A CONTRARREFORMA DA EDUCAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO DO ENSINO: UMA PROBLEMATIZAÇÃO INTRODUTÓRIA SOBRE O ENSINO SUPERIOR À DISTÂNCIA EM SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL Fabrícia Cristina de Castro Maciel1 RESUMO: O ensino a distância (EAD) faz parte do cenário brasileiro contemporâneo e exige dos estudiosos um exercício de análise aprofundada sobre as condições e circunstâncias de sua implementação. Este artigo tem por finalidade trazer elementos que contribuam com a problematização referente ao processo de desenvolvimento da política de educação no país e a realização de questionamentos quanto ao ensino superior a distância. Para tanto, realizar-se-a uma incursão sobre a contrarreforma da educação e a precarização do ensino no país, tendo como referência as dimensões históricas, sociais e ideopolíticas do Modo de Produção Capitalista (MPC) e suas determinações no processo de organização da sociedade e do Estado. Serão apresentados ligeiramente os fundamentos do modelo monopolista implementado a partir do século XX e XXI e suas distintas fases de acumulação, o papel e a função do Estado neste processo, destacando o regime político neoliberal implementado pelos governos em resposta a crise estrutural do capital. Por fim, uma breve apreciação do cenário econômico mundial para desvelar os rebatimentos da financeirização do capital sobre os Estados nacionais e os ajustes implantados pelos governos para atender aos acordos internacionais do conjunto de instituições transnacionais que definem a direção das políticas sociais e econômicas dos países. O destaque aqui será para as reformas implementadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) no campo da educação superior e seus desdobramentos quanto à educação à distância, e os subsequentes processos nos governos Lula e Dilma. Palavras-chave: Educação; Ensino superior a distância; Contrarreforma do Estado; Formação profissional; Serviço Social 1 Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Mestre em Administração Pública: Gestão de Políticas Sociais pela Fundação João Pinheiro e doutoranda em Serviço Social pela UNESP. Coordenadora e professora do Curso de Serviço Social do Centro Universitário UNA e professora do curso de Gestão Pública - UNA. 1 INTRODUÇÃO O desenvolvimento deste artigo tem como objetivo apreciar os processos de adequação da política de educação superior do país diante das exigências do capitalismo tardio e iniciar uma problematização sobre a expansão dos cursos de Serviço Social ofertados à distância. A perspectiva de totalidade2 será a referência deste ensaio, com vistas a reconhecer os limites e condicionalidades determinadas pela estrutura econômica e pela conjuntura política e suas condições concretas para compreender a contrarreforma3 da educação e a precarização do ensino. Para tanto, é relevante identificar as características do Modo de Produção Capitalista (MPC) e suas diversas implicações, demarcando o recorte temporal que fornecerá subsídios para o destaque referente à política de educação que faremos aqui. Após a segunda guerra mundial, os países capitalistas desenvolvidos iniciam um processo denominado por Harvey (1993) de Regime de Acumulação Fordistakeynesianista que possui como característica um novo modelo de organizar, gerir e comercializar a produção. A organização do trabalho4 neste regime é concebida pela separação entre a concepção e a execução da produção, com a especialização do trabalho. Esta especialização diminui o valor de uso do trabalho e consequentemente seu valor de troca, aumentando a exploração da mais-valia5 e ampliando as taxas de lucro do capital. Nesta direção, a produção em massa, com a padronização das tarefas 2 A teoria social de Marx propõe um método de conhecimento da realidade de forma a desvendá-la em todos as suas determinações: sociais, econômicas políticas e culturais. Busca-se uma análise da sociedade que contempla as relações de produção da vida material, as instituições jurídicas e sociais, como o Estado, a família, a ciência, a arte, a ideologia (SIMIONATO, 1999) 3 Conforme Elaine Behring (2007, p149), “[...] o termo reforma ganhou sentido no debate do movimento operário socialista, ou melhor, de suas estratégias revolucionárias, sempre tendo em perspectiva melhores condições de vida e trabalho para as maiorias”. Ao longo dos anos 90, era de FHC, delineou-se no Brasil um conjunto de “reformas” orientadas para o mercado, considerando que os problemas enfrentados no âmbito do Estado brasileiro eram as causas centrais da profunda crise econômica e social vida pelo país. Reformando-se o Estado, estaria aberto o caminho para o novo “projeto de modernidade”. 4 O trabalho aqui entendido como categoria ontológica do ser social, atividade criadora de valor. Uma atividade teleológica (orientada conscientemente por finalidades e condições racionalmente compreendidas), de transformação da natureza (onde o homem se relaciona com a natureza, para, dados os seus limites, transformá-la). Trabalho, portanto, como modelo de práxis social, caracteriza o salto ontológico, o momento fundante que peculiariza o ser social... (Montaño e Duriguetto, 2010, p.79,80). 5 Segundo Montaño e Duriguetto, 2010, “A especificidade do MPC radica na exploração da mais-valia produzida por trabalhadores livres, porém obrigados a vender sua força de trabalho para o capital, donos dos meios de fundamentais de produção (p.90)”. 2 gera maior eficiência, permitindo uma superprodução que alimenta a demanda por produtos no mercado. Por sua vez, o Estado passa a ter um papel decisivo no processo de industrialização, estimulando o pleno emprego e o consumo em massa. E, ainda, garante ampliação das políticas públicas com um sistema de proteção denominado Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social/Estado Providência. Cabe destacar que os países capitalistas centrais desenvolveram este modelo até a década de 1970, momento em que esta lógica começa a dar sinais de esgotamento. Os autores que tendem para uma perspectiva conservadora de exame do papel do Estado e sua interferência na economia afirmam que o alto investimento dos fundos públicos nas políticas sociais teria provocado tal esgotamento. É relevante destacar que no Modo de Produção Capitalista as quedas nas taxas de lucro dos capitalistas geram as crises e estes buscam novas formas de garantir a superacumulação. Neste contexto, o Regime de Acumulação Flexível emerge como solução para a crise do capital dos anos de 1980, momento em que os denominados Tigres Asiáticos ganham o cenário internacional com um novo modelo de produção – Toyotista ou Ohnista, caracterizado pela flexibilização do trabalho, com empresa enxuta que permite a entrada do capital estrangeiro, ausência de estoques, unidades descentralizadas e menores. Estabelece como possibilidade a terceirização e sublocação da produção, em que o trabalhador vende sua força de trabalho e sua capacidade criativa intelectual: há uma exigência de engajamento no processo produtivo, ao passo que a desregulamentação do trabalho ganha força. Os países capitalistas desenvolvidos passam a investir em direção a finaceirização da economia com a associação do grande capital industrial ao capital financeiro com a finalidade de garantir nova forma de acumulação através do capital especulativo/fictício. Segundo Montaño e Durigueto (2010), os Estados Nacionais, principalmente dos países periféricos, abandonam suas políticas protecionistas e desencadeiam ajustes fiscais com a intenção de atender às regras dos organismos internacionais, abrindo suas fronteiras ao capital especulativo como forma de garantir a entrada de divisas. Assim, implementa-se o Regime Político Neoliberal marcado pela ofensiva aos direitos trabalhistas, o esvaziamento das lutas sindicais, a reestruturação produtiva, a flexibilização e desregulamentação do trabalho e a contrarreforma do Estado. É importante contextualizar, a partir da leitura gramsciana, as características do capitalismo brasileiro, expressão da “revolução passiva” em que a elite se estabelece 3 enquanto detentora dos poderes econômicos e políticos, com alarmante exclusão da participação popular (FREDERICO, 2009, p.257). Ao longo de nossa história, transformações e modernizações são realizadas “pelo alto”, em cujas determinações do MPC engendram-se as dinâmicas societárias. Estabelece-se, assim, uma brutal ofensiva em relação ao mundo do trabalho, impondo aos trabalhadores maior subordinação, desmobilizando sua existência de classe. No Brasil, o governo ditatorial iniciou, a partir de 1964, o processo de “expansão fordista”, com produção em massa de automóveis e eletrodomésticos para ampliação do consumo, elevando as taxas de crescimento econômico e ampliando a cobertura da política social e dos direitos sociais (de forma tecnocrática e conservadora), em contraposição às restrições dos direitos políticos e civis levados a cabo pelo regime. O aparente descompasso nacional frente àquela realidade dos países desenvolvidos, desvelava-se um projeto de internacionalização da economia, com forte vínculo da burguesia local ao capital estrangeiro, e intenso endividamento externo. De acordo com Behring (2007), em meados dos anos 1970, já é observável o sinal de esgotamento do projeto tecnocrático e modernizador-conservador do regime militar brasileiro. O processo de redemocratização política conduzida nos anos 1980 é grifado, do ponto de vista econômico, pela queda das exportações de matérias primas e pelo endividamento dos setores público e privado, em função da elevação das taxas de juros nos países credores, principalmente EUA. Por pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI), cerca de 70% da dívida externa tornou-se estatal. Consequentemente, o crescimento econômico caiu vertiginosamente, com forte redução das taxas de investimento, aumento dos encargos da dívida pública e elevação da inflação. Assim, os anos 1990 foram marcados pela exigência de reestruturação econômica das nações periféricas, determinadas por organismos internacionais - Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, Banco Interamericano de Desenvolvimento. O processo de adequação do Estado à expansão do capitalismo financeiro e transnacional leva à redefinição de suas funções. Neste ambiente neoliberal, a gestão pública passa a focar suas ações na contração das políticas públicas sociais e no consequente esvaziamento dos direitos sociais conquistados pela população e registrados na Constituição Federal de 1988. A privatização e a mercantilização dos serviços sociais orientam a direção da política. Muitos autores identificam aí o processo de contrarreforma do Estado, de recusa e retirada dos aspectos progressistas inerentes à Carta Constitucional. 4 O Estado brasileiro, curvando-se à condição de país periférico em acordos internacionais, reformula sua política educacional, sustentando a necessidade de adequação à nova ordem mundial globalizada e à sociedade da informação. Neste cenário, a expansão da educação superior no Brasil é implementada em um processo de mão dupla, com a ampliação das privatizações internas das universidades públicas e o envolvimento do empresariado privado na oferta de serviços educacionais de formação superior (LIMA, 2005). As políticas sociais se delineiam no Brasil em um movimento de avanços e recuos, sem contemplar o Estado de Bem-Estar Social experimentado pelos países capitalistas centrais no pós-guerra. O papel histórico do Estado brasileiro na condução e expansão das políticas públicas e em especial, da política de educação superior, desde sua gênese até os dias atuais, tem reforçado uma perspectiva elitista discriminante das classes trabalhadoras, priorizando uma formação que tem como centralidade a preparação para o mercado. O direito à Educação prevista no Capítulo III, Seção I da Carta Magna de 1988, Artigo 205 prevê: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Através de um conjunto de regulamentações do Ministério da Educação (MEC) no final do século XX, novas modalidades de formação criam um contexto de reformulação da educação superior brasileira. Com vistas a configurar novas relações entre Estado, Sociedade e Universidade, estabelece-se o Plano Diretor da Reforma do Estado (1995), promulgadas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei nº 9394/1996; Lei das Fundações – Lei nº 8958/94; Legislação sobre os Fundos Setoriais; e um conjunto de portarias e decretos que sustentam a expansão do ensino superior brasileiro. Um modelo que, segundo Silva (2013, p.132) baseia-se na “pedagogia do resultado que tem por finalidade a melhoria dos indicadores educacionais, em um contexto onde a educação serve de plataforma para os acordos e valorização do Brasil internacionalmente”. Observa-se que os setores público e privado iniciam a adesão ao ensino a distância de forma distinta, ganhando destaque o robusto crescimento do setor privado 5 na implementação das novas modalidades de ensino superior. Está em curso um processo que amplia a diplomação no país, cuja concepção de educação, difundida pelos organismos internacionais, especialmente o Banco Mundial, reduz-se à educação terciária6. Esta concepção, conduzida pelo Acordo de Bolonha7, busca ampliar a política de diversificação das Instituições de Ensino Superior (IES), sob a aparência da “democratização” do acesso, ganhando relevância nos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula da Silva (LIMA, 2013, p.12) e permanecendo no governo Dilma. Considerando os estudos elaborados por Lima (2013), a gênese e o desenvolvimento da educação superior no Brasil têm a marca de um conceito dependente de educação, expresso na utilização de conhecimentos e tecnologias dos países centrais, evidenciando a subordinação do Brasil frente aos organismos internacionais. Identifica três momentos marcantes de expansão da educação superior no país: i) a educação superior ocupa um privilégio social conferido às camadas dominantes e, no regime denominado burguês-militar, ganha relevância através do setor privado; ii) no governo FHC situa a segunda fase, em que se intensifica as ofertas de serviços educacionais pelo setor privado e a ampliação da privatização interna das IES públicas; iii) o governo Lula da Silva reforça o empresariamento na educação e a certificação em larga escala. Ao deparar com a epígrafe de José Martí, “as soluções não podem ser apenas formais; elas devem ser essenciais”, no livro A Educação para Além do Capital (MÉSZÁROS, 2008), se fortalecem os questionamentos quanto ao processo de implementação das modalidades de ensino semi-presencial e a distância no país, cujo capitalismo tardio, sustentado por um Estado conservador, não foi capaz de viabilizar uma política de educação de qualidade e de forma ampla para a sociedade. Não obstante, afirma Mészáros (2008, 45), “uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados". Na primeira década dos anos 2000, um conjunto de instituições privadas inicia a ampliação e diversificação de serviços no campo da educação, com oferta de cursos e 6 De acordo com Lima (2013), a educação terciária vem sendo difundida historicamente pelos organismos internacionais do capital, especialmente o Banco Mundial/BM, que qualquer curso pósmédio, curso de curta duração e curso à distância pode ser considerado educação terciária. 7 Firmado entre os países europeus com o objetivo de conduzir a reforma do ensino, focando o estímulo ao aluno para que estude e pesquise autonomamente. 6 vagas nas Unidades de Formação Superior (UFAs) em todo o país8. Num primeiro momento, as graduações superiores presenciais ganham destaque em um cenário econômico pautado por diretrizes neoliberais, ressalvadas as diferenças entre os governos FHC e Lula. O fomento ao acesso à educação superior aponta para uma necessidade de “democratizar” a graduação, com o objetivo de “qualificar a mão de obra especializada” exigida pelo mercado de trabalho, repercutindo a concepção da lógica burguesa sob a imagem de uma “política inclusiva”. Promove-se um arcabouço jurídico que autoriza e credencia as Instituições privadas de Ensino Superior a disponibilizar a certificação em larga escala. A maior parte dos cursos de graduação autorizados pelo MEC, presenciais e a distância, no início dos anos 2000, foi direcionada à formação de professores de ensino fundamental, com a finalidade de cumprimento das determinações do Consenso de Washington9. O Censo de Educação Superior de 2009 apresentou a relação dos dez maiores cursos em número de matrículas, nas modalidades presencial e EAD, destacando-se a ordem para o EAD, com Pedagogia, Administração e Serviço Social. O Decreto 5.622, de 19.12.2005, que revoga o Decreto 2.494/98, e regulamenta o Art. 80 da Lei 9.394/96 (LDB), define a educação a distância como: “[...] a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos”. Ao abordar especificamente o Serviço Social, Larissa Dahmer Pereira (2013) nos informa que os primeiros cursos a distância desta área foram implementados em 2006, e ganharam uma proporção substancial de matrículas. Já em 2009, as matrículas 8 O Resumo técnico do Censo de Educação Superior de 2012 destaca que dos 12,6% das IES que finalizaram o preenchimento das informações para o MEC são públicas e 87,4% são privadas. Quase a metade (48,6%) das IES do País está localizada na região Sudeste. A região com o menor número de IES é a Norte, com 154 IES, seguida pela região Centro-Oeste com 236 instituições. Em conjunto, as duas regiões representam 16,1% do total de IES do Brasil. Analisando especificamente a rede pública, 47,0% das IES estão localizadas na região Sudeste; 21,4% na região Nordeste; 16,1% na região Sul; 9,2% na região Norte; e 6,3% na região Centro Oeste. Esses percentuais têm uma relação direta com o contingente populacional dessas regiões. 9 Definição atribuída às recomendações elaboradas a partir da reunião realizada em novembro de 1989, com representantes do Fundo Monetário internacional, do Banco Internacional de Desenvolvimento e do Banco Mundial, funcionários do governo norte-americano e economistas latino-americanos, que teve por objetivo avaliar as reformas econômicas implantadas na América Latina. 7 nos cursos de Serviço Social na modalidade EAD (52,3%), superavam as matrículas presenciais (47,7%), colocando-se como o terceiro maior curso em EAD ofertado no país. Neste ritmo, torna-se relevante identificar os diversos desafios e implicações surgidos a partir da implantação desta modalidade formativa para os acadêmicos, os profissionais de Serviço Social e, consequentemente, para a população usuária dos serviços em que estes profissionais atuarão. O curso de Serviço Social brasileiro, desde o final da década de 197010, vem construindo um projeto profissional comprometido com a classe trabalhadora, cujo arcabouço teórico crítico sustenta a “compreensão da realidade social, em toda a sua complexidade e contradição, tal como ela é, e não como se apresenta em suas manifestações mais simples e imediatas” (CFESS, 2012, p.13). Portanto, o processo formativo e o exercício profissional desta categoria “requer um suporte teórico que assegure a fundamentação da concepção ética e dos valores ético-políticos, dando sustentação ao conjunto de suas prescrições” (BARROCO, 2012, p.53). É necessário e relevante fomentar uma investigação profunda no campo da educação superior sustentada pela lógica capitalista, considerando o processo de flexibilização do trabalho docente, as condições objetivas de contratação e de desenvolvimento do trabalho, a ampliação de vagas no setor privado em detrimento do público, o grau de titulação dos docentes, os processos de autoria de materiais didáticos e tutoria, número de acadêmicos por turma, a estrutura física e tecnológica, dentre outras dimensões. No âmbito da especificidade do curso de Serviço Social, é imperativo ao desenvolvimento do pensamento crítico profissional sua vinculação com o Projeto ético-político construído pela categoria ao longo dos anos, explicitamente atrelado a um projeto societário11. No processo formativo dos sujeitos sociais que, em sua maioria, vão atuar no campo das políticas públicas, cabe questionar: como vem se estabelecendo os núcleos básicos de formação; qual a relação didático-pedagógica que fundamenta a 10 Vale recordar, conforme apresenta Boschetti (2012, p. 13), o que foi o resultado do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, em 1979, denominado Congresso da Virada: reestruturação da ABEPSS, manifestando-se no currículo de 1982 e a reorganização do conjunto CFESS-CRESS, que passa a assumir um papel determinante para o Serviço Social brasileiro e fora dele: nas lutas pela redemocratização, no reconhecimento do trabalho como fundante da vida, na defesa dos direitos como mediação pela emancipação humana e não como o fim último da sociedade burguesa, na construção coletiva dos princípios que foram materializados no Código de ética de 1986 e 1993 e na atual Lei que regulamenta a profissão (Lei 8.662/93). 11 “Trata-se daqueles projetos que apresentam uma imagem de sociedade a ser construída, que reclamam determinados valores para justifica-la e que privilegiam certos meios (materiais e culturais) para concretizá-la” (NETTO, 1999). 8 formação ético-política dos profissionais; como se delineia a supervisão direta dos estágios prevista nas regulamentações do CFESS; como se desenvolve a dimensão socioeducativa da profissão e sua compreensão e apropriação dos processos coletivos em defesa dos direitos sociais. Todas estas questões são cruciais para viabilizar uma formação crítica, criativa e politizada, que se ancora no Projeto Ético-Político hegemônico da profissão. Para responder a todos estes questionamentos é imperativo aprofundar as análises a partir da perspectiva do pensamento crítico-dialético, buscando a distinção entre a aparência e a essência, conforme Netto (2011). O que vemos a partir do governo de FHC (e a continuidade em proporções distintas nos governos Lula e Dilma) é uma significativa ampliação e expansão do ensino superior no país, com explícitos interesses mercantis. A educação vem atendendo as exigências cujos indicadores quantitativos são mais relevantes que uma formação competente e crítica. Apesar da disputa dos projetos contraditórios da sociedade brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 é marcada pela perspectiva neoliberal. Nesta esteira acontece o descaso e precarização do trabalho nas instituições públicas e no setor privado, impulsionado pelo Estado através de políticas de financiamento como o REUNI, FIES e PROUNI sem as devidas condições exigidas para uma formação superior que seja ancorada em parâmetros de qualidade que ultrapassem a dimensão objetiva e pragmática da relação ensino-aprendizagem12. Utilizando das palavras de Maria Marieta Koike (2009, p. 202), [...] em um contexto que o capitalismo busca saídas para seus próprios limites, refletir sobre o processo educativo-formativo dos assistentes sociais requer cuidadosa avaliação crítica desse estágio do capitalismo, do significado da profissão na divisão sociotécnica do trabalho, de seus vínculos com o real e da opção política que os sujeitos da profissão imprimem aos projetos profissional e societário. As novas modalidades de ensino a distância (EAD) são implantadas com diversas características que afetam os sujeitos do processo formativo: gestores, professores, tutores e acadêmicos. Algumas escolas se organizam para garantir um ou dois encontros presenciais por semana, outras entendem que não deve haver nenhum encontro presencial para compartilhamento de conteúdos e experiências, permitindo 12 Parâmetros objetivos e subjetivos que levem em consideração quesitos como: relação entre número de acadêmicos por professor; interação entre discentes e docentes; formação política; extensão universitária; construções coletivas que coloquem em evidência diferentes posicionamentos; possibilidade de construção de respeito as diversidades de gênero, étnico-raciais e sexuais etc. 9 inferir aqui a possibilidade de a formação assumir uma lógica virtual e individualista (por deixar de proporcionar encontros presenciais em que os posicionamentos teóricos, éticos e políticos sejam debatidos coletivamente e politizados). O trabalho profissional docente é marcado por uma nova forma de organização do processo produtivo das aulas, com a utilização massiva dos recursos tecnológicos, encarregando-se de um número significativamente mais elevado de alunos quando comparamos com uma sala de aula presencial no formato do ensino brasileiro. Consequentemente, o número de atividades e provas a serem analisados e corrigidos são também em número mais expressivo. A interação entre os acadêmicos, e entre estes e os professores, a formação crítica, possivelmente estarão comprometidas e subordinadas a um plano menos importante no processo formativo de sujeitos. Para Marx (in Montaño e Duriguetto, 2010, p.110), “o conhecimento crítico da realidade, que se pretenda orientado para a transformação social, deve ser radical, ir às raízes, desvelando os fundamentos e as leis do Modo de Produção Capitalista”. O que nos apresenta a nova realidade orientada pelo modelo neoliberal de educação, antes de garantir consciência crítica e reflexiva da classe trabalhadora, impõe a ela limitações devastadoras para a construção de uma nova ordem societária. As analises realizadas até aqui são apenas o início de uma pesquisa que deve ser tratada de forma responsável pela categoria profissional, exigindo a profundidade necessária para a compreensão das nuanças e características desta modalidade de ensino que cresce em nosso país. Diversas são as indagações que ainda devem ser realizadas para o desvelamento deste cenário. Sob quais parâmetros está assentada esta modalidade de ensino? Quais são as bases que fundamentam a formação profissional? Como se implementa o tripé ensino, pesquisa e extensão nesta modalidade? Em que condições o estágio é realizado? Como se estabelecem as relações de ensino-aprendizagem? Qual perfil de professor atende às exigências desta modalidade? Como os cursos de Serviço Social à distância contratam seu corpo docente? Qual estrutura física e tecnológica corresponde às necessidades desses cursos? Qual o papel dos tutores e como desenvolvem o seu trabalho? Como os discentes se apropriam dos conteúdos? Quantas horas de estudos por semana? Qual é o material de estudo e pesquisa dos discentes? Quais as conexões entre o Projeto Ético-Político da profissão, o Projeto Pedagógico dos cursos e os projetos societários em disputa na sociedade? Qual o impacto deste tipo de formação para a categoria profissional e para a população usuária dos serviços sociais? 10 Conhecer por dentro esta realidade é tarefa árdua, mas imprescindível neste tempo histórico em que: “A crise capitalista, longe de beneficiar a sua classe antagônica, precariza, inibe e submete ainda mais ao trabalhador e suas lutas, contribuindo até para criar melhores condições para os ajustes e as (contra)reformas estruturais necessários para os interesses do capital: o projeto neoliberal” (Montano e Duriguetto, 2010, p. 212). O foco dos estudos no campo da educação e formação profissional em Serviço Social exige o resgate de determinantes sócio-históricos e ideopolíticos que contribuam para identificar as manifestações das contradições sociais e as correlações de forças presentes na definição das políticas sociais. Assim, identificar as mediações construídas pela política de educação torna-se indispensável para compreender sua interferência no processo de emancipação política e humana13 do sujeito histórico. De acordo com Bolorino (2012, p.21) A educação é um processo social vivenciado no âmbito da sociedade civil e protagonizado por diversos sujeitos sociais, mas também é uma área estratégica de atuação do Estado. Neste sentido, a política de educação como política social é um espaço contraditório de lutas de classes, um embate entre poderes diversos que se legitimam historicamente, conforme se estabelece a correlação de forças na diversidade dos projetos societários existentes. Portanto, a luta pela educação constitui uma das expressões da Questão Social, visando atendimento de uma necessidade social, reconhecendo-a como um direito social. Diversas pesquisas na área do Serviço Social vêm sendo produzidas com o objetivo de fomentar o debate e ampliar os espectros do entendimento sobre o processo de formação de assistentes sociais, considerando os pressupostos ético-políticos, teórico-metodológicos e técnico-operativos que balizam o exercício profissional, em suas relações internas e com a sociedade. Em produção recente14, o CFESS/ABEPSS realizou um balanço referente à modalidade EAD na formação profissional de graduação em Serviço Social, a partir da coleta de dados realizada pelos Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS) de todo o país. Sua argumentação tem por 13 Conforme Montaño e Durigueto (2010, p. 130 e 131), para Marx, a emancipação política foi desenvolvida na passagem do feudalismo ao capitalismo e no interior desta ordem burguesa, a partir da conquista dos direitos civis e políticos, direitos trabalhistas e sociais, e do desenvolvimento da cidadania, e da democracia (formais). [...] A emancipação política é , portanto, fundamental para atingir a emancipação humana, mas não corresponde a ela, nem é garantia para sua conquista. A emancipação humana, para o autor, exige a eliminação de toda forma de desigualdade, dominação e exploração, reunindo novamente o produtor com os meios para produzir; ela ocorre, portanto, na necessária superação da ordem do capital para o comunismo. 14 Sobre a incompatibilidade entre graduação à distância e Serviço Social, 2014. 11 finalidade compreender a lógica que perpassa o ensino superior brasileiro, apoiada na expansão do setor privado mercantil, que concebe a educação como um negócio lucrativo, e não um direito. Por sua vez, o Estado brasileiro vem estabelecendo legislações e parâmetros com a finalidade de expandir o ensino a distância, contribuindo para a difusão ideológica de que não há diferenças entre o ensino superior público e o privado. A incumbência do setor privado, de garantir as possibilidades para amplo acesso ao diploma universitário, em “condições facilitadas” para a realidade da população de camadas populares, passa a ser regulada e avaliada pelo Estado, respondendo a dupla demanda: dos organismos internacionais, adequando as políticas sociais aos ajustes fiscais; e da população, que anseia ampliar a renda, com novas oportunidades de trabalho. Segundo Iamamoto (2009, p. 42) A massificação e a perda da qualidade da formação universitária estimulam o reforço de mecanismos ideológicos que facilitam a submissão dos profissionais às normas do mercado, redundando em um processo de despolitização da categoria, favorecido pelo isolamento vivenciado no ensino à distância e na falta de experiências estudantis coletivas na vida universitária. Nestes termos, é inevitável a discussão sobre a possível precarização da formação em Serviço Social na modalidade EAD, que subordinaria o/a profissional e a profissão às condições mais deletérias do mercado, sujeitando os/as docentes, gestores e assistentes sociais ao trabalho alienado, massificante, mal remunerado e despolitizado. Agigantam-se as probabilidades de expansão do neoconservadorismo nos processos de trabalho, marcados pelo imediatismo e tarefismo nos espaços sócio-ocupacionais. Passa a ser questionável o exercício da relativa autonomia do/a assistente social na condução de um projeto profissional direcionado à construção de uma nova ordem societária, sem dominação de classe, etnia e gênero. A imagem da categoria passa a ser explicitada de forma incompatível com a identidade profissional, construída historicamente por processos de lutas em defesa da classe trabalhadora, dos direitos sociais e humanos. Na suposta fragilidade teórico-metodológica, o “discurso competente”, tratado como uma estratégia de ocultamento e dissimulação do real15, ganha adesão e contornos que precisam de reflexão pormenorizada. 15 O livro Renovação e conservadorismo no Serviço Social, Iamamoto (2013), é essencial a esta discussão. 12 Referências Bibliográficas: BARROCO, Maria Lucia Silva; TERRA, Sylvia Helena. Código de Ética doa/a assistente social comentado. CFESS. São Paulo: Cortez, 2012. BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: Fundamentos e história, 2ed. –São Paulo: Cortez, 2007. BOLORINO, Eliana. Educação e Serviço Social: elo para a construção da cidadania. São Paulo: Ed. UNESP, 2012. CFESS. Sobre a incompatibilidade entre graduação à distância e Serviço Social. Brasília, vol 2, 2014. _________ Seminário nacional: 30 anos do Congresso da Virada. Brasília: CFESS, 2012. CRESS. Contribuições para o exercício profissional de assistente social. Belo Horizonte, 2013. FREDERICO, Celso. 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