Etnomedicina veterinária, etnonosotaxia e etnoterapêutica de

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Etnomedicina veterinária, etnonosotaxia e etnoterapêutica de doenças de pele como
referência para seleção e avaliação preliminar da atividade antibacteriana de plantas
nativas no sul do Brasil
1
2
AVANCINI, C.A.M. ; WIEST, J.M.
1
Departamento de Medicina Veterinária Preventiva / Faculdade de Veterinária / Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Av. Bento Gonçalves, 9.090. Bairro Agronomia, Porto Alegre, RS. CEP 91.540-000. * cesar.
2
[email protected] . Departamento de Ciência dos Alimentos / Instituto de Ciência e Tecnologia dos Alimentos /
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
RESUMO: Na busca de novos antimicrobianos aplicáveis em ambientes de saúde e de produção
animal, os objetivos desta investigação foram os de realizar pesquisa qualitativa para selecionar
plantas nativas no sul do Brasil e submeter suas extrações à avaliação da atividade antibacteriana.
Usando como referenciais metodológicos a etnomedicina veterinária e a etnografia aplicada,
aliadas a técnica da amostra intencional, obteve-se a construção de quadro etnonosotáxico
relacionando enfermidades de pele, sintomas ou sinais e indicações terapêuticas que permitiram
a seleção de 21 plantas nativas no sul do Brasil para serem experimentadas quanto a possível
atividade biológica antimicrobiana. Através do teste de diluição com sistema de tubos múltiplos,
seus extratos decoto e maceração hidro-etílico foram confrontados com oito diluições logarítmicas
dos inóculos bactérianos padronizados Staphylococcus aureus ATCC 25.923 e Salmonella
chorerae-suis ATCC 10.708. Das plantas selecionadas, doze (57%) apresentaram alguma atividade
antibacteriana. Cinco manifestaram esta atividade nas formas decocto e macerado, sete apenas
na forma macerado e nenhuma apenas como decocto. Frente às duas amostras de bactérias,
nove plantas foram ativas nas duas formas de extrato, duas apenas frente à bactéria Gram
positiva e uma apenas frente à Gram negativa. Os resultados indicaram que a pesquisa orientada
pela recuperação de conhecimento gerado em sistemas tradicionais de saúde é um bom
instrumento na prospecção de plantas com atividade antibacteriana potencial.
Palavras-chave: etnomedicina veterinária, etnoveterinária, antimicrobiano, plantas medicinais,
desinfetante
ABSTRACT: Veterinary ethnomedicine, ethnonosotaxy and ethnotherapy of skin diseases
as a reference for selection and preliminary evaluation of the antibacterial activity of
native plants in Southern Brazil. In search of new antimicrobial agents applicable to health and
animal production environments, the objectives of this investigation were to develop a qualitative
research to select native plants from Southern Brazil and submit their extraction to evaluation of
antibacterial activity. By using veterinary ethno-medicine and applied ethnography along with the
intentional sample technique as the theoretical background, an ethononosotaxy framework was
obtained associating skin diseases, symptoms or signs and therapeutic indications. Such
framework allowed the selection of 21 native plants in southern Brazil for the experimentation of
their probable biological antimicrobial activity using the dilution test with multiple tubes’ system.
Decocto and hydro-ethylic maceration were contrasted with eight logarithmic dilutions of
standardized bacterial inoculants Staphylococcus aureus ATCC 25923 and Salmonella choreraesuis ATCC 10708. From the plants selected, twelve (57%) showed some antibacterial activity.
Five manifested such activity when dococto and macerated, seven only when macerated and
none when decocto alone. From the two samples of bacteria, nine plants were active in both
forms of extraction, two only for Gram-positive bacterium and only one for Gram-negative. Results
indicate that research based on knowledge generated in traditional health systems is a good
instrument for prospecting plants with potential antibacterial activity.
Key words: veterinary ethnomedicine, ethnoveterinary, antimicrobial, medicinal plants, disinfectants
Recebido para publicação em 28/09/2006
Aceito para publicação em 04/09/2007
Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008.
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INTRODUÇÃO
Tratando sobre a diversidade cultural e a
produção de conhecimentos considerados tradicionais
ou populares, na área da Medicina Veterinária, Maar
(1992) observa que uma grande quantidade de
sociedades tem organizado e experimentado, muitas
vezes com êxito, várias técnicas terapêuticas e
práticas especiais que servem para tratar e proteger
seus animais. Entretanto, ainda seriam poucos os
profissionais veterinários que estariam prestando
alguma atenção a esta experiência empírica,
relegando-a ao ultrapassado.
Para McCorkle (1989), veterinários e outros
cientistas da área biológica freqüentemente teriam
depreciado o conhecimento veterinário local. Mais
recentemente, no entanto, cientistas e especialistas
em desenvolvimento internacional estariam vendo a
etnomedicina-veterinária como uma fonte
potencialmente valiosa de novas idéias e de produtos
farmacêuticos com aplicação tanto em países do
primeiro mundo como nos do terceiro mundo, bem
como um fator de manutenção da biodiversidade e
aprendizado à agricultura sustentável de baixos
insumos.
Denomina-se etnomedicina veterinária à
sistemática investigação para compreensão sobre
crenças e métodos práticos relativos aos cuidados
de saúde e de criação dos animais (McCorkle, 1986;
Mathias-Mundy & McCorkle, 1995), sendo tarefa do
etnógrafo, coletar e documentar conceitos locais sobre
etiologia, sintomas, tratamento ou profilaxia das
doenças reconhecidas.
Pesquisas sobre plantas medicinais
progrediram no objetivo de verificar a natureza química
e biológica das drogas nelas existentes.
Historicamente, contudo, o produto planta medicinal,
ou de modo convencional o produto natural, como
objeto substancial da farmacognosia, está direcionado
e conectado ao conhecimento popular de seu uso e
o acesso a essas informações é essencialmente
interdisciplinar incluindo, além das ciências
biomédicas, a antropologia, a sociologia médica e a
lingüística (Labardie et al., 1989).
Neste sentido, desenvolve-se projeto cujo
objetivo geral é o de verificar se determinadas espécies
vegetais utilizadas em sistemas de saúde tradicionais,
as denominadas plantas medicinais, podem ser
usadas como desinfetantes para controlar bactérias
de interesse em ambientes de saúde e produção
animal. Objetiva-se verificar, outrossim, se esses
recursos, natural e culturalmente renováveis, podem
ser adequados às criações de animais no contexto
da agricultura de base familiar brasileira.
Especificamente, objetiva-se relatar sucintamente o
resultado de etnografia aplicada na coleta de
informações sobre doenças de pele e sobre plantas
consideradas medicinais para seu tratamento, sobre
a seleção de matéria médica vegetal de uso
tradicional e posterior investigação da atividade
biológica antibacteriana de suas diferentes extrações.
MATERIAL E MÉTODO
Etnografia Aplicada
Para realizar a investigação sobre o uso de
plantas medicinais em saúde animal e humana sobre
as práticas tradicionais de saúde e de cura, utilizaramse as metodologias da etnografia aplicada (Etkin,
1993; Ngokwey, 2000) e da amostragem intencional
(Marconi & Lakatus, 1996) elegendo-se uma
informante tradicional/popular, especialista em plantas
consideradas medicinais.
Na interpretação dos dados etnográficos
teve-se como referencial teórico o sistema de causa
das doenças (Foster, 1976; Ngokwey, 1988). Também,
empreendeu-se trabalho de tradução cultural
(Elisabetsky & Setzer, 1985). Este buscou identificar,
na linguagem vernacular, categorias etnonosotáxicas
que servissem como fios condutores de terapêuticas
com uso de plantas que posteriormente pudessem
ser avaliadas quanto a sua bioatividade, por meio de
experimentação referenciada na ciência médica
convencional hegemônica.
Triagem da atividade antibacteriana
Extração
As formas de uso para teste constituíramse na solução decocto e na solução obtida de
maceração hidro-alcoólica, escolhidas por indicação
da etnografia, aproximada por padronização segundo
Liberalli (1972) e Farmacopéia Brasileira (1959). A
decocção procedeu-se em frasco Erlenmayer, boca
semi-fechada, contendo a proporção de 1 g da planta
para cada 10 mL de água destilada, cocção em fogo
brando por 15 minutos, repondo-se assepticamente
o volume inicial evaporado durante o processo. A
maceração hidro-alcoólica (etílica a 70 oGL) foi
preparada também na proporção de 1 g da planta
para 10 mL do líquido extrator, armazenada por no
mínimo 30 dias. A evaporação do álcool foi procedida
à temperatura de 60oC, sob baixa pressão, repondose o volume inicial com água destilada estéril.
Amostra vegetal
As amostras vegetais foram colhidas de
vegetação expontânea, na região metropolitana de Porto
Alegre RS/BR (latitude 30”01’39”, longitude 51”13’40” e
a uma altitude de 4,71 m), nos anos em 2003 e 2004.
As plantas foram secas à sombra, armazenadas em
local seco e protegidas da luz. Exsicatas identificadas
estão depositadas no herbário (ICN) do Departamento
de Botânica/Instituto de Biociências da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul/BR.
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Técnica de avaliação da atividade
antibacteriana
As bactérias indicadoras foram
Stapphylococcus aureus ATCC 25.923 e Salmonella
cholerea-suis ATCC 10.708. A escolha dos gêneros
bacterianos ocorreu por recomendação normatizada
sobre testes de antimicrobianos de ambiente
(desinfetantes) (Brasil, 1988).
O método para avaliação da atividade
antibacteriana foi o de diluição, com a técnica do
sistema de tubos múltiplos, usada para avaliar esta
atividade em desinfetantes (modificada por Avancini
et al., 2000), confrontando a solução teste com 8
diluições logarítmicas dos inóculos.
As diluições e a verificação da dose
infectante inicial dos inóculos foram efetuadas
segundo Neder (1992). Cada uma das três repetições
do experimento somente era validado se, ao final da
linha de diluição (10-8 UFC mL-1), houvesse ainda
crescimento bacteriano.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Relato e Conexões da Etnografia
No trabalho de campo para a coleta de
informações foram observados os conhecimentos,
acompanhadas as práticas e identificados os recursos
de cura utilizados pela informante Sra. Maria Nunes,
de 78 anos de idade. Trata-se de migrante rural,
moradora no município de Viamão/RS/BR,
especialista erveira tradicional no uso de plantas
consideradas medicinais para enfermidades de
animais e humanos, participantes pioneiros
destacados na Pastoral da Saúde/Comunidade
Eclesial de Base na região metropolitana de Porto
Alegre/RS/BR.
Após ser-lhe explicado o projeto,
manifestando-lhe o interesse em conhecer as plantas
que consideravam medicinais, solicitou-lhe que,
quando possível, deveriam estas estar mais
relacionadas ao uso e aplicação nos animais. A
informante reforçou esta afirmação indicando que “tudo
o que é de uso para gente, é de uso para os bichos”.
Afirmou ainda que as doenças não seriam diferentes.
Também Bartolome (1968), Anjaria & Metalie (apud
Mathias-Mundy & McCorkle, 1995) observaram relato
semelhante, anotando que as práticas na Veterinária,
bem como os pensamentos míticos que estudaram,
não evidenciaram por si mesmas uma concepção
particular do animal, já que consistiam em
procedimentos cujos princípios seriam válidos e se
aplicariam igualmente aos humanos, relacionandose com uma concepção geral da enfermidade e os
meios de atuar sobre ela.
Para Suárez (1974), a constelação de
sintomas e a variedade de tratamentos atribuídos a
cada doença requerem ordenamento e
estabelecimento das categorias etiológicas que são
adotadas em cada sistema médico tradicional. Para
a interpretação dos dados usou-se como referencial
teórico o sistema de causas de doenças, distinguindo
entre os fatores etiológicos que se referiam às causas
não naturalísticas (sobrenaturais) e às naturalísticas
(que aceitam como causa das doenças forças ou
elementos naturais).
Os relatos etnográficos indicaram que a
informante trabalha com mais de uma causa, além
da coexistência de modelos médicos tipo quente/frio,
tipo humoral ou mesmo baseado no biomédico. Alertase que, por mais que o processo de cura estivesse
subjacente a esse tema, não foi intenção o seu
estudo. O processo de cura envolve dimensões outras
que não apenas o uso do medicamento ou remédio.
Deve ser manejado conjuntamente com signos
culturais, emocionais e ambientais para dar conta da
reorganização do corpo humano ou animal enfermo.
No entanto, neste trabalho, direcionou-se a atenção
às práticas naturalísticas que envolvessem as plantas
referidas como medicinais.
Para objetivar a investigação na coleta de
informações sobre plantas que pudessem apresentar
atividade antimicrobiana, direcionou-se as entrevistas
questionando sobre enfermidades de pele. Esquivel
& Zolla (1986) julgam que, para estabelecer uma
correspondência entre os quadros nosológicos
tradicionais e os apresentados pela medicina
moderna convencional, a dermatologia ofereceria um
campo particularmente interessante, já que a
descrição das enfermidades assenta-se sobre a
morfologia, e esta circunstância permite efetuar
comparações básicas entre as descrições e os
conceitos de uma e outra medicina.
Na Tabela 1, tem-se o quadro etnonosotáxico
descrito pela informante, a sintomatologia e/ou sinais
e a indicação terapêutica de exemplos de
enfermidades que podem ser observadas na pele.
Posteriormente, baseado nas observações
dadas pelo contexto etnográfico, realizou-se a
tradução cultural, decifrando a nomenclatura e quadro
clínico mencionado transcrevendo/relacionando,
quando possível, para o sistema médico convencional.
Descrevem-se, à seguir, três exemplos do que foi
trabalhado na etnografia aplicada, e que serviram como
fios condutores na seleção das plantas que foram
avaliadas quanto à atividade biológica antibacteriana.
Se o etnógrafo falhou, as etapas posteriores podem
ficar comprometidas.
a- O “sangue sujo”.
Existem doenças que aparecem na pele,
mas que tem causas internas. Assim é o caso de
“sangue sujo”, do qual uma das manifestações são
“feridas na pele”. Para tratamento, pode ser usada a
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TABELA 1. Etnoclassificação: o quadro nosográfico das doenças da pele
DOENÇA
SINTOMAS/SINAIS
PLANTAS USADAS
“SANGUE SUJO”
“Feridas na pele”
Plantas como a “erva-de-bugre”
“RACHADURA”
“Comichão e bolhas; cheiro de urina”
“Plantas para eliminar ácido úrico, para os ríns”
“SARNA”
“Logo coça; a pele fica vermelha”
Plantas como o “fumo”
“RACHADURA-ALERGIA”
“Comichão com pele vermelha, mas não é sarna”
Plantas como “parreirinha mais erva-de-bicho”
“CÂNCER” (ou “LEPRA”)
“Vai comendo a pele, vai se alastrando”
Plantas que são “cicatrizantes”
“MICOSE”
“Não é igual a sarna; logo inflama; infecciona”
Plantas que são “antibióticas”
infusão da planta “erva-de-bugre” que, “se é boa para
limpar o sangue, é boa para feridas”. Essas
manifestações cutâneas, com causas internas,
também podem necessitar tratamento externo, pois
poderiam “infeccionar”. Como recorrência desta
categoria etnonosológica, encontra-se na terapêutica
popular Brüning (1988) recomendando para doenças
da pele, que “o melhor tratamento de pele consiste
em deixar o intestino limpo”. As doenças de pele têm
geralmente seu início nas putrefações intestinais, que
sujam o sangue, e este leva a sujeira até a pele. Entre
outras medidas, “usar chás depurativos”. O “sangue
sujo” é uma entidade nosológica que parece não ter
correspondência na medicina convencional.
b- O “câncer” (ou “lepra”)
O sinal indicado é o de que “vai comendo a
pele, vai se alastrando”. O câncer, como designado
na medicina convencional, trata-se de uma neoplasia,
crescimento de células novas que proliferam sem
controle, não exerce nenhuma função útil e carece
de disposição ordenada. Na oncologia a maior parte
da atenção esta dirigida para os cânceres, como são
chamados os neoplasmas, designados como malignos
(Runnels et al., 1975). Para Frei et al. (1971), os
carcinomas (neoplasias do tecido epitelial) da pele e
das mucosas apresentam-se freqüentemente sob a
forma de infiltrações difusas que ulceram na superfície
(úlceras cancerosas).
A lepra (enfermidade cuja etiologia não afeta
os animais domésticos) é uma enfermidade infecciosa
granulomatosa crônica, produzida pelo Mycobacterium
leprae, caracterizada por lesões na pele, nervos e
vísceras, com anestesia local, ulceração e grande
variedade de lesões tróficas (Fortes & Pacheco, 1968).
Provavelmente por semelhanças na
aparência das estruturas anatomo-patológicas
superficiais foi feita, pela informante, a associação
entre as nominações “câncer” ou “lepra”, como sendo
entidade patológica única.
Podemos traduzir esta figura etno-nosológica
- “câncer/lepra” - como se referindo à ulcerações
dérmicas que podem ter diversas causas, sendo que
entre elas pode referir-se a estrutura patológica do
câncer de pele, da própria lepra, entre outras. A
informante considera a possibilidade de que muitas
vezes o que hoje é chamado de câncer, “ser a lepra
de anos passados”.
Interessante anotar, por exemplo, que o
farmacêutico Heitor Luz, em seu livro “Manual do
tratamento de moléstias: trabalho de medicina para
farmacêuticos” (Luz, 1926), distinguindo os
medicamentos sob o ponto de vista da prática médica
e veterinária, denominam de “anticancerosos” todos
os medicamentos e os tópicos que se empregam
contra o “cancro”. Esquivel & Zolla (op. cit.)
encontraram em seu estudo sobre entidades
nosológicas populares no Estado de Chiapas, no
México, que a palavra “câncer” se aplica à toda
afecção cutânea rebelde aos tratamentos e é de difícil
cicatrização, e que a expressão com este sentido
decorreria do uso que lhe foi atribuído durante o
período de dominação espanhola.
Para o tratamento do “câncer”, a indicação
da informante é usar “plantas que são cicatrizantes”,
como o caso da “mil-em-folha”.
c - A “micose”
Na expressão usada pela Sra. Maria,
“micose” é uma doença de pele que “logo inflama e
infecciona”. As causas seriam os “os germes”.
Observamos aqui a adoção de terminologias
convencionais ao modelo da medicina contemporânea
hegemônica. No entanto, a atenção deve ser voltada
para verificar se a nomenclatura usada é apenas uma
apropriação da terminologia médica, mas que tem
referência nas doenças entendidas por meio de
outros sistemas ou modelos de compreensão de sua
causa. Algo como a apropriação simbólica de nomes
para a legitimação de seus diagnósticos e
tratamentos. Ou então, que a adoção da terminologia
hoje convencional pode indicar que alguns recursos
etiológicos e diagnósticos da medicina moderna foram
adotados por parecem mais eficazes para explicar e
tratar algumas enfermidades. A esse respeito, poderia
ser um bom caminho o que desvelasse os elementos
de síntese e de síncrese.
Convencionalmente, a micose é o nome
Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008.
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genérico das infecções causadas por fungos, em
seres humanos e animais. E dividida em duas
categorias: as micoses profundas (sistêmicas) como
a aspergilose, a mucormicose, a criptococose e a
candidíase, cujos sintomas e sinais variam com o
órgão envolvido; as dermatofitoses (superficiais),
infecção do tecido queratinizado (pele, pêlos e unhas)
causada por fungos de vários gêneros como o
Microsporum e o Tricophyton. A inflamação pode ser
mais ou menos severa, variando com as
características dos fungos (Fraser, 1991).
Já no Dicionário Médico, de Fortes &
Pacheco (1968), a denominação patológica micose
possui um sentido mais amplo. É indicada como
doença causada por fungos, mas também descrita
genericamente como uma doença de pele,
caracterizada por “entumescimento cutâneo, como
tumores congestivos, dolorosos e tendência à
abcedação e que tem etiologia desconhecida”.
Portanto, ao ouvir a informante, precisamos perceber
a diversidade de possibilidades nosográficas às quais
ela teve acesso durante seu histórico de vida social,
seja no meio rural por aprendizado com outras
praticantes tradicionais da medicina, seja no meio
urbano por interações de convivência com
profissionais médicos.
Entendeu-se traduzir a entidade “micose”
como sendo lesões dérmicas referentes à dermatites
TABELA 2. Planta nativas no sul do Brasil com indicação etnográfica de uso em “micoses” de pele.
Nome popular atribuido
“Macela”
“Carqueja”
“Picão-preto”
“Quebra-tudo”
“Arnica-do-mato”
“Buva”
“Erva-santa”
“Quitoco-amarelo”
“Erva lanceta”/“Federal”
“São Simão”
“Caroba”
“Erva-de-Santa
Luzia”/”Trapoeraba”
“Chufa”/”Sulfa”
“Erva-da-graça”
“Escadinha”/ “Sinapismo”
“Japecanga”
“Pixirica”
“Camboim”
“Fumo-brabo”
“Joá”/“Mata-cavalo”
“Açoita-cavalo”
Nome cientícico
Achyrocline satureoides D.C.
ICN 124895
Baccharis trimera (Less.) D.C.
ICN 124894
Bidens pilosa L.
ICN 125315
Calea serrata Less.
ICN124883
Chaptalia nutans (Linn.) Polak.
ICN 124885
Conyza bonariensis (Linn.)
Cronquist.
ICN 124888
Eupatorium laevigatum Lam.
ICN 124884
Pterocaulon cordobense O. Ktze.
ICN 126147
Solidago chilensis Meyen.
ICN 124886
Vernonia scorpioides Pers.
ICN 124887
Jacaranda micrantha Cham.
ICN 124893
Commelina erecta L.
ICN 124891
Cyperus brevifolius (Rottb.) Hassk.
ICN 125317
Croton gnaphalii Baill
ICN 124882
Hypericum caprifoliatum Cham. e
Schul.
ICN 122196
Smilax cognata Kunth.
ICN 125318
Leandra australis Cogn.
ICN 125316
Myrciaria cuspidata Berg.
ICN 124892
Solanum mauritianum Scop.
ICN 125319
Solanum sisymbriifolium Lam.
ICN 124890
Luehea divaricata Mart.
ICN 124889
Família
Asteraceae
Parte usada
flores
Asteraceae
aéreas floridas
Asteraceae
aéreas floridas
Asteraceae
aéreas floridas
Asteraceae
aéreas floridas
Asteraceae
aéreas
Asteraceae
folhas
Asteraceae
aéreas floridas
Asteraceae
aéreas
Asteraceae
aéreas floridas
Bignoniaceae
folhas
Commelinaceae
aéreas floridas
Cyperaceae
aéreas floridas
Euphorbiaceae
aéreas floridas
Hypericaceae
(Guttiferae)
aéreas floridas
Liliaceae
aéreas floridas
Melastomatacea
folhas
Myrtaceae
folhas
Solanaceae
folhas
Solanaceae
folhas
Tiliaceae
(Malvaceae)
folhas
Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008.
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de origem microbiana, de modo geral. Na etnografia
não foram descritas ou observadas possíveis diferenças
entre dermatites de origem etiológica bacteriana ou
fúngica. A informante referiu-se, também, a um quadro
de “micose braba”, que não pudemos observar, mas
acredita-se que sejam dermatoses que não regridem
com os procedimentos adotados. Parece que a distinção
esta mais ligada a características, à intensidade e à
persistência dos sintomas do que à etiologia.
Para o tratamento das “micoses”, a informante
indica o uso de plantas que são “antibióticas”. Na Tabela
2 podem ser observadas as plantas nativas no sul do
Brasil indicadas e selecionadas para os procedimentos
de triagem de verificação da atividade antibacteriana.
Triagem: plantas que apresentaram
atividade antibacteriana
Na Tabela 3, podem ser observados os
resultados da triagem de atividade antibacteriana das
plantas selecionadas.
Das 21 plantas selecionadas, 12 (57%)
apresentaram alguma atividade antibacteriana. Cinco
manifestaram esta atividade nas formas decocto e
macerado hidro-alcoólico, 7 apenas na forma macerado
e nenhuma apenas como decocto. Frente às duas
amostras de bactérias, 9 plantas foram ativas nas duas
formas de extrato, duas apenas frente a bactéria Gram
positiva e 1 apenas frente à Gram negativa.
TABELA 3. Resultados da atividade antibacteriana das soluções decocto e macerado hidro-alcoólico reconstituídas
de plantas, avaliadas por meio do teste sistema de tubos múltiplos, com oito diluições dos inóculos, leitura até as
144 h., expressos na média de unidades formadoras de colônia por mililitro (UFC mL-1) inibidas e inativadas.
Planta
Ação
Decocto
S.aureus
S.chs
UFC mL-1
UFC mL-1
2,8x106
2,1x105
2,8x105
2,1x103
Macerado
S.aureus
S.chs
UFC mL-1
UFC mL-1
2,8x108
2,1x103
2,8x107
2,1x101
Achyrocline satureoides
inibição
inativação
Baccharis trimera
inibição
inativação
2,8x104
2,8x103
2,1x103
2,1x102
2,8x107
2,8x104
2,1x104
2,1x102
Bidens pilosa
inibição
inativação
-
-
2,8x107
-
2,1x107
-
Calea serrata
inibição
inativação
-
-
2,8x104
2,8x103
-
Conyza bonariensis
inibição
inativação
-
-
2,8x105
-
2,1x105
2,1x102
Pterocaulun cordobense
inibição
inativação
2,8x108
2,8x107
-
2,8x108
2,8x107
-
Jacaranda micrantha
inibição
inativação
-
2,1x106
2,1x104
2,8x106
2,8x103
2,1x108
2,1x107
Hypericum caprifoliatum
inibição
inativação
2,8x108
2,8x108
-
2,8x108
2,8x108
2,1x104
-
Smilax cognata
inibição
inativação
-
-
2,8x105
-
2,1x105
-
Tibouchina longipilosa
inibição
inativação
-
-
-
2,1x103
2,1x103
Myrciaria cuspidata
inibição
inativação
-
-
2,8x105
2,8x102
2,1x105
2,1x104
Luehea divaricata
inibição
inativação
-
-
2,8x107
2,8x106
2,1x102
2,1x102
S.aureus = Staphylococcus aureus ATCC 25.923; S.chs = Salmonella chorerae-suis ATCC 10.708; - = não ação/atividade
Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.1, p.21-28, 2008.
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Para as extrações das plantas que não
apresentaram atividade antimicrobiana, presume-se
que a falta de evidência desta atividade biológica não
comprova a ausência da mesma. Pode-se supor, por
exemplo, que a escolha dos microrganismos tenha
sido o limitante, seja pela eleição das bacterias, ou
por não confrontar os extratos de plantas em estudo
com eucariotos (fator espectro de ação). Por outro
lado, a indicação poderia ter recomendação apenas
para os sintomas da patologia indicada.
CONCLUSÃO
Empreender a pesquisa etnográfica aplicada,
direcionando a investigação para os aspectos
culturais relacionados às plantas medicinais, mesmo
sem explorar a realidade cultural em profundidade,
mostrou-se resolutiva no sentido de permitir revelar a
existência de complexo conhecimento do mundo
natural relativo ao sistema saúde e doença,
diagnóstico e cura por práticas e matéria médicas,
atualmente, não convencionais à Medicina Veterinária.
Foram confirmadas, também, informações obtidas em
trabalhos de outros autores, de que a concepção das
enfermidades e os meios de atuarem sobre elas são
as mesmas para os animais e os humanos.
A etnografia mostrou que na formulação do
diagnóstico, no sistema médico adotado pela
informante, vários modelos coexistem e podem ser
acionados conjuntamente. Essa articulação de
modelos médicos refletiu-se em um modo nosotáxico
peculiar. Por meio da organização de um quadro
etnonosológico de enfermidades de pele foram
encontradas as categorias “micose” e “antibiótico”
como pontes construídas pela informante para dialogar
com a ciência contemporânea. Foi essa “brecha”
intercultural que permitiu a seleção de 21 plantas para
dar inicio ao trabalho de investigação laboratorial.
Quanto à eficácia da prospecção de
antimicrobianos por meio da etnografia aplicada sobre
bases da ciência do concreto (conhecimento
tradicional de plantas consideradas medicinais),
encontrou-se evidência de que 57% das plantas
selecionadas apresentaram alguma atividade
antibacteriana.
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