21 Etnomedicina veterinária, etnonosotaxia e etnoterapêutica de doenças de pele como referência para seleção e avaliação preliminar da atividade antibacteriana de plantas nativas no sul do Brasil 1 2 AVANCINI, C.A.M. ; WIEST, J.M. 1 Departamento de Medicina Veterinária Preventiva / Faculdade de Veterinária / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av. Bento Gonçalves, 9.090. Bairro Agronomia, Porto Alegre, RS. CEP 91.540-000. * cesar. 2 [email protected] . Departamento de Ciência dos Alimentos / Instituto de Ciência e Tecnologia dos Alimentos / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. RESUMO: Na busca de novos antimicrobianos aplicáveis em ambientes de saúde e de produção animal, os objetivos desta investigação foram os de realizar pesquisa qualitativa para selecionar plantas nativas no sul do Brasil e submeter suas extrações à avaliação da atividade antibacteriana. Usando como referenciais metodológicos a etnomedicina veterinária e a etnografia aplicada, aliadas a técnica da amostra intencional, obteve-se a construção de quadro etnonosotáxico relacionando enfermidades de pele, sintomas ou sinais e indicações terapêuticas que permitiram a seleção de 21 plantas nativas no sul do Brasil para serem experimentadas quanto a possível atividade biológica antimicrobiana. Através do teste de diluição com sistema de tubos múltiplos, seus extratos decoto e maceração hidro-etílico foram confrontados com oito diluições logarítmicas dos inóculos bactérianos padronizados Staphylococcus aureus ATCC 25.923 e Salmonella chorerae-suis ATCC 10.708. Das plantas selecionadas, doze (57%) apresentaram alguma atividade antibacteriana. Cinco manifestaram esta atividade nas formas decocto e macerado, sete apenas na forma macerado e nenhuma apenas como decocto. Frente às duas amostras de bactérias, nove plantas foram ativas nas duas formas de extrato, duas apenas frente à bactéria Gram positiva e uma apenas frente à Gram negativa. Os resultados indicaram que a pesquisa orientada pela recuperação de conhecimento gerado em sistemas tradicionais de saúde é um bom instrumento na prospecção de plantas com atividade antibacteriana potencial. Palavras-chave: etnomedicina veterinária, etnoveterinária, antimicrobiano, plantas medicinais, desinfetante ABSTRACT: Veterinary ethnomedicine, ethnonosotaxy and ethnotherapy of skin diseases as a reference for selection and preliminary evaluation of the antibacterial activity of native plants in Southern Brazil. In search of new antimicrobial agents applicable to health and animal production environments, the objectives of this investigation were to develop a qualitative research to select native plants from Southern Brazil and submit their extraction to evaluation of antibacterial activity. By using veterinary ethno-medicine and applied ethnography along with the intentional sample technique as the theoretical background, an ethononosotaxy framework was obtained associating skin diseases, symptoms or signs and therapeutic indications. Such framework allowed the selection of 21 native plants in southern Brazil for the experimentation of their probable biological antimicrobial activity using the dilution test with multiple tubes’ system. Decocto and hydro-ethylic maceration were contrasted with eight logarithmic dilutions of standardized bacterial inoculants Staphylococcus aureus ATCC 25923 and Salmonella choreraesuis ATCC 10708. From the plants selected, twelve (57%) showed some antibacterial activity. Five manifested such activity when dococto and macerated, seven only when macerated and none when decocto alone. From the two samples of bacteria, nine plants were active in both forms of extraction, two only for Gram-positive bacterium and only one for Gram-negative. Results indicate that research based on knowledge generated in traditional health systems is a good instrument for prospecting plants with potential antibacterial activity. Key words: veterinary ethnomedicine, ethnoveterinary, antimicrobial, medicinal plants, disinfectants Recebido para publicação em 28/09/2006 Aceito para publicação em 04/09/2007 Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008. 22 INTRODUÇÃO Tratando sobre a diversidade cultural e a produção de conhecimentos considerados tradicionais ou populares, na área da Medicina Veterinária, Maar (1992) observa que uma grande quantidade de sociedades tem organizado e experimentado, muitas vezes com êxito, várias técnicas terapêuticas e práticas especiais que servem para tratar e proteger seus animais. Entretanto, ainda seriam poucos os profissionais veterinários que estariam prestando alguma atenção a esta experiência empírica, relegando-a ao ultrapassado. Para McCorkle (1989), veterinários e outros cientistas da área biológica freqüentemente teriam depreciado o conhecimento veterinário local. Mais recentemente, no entanto, cientistas e especialistas em desenvolvimento internacional estariam vendo a etnomedicina-veterinária como uma fonte potencialmente valiosa de novas idéias e de produtos farmacêuticos com aplicação tanto em países do primeiro mundo como nos do terceiro mundo, bem como um fator de manutenção da biodiversidade e aprendizado à agricultura sustentável de baixos insumos. Denomina-se etnomedicina veterinária à sistemática investigação para compreensão sobre crenças e métodos práticos relativos aos cuidados de saúde e de criação dos animais (McCorkle, 1986; Mathias-Mundy & McCorkle, 1995), sendo tarefa do etnógrafo, coletar e documentar conceitos locais sobre etiologia, sintomas, tratamento ou profilaxia das doenças reconhecidas. Pesquisas sobre plantas medicinais progrediram no objetivo de verificar a natureza química e biológica das drogas nelas existentes. Historicamente, contudo, o produto planta medicinal, ou de modo convencional o produto natural, como objeto substancial da farmacognosia, está direcionado e conectado ao conhecimento popular de seu uso e o acesso a essas informações é essencialmente interdisciplinar incluindo, além das ciências biomédicas, a antropologia, a sociologia médica e a lingüística (Labardie et al., 1989). Neste sentido, desenvolve-se projeto cujo objetivo geral é o de verificar se determinadas espécies vegetais utilizadas em sistemas de saúde tradicionais, as denominadas plantas medicinais, podem ser usadas como desinfetantes para controlar bactérias de interesse em ambientes de saúde e produção animal. Objetiva-se verificar, outrossim, se esses recursos, natural e culturalmente renováveis, podem ser adequados às criações de animais no contexto da agricultura de base familiar brasileira. Especificamente, objetiva-se relatar sucintamente o resultado de etnografia aplicada na coleta de informações sobre doenças de pele e sobre plantas consideradas medicinais para seu tratamento, sobre a seleção de matéria médica vegetal de uso tradicional e posterior investigação da atividade biológica antibacteriana de suas diferentes extrações. MATERIAL E MÉTODO Etnografia Aplicada Para realizar a investigação sobre o uso de plantas medicinais em saúde animal e humana sobre as práticas tradicionais de saúde e de cura, utilizaramse as metodologias da etnografia aplicada (Etkin, 1993; Ngokwey, 2000) e da amostragem intencional (Marconi & Lakatus, 1996) elegendo-se uma informante tradicional/popular, especialista em plantas consideradas medicinais. Na interpretação dos dados etnográficos teve-se como referencial teórico o sistema de causa das doenças (Foster, 1976; Ngokwey, 1988). Também, empreendeu-se trabalho de tradução cultural (Elisabetsky & Setzer, 1985). Este buscou identificar, na linguagem vernacular, categorias etnonosotáxicas que servissem como fios condutores de terapêuticas com uso de plantas que posteriormente pudessem ser avaliadas quanto a sua bioatividade, por meio de experimentação referenciada na ciência médica convencional hegemônica. Triagem da atividade antibacteriana Extração As formas de uso para teste constituíramse na solução decocto e na solução obtida de maceração hidro-alcoólica, escolhidas por indicação da etnografia, aproximada por padronização segundo Liberalli (1972) e Farmacopéia Brasileira (1959). A decocção procedeu-se em frasco Erlenmayer, boca semi-fechada, contendo a proporção de 1 g da planta para cada 10 mL de água destilada, cocção em fogo brando por 15 minutos, repondo-se assepticamente o volume inicial evaporado durante o processo. A maceração hidro-alcoólica (etílica a 70oGL) foi preparada também na proporção de 1 g da planta para 10 mL do líquido extrator, armazenada por no mínimo 30 dias. A evaporação do álcool foi procedida à temperatura de 60oC, sob baixa pressão, repondose o volume inicial com água destilada estéril. Amostra vegetal As amostras vegetais foram colhidas de vegetação expontânea, na região metropolitana de Porto Alegre RS/BR (latitude 30”01’39”, longitude 51”13’40” e a uma altitude de 4,71 m), nos anos em 2003 e 2004. As plantas foram secas à sombra, armazenadas em local seco e protegidas da luz. Exsicatas identificadas estão depositadas no herbário (ICN) do Departamento de Botânica/Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/BR. Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008. 23 Técnica de avaliação da atividade antibacteriana As bactérias indicadoras foram Stapphylococcus aureus ATCC 25.923 e Salmonella cholerea-suis ATCC 10.708. A escolha dos gêneros bacterianos ocorreu por recomendação normatizada sobre testes de antimicrobianos de ambiente (desinfetantes) (Brasil, 1988). O método para avaliação da atividade antibacteriana foi o de diluição, com a técnica do sistema de tubos múltiplos, usada para avaliar esta atividade em desinfetantes (modificada por Avancini et al., 2000), confrontando a solução teste com 8 diluições logarítmicas dos inóculos. As diluições e a verificação da dose infectante inicial dos inóculos foram efetuadas segundo Neder (1992). Cada uma das três repetições do experimento somente era validado se, ao final da linha de diluição (10-8 UFC mL-1), houvesse ainda crescimento bacteriano. RESULTADO E DISCUSSÃO Relato e Conexões da Etnografia No trabalho de campo para a coleta de informações foram observados os conhecimentos, acompanhadas as práticas e identificados os recursos de cura utilizados pela informante Sra. Maria Nunes, de 78 anos de idade. Trata-se de migrante rural, moradora no município de Viamão/RS/BR, especialista erveira tradicional no uso de plantas consideradas medicinais para enfermidades de animais e humanos, participantes pioneiros destacados na Pastoral da Saúde/Comunidade Eclesial de Base na região metropolitana de Porto Alegre/RS/BR. Após ser-lhe explicado o projeto, manifestando-lhe o interesse em conhecer as plantas que consideravam medicinais, solicitou-lhe que, quando possível, deveriam estas estar mais relacionadas ao uso e aplicação nos animais. A informante reforçou esta afirmação indicando que “tudo o que é de uso para gente, é de uso para os bichos”. Afirmou ainda que as doenças não seriam diferentes. Também Bartolome (1968), Anjaria & Metalie (apud Mathias-Mundy & McCorkle, 1995) observaram relato semelhante, anotando que as práticas na Veterinária, bem como os pensamentos míticos que estudaram, não evidenciaram por si mesmas uma concepção particular do animal, já que consistiam em procedimentos cujos princípios seriam válidos e se aplicariam igualmente aos humanos, relacionandose com uma concepção geral da enfermidade e os meios de atuar sobre ela. Para Suárez (1974), a constelação de sintomas e a variedade de tratamentos atribuídos a cada doença requerem ordenamento e estabelecimento das categorias etiológicas que são adotadas em cada sistema médico tradicional. Para a interpretação dos dados usou-se como referencial teórico o sistema de causas de doenças, distinguindo entre os fatores etiológicos que se referiam às causas não naturalísticas (sobrenaturais) e às naturalísticas (que aceitam como causa das doenças forças ou elementos naturais). Os relatos etnográficos indicaram que a informante trabalha com mais de uma causa, além da coexistência de modelos médicos tipo quente/frio, tipo humoral ou mesmo baseado no biomédico.Alertase que, por mais que o processo de cura estivesse subjacente a esse tema, não foi intenção o seu estudo. O processo de cura envolve dimensões outras que não apenas o uso do medicamento ou remédio. Deve ser manejado conjuntamente com signos culturais, emocionais e ambientais para dar conta da reorganização do corpo humano ou animal enfermo. No entanto, neste trabalho, direcionou-se a atenção às práticas naturalísticas que envolvessem as plantas referidas como medicinais. Para objetivar a investigação na coleta de informações sobre plantas que pudessem apresentar atividade antimicrobiana, direcionou-se as entrevistas questionando sobre enfermidades de pele. Esquivel & Zolla (1986) julgam que, para estabelecer uma correspondência entre os quadros nosológicos tradicionais e os apresentados pela medicina moderna convencional, a dermatologia ofereceria um campo particularmente interessante, já que a descrição das enfermidades assenta-se sobre a morfologia, e esta circunstância permite efetuar comparações básicas entre as descrições e os conceitos de uma e outra medicina. Na Tabela 1, tem-se o quadro etnonosotáxico descrito pela informante, a sintomatologia e/ou sinais e a indicação terapêutica de exemplos de enfermidades que podem ser observadas na pele. Posteriormente, baseado nas observações dadas pelo contexto etnográfico, realizou-se a tradução cultural, decifrando a nomenclatura e quadro clínico mencionado transcrevendo/relacionando, quando possível, para o sistema médico convencional. Descrevem-se, à seguir, três exemplos do que foi trabalhado na etnografia aplicada, e que serviram como fios condutores na seleção das plantas que foram avaliadas quanto à atividade biológica antibacteriana. Se o etnógrafo falhou, as etapas posteriores podem ficar comprometidas. a- O “sangue sujo”. Existem doenças que aparecem na pele, mas que tem causas internas. Assim é o caso de “sangue sujo”, do qual uma das manifestações são “feridas na pele”. Para tratamento, pode ser usada a Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008. 24 TABELA 1. Etnoclassificação: o quadro nosográfico das doenças da pele infusão da planta “erva-de-bugre” que, “se é boa para limpar o sangue, é boa para feridas”. Essas manifestações cutâneas, com causas internas, também podem necessitar tratamento externo, pois poderiam “infeccionar”. Como recorrência desta categoria etnonosológica, encontra-se na terapêutica popular Brüning (1988) recomendando para doenças da pele, que “o melhor tratamento de pele consiste em deixar o intestino limpo”. As doenças de pele têm geralmente seu início nas putrefações intestinais, que sujam o sangue, e este leva a sujeira até a pele. Entre outras medidas, “usar chás depurativos”. O “sangue sujo” é uma entidade nosológica que parece não ter correspondência na medicina convencional. b- O “câncer” (ou “lepra”) O sinal indicado é o de que “vai comendo a pele, vai se alastrando”. O câncer, como designado na medicina convencional, trata-se de uma neoplasia, crescimento de células novas que proliferam sem controle, não exerce nenhuma função útil e carece de disposição ordenada. Na oncologia a maior parte da atenção esta dirigida para os cânceres, como são chamados os neoplasmas, designados como malignos (Runnels et al., 1975). Para Frei et al. (1971), os carcinomas (neoplasias do tecido epitelial) da pele e das mucosas apresentam-se freqüentemente sob a forma de infiltrações difusas que ulceram na superfície (úlceras cancerosas). A lepra (enfermidade cuja etiologia não afeta os animais domésticos) é uma enfermidade infecciosa granulomatosa crônica, produzida pelo Mycobacterium leprae, caracterizada por lesões na pele, nervos e vísceras, com anestesia local, ulceração e grande variedade de lesões tróficas (Fortes & Pacheco, 1968). Provavelmente por semelhanças na aparência das estruturas anatomo-patológicas superficiais foi feita, pela informante, a associação entre as nominações “câncer” ou “lepra”, como sendo entidade patológica única. Podemos traduzir esta figura etno-nosológica - “câncer/lepra” - como se referindo à ulcerações dérmicas que podem ter diversas causas, sendo que entre elas pode referir-se a estrutura patológica do câncer de pele, da própria lepra, entre outras. A informante considera a possibilidade de que muitas vezes o que hoje é chamado de câncer, “ser a lepra de anos passados”. Interessante anotar, por exemplo, que o farmacêutico Heitor Luz, em seu livro “Manual do tratamento de moléstias: trabalho de medicina para farmacêuticos” (Luz, 1926), distinguindo os medicamentos sob o ponto de vista da prática médica e veterinária, denominam de “anticancerosos” todos os medicamentos e os tópicos que se empregam contra o “cancro”. Esquivel & Zolla (op. cit.) encontraram em seu estudo sobre entidades nosológicas populares no Estado de Chiapas, no México, que a palavra “câncer” se aplica à toda afecção cutânea rebelde aos tratamentos e é de difícil cicatrização, e que a expressão com este sentido decorreria do uso que lhe foi atribuído durante o período de dominação espanhola. Para o tratamento do “câncer”, a indicação da informante é usar “plantas que são cicatrizantes”, como o caso da “mil-em-folha”. c - A “micose” Na expressão usada pela Sra. Maria, “micose” é uma doença de pele que “logo inflama e infecciona”. As causas seriam os “os germes”. Observamos aqui a adoção de terminologias convencionais ao modelo da medicina contemporânea hegemônica. No entanto, a atenção deve ser voltada para verificar se a nomenclatura usada é apenas uma apropriação da terminologia médica, mas que tem referência nas doenças entendidas por meio de outros sistemas ou modelos de compreensão de sua causa. Algo como a apropriação simbólica de nomes para a legitimação de seus diagnósticos e tratamentos. Ou então, que a adoção da terminologia hoje convencional pode indicar que alguns recursos etiológicos e diagnósticos da medicina moderna foram adotados por parecem mais eficazes para explicar e tratar algumas enfermidades. A esse respeito, poderia ser um bom caminho o que desvelasse os elementos de síntese e de síncrese. Convencionalmente, a micose é o nome Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008. 25 genérico das infecções causadas por fungos, em seres humanos e animais. E dividida em duas categorias: as micoses profundas (sistêmicas) como a aspergilose, a mucormicose, a criptococose e a candidíase, cujos sintomas e sinais variam com o órgão envolvido; as dermatofitoses (superficiais), infecção do tecido queratinizado (pele, pêlos e unhas) causada por fungos de vários gêneros como o Microsporum e o Tricophyton. A inflamação pode ser mais ou menos severa, variando com as características dos fungos (Fraser, 1991). Já no Dicionário Médico, de Fortes & Pacheco (1968), a denominação patológica micose possui um sentido mais amplo. É indicada como doença causada por fungos, mas também descrita genericamente como uma doença de pele, caracterizada por “entumescimento cutâneo, como tumores congestivos, dolorosos e tendência à abcedação e que tem etiologia desconhecida”. Portanto, ao ouvir a informante, precisamos perceber a diversidade de possibilidades nosográficas às quais ela teve acesso durante seu histórico de vida social, seja no meio rural por aprendizado com outras praticantes tradicionais da medicina, seja no meio urbano por interações de convivência com profissionais médicos. Entendeu-se traduzir a entidade “micose” como sendo lesões dérmicas referentes à dermatites TABELA 2. Planta nativas no sul do Brasil com indicação etnográfica de uso em “micoses” de pele. Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008. 26 de origem microbiana, de modo geral. Na etnografia não foram descritas ou observadas possíveis diferenças entre dermatites de origem etiológica bacteriana ou fúngica. A informante referiu-se, também, a um quadro de “micose braba”, que não pudemos observar, mas acredita-se que sejam dermatoses que não regridem com os procedimentos adotados. Parece que a distinção esta mais ligada a características, à intensidade e à persistência dos sintomas do que à etiologia. Para o tratamento das “micoses”, a informante indica o uso de plantas que são “antibióticas”. Na Tabela 2 podem ser observadas as plantas nativas no sul do Brasil indicadas e selecionadas para os procedimentos de triagem de verificação da atividade antibacteriana. Triagem: plantas que apresentaram atividade antibacteriana Na Tabela 3, podem ser observados os resultados da triagem de atividade antibacteriana das plantas selecionadas. Das 21 plantas selecionadas, 12 (57%) apresentaram alguma atividade antibacteriana. Cinco manifestaram esta atividade nas formas decocto e macerado hidro-alcoólico, 7 apenas na forma macerado e nenhuma apenas como decocto. Frente às duas amostras de bactérias, 9 plantas foram ativas nas duas formas de extrato, duas apenas frente a bactéria Gram positiva e 1 apenas frente à Gram negativa. TABELA 3. Resultados da atividade antibacteriana das soluções decocto e macerado hidro-alcoólico reconstituídas de plantas, avaliadas por meio do teste sistema de tubos múltiplos, com oito diluições dos inóculos, leitura até as 144 h., expressos na média de unidades formadoras de colônia por mililitro (UFC mL-1) inibidas e inativadas. S.aureus = Staphylococcus aureus ATCC 25.923; S.chs = Salmonella chorerae-suis ATCC 10.708; - = não ação/atividade Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008. 27 Para as extrações das plantas que não apresentaram atividade antimicrobiana, presume-se que a falta de evidência desta atividade biológica não comprova a ausência da mesma. Pode-se supor, por exemplo, que a escolha dos microrganismos tenha sido o limitante, seja pela eleição das bacterias, ou por não confrontar os extratos de plantas em estudo com eucariotos (fator espectro de ação). Por outro lado, a indicação poderia ter recomendação apenas para os sintomas da patologia indicada. CONCLUSÃO Empreender a pesquisa etnográfica aplicada, direcionando a investigação para os aspectos culturais relacionados às plantas medicinais, mesmo sem explorar a realidade cultural em profundidade, mostrou-se resolutiva no sentido de permitir revelar a existência de complexo conhecimento do mundo natural relativo ao sistema saúde e doença, diagnóstico e cura por práticas e matéria médicas, atualmente, não convencionais à Medicina Veterinária. Foram confirmadas, também, informações obtidas em trabalhos de outros autores, de que a concepção das enfermidades e os meios de atuarem sobre elas são as mesmas para os animais e os humanos. A etnografia mostrou que na formulação do diagnóstico, no sistema médico adotado pela informante, vários modelos coexistem e podem ser acionados conjuntamente. Essa articulação de modelos médicos refletiu-se em um modo nosotáxico peculiar. Por meio da organização de um quadro etnonosológico de enfermidades de pele foram encontradas as categorias “micose” e “antibiótico” como pontes construídas pela informante para dialogar com a ciência contemporânea. Foi essa “brecha” intercultural que permitiu a seleção de 21 plantas para dar inicio ao trabalho de investigação laboratorial. Quanto à eficácia da prospecção de antimicrobianos por meio da etnografia aplicada sobre bases da ciência do concreto (conhecimento tradicional de plantas consideradas medicinais), encontrou-se evidência de que 57% das plantas selecionadas apresentaram alguma atividade antibacteriana. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA AVANCINI, C.A.M.; WIEST, J.M.; MUNDSTOCK, E.Atividade bacteriotática e bactericida do decocto de Baccharis trimera (Less.) DC., Compositae, “carqueja”, como desinfetante ou anti-séptico. Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, v.52, n.3, p.230-34, 2000. BARTOLOME, L. El pensamiento mitico en la veterinaria folklorica. Archivo para las Ciencias del Hombre, v.11, n.1-2, p.71-92, 1968. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária. Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Produtos Saneantes Domissanitários. Portaria no 15, de 23 de agosto de 1988. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 5 set. 1988. Seção I, p.17.041-3. BRÜNING, J. 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