Artigo original Tempo decorrido entre o primeiro contato com a unidade de nefrologia e o início da diálise em pacientes com insuficiência renal crônica Flávia Gomes de Campos, Dilson Palhares Ferreira, Rodolfo Archanjo de Souza Emídio, Ana Caroline de Melo e Barros e Fábio Herbert Borges Santos RESUMO Introdução. A doença renal crônica aumenta em número de casos anualmente no Brasil, e seu custo terapêutico é sobremodo elevado. Assim, é essencial a elaboração de estratégias de prevenção e tratamento precoce para aumentar o tempo de tratamento conservador e oferecer melhor assistência àqueles com necessidade de diálise. Flávia Gomes de Campos – médica assistente, Unidade de Clínica Médica, Hospital Regional de Sobradinho, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil Objetivo. Determinar o intervalo entre a primeira consulta em unidade de nefrologia e o início da terapia dialítica em pacientes com insuficiência renal crônica. Rodolfo Archanjo de Souza Emídio – médico nefrologista, preceptor e supervisor do programa de residência médica em Nefrologia, Hospital Regional de Sobradinho, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil Método. Estudo descritivo retrospectivo cujas informações foram obtidas por revisão em prontuários de pacientes sob diálise na Unidade de Nefrologia do Hospital Regional de Sobradinho da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal durante o mês de agosto de 2011. Foram identificados 65 prontuários. Nove deles não foram analisados por inconsistência de dados, informações incompletas ou de baixa confiabilidade. Resultados. Dos 56 pacientes do estudo, 52% com início de diálise nos primeiros trinta dias após a primeira consulta com a nefrologia, 16% nos primeiros seis meses, 4% de seis a doze meses e 29% após um ano de contato com a nefrologia e seu diagnóstico de doença renal crônica. Do total, 50% foram do sexo masculino, 87,5% em idade produtiva (extremos 18 e 64 anos) e 84% em hemodiálise. Na ocasião da primeira consulta com o nefrologista, 60% dos pacientes tinham filtração glomerular inferior a 15 mL/min/1,73m2, 33%, de 15 a 29 mL/ min/1,73m2 e, 7%, de 30 a 59 mL/min/1,73m2. 82 • Brasília Med 2012;49(2):82-86 Dilson Palhares Ferreira – médico-residente em Nefrologia, Hospital Regional de Sobradinho, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil Ana Caroline de Melo e Barros – médica-residente em Nefrologia, Hospital Regional de Sobradinho, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil Fábio Herbert Borges Santos – médico-residente em Nefrologia, Hospital Regional de Sobradinho, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil Correspondência: Flávia Gomes de Campos. SQN 209, bloco G, ap. 408, Asa Norte, CEP 70.854-070, Brasília, DF. Internet: [email protected] Recebido em 16-11-2011. Aceito em 30-5-2012. Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses. Flávia Gomes de Campos e cols. • Insuficiência renal crônica Conclusão. A maioria dos pacientes teve início da diálise em curto espaço de tempo após o diagnóstico da doença renal crônica. Viabilizar o encaminhamento precoce ao especialista é fundamental para a prevenção da doença renal crônica ou para seu tratamento precoce se inevitável. from 15 to 29 mL/min/1.73m2; in 7%, it ranged from 30 to 59 mL/min/1.73m2. Palavras-chave. Insuficiência renal crônica; diálise; diagnóstico; tratamento. Conclusion. Most patients undergoing dialysis treatment had initiated treatment soon after being diagnosed as chronic kidney disease patients. Early diagnosis and subsequent follow-up with the nephrologist are essential to prevent chronic kidney disease or to treat it as soon as possible, if needed. ABSTRACT Key words. Cronic kidney disease; dialysis; diagnosis; treatment Elapsed period from the first contact with the nephrology service and the start of dialysis treatment on patients with chronic renal disease Introduction. Chronic kidney disease increases each year in Brazil and it has high treatment costs. Therefore, it is essential to elaborate strategies of disease prevention and early diagnosis for a longer period of conservative treatment and to offer better assistance to dialysis patients. Objective. To determine the interval between the first contact with the nephrology service and the start of dialysis treatment on chronic kidney disease patients. Method. This was a retrospective, descriptive study. Data were obtained after reviewing the medical records of patients undergoing treatment in August, 2011 at Hospital de Sobradinho, Health Secretariat of the Federal District of Brazil. A total of sixty-five records were identified; nine were discarded due to inconsistent or incomplete data or lack of information or reliability. Results. After reviewing all the patients’ medical records (n = 56), we observed that 52% had initiated dialysis treatment within the first thirty days, 16% had done it within the first six months, 4% from 6 to 12 months and 29% a year after their first contact with the nephrology service and the diagnosis of chronic renal disease. Half of the patients were male, 87.5% were economically active (from 18 to 64 years old) and 84% were undergoing hemodialysis treatment. We also analyzed the glomerular filtration rate in the first appointment: in 60% of patients, the rate was below 15 mL/min/1.73m2; in 33%, it ranged INTRODUÇÃO A doença renal crônica consiste em lesão renal com perda progressiva e irreversível da função glomerular, tubular e endócrina dos rins. Em sua fase mais avançada, denominada fase terminal de insuficiência renal crônica, os rins não conseguem mais manter a normalidade do meio interno do paciente.1 A doença renal crônica aumenta anualmente com impacto em morbidade e mortalidade no Brasil. Apresenta causas variadas como hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, glomerulopatias, doença renal policística, obstrução do trato urinário, infecções, intoxicações medicamentosas, distúrbios vasculares e causas indefinidas. No Brasil, a hipertensão arterial sistêmica, o diabetes mellitus e a glomerulonefrite crônica são as principais causas de insuficiência renal crônica dialítica e respondem por 75% das origens de doença renal crônica estádio V.² O contato precoce do paciente renal crônico com o especialista possibilita tratamento precoce, prorroga o tempo de tratamento conservador e reduz os custos com a terapia renal substitutiva. O objetivo do estudo foi determinar o tempo decorrido desde o início da diálise até o primeiro contato com uma unidade de nefrologia de pacientes com insuficiência renal crônica atendidos em hospital público do Distrito Federal. Brasília Med 2012;49(2):82-86 • 83 Artigo original MÉTODO RESULTADOS Trata-se de estudo descritivo retrospectivo em que as informações foram adquiridas em prontuários de pacientes em diálise na Unidade de Nefrologia do Hospital Regional de Sobradinho da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal durante o mês de agosto de 2011. Do total de 65 pacientes em diálise, nove foram excluídos do estudo por não constarem informações completas no prontuário ou por haver inconsistência de dados ou baixa confiabilidade na informação prestada. Dos 56 pacientes que tiveram seus prontuários revisados, 52% tiveram início da diálise nos primeiros trinta dias após o primeiro contato com a unidade de nefrologia, 16%, nos primeiros seis meses, 4%, de seis a doze meses, e 29%, após um ano de contato com a nefrologia e seu diagnóstico de doença renal crônica (v. figura). Não houve diferença na frequência quanto ao sexo; 87,5% estavam em idade produtiva (de 18 a 64 anos de idade) e 12,5% tinham 65 anos ou mais; 84% faziam tratamento de hemodiálise e os outros 16% estavam em programa de diálise peritoneal. As causas da doença renal crônica foram: hipertensão arterial sistêmica (38%), diabetes mellitus (14%), glomerulonefrite crônica (4%), outras (23%), não identificada (21%). O ritmo de filtração glomerular na primeira consulta foi assim distribuído: inferior a 15 mL/min/1,73m2 em 60% dos pacientes, de 15 a 29 mL/min/1,73m2 em 33% deles e de 30 a 59 mL/min/1,73m2 em 7% dos doentes. O termo de consentimento livre e esclarecido foi dispensado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. 60 52% 50 Percentagem 40 30 20 16% 9% 10 11% 7% 4% 0 <1 1-6 6-12 2% 12-24 Meses 24-36 36-48 >48 Figura. Distribuição da amostra quanto ao tempo decorrido desde o primeiro contato com a Unidade de Nefrologia do Hospital Regional de Sobradinho até o início da diálise de pacientes com insuficiência renal crônica 84 • Brasília Med 2012;49(2):82-86 Flávia Gomes de Campos e cols. • Insuficiência renal crônica DISCUSSÃO Pouco mais da metade dos pacientes teve início da diálise nos primeiros trinta dias após seu contato com o serviço de nefrologia e consequente diagnóstico de doença renal crônica. O encaminhamento tardio ou a dificuldade de acesso ao especialista, bem como a própria falta de esclarecimento do paciente sobre sua doença podem ter contribuído para esse resultado. A busca pelo especialista em estádios avançados da doença renal crônica, com necessidade de tratamento dialítico após curto período de acompanhamento especializado, é preocupante.3,4 Por outro lado, não há consenso sobre em qual estádio de insuficiência renal crônica deve-se encaminhar o paciente ao serviço de nefrologia.5 Na diretriz brasileira de doença renal crônica,6 a orientação é encaminhamento para o nefrologista quando o paciente tiver filtração glomerular menor que 30 mL/min ou mais precocemente, caso haja fator de risco para descompensação da doença renal crônica, ou seja, estádio IV de doença renal crônica. Recomendação semelhante é feita no Reino Unido, em que é preconizado encaminhamento precoce do doente ao nefrologista para possibilitar o adequado preparo à terapia renal substitutiva por acesso vascular definitivo.7 Wei e colaboradores8 mostraram que a percentagem de pacientes que iniciaram diálise com acesso vascular do tipo fístula arteriovenosa, sem inserção de cateter duplo lúmen e sem hospitalização, foram 57,7%, 50,7% e 40,8% respectivamente no grupo com encaminhamento precoce ao nefrologista, e 37,7%, 29% e 18,8% respectivamente no grupo com encaminhamento tardio. Foi observado que o custo médio do tratamento por doente no início da diálise é significativamente menor naqueles encaminhados precocemente ao especialista (US$942 ± 1,941) comparados com aqueles de encaminhamento tardio (US$2,410 ± 2,481). Este resultado se deu pela preparação antecipada do acesso vascular e pela não necessidade de hospitalização no início de diálise.8 Quando se analisam o custo-efetividade e a qualidade de vida, o momento de encaminhamento ao nefrologista tem impacto no tratamento e no prognóstico do doente.9 A média de anos de vida dos doentes depois do diagnóstico foi 3,53 anos para os pacientes encaminhados precocemente e 3,36 anos para aqueles com encaminhamento tardio. Os anos de vida livres de terapia renal substitutiva após o diagnóstico foram 2,18 e 1,76 anos, respectivamente, para os pacientes encaminhados precoce e tardiamente.10 A sobrevida dos enfermos encaminhados precocemente é maior, havendo melhor controle das complicações da doença renal crônica como doenças cardiovasculares, doença mineral e óssea, anemia, hipertensão arterial sistêmica e desnutrição.11 Pacientes com acompanhamento nefrológico tardio passaram em internação quase o dobro do tempo (41 dias) daqueles encaminhados precocemente (25 dias).10 O encaminhamento tardio tem impacto negativo em morbidade e mortalidade.12 Os portadores de insuficiência renal crônica tendem a chegar descompensados e a entrar precocemente em diálise.13 Tem sido mostrado que os pacientes apresentam maior probabilidade de irem a óbito durante o primeiro ano de diálise quando do encaminhamento tardio ao nefrologista. A maior responsável, como fator independente, pela mortalidade dos pacientes encaminhados tardiamente é a urgência dialítica.14 A necessidade do uso de cateter venoso central como acesso para hemodiálise é um preditor independente de mortalidade nos pacientes encaminhados tardiamente ao nefrologista.15 O encaminhamento precoce ao nefrologista permite melhor planejamento da propedêutica e da terapêutica da doença, a possibilidade de decidir em conjunto com o paciente a melhor modalidade de diálise e o preparo do acesso para diálise em tempo adequado. Além disso, reduz o tempo de hospitalização e a mortalidade, propicia melhor preparo para acesso vascular, aceitação de diálise peritoneal16,17 e maior sobrevida.18 Em conclusão, a maioria dos pacientes em diálise neste hospital da rede pública do Distrito Federal teve início desse tratamento em curto espaço de Brasília Med 2012;49(2):82-86 • 85 Artigo original tempo após seu primeiro contato com a unidade de nefrologia e o diagnóstico de sua doença. Esse fato permite inferir que os pacientes chegaram tardiamente ao especialista. Deve-se viabilizar encaminhamento precoce ao nefrologista e conscientizar a população sobre a importância da avaliação da função renal para prevenir a doença renal crônica, quando possível, e tratá-la precocemente, quando inevitável, para diminuir custos e reduzir a morbidade e a mortalidade. Agradecimentos. Aos pacientes da Unidade de Nefrologia do Hospital Regional de Sobradinho e ao serviço de arquivo médico do Hospital Regional de Sobradinho. 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