VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 SÊNECA E A CONSTRUÇÃO DO PODER IMPERIAL SOUZA, Rodrigo Gonçalves de– UEM VENTURINI, Renata Lopes Biazoto– DHI/PPH-UEM Após um longo período de lutas políticas no interior da aristocracia romana, bem como os conflitos que eclodiam por todas as províncias, a República romana encontrava, em finais do século I a.C., sinais de fragilidade. As lutas militares pela posse do poder em Roma, agravado pelos conflitos dos provincianos, itálicos e escravos, culminaram com o fim do sistema republicano. Os cidadãos viam com desconfiança as ações do Senado, pois a sociedade julgava que eles já não representavam os verdadeiros interesses dos romanos. A elite senatorial, agora fragilizada, se viu incapaz de resolver os problemas da sociedade. Submergida num universo de crises, a República deu lugar ao Imperium Romanum: “A organização política tradicional da sociedade romana – um sistema de governo aristocrático apoiado na constituição de uma cidadeEstado arcaica – soçobrou completa e definitivamente com os conflitos dos últimos tempos da República. Cícero tinha já previsto o desmoronamento deste sistema de governo: ‘rem publicam funditus amisimus’ (Q. fr., 1,2,15). Os confrontos políticos e militares entre os grupos de cidadãos romanos, agravados por outros conflitos paralelos, abalaram o regime republicano, assente na colaboração entre os magistrados e a assembléia do povo sob a autoridade superior do Senado e, portanto, da oligarquia.” (ALFÖLDY, 1989: p. 108-109) Instaurada por Otaviano (27 a.C. – 14 d.C.), a transição do sistema republicano para o imperial representou apenas a transposição da ordem política e a centralização do poder nas mãos de um só homem: o Princeps. Segundo Alfoldy (1989), Roma não conseguiu solucionar suas crises, nem através de reformas nem através de uma revolução social. Apenas deixou a resolução definitiva de seus problemas para uma nova composição política. Nesse sentido, percebemos que a estrutura socioeconômica de Roma permaneceu inalterada, ocorrendo apenas a redefinição do topo da escala social, que passou a ser ocupada pelo Princeps. No entanto, o ordo senatorius, mesmo desprovido dos privilégios que usufruíra nos tempos da República, permaneceu como a camada mais importante da sociedade romana. VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Os primeiros tempos do Império, desde Augusto (27 a.C. -14 d.C.) até o reinado de Antonino Pio (138-161), representaram a época mais florescente da sociedade romana. Esse período ficou marcado não apenas pela máxima extensão geográfica que o Império alcançou, atingindo da Bretanha até a Ásia, como também marcou o ápice da história política e econômica romana. Caracterizado por uma imensa diversidade social, a sociedade dessa época vivenciou um período bastante pacífico de sua história, em razão de uma série de condições criadas desde o reinado de Augusto, que ficaram conhecidas como Pax romana. Outro fator de grande importância foi a anexação das províncias e de seus habitantes ao recém criado Império, por meio da concessão à cidadania romana que se alargou por toda a Península Itálica, atingindo até mesmo às províncias mais longínquas do território romano, embora fosse concedida apenas aos membros das elites locais das províncias, estando à margem dela todos os plebeus empobrecidos. Somente o Édito de Caracala consagrou com o título de cidadão romano todos os habitantes livres do Império. O alargamento da cidadania permitiu que os membros do escol, tanto das províncias como das elites locais, participassem mais ativamente da vida política em Roma. Essa evolução não significou nenhuma mudança gritante na composição social romana. Os sinais de mudanças no interior da sociedade que revelassem a presença de uma organização social verdadeiramente nova, fizeram-se sentir apenas após o século II d.C. A estabilidade que marcou o início do período imperial foi seguida por um surto de prosperidade econômica jamais vista pela sociedade romana. Essa prosperidade deve-se, sobretudo, a anexação das províncias ao território romano, impulsionando sua integração por meio do comércio, à relativa evolução nos meios de produção agrícolas, como o emprego de mão-de-obra especializada, tornando o cultivo mais rentável. Verificou-se o desenvolvimento agrícola em regiões mais atrasadas, com o emprego de métodos que viabilizavam a produção, por exemplo, nas províncias do norte do Império. Somam-se a esses fatores as regiões que já geravam grandes reservas à Roma, como as províncias da África e Egito, conquistadas no ano 30 a.C., por Augusto. A introdução de uma administração centralizada propiciou uma maior organização e controle da produção mineira com a descoberta de minas de ouro na VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Dácia e Dalmácia, por exemplo, além da produção de diversos outros produtos por todo o território imperial, como a cerâmica e a madeira. Por conseguinte, as relações comerciais e financeiras foram estimuladas. Esse florescimento econômico perdurou ao longo de todo o Alto Império Romano. Embora os dois primeiros séculos que se seguiram ao surgimento do regime imperial, representaram o alvorecer da estrutura econômica de Roma, ela não experimentou formas significativamente novas. A única diferença foi a anexação das províncias ao Império Romano, aumentando e dinamizando o fluxo comercial por todo o território. Isso propiciou, inclusive, o desenvolvimento de regiões até então pouco importantes do ponto de vista econômico, com a introdução de novas técnicas e sistemas de trabalho na agricultura como o colonato. No entanto, esse surto de prosperidade que a sociedade romana do Alto Império vivenciou conhecia limites. Isso se deve, sobretudo, ao baixo desenvolvimento tecnológico do seu sistema econômico. Outro fator importante foi que esse surto de prosperidade caminhava paralelamente com a conquista de novas províncias. A saber, desde o fim da República, com a conquista de regiões como a Gália por Júlio César, e a anexação do Egito, do Noroeste da Hispânia, da Germânia renana, dos Alpes, da região do Danúbio, do Norte dos Bálcãs e a parte central da Ásia Menor, por Augusto, as aquisições de seus sucessores não se revestiram de grande relevância econômica para o Império. Excetuam-se algumas províncias, como a Dácia, com a enorme riqueza de seu subsolo. Províncias como a Bretanha, conquistada no tempo de Cláudio, tiveram pouca importância econômica. A prosperidade econômica de Roma, portanto, conhecia limites: “Roma manteve-se assim, grosso modo, no início do Império, o sistema econômico de finais da República, renunciando à procura de novas formas de produção. O Estado romano encontrava-se em circunstâncias que teriam permitido a criação de um novo sistema econômico pré-capitalista, entre as quais se contava a riqueza inesgotável das fontes de matérias-primas de que dispunha, as mais de 1000 cidades que atuavam como centros de produção, a moeda única que circulava em todo o Império, um sistema bancário e de crédito desenvolvido, empresários e investidores interessados em negócios lucrativos, vastas massas de mão-de-obra barata, um sistema generalizado de trabalho assalariado e, finalmente, conhecimentos tecnológicos que não eram para desprezar. (...) Assim, a estrutura econômica do ‘Imperium Romanum’ manteve-se relativamente simples, e até atrasada, em comparação com a complexidade da sua organização política e social: Roma continuou a ser durante a época imperial um Estado essencialmente agrário, apesar do VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 grande desenvolvimento do comércio e da produção de mercadorias.” (ALFÖLDY, 1989: p. 113-114) A organização social do Alto Império, como mencionado, permaneceu a mesma do período republicano. A presença da figura imperial, materializando a nova ideologia política, e a anexação das províncias ao complexo Estado romano, apenas contribuíram para reforçar a estratificação social que já existia em tempos mais remotos. A origem de cada indivíduo era um fator decisivo para delimitar sua posição social. A natureza da economia de Roma limitava a ascensão social e distribuição de riquezas; a importância decisiva da agricultura era um fator social, pois a grande maioria da população vivia nas áreas agrícolas. A posição social na cidade não era estabelecida essencialmente pela quantidade de dinheiro, mas principalmente pela propriedade da terra, cuja posse era sinônimo de grandeza e garantia respeitabilidade. Portanto, o verdadeiro escol da sociedade romana não era composto por empresários, banqueiros ou comerciantes, mas por ricos proprietários de terras. Outro fator que influía na posição social era a situação jurídica do indivíduo. Possuir a cidadania romana ou ter nascido livre era pré-requisito indispensável para se desenvolver diversas funções na sociedade, como as magistraturas, por exemplo. Uma condição ainda mais inferior, daqueles que não usufruíam o direito à cidadania, era a escravidão. Ser escravo em Roma era estar condicionado a uma série de restrições. Primeiramente por seu estatuto jurídico, já que para os romanos, um escravo estava destituído de sua humanidade. Tanto os escravos, como libertos, carregavam um fardo muito grande ao longo de suas vidas, estando à margem da sociedade, sujeitos a humilhações. No topo da hierarquia social está o Princeps (primeiro cidadão), que desfrutava de um poder ilimitado. Mais que detentor de um poder absoluto, o Imperador deveria representar a materialização das grandes virtudes romanas, como a clementia, a virtus, a fides, a pietas e a iustitia. Além de estar acima das leis e a tudo o que a elas confere, a figura imperial era revestida de um culto religioso que lhe permitia, com base na sua natureza divina, obter o que lhe aprouvesse sem por isso ser questionado: “(...) Feito Grande Pontífice a partir de 14, vai colocar sem espalhafato a religião ao serviço de sua autoridade e preparar os elementos do próprio culto, mas sempre ligado – e isto é muito característico – ao culto de Roma. Daí em diante o sentimento popular, que depois de Cipião Emiliano se VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 mostrava aos protegidos da Fortuna, vai servir, canalizado pela religião romana, muito formalista e muito política, para assegurar o prestígio do príncipe. O que Augusto não queria obter abertamente por intermédio da lei, conseguia-o com o truque da religião. (...)” (TOUCHARD, p. 104) Não havia, em todo o Império Romano, outro poder que se opusesse ao do Imperador, sua posição social era a da mais alta dignitas na sociedade romana. O Princeps era o homem mais rico de todo o Estado romano, pois possuía o Patrimonium Augusti, além dos bens da coroa e de sua própria res privata ou bens pessoais. No campo social, as relações entre as pessoas e os grupos de pessoas baseavamse, ao longo de todo o período republicano e imperial, exceto nas relações entre senhor e escravo, na amicitia e na patrono-cliens; elas simbolizavam, sobretudo, laços de fidelidade e reciprocidade. A amicitia acontecia entre indivíduos com a mesma posição social ou posição social não muito diferentes. O Princeps, por exemplo, considerava igualmente os mais altos senadores e cavaleiros como seus amici, com os quais estabelecia vínculos de relação social. Na patrono-cliens, havia uma grande diferença nos respectivos poder, prestígio e fortuna. Nesse sentido, a relação do Princeps com as massas correspondia à que existia entre os clientes e seus patronos: “(...) quando Augusto adotou, em 2 a.C., o título de ‘pater patriae’, todo o império passou a interpretar essa proteção paterna como uma relação de clientela. Essas relações sociais só poderiam concretizar-se numa ligação estreita entre o imperador e as comunidades urbanas, as regiões, as províncias ou outros grupos fechados da população; o imperador era, assim, também ‘defensor plebis’, atitude essa que se manifestava em dádivas de cereais e dinheiro à plebe da cidade de Roma e na organização de jogos públicos. Os súditos comprometiam-se, em troca, não só a prestar-lhe culto (...), como a prestar-lhe um juramento de fidelidade(...)” (ALFÖLDY, 1989: p. 117) Uma outra conseqüência bastante significativa da transição da República para o Império fez-se sentir no aparelho burocrático do Estado romano. Houve uma ampliação de funções administrativas. O resultado foi que os diferentes grupos sociais passaram a ter novas atividades e novas posições definidas. Essa inovação refletiu significativamente no papel do ordo senatorium, pois os senadores, que antes prestavam serviços à República, agora, com o advento da monarquia, prestavam serviços ao Imperador. VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 As relações entre o Imperador e a ordem senatorial nem sempre foram pacíficas e harmônicas. Havia rivalidades e oposições, e as sucessões imperiais geralmente eram conflituosas e traumáticas, motivadas por conflitos políticos: “(...) Estas relações muito estreitas entre o imperador e a ordem senatorial não perdiam a sua importância mesmo nos conflitos políticos que ocasionalmente eclodiam entre um determinado imperador e certos grupos de senadores, principalmente nos reinados de Tibério, Calígula, Cláudio, Nero e Domiciano, conflitos esses geralmente provocados pelo fato de os imperadores não respeitarem determinadas regras do jogo na relação entre a monarquia e a aristocracia senatorial, muito suscetível no que se refere à tradição – e ao prestígio –, em parte por uma questão de temperamento pessoal, em parte por necessidade política. (...)” (ALFÖLDY, 1989: p. 118) Superada a grande agitação política, crises e conflitos que marcaram o fim da República e a transição para o Império, o Principado romano forneceu à sociedade novas condições e oportunidades. De uma forma geral, as crise e revoltas que abalaram a República, durante o Império encontraram o seu termo. Isso não significa que elas deixaram de existir totalmente, mas com as condições propiciadas pela Pax romana, Roma vivenciou o período relativamente mais pacífico de sua história. Ao mesmo tempo, as revoltas se mostravam inúteis, devido à força material e ideológica que o Principado constituiu. Além disso, a monarquia revestiu a sociedade romana com normas de conduta moral, colaborando para a constituição de um sistema coeso e uniforme, com o auxílio da doutrina estóica, que se solidificou como um pilar ideológico da sociedade. O Estoicismo foi uma das correntes filosóficas mais influentes na antiguidade romana, tendo papel fundamental na constituição do pensamento político. A transição da República para o Império foi marcada não apenas pela alternância do sistema de poder político mas, principalmente, pela forma que passou a ser entendido pela sociedade. O conceito de poder e sociedade eram baseados no estatuto cívico, sem a interposição, mesmo que ilusória, de um sentido moral. Fundamentado nas virtudes da alma, o Estoicismo passou a nortear a visão do cidadão romano a respeito do mundo: “Atravessamos a sebe de espinhos formada pela lógica em redor do jardim filosófico, exploramos o terreno em que se desenvolvem às arvores, estamos agora na condição de colher os frutos da moral: a VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 lógica mostrou-nos como os acontecimentos podiam implicar-se, a física fez-nos ver como as coisas e os seres estavam ligados uns aos outros e a moral ensinar-nos-á como se devem praticar os nossos atos.” (BRUN: 1986, p 75) Os conceitos e condutas do Estoicismo influenciaram a política romana, sob o principado, esses novos valores concretizaram-se com a presença de Sêneca, cuja proposta ética solidificou o exercício da prática moral na vida pública. Essa nova moral encontrava, aos olhos de Sêneca, sua representação máxima na figura do imperador, cuja imagem era enaltecida como uma expressão real e sólida de virtus, segundo Sêneca, o imperador desempenhava na terra o papel dos deuses: “Yo, entre todos los mortales, ¿he recibido la aprobación y he sido elegido para desempeñar em la tierra el papel de los dioses? Yo soy árbitro de la vida y la muerte de los pueblos, em mi mano está la suerte y situación de cada cual (...)” SÊNECA: 1989, p. 3-4 Sêneca propõe uma teoria de poder absoluto, porém fundamentada numa virtude, a clementia. Na posição de preceptor do jovem imperador Nero, o filósofo quer mostrar ao princeps que o poder não precisa corromper. A clemência funciona como um modelo no qual todo governante deveria apoiar-se, ela constitui-se num fator indispensável na manutenção de império, pois se materializava na relação prática soberano-Estado. Além disso, o imperador possui a maior autoridade em todas as esferas da vida social, religiosa, econômica e política, portanto, se o autoritarismo de um homem chega a esse nível apenas clemência iria diferir um rei de um tirano. Quando consideramos o conjunto das transformações que marcaram o final do período republicano e contribuíram para a institucionalização do Imperium, buscamos destacar os efeitos dessas mudanças no campo moral, em particular, a construção da imagem imperial. Observamos que elas revestiram-se de um compromisso moral, fortalecido pelo ideal estóico, a monarquia soube conservar e concentrar aquilo que ela mais primava, o poder. FONTE IMPRESSA SÊNECA, Lucio Aneu. Sobre la Clemencia. Madrid: Tecnos, 1988 VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 BIBLIOGRAFIA ALFOLDY, Géza. A historia social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. BRUN, Jean. O Estoicismo. Edições 70, 1986. CARCOPINO, Jérôme. Roma no apogeu do Império. 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