."
À primeira vista os assistidos e os prestadores da assistência dispensada aos
doentes desempenham funções diferenciadas, envolvendo no serviço prestado a
posição social do prestador da assistência social aplicada aos tendidos carentes.São
duas representações de atividades sociais diferenciadas, principalmente observandose a ação profissional dos médicos e dos clientes, onde as fronteiras do saber se
apresentam muitas vezes em polos opostos, pela formação profissional, marcada com
o selo de uma formação de ensino superior, típica de um profissional da
medicina.Entretanto, quando médicos e pacientes se envolvem no tratamento de uma
mesma doença as fronteiras impostas são ultrapassadas, quando se analisa a força das
interações sociais e muitas vezes o aprendiz no trato das questões evocadas não é
apenas o profissional da saúde, pois muito ele tem a aprender com o paciente
assistido.
Os motivos que levaram os profissionais da saúde a se especializarem naquele
serviço de tratamento da temível moléstia podem ser variados, mas as experiências
cotidianas amadurecem a sua maneira de agir profissionalmente, revelando um
aperfeiçoamento espontâneo de cada um dos envolvidos nesse campo de trabalho,
tornando compensador aos assistidos o resultado obtido com a dedicação envolvente
do trabalho prestado.
Um depoimento nos prendeu a atenção, de modo especial, o da auxiliar de
enfermagem Maria Célia de Rezende, mais conhecida como Irmã Célia, funcionária
residente na Colônia Antônio Diogo, desde 1999.Sua vida religiosa foi iniciada em
Campinas e a sua vinda para o Ceará foi o resultado de um pedido seu à direção da
Congregação religiosa, a que pertencia, com o intuito de melhor prestar um serviço
pastoral comprometido com as mensagem evangélica.O seu interesse por uma
dedicação total aos hansenianos assim nos foi explicada
Eu sou muito devota de São Francisco e gostaria de seguir Nosso senhor da maneira que ele
seguiu.Aqui estava muito carente naquela época.Tanto que as irmãs saíram por conta das
dificuldades,Nós chegamos aqui logo depois que elas saíram. Essa direção quando assumiu chegou a ter
que cozinhar no carvão.Eu pensei em ir embora, porque via poucas condições para fazer alguma coisa.Aí
foi quando Deus suscitou um bocado de anjos da guarda que começaram a ajudar o Estado não coloca
dinheiro aqui dentro.Aqui a gente não recebe dinheiro, é licitação.Então houve um tempo que não valia
apena.A gente amanhecia o dia e não tinha o que fazer.não havia material curativo, não se tinha
material de campo...
Quando as irmãs entregaram a direção da Colônia Antonio Diogo ao Estado,
ele pediu afastamento da ordem religiosa, pois desejava continuar seu trabalho
pastoral e ali continuou , após aprovada num concurso público para técnica em
enfermagem.
Para uma melhor definição do significado dos espaços reservados aos
hansenianos, o compensador é comparar as experiências vividas nesses duas excolônias, a de Antonio Justa e a Antonio Diogo.A primeira. localizada em Maracanaú
por ser mais nova se afigurava como mais moderna, considerando o amplo espaço
ocupado, com terrenos suficientes ao plantio e alguns reservatórios ode água naturais
e um outro construído com a instalação de uma pequena barragem.Além de um prédio
mais amplo, reservado às religiosas que o dirigiam, havia uma capela, várias
residências destinadas aos solteiros ou idosos, que viviam sem a companhia de seus
familiares.Um longo muro circundava a frente da colônia com uma extensão pelas
laterais.
A Colônia de Antônio Diogo, por ser mais antiga do que a de Maracanaú, se
afigura como menos conservada e atraente aos que a comparam, afinal o velho
sempre se associa ao decadente, inadequado.Com o passar do tempo confrontando a
situação dos dois espaços estudados, a representação se inverteu, enquanto a velha
colônia se apresenta com mais preservação do seu patrimônio material e uma limpeza
que prende a atenção de quem a visita, a colônia de Maracanaú demonstra o declínio
com a perda de grande parte do seu espaço, em função da ocupação por desabrigados,
até ali deslocados não apenas levados pelas necessidades que os afligiam, por decisão
própria, mas com o apoio e a permissão das autoridade municipais, que lhes
prometiam a devida assistência e vigilância, presente apenas nos discursos
comemorativos.
Um outro depoimento valioso, para a compreensão das peculiaridades da
antiga colônia Antônio Justa foi a da técnica em enfermagem, Jaqueline de Aquino
Silva, lotada nesse Posto de Saúde, em Maracanaú.Ela reconhece a discrepância
revelada pelo confronto entre a situação das duas ex colônias .Enquanto a de Antônio
Diogo preservou seus muros, indicando como meta a conservação da sua segurança
material, a de Antônio Justa se deixou levar pelos discursos em prol de uma almejada
liberdade, na luta pela reintegração social, expressa na representação simbólica da
derrubada dos seus muros, mas os resultados foram inversos.A liberdade apregoada
trouxe o "lado ruim do movimento, quando a quebra das barreiras divisórias foi
abolida, permitindo um invasão social, com a chegada dos abrigados
das
enchentes,lotados nos antigos prédios da antiga colônia.
Algumas pessoas passaram a vender terrenos, embora o território não
constitua uma propriedade privada, mas é terra do Estado, e as pessoas mais espertas
passaram a vender terrenos e a antiga colônia perdeu mais de 50% do seu antigo
território, só restando o antigo hospital e antiga residência das irmãs foi ocupado,
além de antigos pavilhões. O Estado só mantém o antigo hospital, seus funcionários e
o Centro de Convivência, onde residem alguns velhos ex internos.
Nas palavras da Jaqueline,
Por que essa terra tem tanto problema, se não é nem do Estado nem do Município? Dizem que
é da União, que doou para o Estado, que poro sua vez doou ao Município...e as
medidas assistenciais não podem ser implantadas, por falta de documentos referentes
à posse das terras disputadas.Mas puderam construir o Fórum de Maracanaú, um
condomínio da Caixa Econômica Federal e agora se fala num hotel....
Os comentários apresentados pelo Dr. José Edilson Araújo Melo, antigo diretor
da Colônia Antônio Diogo, que também trabalhou na Regional de Saúde do Crato,onde
existia uma endemia de hanseníase, demonstram o peso da doença na tradição social:
"o preconceito foi muito grande, foi violento e permanece ainda hoje, mas bem menos
centrado. Se você for ouvir depoimentos, muitos casos tristes são narrados, pois até
hoje existe muito preconceito." A afirmação do médico foi reforçada pela Dra Tereza
Cristiana,
Eu faço parte do grupo das pessoas que acreditam que o preconceito ainda é enorme em
relação à hanseníase.
Se você faz um diagnóstico de hanseníase num paciente como eu
faço, quando atendo pacientes do município, a primeira coisa que o paciente fala é "eu posso
não falar lá me casa?" Precisa minha família saber?" Ainda hoje n século XXI, nós temos
problemas de crianças que são extremamente estigmatizadas se na escola souberem que foi
feito um diagnóstico de hanseníase na família.Para mim piorou, na minha opinião técnica foi
um equívoco do Brasil.O Brasil pé o único país que trocou o nome lepra por hanseníase e hoje a
população brasileira desconfia que a hanseníase tem cura, mas não sabem nem o que é
hanseníase e acham que a lepra ainda é uma doença decorrente de um castigo de Deus...Você
tem que ficar longe da pessoa atingida.
O isolamento dos filhos de hansenianos, embora parcial se comparado ao
imposto aos seus pais, se via compensado pelos laços de sociabilidade e sensibilidade. (
RAMOS et al.,2010) tecidos e mantidos no cotidiano do sistema de internato, a que
eram submetidos e o rigor disciplinar de um internato, como o Eunice Weaver,
localizado em Maranguape, instalado para abrigar filhos de hansenianos, não os
transformava em agentes passivos incapazes de deixar transparecer seus anseios e
aspirações.São as teias do poder, definido longe das fronteiras exclusivas dos
dominantes, controladores das rédeas do poder mas incapazes de extinguir a tênue
força dos subordinados, que persiste e não desiste de se revelar, apesar das barreiras
que lhe foram impostas. O poder opressor antes temido, não mais se afigura como o
proprietário exclusivo da ordem vigente, considerando a nova visualização do
panorama social observado, bem compreendido através da descoberta da "microfísica
do poder". (FOUCAULT, 2012)
A memória das antigas internas,do educandário Eunice Weaver, constitui uma
fonte preciosa, considerando a riqueza de suas narrativas, que remetem o observador
para além das antigas colônias, em geral definidas como palco exclusivo dos
envolvidos com a hanseníase. O polo profundo da memória social, dos filhos de
hansenianos, configurado alegoricamente como um canal escuro, mas fornecedor de
um precioso líquido, metamorfoseado em uma água cristalina, que se delineia como m
espelho limpo, revelador da luminosidade das experiências de vida dos seus agentes
evocados através do cruzamento de memórias individuais e de memórias coletivas.
(HALBWACHS,1990)
O Educandário Eunice Weaver foi criado em 22 de novembro de 1942, no
mesmo ano da inauguração do Antônio Justa.O nome atribuído ao da Instituição era da
sua fundadora, uma carioca casada com um americano, autora das ideia de instalar
um abrigo para acolher os filhos dos hansenianos.Todo ano Dona Eunice fazia uma
visita ao Educandário e as ex internas guardam boas recordações dessas visitas: "Ela
era muito branca, bonita, delicada, muito fina, o cabelo branco, enrolado em um
coque, ela botava as crianças no colo, queria ver como tudo estava".
Uma figura sempre referenciada nos relatos sobre o Educandário foi Dona
Lucinda Pires Saboia, a primeira Diretora do Educandário.A primeira impressão, sobre
o seu perfil, a define como uma pessoa muito dedicada, mas ao mesmo tempo as
alusões negativas são rememoradas pro todas aquelas jovens, que a conheceram
como a controladora da disciplina cotidiana, demonstrada pelos severos castigos
imputados às que ousassem desobedecê-la e poro suas relações grosseiras às
infratoras das normas impostas, chegando inclusive a bater com mão fechada nas
"mal comportadas" e a beliscar com firmeza nas possíveis infratoras,Muito piedosa,
"franciscana do Terceiro Coração de Jesus", lembrava o perfil de uma freira, só vestia
vestidos de azul e branco e nunca cortava o cabelo.
Os benefícios recebidos pelas internas do educandário não se destinavam a
todas, em virtude da discriminação, por parte da Diretora, as mais prendadas em geral
eram as mais bonitas e as negras eram mais perseguidas, como a interna Núbia Cabral.
sempre castigada por seu temperamento forte, que a levava a contestações contra a
severa vigilância, expressa nos rigorosos castigos impostos às desobedientes.Um caso
relatado pela Professora Mirtes Dantas bem expressa as contradições disciplinares
internas ali registradas.Durante o mês de maio, quando da comemoração da festa de
"coroação de Nossa Senhora," a Mirtes escolheu como a indicada para almejada
coroação uma menina negra, mas a Diretora não gostou
A Lucinda não gostou, nãoia mais a ensaios, a gente tinha que organizar tudo sozinha, ela
reclamou de mim, porque eu tinha colocado aquela menina lá em cima, para coroar Nossa
senhora, quando havia tanta menina bonita, menina branca e a minha escolhida foi uma preta.
Justifiquei a minha escolha afirmando que, apesar de negra, ela tinha um linda voz, um rosto
lindo e o seu cabelo era bem liso;
Uma informação que nos surpreendeu dizia respeito à fuga de alguns internos
no Educandário .A maioria dos ousados fugitivos era do sexo feminino e o namoro com
um pretendente não aprovado pela severa vigilância moral da Diretora constituía a
razão de uma ousada ruptura das fronteiras impostas. Embora a permanência no
sistema de internato tenha sido longo, para amaria daquelas que ali permaneceram e
em seu todo afigurava como um estágio benéfico, afinal ali estava o espaço de
trabalho inicial e de lazer de suas vidas, mutiladas pela ausência dos pais,
Não se tinha liberdade para nada, era um regime tipo quartel. Havia hora para tudo e isso
permaneceu em nossas vidas até hoje, conservando a experiência de vinte anos de internato.Não
desejo que nenhuma criança viva naquele regime, como o da gente.Como agente recebeu
apenas isso a gente transmite o que ficou Se não recebeu amor, nem carinho, nem dedicação
afetiva de ninguém, como é que a gente pode dar? Quando há problemas com os meninos lá em
casa, eu rezo, é o que eu posso fazer, para resolver a situação de convivência melhor.
Nesse fluxo continuo da memória, as marcas de um passado sofrido não são
apagadas de forma integral. deixando suas marcas, mas o conteúdo do inconsciente
dos ex internos do Educandário vai mais além do que a simples marca de repressão,
deixando fluir desse pesado passado fluidos positivos, capazes de amenizar as marcas
deixadas pelo caráter repressor do sistema de controle social, ali adotado,
possibilitando o nascer de uma esperança capaz de transformar a dor da existência em
uma reveladora vivência.
O estudo da hanseníase constitui um desafio a um compromisso coletivo.Sem
as conclusões definitivas, nem pontos finais, a saída é seguir o fluxo das continuidades
indagativas, reflexivas, não passivas, alimentadas pelo inconsciente coletivo num
mergulho nos polos psicológicos, do individual e do coletivo, no caudal das
sensibilidades e das sociabilidades, associadas a uma individuação, afinal "como todos
os outros objetos, o homem é uma estação de troca de influências em vez de uma
única fonte de ação, um "eu"... (FEYERABNED,2011, p. 242). As peculiaridades da
hanseníase se perpetuam como um desafio contínuo aos discursos proferidos e aos
preceitos científicos adotados, confirmando as fragilidades das instituições sociais e da
razão humana ante o ímpeto avassalador das evidências históricas enfrentadas. Nos
desafios revelados em uma história de longa duração, "as representações coletivas",
extraídas da sociologia de Durkheim, revelam "o manejo complexo entre modelos,
individuais e sociais. (BLOCH, 1001,p.9).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc.Apologia da História Ou O Ofício do Historiador.Rio de Janeiro:Zahar,
2001.
ELIAS, Nobert.O Processo Civilizador:formação do Estado e da Civilização. Vol. 2. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 1993.
FENTRESS, James & WICKHAM, Chris.Memória social: novas perspectivas sobre o
passado. Lisboa: Teorema, 1994.
FERGUSON, Niall.A grande degeneração: decadência do mundo ocidental.São
Paulo:Planeta, 2013.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção de
patrimônio cultural in ABREU, Regina e CHAGAS, Mário (Org.) Memória e patrimônio
cultural: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 56-76.
FEYERABEND. Paul. Contra o método.2.ed. São Paulo: editora Unesp, 2011.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.25 ed. São Paulo:Graal, 2012.
GOODY. Jack.O roubo da história.Como os europeus se apropriaram das ideias e
invenções do Oriente.2.ed. São Paulo: Contexto, 2012.
HALBWACHS,Maurice.a Memória Coletiva.São Paulo:Centauro, 2006.
RAMOS, Alcides Freire;MATOS, Maria Izilda Santos de e PATRIOTA, Rosangela,
(organizadores) Olhares sobre a história: culturas, sensibilidades, sociabilidades, São
Paulo: Editora Hucitec; Goiás:PUC Goiás, 2010.
SILVA, Zélia Lopes da. Arquivos, Patrimônios e Memória: trajetórias e perspectivas.São
Paulo: Editora UNESP, 1999.
Download