J Bras Nefrol 2002;24(3):153-6 153 Relato de caso: mucormicose em rim transplantado Case report: mucormycosis in renal allograft Yvoty Alves dos Santos Sensa, Dino Martinib, Luciano Portante Watanabeb, Cristiane Paiva Gadelhaa, José Ferraz de Souzaa e Pedro Jabura a Disciplina de Nefrologia da FFaculdade aculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São PPaulo. aulo. São PPaulo, aulo, SP SP,, Brasil. Departamento de PPatologia atologia FFaculdade aculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São PPaulo. aulo. São PPaulo, aulo, SP SP,, Brasil b Infecção fúngica. Transplante renal. Mucormicose. Fungal infection. Kidney transplantation. Mucormycosis. Resumo A mucormicose em rim transplantado é infecção rara, capaz de produzir sepse, e poucos casos têm sido descritos. Relata-se um caso de mucormicose em rim transplantado que se manifestou por dor persistente na região lombar, urina estéril, aumento do tamanho do rim com coleções perirrenais associado à perda progressiva da função renal. Abstract Mucormycosis in kidney transplantation is a rare infection resulting in an acute illness and sepsis. Few cases have been reported in the literature. A case of kidney graft mucormycosis is reported. Renal mucormycosis should be suspected in patients with persistent lumbar pain, sterile urine, enlarged kidney and perirenal collections, and decreased renal function. I n t r o d u ç ã o Mucormicose é o termo usado para denominar a infecção grave causada por fungo saprófito pertencente à classe Mucorales. Muitas espécies diferentes desse fungo filamentoso têm sido identificadas como agentes etiológicos da mucormicose, sendo mais freqüentes os gêneros Rhizopus, Rhizomucor, Absidia, e Mucor. A porta de entrada da infecção em seres humanos ocorre por meio de inalação dos esporos ou inoculação diretamente na pele.1,2 Experimentalmente, a inoculação intravenosa pode causar mucormicose sistêmica.2 A doença ocorre em pacientes de risco, como imunossuprimidos, portadores de neoplasias, de diabetes mellitus, insuficiência renal crônica ou traumatizados.3 A mucormicose renal primária em rins primitivos ou transplantados é infecção rara, que ocasionalmente causa doença grave com sepse e alta mortalidade. O presente trabalho relata um caso de mucormicose em rim transplantado. 5-1394rim.p65 153 Relato do caso Paciente masculino de 47 anos, admitido com história de dor lombar à direita com irradiação para membro inferior direito havia cinco dias, sem outras queixas. Havia realizado transplante renal havia um mês, com doador cadáver (encefalopatia anóxica pós-obstrução aguda das vias aéreas superiores em portadora de alergia (sic) e com uso prolongado de corticóide). O receptor era portador de doença policística (rins e pâncreas) e havia sido submetido à nefrectomia direita por hematúria intensa havia 18 meses. Também era portador crônico de infecção pelo vírus da hepatite C. O transplante renal foi realizado com implante do enxerto renal à direita, e a imunossupressão consistiu-se de ciclosporina A, micofenolato de mofetil e corticóide. Evoluiu no pós-operatório imediato sem intercorrências, recebendo alta após 13 dias, com função renal normal. No 30 o dia de pós-operatório, foi novamente internado com a queixa acima referida. A temperatura estava normal. Apresentava dor lombar à 13/08/02, 17:12 154 J Bras Nefrol 2002;24(3):153-6 direita, com irradiação para o membro inferior direito, o que dificultava sua movimentação. O hemograma mostrou hemoglobina de 13 g/dl, leucócitos 22.500/ ml (neutrófilos 96%: bastonetes 11%; segmentados 85%; linfócitos típicos 2%; eosinófilos 2%) e plaquetas 179.000/ml; urina I: proteínas 4+, leucócitos e hemácias numerosas; urocultura negativa; creatinina sérica 3,9 mg/dl; hemoculturas negativas. O ultra-som renal com ecodoppler mostrou rim transplantado aumentado de tamanho (14,4 cm x 8,1 cm) com leve dilatação pielocalicial e material espesso nos grupamentos caliciais superiores e médio, coleções (2) líquidas no pólo superior e adjacente ao hilo renal. Os índices de resistividade e pulsatilidade apresentavam-se no limite superior da normalidade nas artérias renais e intra-renais. Radiografia do tórax normal. Com hipótese de abscesso perirrenal, o paciente foi submetido à reabordagem cirúrgica, que evidenciou pequena coleção para-hilar e saída de secreção purulenta por orifício da bainha do músculo psoas. Foram realizadas limpeza, drenagem cirúrgica e biópsia renal. O paciente recebeu antibioticoterapia, inicialmente com imipenem/cilastatina sódica e vancomicina. A cultura da secreção revelou Pseudomonas aeruginosa, e a biópsia renal, necrose tubular aguda de grau discreto. O paciente evoluiu com perda progressiva da função renal e sepse. Culturas da secreção da incisão cirúrgica identificaram Stafilococcus aureus, e da urina, Penicilium sp. Os antibióticos foram trocados para ceftazidime, netilmicina, vancomicina e anfotericina B sem melhora do quadro, sendo realizada transplantectomia. A administração de anfotericina B iniciou-se quatro dias antes da transplantectomia e foi mantida por sete dias até o óbito. Na cirurgia foi observada importante reação inflamatória perirrenal. Ao exame macroscópico, o rim mediu 18 cm x 13,5 cm x 9 cm. O parênquima estava amolecido, esbranquiçado e parcialmente substituído por material de aspecto necrótico-purulento. Em várias áreas, a necrose comprometia as papilas renais. O exame microscópico em diferentes níveis mostrou parênquima renal dissociado por processo inflamatório constituído por extensas áreas de necrose com acúmulo de piócitos. Envolvendo essas áreas, observou-se proliferação histiocitária com células gigantes multinucleadas, disposta de maneira a esboçar granulomas. Em meio ao processo existiam estruturas alongadas com caracteres de hifas não septadas, características de mucormicose (Figura 1 e Figura 2). O paciente não melhorou, desenvolveu ne- 5-1394rim.p65 154 Mucormicose em rim transplantado - Sens YA dos S et al. crose tecidual na incisão cirúrgica e óbito. Não foi obtida permissão para necrópsia. Figura 1- Reação inflamatória tipo corpo estranho com célula gigante fagocitando estruturas arredondadas birrefringentes com caracteres de micélios de mucormicose. Figura 2- Coloração pelo método de Grocott mostrando estruturas argenticas positivas com caracteres de murcomicose. D i s c u s s ã o A mucormicose é infecção rara e altamente invasiva, que ocorre preferencialmente em imunossuprimidos. O comprometimento renal em rins primitivos ou transplantado é raro e geralmente ocorre após infecção disseminada. Quase todo paciente tem fatores predisponentes, sendo mais freqüentes infecção pelo vírus da imunodeficiência adquirida humana, terapêutica com corticóides, diabetes mellitus, uso de drogas intravenosas, alcoolismo e traumatismo.2,3 Também tem sido descrita em pacientes leucopênicos com doenças linfoproliferativas e após transplante de medula óssea, principalmente nas formas com comprometimento pulmonar ou disseminada.4 É encontrada em 0,5% a 1% dos receptores de transplante.5 A apresentação mais 13/08/02, 17:12 Mucormicose em rim transplantado - Sens YA dos S et al. freqüente é na forma de doença rinoencefálica fulminante ou pneumonia necrotizante com hemoptise maciça.1 Singh et al, revendo 46 casos da forma invasiva da infecção em receptores de transplante de órgãos sólidos, encontraram 57% com comprometimento rinoencefálico; 13%, pulmonar, cutânea e disseminada; 2%, gastrointestinal; e 2%, renal. A infecção ocorreu em média dois meses após o transplante, e a maioria dos pacientes era diabética ou havia recebido terapêutica anti-rejeição com corticóide.6 Nas formas mais raras, como no comprometimento gastrointestinal, as manifestações variam de ulcera péptica colonizada pelo fungo até doença infiltrativa com invasão vascular, causando trombose, infarto e colite isquêmica.7,8 Esse fungo tem a propensão de invadir e se proliferar no endotélio dos vasos sanguíneos, causando trombose local e disseminação hematogênica. Carr et al descrevem caso de mucormicose fatal que invadiu a incisão cirúrgica da parede abdominal, como possivelmente ocorreu com o paciente descrito.9 Poucos casos têm sido relatados envolvendo o enxerto renal. Além disso, eles são limitados a determinadas áreas geográficas, especialmente em países tropicais.10-13 A infecção no rim transplantado é possivelmente causada por transmissão direta do doador, durante o ato cirúrgico, ou disseminação hematogênica a partir de foco pulmonar primário subclínico.10 Raramente suspeita-se desse diagnóstico, que deve ser cogitado quando há dor local no rim transplantado, febre que não responde à terapêutica antibiótica, aumento heterogêneo do rim (visualizado por exames de imagem) e urina estéril, ocasionalmente hematúria ou urocultura com crescimento de múltiplos germes,2 semelhante ao quadro apresentado pelo paciente em questão. Neste caso, além desses sintomas e sinais, o paciente também apre- J Bras Nefrol 2002;24(3):153-6 155 sentava dor lombar, ocasionada, possivelmente, pelo comprometimento do músculo psoas pela infecção. Pelo quadro inicial e pelaforma de evolução, sugerese que a mucormicose foi responsável pelas alterações iniciais acima descritas e que as infecções bacterianas detectadas a seguir foram secundárias. O microorganismo responsável pela mucormicose é difícil de ser cultivado, a não ser em meio de cultura apropriado, e torna-se inviável quando sua parede é lesada pela manipulação do tecido.2 A infecção é diagnosticada geralmente pelo exame histológico de material de biópsia, de tecido ressecado cirurgicamente ou pós-mortem, aparecendo como hifas não-septadas, em vasos sanguíneos trombosados, circundadas de neutrófilos e células gigantes. O tratamento é a pronta ressecção cirúrgica da área envolvida e terapêutica antifúngica prolongada, sendo a anfotericina (dose total 2 g a 3 g) a droga de escolha. Os azoles, incluindo itraconazol e fluconazol, não são efetivos.2,4,5 Apesar dessas medidas, a mortalidade geral excede 90%. O prognóstico depende da condição clínica, idade do paciente e grau de disseminação da infecção.5,13,14 Para Singh et al, a mortalidade foi 100% para a forma disseminada, 50% em pacientes com comprometimento rinoencefálico tratados com anfotericina B e ressecção cirúrgica e nenhuma para a forma pulmonar e subcutânea.6 Em conclusão, a mucormicose é infecção rara e com alta mortalidade. Sua incidência tende a aumentar, conseqüente à imunossupressão mais intensa com as novas drogas imunossupressoras. O conhecimento das diversas manifestações clínicas (incluindo formas mais raras como gastrointestinal e renal) e dos fatores predisponentes pode ajudar a reconhecer precocemente essa doença em pacientes transplantados e, assim, reduzir a morbidade e a mortalidade. R e f e r ê n c i a s 5-1394rim.p65 1. Gupta KL, Khullar DK, Behera D, Radotra BD, Sakhuja V. Pulmonary mucormycosis presenting as fatal massive haemoptysis in a renal transplant recipient . 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