Aula 6 - Uma genealogia das psicoses

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A gênese das psicoses
Aula 6
Na aula de hoje, gostaria de iniciar nossa discussão sobre a paranoia, seu
desenvolvimento e desaparecimento. De fato, a paranoia desapareceu do quadro
clínico psiquiátrico desde o DSM V. No DSM IV ela era definida como um subtipo
da esquizofrenia – falava-se então em esquizofrenia de tipo paranóide, juntamente
com outros quatro tipos: desorganizado (caracterizado pelo discurso e pensamento
desorganizado, além de afeto inadequado), catatônico (caracterizado por uma
acentuada perturbação motora, como imobilidade, atividade excessiva, extremo
negativismo, mutismo etc.), indiferenciado (esquizofrenia que não se enquadra nos
outros três tipos) e residual (quando há apenas um episódio de esquizofrenia, mas o
quadro clínico não apresenta sintomas psicóticos positivos proeminentes). Enquanto
sub-tipo, a paranóia seria marcada, principalmente, pela consistência sistemática das
interpretações delirantes (perseguição, erotomania, ciúme, grandeza etc.) e pela
ausência de deterioração intelectual. Por sua vez, sua causalidade seria sindrômica, já
que seria o resultado de uma articulação entre fatores psicológicos e vulnerabilidades
constitucionais (genéticos e obstétricos)1.
No DSM V este quadro desapareceu para dar lugar a transtornos delirantes
especificados a partir de sete tipos: erotomania, delírio de grandeza, de ciúme,
persecutório, somático, misto e não especificado. Ou seja, a estrutura definidora da
paranoia desapareceu para dar lugar ao tratamento isolado de alguns de seus sintomas.
Sai-se assim de uma perspectiva clínica baseada na orientação para a estrutura e
caminha-se para uma orientação taxionômica. Uma modificação que deve ser
compreendida levando em conta o que se perde quando uma categoria clínica
desaparece. O que não podemos mais ver quando não guiamos o olhar clínico a partir
da identificação de certas categorias?
Por outro lado, lembremos como o DSM V conservou a categoria de
“transtorno de personalidade paranóide”. Um transtorno de personalidade é: “um
padrão constante de experiência interna e comportamento que desvia, de forma
constante, da expectativa cultural do indivíduo, é invasivo e inflexível, tem seu início
na adolescência ou no começo da idade adulta, é estável e leva a danos ou a angústia
(impairment or distress)”2. Tais desvios dão-se nas áreas da cognição, da afetividade,
da capacidade de controle e das relações intersubjetivas. Não é difícil notar a natureza
disciplinar destes quadros clínicos que partem da pressuposição da existência de
padrões relativamente coesos e não problemáticos de comportamento.
No caso dos transtornos de personalidade paranoide, os critério diagnóstico
giram em torno de um padrão de comportamento marcado por uma desconfiança e
suspeita contínua de outros cujos motivos são interpretados como malévolos. Tais
critérios são descritos como: “suspeita, sem base suficiente, de que outros estão
explorando, prejudicando ou enganando o paciente”, “o paciente se preocupa com
dúvidas injustificadas sobre a lealdade ou confiança de amigos e associados”, “lê
ameaças escondidas por trás de eventos ou colocações benignas”, etc.
Breve história da paranoia
1
Ver, CRAIGHEAD, Edward, CRAIGHEAD, Linda e MIKLOWITZ, David; Psychopathology:
history, diagnosis and empirical foundations, New Jersey: Wiley, 2008, pp. 402-434
2
DSM V, p. 645
Façamos inicialmente um rápido histórico da paranoia a fim de melhor contextualizar
nosso problema. Sabemos que a paranoia é certamente uma das categorias clínicas
mais antigas que temos notícia. Sua raiz grega não nos deixa dúvidas. Paranoia vem
do grego para e nous, ou seja, algo como “ao lado do espírito”, fora do que deve ser o
espírito. No entanto, é só em meados do século XIX que ela ganha sistematização,
principalmente através do Tratado de psiquiatria (1879), do psiquiatra alemão
Richard Krafft Ebing, além dos esforços posteriores de classificação desenvolvidos
por Emil Kraepelin. Desde o início de sua sistematização, a paranoia conservou-se
como modalidade de doença mental cuja característica essencial era aquilo que
podemos ainda encontrar no DSM IV, a saber: “presença de delírios ou alucinações
auditivas proeminentes no contexto de uma relativa preservação do funcionamento
cognitivo e do afeto” 3 . Krapelin ainda apresenta uma distinção entre paranoia e
parafrenia, sendo a primeira marcada por delírios crônicos, enquanto a segunda podia
admitir alucinações e: “devido a um desenvolvimento mais ligeiro das perturbações
da emoção e da volição, a harmonia interna da vida psíquica fica consideravelmente
menos afetada ou, pelo menos, limitada a certas faculdades intelectuais”4.
Tal especificação da paranoia respondia a uma tendência maior da psiquiatria
ocidental até então, a saber, distinguir um modo de loucura onde as funções de
julgamento e os usos da linguagem eram, em larga medida, conservados em sua
estrutura formal de outro onde tais funções superiores eram eliminadas no interior de
um processo de regressão que classicamente foi chamado de “demência”. Esta
dicotomia, tão bem caracterizada na distinção alemã entre Wahnsinn e Verrückheit,
continuou na psicanálise com sua distinção entre esquizofrenia e paranoia. No
entanto, ela tende a ser diminuída na psiquiatria contemporânea, que unificou todo o
espectro das psicoses sob a categoria geral de “esquizofrenia”.
A partir do seu estabelecimento, foi no campo da psicanálise que a paranoia
apareceu como a forma privilegiada da psicose. Freud e Lacan, por exemplo, são dois
psicanalistas que trabalham exclusivamente com a categoria de paranoia. Tal
prevalência se desenvolve pela paranoia aparecer em uma posição decisiva no quadro
clínica psicanalítico. Lembremos, por exemplo, como a reflexão freudiana sobre a
paranoia desenvolve-se como setor de uma reflexão a respeito das neuroses. Daí uma
afirmação como: “a investigação psicanalítica não seria possível se os doentes não
tivessem a peculiaridade de revelar, ainda que de forma distorcida, justamente o que
os demais neuróticos escondem como um segredo”5. Neste sentido, a paranoia teria
como característica deixar à céu aberto os conflitos que são encobertos na neurose.
Mas esta função central da paranoia será ainda mais aprofundada. Pois
podemos ver nesta conservação relativa da estrutura cognitiva e afetiva na paranoia
um traço importante. Alguns psicanalistas viram nela a indicação de um regime de
participação em valores sociais e modos normatizados de raciocínio que dão forma à
própria noção de personalidade. É pensando nisto que alguém como Jacques Lacan
dirá, em uma tese de doutorado dedicada à paranoia: “A economia do patológico
parece assim calcada sobre a estrutura normal”6. O que é, no fundo, uma derivaçào
consequente da ideia freudiana segundo a qual : “mesmo formações mentais tão
extraordinárias, tão afastadas do pensamento humano habitual, tiveram origem nos
3
DSM IV, p. 317.
KRAEPELIN, Emil; Demência precoce, parafrenia, p. 113
5
FREUD, Observações psicanalíticas sobre uma caso de paranoia, p. 14
6
LACAN, Jacques ; De la psychose paranoiaque dans ses rapports à la personalité, Paris: Seuil, 1975,
p. 56.
4
mais universais e compreensíveis impulsos da vida psíquica”7. Isto porque ela absorve
os modos formais de raciocínio e comportamento próprios à estrutura normal. Freud
costumava dizer que a conduta patológica expõe, de maneira ampliada (Freud fala de
Vergrösserung e Vergröberung), o que está realmente em jogo no processo de
formação das condutas sociais gerais. É desta forma que devemos interpretar uma
metáfora maior de Freud : "Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não
arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos
limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal"8. O
patológico é este cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do
comportamento definido como normal. Neste sentido, Lacan radicalizará uma
intuição de Freud que consiste em se perguntar se a paranoia não expõe, como em
uma lente de aumento, a natureza do modo de formação da personalidade que
determina a figura da subjetividade moderna.
Notemos que, se a esquizofrenia era definida a partir da dissociação da
personalidade, estabelecendo com isto a personalidade e toda sua estrutura de valores
como horizonte de regulação da noção de normalidade psíquica, a paranoia em sua
versão psicanalítica acaba por operar como uma desconstituição da personalidade
enquanto categoria reguladora da intervenção clínica por aproximar-lhe em demasia
da própria paranoia. Não por outra razão, psicanalistas como Jacques Lacan discutirão
as relações entre psicose paranoica e personalidade a fim de defender a hipótese de
existência de uma espécie de fundo paranoico em todo processo de constituição da
personalidade. No fundo, trata-se de levar a sério a ideia de Jacques Lacan, enunciada
ao comentar a razão pela qual ele se relutou a republicar sua tese de doutorado sobre
as relações entre psicose paranoica e personalidade: “Se resisti por tanto tempo à
republicação de minha tese, é simplesmente pelo seguinte, é que a psicose paranoica e
a personalidade como tal não têm relações, simplesmente por isso, porque são a
mesma coisa”9.
Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como encontramos tal
intuição da maneira com que a paranoia exporia a estrutura escondida do
comportamento normal em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e
Poder, de Elias Canetti 10 . Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na
presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e um
“vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à
defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia
paranoica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso. Por trás da
máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido
a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à necessidade compulsiva
do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se
acalma quando uma relação causal é encontrada.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranoia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e
7
FREUD, Sigmund; Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia, In: O caso Schreber e
outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 24
8
FREUD, Sigmund; ibidem, p. 64
9
LACAN, Jacques; Séminaire XXIII: Le sinthome, Paris: Seuil, 2005, p. 53
10
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
contingências da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência
absoluta de sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste
sentido, não seria incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias
crenças, um efeito maior daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de
reificação. O que talvez nos permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão,
pois é o risco aberto quando ocorre uma reificação da própria estrutura do
conhecimento. Exemplo ilustrativo deste processo de reificação é dado por Freud a
caracterizar a linguagem psicótica como: “uma linguagem que trata as palavras como
coisas” 11 . Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor Tausk,
conduzida à clínica após uma disputa com seu amante e portando a seguinte
reivindicação: “Meus olhos (Augen) não estão como devem estar, eles estão revirados
(verdreht)”. Resultado da coisificação da metáfora: “meu amado é um hipócrita, um
Augenverdreher”. Pois, se Freud afirma que, na esquizofrenia, há a predominância da
relação de palavra sobre a relação de coisa, é porque as palavras foram coisificadas.
Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que
parecem nortear o sofrimento paranoico. Falamos de unidade, identidade, controle e
risco de invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a unificação de um
território a todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já neste momento, como
os motivos paranoicos parecem derivados de uma certa compreensão a respeito
daquilo que uma ordem deve ser capaz de produzir.
Paranoia e psicanálise
Na estrutura clínica psicanalítica, a paranoia é ainda concebida como um dos
três quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a
esquizofrenia e a melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização
atual não é muito distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud
compreendia a paranoia como um “modo patológico de defesa” que se servia de
mecanismos como o delírio 12 e uma forte tendência à projeção de representações
inconciliáveis com a coerência ideal do Eu. Freud fala de: “um abuso do mecanismo
de projeção para fins defensivos”13 na paranoia. Esta noção da formação patológica
como mecanismo de defesa é enunciada de forma clara em um texto de 1924:
A etiologia comum para o início de uma psiconeurose ou psicose permanece
sendo o impedimento, a não realização de algum daqueles eternamente
indomáveis desejos de infância, enraizados profundamente em nossa
organização filogeneticamente determinada14.
À ocasião de seu texto paradigmático relativo ao caso Schreber, tais
mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em uma desesperada reação
contra um certo impulso homossexual impossível, por razões estruturais, de ser
vivenciado como tal pelo sujeito. Isto demonstrava como Freud estava muito mais
interessado em uma determinação causal específica do que em uma pretensa descrição
diferencial dos sintomas paranoicos.
11
FREUD, GW vol. X, p. 298
Sendo que, em Freud, o delírio paranoico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
13
FREUD; Manuscrito H, In: Neurose, psicose, perversão, p. 18
14
FREUD; Neurose e psicose, In: Neurose, psicose, perversão, p. 274
12
Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a
homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da
fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,
paranóico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma
intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à
impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da
alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que
Freud chamava de “narcísico”. Freud compreende que a libido passa por estágios de
maturação, como o autoerotismo, o narcisismo e a escolha objetal. Partilhando a
concepção de doença mental como regressão, que vimos em Kraepelin, Freud
associará a paranoia a uma fixação na fase narcísica. Assim, ele dirá:
Na paranoia a libido liberada se volta para o Eu, é utilizada para o
engrandecimento do Eu. Com isso atinge-se novamente o estágio do
narcisismo, conhecido no desenvolvimento da libido, no qual o próprio Eu era
o único objeto sexual. Por causa desse testemunho clínico supomos que os
paranoicos trazem uma fixação no narcisismo, e dizemos que o recuo da
homossexualidade sublimada ao narcisismo indica o montante da regressão
característica da paranoia15.
Há duas ideias fundamentais aqui. Primeiro, no narcisismo o próprio Eu é o
objeto de investimento libidinal. Posteriormente, Freud distinguirá narcisismo
primário e secundário para descrever um estágio no qual o Eu retoma e internaliza
investimentos anteriores de objeto, o que provoca uma modificação na própria
estrutura do Eu, já que ele absorve no seu interior, sob a forma de identificações,
antigos investimentos de objeto. Segue-se daí uma perda de investimento libidinal na
realidade responsável pela produção de uma “perturbação nas relações entre Eu e
mundo exterior”16. Freud chega a falar que o Eu cria autonomamente para si um novo
mundo exterior e interior. Ele fornece um exemplo didático, presente em um texto a
respeito da diferença entre neurose e psicose no que se refere à perda da realidade:
Quero voltar, por exemplo, a um caso analisado há muitos anos, no qual a
moça, apaixonada por seu cunhado, fica abalada com a seguinte ideia no leito
de morte da irmã: ‘agora ele está livre e pode se casar com você’. Essa cena é
imediatamente esquecida e, com isso, é acionado o processo de regressão que
leva aos sofrimentos histéricos. Mas, nesse caso, é justamente instrutivo
observar por qual caminho a neurose procura resolver o conflito. A neurose
desvaloriza a alteração real, na medida em que recalca a exigência pulsional
em questão, isto é, o amor pelo cunhado. A reação psicótica teria sido recusar
a realidade do fato da morte da irmã17.
Segundo ponto importante, haveria algo de narcisismo sublimado na
homossexualidade, o que permitiria um retorno no qual o homossexualismo se associa
a uma confusão narcísica entre eu e outro.
Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si em um outro aparece
como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até então, sustentavam
uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra o homossexualismo
15
FREUD, idem, p. 96
FREUD; Neurose e psicose, p. 272
17
FREUD; A perda de realidade na neurose e na psicose, p. 279
16
é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranoica, todo reconhecimento
de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito invasiva, o que
coloca uma personalidade formada a partir da internalização de identificações em rota
contínua de colapso. A este respeito, podemos lembrar como, no caso Schreber, a
produção delirante transformou-se em modo de estabilização para tal conflito
psíquico. Haja vista um delírio como:
“Quando falo de cultivo da volúpia, que se tornou como que um dever para
mim, não quero dizer jamais um desejo sexual por outras pessoas (mulheres)
ou um contato sexual com elas, mas sim que represento a mim mesmo como
homem e mulher numa só pessoa, consumando o coito comigo mesmo,
realizando comigo mesmo certas ações que visam a excitação sexual, ações
que de outra forma seriam consideradas indecorosas, e das quais se deve
excluir qualquer ideia de onanismo ou coisas do gênero”18
Notemos ainda como tal situação indica um certo modo de ligação defensiva à
identidade, de negação da “interioridade da diferença”, que demonstram a fragilidade,
no caso da psicose, dos modos de síntese psíquica fundadas na noção funcional de Eu.
Esta ideia da psicose como fragilidade estrutural do processo de produção de
identidades subjetivas aparecerá de maneira mais sistemática nos trabalhos de Jacques
Lacan.
Lembremos também como Jung definirá a esquizofrenia como uma
introversão da libido, em um esquema utilizado por Freud para falar da paranoia.
Segundo a ideia de Jung, a libido retirada do mundo se volta para o Eu, produzindo
assim os fenômenos de autismo e avolição descritos por Bleuler como fundamento do
quadro esquizofrênico. Trata-se assim de um estado secundário construído sobre a
base de um narcisismo primário (investimento libidinal originário do Eu).
Posteriormente, tal investimento originário será cedido aos objetos. É só com o
investimento de objeto que seria possível distinguir energia sexual e energia das
pulsões do Eu, libido do Eu e libido de objeto.
Gostaria então de, inicialmente, expor a teoria freudiana da paranoia para
depois passarmos a teoria lacaniana da paranoia. Como sabemos, a teoria freudiana é
construída principalmente a partir da interpretação de um relato escrito por Daniel
Paul Schreber em seu Memória de um doente dos nervos. Notemos já um dado
significativo, Freud trabalha um relato literário, nós não estamos diante de um caso
derivado de sua clínica, como temos no caso Dora, no caso do Homem dos Lobos e
do Homem dos Ratos.
Esta natureza “literária” da fonte freudiana não deveria nos deixar indiferentes.
O desejo de escrita indica forma de participação social, forma de constituição de uma
“narrativa”, de uma história pessoal que será maneira de constituir um Eu lá onde Eu
nenhum é mais possível. Por outro lado, não haverá em Freud a descrição de um
processo de cura, de uma intervenção clínica bem sucedida. A psicanálise, mesmo
tendo uma teoria das psicoses, será basicamente uma clínica das neuroses. Mesmo
Lacan, quando escrever em 1932 uma tese sobre a paranoia servindo-se de um caso
que ele acompanhará (o “caso Aimée”) não poderá apresentar uma clínica das
psicoses. Seus desenvolvimentos posteriores serão teoricamente decisivos para uma
teoria psicanalítica das psicoses, mas não para uma clínica estruturada das psicoses.
18
SCHREBER, Daniel Paul; Memória de um doente dos nervos, São Paulo : Paz e Terra, 1986, p. 218
Esta clínica será, a sua maneira, tentada apenas a partir dos anos cinquenta,
por psicanalistas que irão procurar sistematizar práticas ligadas à análise institucional,
como, por exemplo, Jean Oury e Felix Guattari. Mas neste momento, a prevalência do
quadro paranoico será abandonada em prol de uma recuperação da esquizofrenia,
agora sob novas bases.
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