formação e trabalho de professores da educação básica

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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: FORMAÇAO E TRABALHO DE PROFESSORES DA
EDUCAÇÃO BÁSICA (*)
José Carlos Libâneo
Este artigo foi escrito a partir de comunicação apresentada no I Simpósio
sobre Ensino de Didática promovido pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em
Didática e Formação de Professores (Leped), da Faculdade de Educação da UFRJ.
Foi gratificante para o autor compartilhar com investigadores e professoresformadores de vários lugares do país presentes nesse evento, do esforço conjunto
pelo desenvolvimento teórico e prático da didática. Há razões muito sólidas para
valorizar esse esforço. Estão à nossa frente desafios postos pela escola pública
brasileira, entre eles as dificuldades dos educadores em se acertarem em relação a
objetivos, funções e formas de funcionamento das escolas, trazendo prejuízos às
ações de ensino-aprendizagem. Persistem graves problemas na formação de
professores como as debilidades da legislação, os diferentes formatos curriculares
entre os cursos de formação de professores para os anos iniciais do ensino
fundamental e os dos anos posteriores, a dicotomia entre o conhecimento
disciplinar e o conhecimento pedagógico-didático, a precariedade do
conhecimento profissional específico propiciado pela didática, as didáticas
específicas e as metodologias e tecnologias de ensino. No entanto, a despeito
desses impasses, também fazem parte desse esforço teórico e prático pela pesquisa
e ensino da didática um número imenso de professores-formadores ensinando nos
cursos de licenciatura em nosso país, para os quais nossos estudos e pesquisas são
de grande utilidade. Temos, pois, tarefas incessantes e inadiáveis em relação ao
campo disciplinar, investigativo e profissional da didática e das didáticas
específicas.
O texto apresenta ideias sobre os conceitos fundantes da didática e sua
aplicação pelos professores, situando-os nos embates correntes no campo teórico
da educação. Tem como pressuposto que a didática está no centro da formação
profissional de professores como disciplina pedagógica, campo de investigação e
de exercício profissional. Também se acredita que o desenvolvimento da didática
como ciência profissional do professor requer dos pesquisadores e professoresformadores clareza dos marcos teóricos e conceituais que fundamentam os
saberes profissionais a serem mobilizados para a ação docente, de modo a articular
na formação profissional a teoria e a prática. Tem havido esforços consideráveis
nessa direção. A produção intelectual em didática tem sido profícua, abrangendo
questões teóricas e epistemológicas, questões do exercício docente, da didática
específica das disciplinas, do estágio e das práticas de ensino, da articulação entre
a didática e as dimensões da cultura, a organização curricular para formação inicial
e continuada. Empenhado nesse esforço investigativo, especialmente alinhandome ao lado de pesquisadores mais sensíveis ao mundo da escola e da sala de aula,
permito-me mencionar minha intervenção no XIV Endipe (2008), em Porto Alegre,
(*) Capítulo do livro: CRUZ, G.B.; OLIVEIRA, A. T. C. C.; NASCIMENTO, M. B. C. A.; NOGUEIRA, M.A. (orgs.).
Ensino de didática: entre recorrentes e urgentes questões. Rio de Janeiro: Editora Quartet, 2014.
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em que trabalhei a alegoria de que o campo investigativo e profissional da didática
enfrentava o dilema entre a fidelidade ao seu objeto e o canto das sereias,
representado pelas múltiplas tentativas de outros campos em solapar dela seu
objeto ou substituí-lo por outros. Retomava, então, meu entendimento do objeto da
didática: as relações ensino-aprendizagem de conteúdos específicos em situações
concretas. No XV Endipe (2010), em Belo Horizonte, levei a discussão sobre as
relações entre a didática e a epistemologia das disciplinas, no entendimento de que
a apropriação de conhecimentos está intimamente ligada à forma de constituição
dos saberes (questão epistemológica) e com a relação do aluno com o objeto de
conhecimento (questão psicopedagógica), buscando contribuições de Vigotsky e
Davídov complementadas com posições de didatas franceses como Develay,
Vergnaud, Meirieu, entre outros.
Nesta comunicação será reiterado meu entendimento de que o objeto da
didática é o processo de ensino-aprendizagem (processos nem idênticos e nem
separados) visando à relação com saberes em situações didáticas contextualizadas.
Após um breve diagnóstico do lugar da didática no debate educacional, o texto
oferece contribuições para analisar as antinomias teórico-práticas presentes no
campo pedagógico-didático, explicitar conceitos centrais da didática e extrair daí
derivações para mudanças no campo investigativo e profissional.
1. Didática como campo disciplinar e investigativo: um diagnóstico
A didática é um campo disciplinar e investigativo ainda bastante
questionado no campo da educação, mas, também, visivelmente em expansão.
Quanto aos questionamentos, são conhecidas e identificáveis as resistências em
reconhecê-la em seu status científico e em seu papel na formação de professores.
Pesquisadores e professores de cursos de licenciatura a desprestigiam pela
suposta fragilidade de seu objeto de estudo ou por seu caráter demasiado
antiquado e obsoleto, desmotivando os futuros professores para seu estudo. As
resistências se expressam, também, em críticas à tradição iluminista da pedagogia,
à dominância de métodos tradicionais e autoritários de ensino, a uma visão de
currículo monocultural. São conhecidos os embates já bastante conhecidos entre a
sociologia e a psicologia, desde os anos 1960, os quais, ao lado de outros fatores,
acabaram afetando negativamente os estudos e a investigação em pedagogia e
didática. Induzidos a abordar os fatos educativos ora pelo viés sociológico, ora
psicológico, ora cultural, os pedagogos, a quem cabe orientar decisões concretas
sobre a vida da escola e da sala de aula, perderam a especificidade “pedagógica” de
seu trabalho. Isso explica, em boa parte, a depreciação dos estudos em pedagogia e
didática no meio acadêmico e institucional refletindo-se no esvaziamento teórico e
na desvalorização da pesquisa específica sobre ensino-aprendizagem e práticas de
sala de aula, abrindo espaço aos mencionados reducionismos. O insucesso das
reformas curriculares do curso de pedagogia contribuiu para ampliar a debilidade
teórica na formação de novos pedagogos.
Entre outras consequências desse quadro, verifica-se na produção científica
e em documentos oficiais da educação brasileira uma clara redução da análise
pedagógica das questões educacionais em contraste com a prevalência da análise
sociopolítica que aparece como discurso genérico, distanciado do mundo da escola.
Ou seja, o fator pedagógico-didático tem sido o elo perdido entre as políticas
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públicas da educação e as práticas reais das escolas e salas de aula. Como não se
formam há décadas, rigorosamente falando, pedagogos de profissão e
pesquisadores na área do ensino, as políticas educacionais e boa parte das
pesquisas ignoram a realidade das salas de aula. É incômodo ler nas conclusões de
Gatti e Nunes (2009, p. 55) sobre os cursos de licenciatura em pedagogia que “a
escola, enquanto instituição social e de ensino, é elemento quase ausente nas
ementas” e, com isso, a formação profissional não é integrada ao contexto concreto
em que o profissional-professor irá atuar. Não surpreende que os temas da escola e
do ensino nas políticas educacionais estejam praticamente por conta de
organizações mantidas pelos reformadores empresariais da educação (Freitas,
2011), em que executivos e economistas passam a monitorar questões pedagógicodidáticas.
Por outro lado, é forçoso admitir que em boa parte dos cursos de formação
de professores persiste a didática prescritiva e instrumental acompanhada de uma
pedagogia com conteúdos e métodos tradicionais (Libâneo, 2010b), num contexto
em que as questões de ensino-aprendizagem se cercam de complexidade cada vez
maior, exigindo revisões, atualizações, relações com outros campos de
investigação. Além disso, não está fora de propósito o alerta feito em recentes
estudos de que a produção acadêmica na área da educação parece não estar
chegando aos professores da educação básica e nem levando a mudanças
significativas na formação inicial e continuada (Gatti; Nunes, 2009; Gatti; Barretto;
André, 2011; Libâneo, 2010b), portanto, afetando pouco o campo disciplinar e
profissional.
Outra séria questão a atingir o campo disciplinar e investigativo da didática
é a dispersão e, frequentemente, o desacordo, entre educadores, legisladores,
políticos, técnicos do MEC e Secretarias de Educação, pesquisadores, em relação
aos objetivos, funções e formas de funcionamento da escola pública (Libâneo,
2012a). Essa falta de clareza e de consenso mínimo sobre critérios de qualidade da
boa educação para todos se projeta no planejamento de ações do sistema escolar,
nos currículos, nos objetivos do ensino, nas formas de organização e
funcionamento das escolas, na formação profissional de professores, nas práticas
de avaliação.
O problema da dispersão em torno de objetivos e formas de funcionamento
da escola pode ser melhor entendido pelas pressões acadêmicas em cima da
pedagogia e da didática conforme comentado, mas há que se considerar com
bastante ênfase o impacto da internacionalização das políticas educacionais para
os países emergentes e pobres. Estudos bastante consistentes (De Tommasi;
Warde; Haddad, 1966; Frigotto; Ciavatta, 2003; Shiroma; Garcia; Campos, 2011;
Akkari, 2011; e Freitas, 2011) mostram a influência crescente de organismos
transnacionais nas políticas educacionais brasileiras, com repercussão visível na
pedagogia, na didática, nos currículos, na organização escolar, afetando
significativamente as escolas e salas de aula (Torres, 2001, Libâneo, 2012a,
2012b).
É sabido que o Banco Mundial é uma instituição econômica supranacional
cujo papel no cenário econômico é atrelar metas educacionais a metas econômicas
visando à equilibração da economia mundial em função da globalização dos
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mercados, redução da ignorância e da pobreza por meio de uma escola voltada ao
atendimento das necessidades “mínimas” de aprendizagem visando a
empregabilidade e inserção dos indivíduos no mundo da informação e do
consumo. A escola concebida pelas agências internacionais é a que busca atender a
necessidades imediatas de sobrevivência, ritmos e interesses individuais dos
alunos, visando à proteção social para a pobreza. Para isso, propõe conteúdos
mínimos com base em competências e habilidades cognitivas numa escola
organizada como acolhimento e vivência social, com claras intenções de
harmonização das relações sociais. Trata-se de combinar ensino baseado em
resultados com proteção social, com evidente esvaziamento dos conteúdos
científicos e da formação para a reflexividade, política essa que resulta numa
escola do conhecimento para os ricos e de proteção social para os pobres (Nóvoa,
2009; Freitas, 2011; Libâneo, 2012a). Como escrevem Shiroma, Garcia e Campos,
tais alterações na função social da escola decorrentes da adesão a políticas
internacionais deslocam os princípios que regem o campo do conhecimento para os
da sociabilidade em que a inclusão social dos sujeitos pela educação “tem como
finalidade manter os sujeitos incluídos socialmente, servindo de estratégia social
contra o esgarçamento do tecido social, uma vez que a passagem pelos bancos
escolares (...) não guarda nenhuma relação com possibilidades de mobilidade social,
mas é apresentada como uma forma de inclusão social” (2011, p. 245). São
características notórias das políticas educacionais vigentes no Brasil e em outros
países da América Latina.
Essas considerações fornecem elementos para compreender a situação em
que se encontra o campo disciplinar e investigativo da didática tanto no âmbito
acadêmico quanto no âmbito das políticas educacionais oficiais. Em outros textos eu
já comentava sobre as relações conflituosas entre a pedagogia, as demais ciências
da educação e as teorias denominadas grosso modo pós-modernas que, em minha
opinião, desde os anos 1980 vêm contribuindo para o esvaziamento teórico e
profissional da pedagogia e o debilitamento, na pesquisa, dos aspectos pedagógicodidáticos no funcionamento interno das escolas. (Libâneo, 2010, 2011a, 2011b).
Por sua vez, as orientações curriculares dos organismos multilaterais levaram os
países emergentes a adotar em seus sistemas de ensino a a escola de proteção
social para a pobreza, em que se juntam ações de acolhimento social com um
ensino baseado em resultados. Nesse tipo de escola, instrumentalizada apenas
para resolver problemas sociais, pedagogia e didática perdem espaço e, em
decorrência, sai de cena a busca de um currículo significativo para os alunos, o
ensino baseado na formação de conceitos visando ao desenvolvimento intelectual,
a adequação dos conteúdos e metodologias, as formas de avaliação processual, etc.
Ou seja, compromete-se o que deveria ser a finalidade própria da escola, o
desenvolvimento intelectual dos estudantes por meio dos conteúdos científicos e
da formação cultural.
Em contrapartida, M. Young, especialista em currículo, apoiando-se em
Charlot e Vigotsky, não poderia ser mais claro em relação ao papel desejável para
as escolas:
O currículo precisa ser visto como tendo uma finalidade própria, o
desenvolvimento intelectual dos estudantes. [...] O desenvolvimento
intelectual é um processo baseado em conceitos, não em conteúdos ou
habilidades. Isso significa que o currículo deve ser baseado em conceitos.
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[...] O conteúdo, portanto, é importante não como fatos a serem
memorizados, como no currículo antigo, mas porque sem ele os
estudantes não podem adquirir conceitos e, portanto, não desenvolverão
sua compreensão e não progredirão em seu aprendizado. [...] São os
professores com sua pedagogia e não os formuladores de currículo, que se
servem do cotidiano dos alunos para ajudá-los a se engajarem com os
conceitos definidos no currículo e perceberem sua relevância (2011, p.
614).
Se for esse o papel das escolas, é precisamente nele que intervêm a
pedagogia e a didática, contrariamente a tendências vigentes de ignorá-las.
Essas considerações, no entanto, pedem um alerta. Minhas críticas a certa
sociologização do pensamento pedagógico não levam à desconsideração das
contribuições das chamadas ciências da educação, como a política, a sociologia e a
antropologia (e, claro, as reflexões no âmbito da filosofia da educação), na
compreensão do fenômeno educativo. Insisto que o que recuso é o viés, ou seja, a
análise das questões da educação apenas a partir dos temas e métodos
investigativos de um determinado campo científico, principalmente quando tais
campos depreciam ou ironizam ou relegam a segundo plano a especificidade
pedagógica das questões educativas, ou seja, a atuação sobre a formação e o
desenvolvimento do ser humano por meio da assimilação da experiência humana
sociocultural pelo ensino, em condições materiais e sociais concretas. Também
minha crítica à escola de proteção social, tanto na visão neoliberal quanto na visão
progressista, não leva a desconsiderar a relevância de políticas de atendimento à
diferença e às diversidades sociais e culturais dos alunos. O que contesto é a
sobreposição da missão social da escola à sua missão pedagógica, pois a principal
missão social da escola é sua missão pedagógica, a formação das capacidades
intelectuais dos alunos por meio dos conteúdos, visando a sua inserção crítica no
mundo do trabalho, da cultura, da política.
A despeito dos problemas apontados, a didática e as didáticas específicas
formam um campo em expansão. Primeiramente, não podemos nos esquecer de
que essas disciplinas estão presentes em praticamente todos os cursos de
licenciatura do país, envolvendo, por baixo, em torno de 30.000 professores, fato
esse que, por si só, justificaria sustentar estudos teóricos e investigativos. Além
disso, embora persista nos cursos de formação a didática instrumental, constata-se
hoje uma produção acadêmica consistente, aberta, interdisciplinar, abordando
questões teóricas e epistemológicas e temas como mediação pedagógica, ensino
colaborativo, ensino com pesquisa, interculturalidade no ensino, estágio
supervisionado (entre outros, Candau, 1984, 2002, 2003, 2011a, 2011b; Cunha,
1989; Oliveira, 1992, 1997; Pimenta, 1997, 2010; Veiga, 1996, 1999, 2010; André,
1995, 1997; Oliveira; André, 2003; Marin, 2005; Pimenta; Lima, 2004; Franco,
2010, 2012).
Livros e artigos buscam aproximações temáticas e práticas com os campos
do currículo, da linguística, dos estudos culturais, entre outros, tal como mostram
estudos sobre produção acadêmica em congressos e encontros (Oliveira, 1997;
Pimenta, 2000; André, 2008). Começam a surgir trabalhos abordando
aproximações mais estreitas entre didática e didáticas específicas, didática e
epistemologia das disciplinas, relações entre conhecimento do conteúdo e
conhecimento didático (por exemplo, Maldaner, 2000; Monteiro, 2007; Libâneo,
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2010a; Marandino, 2011; Veiga, 2011). Há grupos com pesquisas voltadas para a
sala de aula em temas como metodologias de ensino de alfabetização e de
disciplinas, ensino e contextos socioculturais, ensino em ambientes virtuais,
educação infantil, aprendizagem e interações discursivas.
2. Antigas e persistentes antinomias no campo pedagógico-didático
A investigação em didática possui uma vasta tradição no contexto europeu
em que, mesmo a partir de diferentes orientações teóricas, se acentua como seu
objeto de estudo as relações entre o ato de ensinar e a aprendizagem, visando à
formação do aluno.
Compreendemos por doutrina geral do ensino (ou também estruturação
didática) ou didática, a teoria da instrução e do ensino escolar de toda natureza
em todos os níveis. [...] Trata das questões gerais de todo ensino, comuns a
todas as matérias e procura expor os princípios e postulados que se
apresentam em todas as matérias. [...] (Stocker, 1964, p. 6). Grifos do autor
(Stocker)
O processo didático [...] tem seu centro no encontro formativo do aluno com a
matéria de ensino. [...] Todo ensino eficiente é mais do que mera transmissão de
material e exercitação de habilidades. Deve conduzir ao encontro formativo
com os conteúdos didáticos indicando, assim, ao aluno o caminho da
autoformação e, finalmente, despertar nele a aspiração cultural que repercutirá
através de toda a vida, para além da escola (Id., p. 23). Grifos do autor
O objeto da didática é o processo de instrução e de ensino tomado em seu
conjunto, ou seja, o conteúdo do ensino refetido nos planos e programas
docentes e nos livros didáticos, os métodos e meios do ensino, as formas
organizativas do ensino, o papel educativo do processo docente, como também
as condições que propiciam o trabalho ativo e criador dos alunos e seu
desenvolvimento intelectual (DANILOV, 1984, p. 10).
Na relação educativa escolar há dois processos de mediação: aquele que liga o
sujeito aprendiz ao objeto de conhecimento (relação S-O), chamado de
mediação cognitiva, e aquele que liga o formador professor a essa relação S-O,
chamado mediação didática (Lenoir, 1999, p. 28).
No Brasil são, também, sustentadas posições semelhantes no que diz
respeito ao foco da didática no processo de ensino e aprendizagem. Para Castro
(2010), a didática é um corpo de conhecimentos sobre o ensino, visando a ensinar
algo a alguém. Um elemento peculiar na definição do objeto da didática é a
intencionalidade, ou seja, é próprio do ensino pretender ajudar alguém a aprender,
momento em que entram em cena as ações didáticas visando a um encontro entre
o ensinar e o aprender. A mesma autora acrescenta: (...) o ideal de toda didática
sempre foi que o ensino produzisse uma transformação no aprendiz e que este,
graças ao aprendido, se tornasse diferente, melhor, mais capaz, mais sábio (Castro,
2001, p.16). Por sua vez, Candau concebe a didática como “conhecimento de
mediação e garante sua especificidade garantida pela preocupação com a
compreensão do processo ensino-aprendizagem e a busca de formas de
intervenção na prática pedagógica, concebida como prática social (CANDAU, 1997,
p. 74).
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Além do entendimento de que as ações de ensino-aprendizagem sejam
consideradas em sua unidade, outros autores buscam compreender as atividades
do professor e do aluno como inseridas em contextos históricos e sociais.
O trabalho docente consiste, assim, na atuação do professor no ato educativo
[...], mediando os processos pelos quais o aluno se apropria ou se reapropria do
saber de sua cultura e o da cultura dominante, elevando-se do senso comum ao
saber cientificamente elaborado. Nesse caso, uma boa parte do campo da
didática refere-se às mediações, assumidas pelo professor, pelas quais
promoverá o encontro formativo entre o aluno com sua experiência social
concreta e o saber escolar (Libâneo, 1984, p. 149).
Seu objeto de estudo específico é a problemática do ensino enquanto prática de
educação, é o estudo do ensino em situação, em que a aprendizagem é a
intencionalidade almejada, e na qual os sujeitos imediatamente envolvidos
(professor e aluno) e suas ações (o trabalho com o conhecimento) são
estudados nas suas determinações histórico-sociais. [... ] O objeto de estudo da
didática não é nem o ensino nem a aprendizagem separadamente, mas o ensino
e sua intencionalidade, que é a aprendizagem, tomadas em situação (Pimenta,
2002, p. 63).
Também a relação da didática com as questões epistemológicas é um tema
presente na investigação. “Ensino envolve, necessariamente, o enfrentamento de
questões de como ocorre o conhecimento e da justificação e validação de
resultados cognoscitivos, implicando, portanto, a dimensão epistemológica”
(Oliveira, 1997, 133).
A despeito da clareza com que essas definições compreendem a didática,
inclusive por contemplarem elementos fortemente presentes hoje no debate do
campo como a relação da didática com os saberes ensinados, as peculiaridades da
mediação pedagógica, a articulação com a epistemologia das disciplinas, a ligação
dos conteúdos com as práticas sociais e culturais, entre outros, persistem
significativas antinomias, umas antigas, outras mais recentes, reforçadas pela
dinâmica das mudanças no campo social, político, científico, cultural. A seguir, são
pontuadas algumas dessas antinomias.
Fragmentação entre ensino e aprendizagem – Analisando como se apresenta
a problemática do objeto de estudo da didática nos cursos de formação de
professores das séries iniciais (pedagogia) nos deparamos nas ementas de didática
com uma grande dispersão desse objeto, mas, principalmente, uma fragmentação
do foco da didática entre o ensino e a aprendizagem (Libâneo, 2010c). Na maior
parte Davídov, dos currículos há uma predominância de foco no ensino, já que boa
parte das ementas reduz o programa de didática aos elementos do plano de ensino.
É visível a falta de unidade conceitual entre ensino e aprendizagem. A didática
tradicional aparece fortemente ora com seu caráter instrumental, ora com um
discurso genérico sobre educação e ensino; o viés sociológico ignora as questões
de aprendizagem ressaltando práticas sociais e linguísticas; certas visões
escolanovistas realçam apenas a aprendizagem espontânea ou as características
psicológicas dos alunos. De alguma forma, tais tendências não conseguem
assegurar a unidade entre ensino e aprendizagem e suas relações mútuas,
desconsiderando as implicações simultâneas entre aspectos epistemológicos,
psicológicos, sociais e pedagógicos do processo de ensino e aprendizagem.
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Centralização nos interesses e necessidades individuais e sociais do aluno em
contraposição à ênfase no conhecimento e na aprendizagem – A par da incidência
historicamente explicável da contraposição entre pedagogias centradas no
professor/pedagogias centradas no aluno/pedagogias centradas na cultura, estão
presentes nas políticas para a escola orientações das políticas educacionais
transnacionais, em que o lugar do conhecimento e do desenvolvimento das funções
psicológicas superiores é substituído ora por um currículo instrumental e
imediatista, ora pelo currículo experiencial, visando ao atendimento a
necessidades individuais dos alunos e interesses pragmáticos do sistema de
ensino. O currículo instrumental sustenta-se em objetivos de competências, o
baseado em experiências em temas geradores ou projetos, com forte ênfase em
vivências socioculturais e situações experienciais de socialização e integração
social. São características marcantes das propostas de educação identificadas por
Nóvoa como “transbordamento” das funções da escola. Ou seja, são ressaltadas nas
políticas educacionais as missões sociais da escola visando ao apoio às crianças dos
meios sociais menos favorecidos por meio de um conjunto de competências sociais
e culturais, em que se atribui à escola “relevante papel assistencial e de
compensação face à incapacidade das famílias para assegurarem as condições
necessárias ao desenvolvimento das crianças” (Nóvoa, 2009, p. 78). O que se
questiona nessas propostas curriculares não é o fato de o currículo dar atenção às
características individuais e sociais dos alunos, o que é inerente a concepções
pedagógicas críticas, mas a tendência de sobrepor (ou subsumir) a missão social da
escola à sua missão pedagógica, pondo em segundo plano a especificidade da
escola: a formação das capacidades intelectuais dos alunos por meio dos conceitos
científicos e da aprendizagem de cunho cognitivo. Nóvoa menciona o dualismo de
muitos sistemas de ensino: “as elites investem numa educação (privada) que tem
como elemento estruturante a aprendizagem, enquanto as crianças dos meios mais
pobres são encaminhadas para escolas (públicas) cada vez mais vocacionadas para
dimensões sociais e assistenciais” (Nóvoa, 2009, p. 79).
Separação conteúdo/método da ciência/metodologia do ensino – Essa
separação ocorre no interior do processo de ensino de uma disciplina: transmitese um conteúdo sem levar em conta o percurso investigativo da ciência ensinada,
de modo que a metodologia de ensino das disciplinas é quase sempre trabalhada
independentemente do conteúdo. Essa tripla separação, no entanto, acontece de
modo distinto nos cursos de licenciatura para as séries iniciais (pedagogia) e nas
licenciaturas para as séries subsequentes. Nos primeiros, ocorre a ênfase no
metodológico sem referência ao conteúdo; nos segundos a ênfase no conteúdo
separado da metodologia de ensino, principalmente onde as disciplinas de
licenciatura acontecem no último ano do bacharelado (3 + 1). Em ambas as
licenciaturas, o conteúdo ou a metodologia de ensino estão separados do método
da ciência, ou seja, em nenhum caso se faz um estudo aprofundado da
epistemologia e dos processos de investigação da ciência ensinada nas suas
relações com o ensino dessa ciência. Com isso, conteúdo e metodologia do ensino
desse conteúdo são tratados separadamente.
Fragmentação entre o conhecimento do conteúdo (conhecimento disciplinar)
e o conhecimento pedagógico do conteúdo (didática e didáticas disciplinares) – Do
tópico anterior resulta a dissociação, no currículo de formação, entre dois saberes
profissionais essenciais ao professor: o domínio do conteúdo e o domínio das
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formas de promover a aprendizagem desse conteúdo pelo aluno, isto é, o
conhecimento pedagógico-didático do conteúdo. Fica evidenciada a falta de
vínculos entre didática e epistemologia das ciências ou entre a didática básica e as
didáticas disciplinares ou, ainda, entre conhecimento pedagógico e conhecimento
disciplinar. Os princípios da organização conceitual da matéria ensinada e o
processo de constituição desses conceitos não aparecem nos procedimentos
didáticos pelos quais temas e problemas da matéria são “didatizados” para a
compreensão dos alunos. A mesma dissociação apontada no tópico anterior
reaparece agora na composição curricular dos cursos. Enquanto na formação de
professores para as séries iniciais em que se forma o professor polivalente a
separação conteúdo-forma se caracteriza pela predominância das formas (isto é,
do “metodológico”), sem conexão com os conteúdos (as conhecidas “metodologias
de...”), nas demais licenciaturas em que se forma o professor especialista em um
conteúdo há uma visível ênfase nos conteúdos sem conexão com a metodologia de
seu ensino. A situação piora quando a formação pedagógica está nos anos finais
pós-bacharelado, em que os conteúdos específicos somem. Em ambos os casos,
verifica-se a dissociação entre aspectos indissociáveis na formação docente, ou
seja, entre o conhecimento do conteúdo (conteúdo) e o conhecimento pedagógico
do conteúdo (forma).
Desconexão entre a didática básica (também chamada de “geral”) e as
didáticas específicas. Essa é a consequência inevitável da problemática apontada
nos tópicos anteriores: professores de didática provenientes da pedagogia tendem
a reduzir as práticas de ensino aos elementos do planejamento, a técnicas de
ensino, a metodologias estereotipadas (i. e., invariáveis, aplicadas indistintamente
a todas as disciplinas) separadas dos procedimentos investigativos da ciência
ensinada, como se existisse uma didática “genérica”; por outro lado, professores
das didáticas específicas desdenham os saberes pedagógico-didáticos (“para
ensinar física, basta saber física”) e criticam os professores que ensinam didática,
mas não conhecem os conteúdos específicos das matérias. O resultado desse
desencontro tem sido a autonomização e a separação entre o conteúdo da didática
e o das didáticas específicas. Enquanto os professores das didáticas específicas
tendem a considerar dispensável uma didática tida como “geral”, os pertencentes à
pedagogia fazem reparos ao pouco interesse de seus colegas pelos saberes
pedagógicos, como as teorias da educação, a psicologia da aprendizagem, as teorias
do ensino e a própria didática (Libâneo, 2008).
Desconexão entre aspectos social-político-culturais e aspectos pedagógicodidáticos implicados no ensino e aprendizagem – Essa questão se refere à já antiga e
também difícil interseção entre os conteúdos, os procedimentos de ensino e os
contextos socioculturais e institucionais nos quais os alunos participam e
vivenciam. Tende-se a tomar como momentos distintos o ato de ensinar conteúdos
e a vivência/conexão no currículo das práticas sociais. Desde o movimento da
Escola Nova são postas em evidência as necessidades e interesses dos alunos nos
processos educativos, assim como as várias teorias que destacam o papel da
sociedade, da comunidade, do cotidiano e de outras práticas sociais no processo
ensino-aprendizagem. Nesse sentido, vale lembrar concepções educacionais, por
exemplo, de Dewey, Paulo Freire, a educação compensatória, algumas concepções
de pedagogia social, os estudos em torno da cultura e do cotidiano. O problema é
que, muito frequentemente, as práticas sociais e cotidianas, inclusive aquelas
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vividas na escola, são consideradas em si mesmas sem articulá-las com os
conteúdos e as atividades de ensino-aprendizagem. Ou seja, não se conectam
práticas sociais e práticas pedagógicas. Quando levadas em conta no currículo, as
práticas sociais e cotidianas são assumidas ora como forma de gestão (a escola
enquanto lugar de vivência de práticas sociais), ora se transformam em disciplinas
ou atividades “extracurriculares” (caso, por exemplo, dos temas transversais ou
sessões de orientação dos alunos), como se, de um lado, estivessem os conteúdos e
as atividades “escolares” e, de outro, as práticas sociais e cotidianas.
3. Conceitos centrais da didática na teoria histórico-cultural
Entre várias perspectivas teóricas, realça-se aqui a teoria histórico-cultural
em que o campo disciplinar da didática tem como especificidade epistemológica o
processo instrucional que orienta e assegura a unidade entre o aprender e o
ensinar, na relação com um saber, em situações contextualizadas, nas quais o aluno
é orientado em sua atividade autônoma pelos adultos ou colegas, para apropriar-se
dos produtos da experiência humana na cultura e na ciência, visando ao
desenvolvimento humano. Esse processo é designado mediação didática, isto é,
mediação da atividade de aprendizagem do aluno em suas relações com os objetos
de conhecimento, em contextos sociais e culturais concretos, em que se articulam o
ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento humano (intelectual, afetivo, moral).
Entre os elementos constitutivos dessa formulação, o primeiro é a unidade
entre ensino e aprendizagem, expressa na palavra russa obutchenie, cuja tradução
literal é instrução (Prestes, 2012, p. 224 e 225). Essa palavra, diferentemente do
significado convencional no Brasil de transmissão de conhecimento, com
conotação pejorativa, se refere na língua russa ao processo simultâneo de
instrução, ensino, estudo, aprendizagem. A instrução, assim, é a forma de
organização intencional do processo de apropriação, na qual estão implicados o
ensino (o que o professor faz) e a aprendizagem (o que o aluno faz), ou seja, o
ensinar por meio da atuação de outra pessoa no processo de aprendizagem1.
O segundo refere-se ao entendimento, na perspectiva histórico-cultural, de
que a aprendizagem envolve a apropriação pelo indivíduo da experiência social e
histórica expressa nos conhecimentos e modos de ação que, com a adequada
orientação do ensino, levam ao desenvolvimento mental, afetivo e moral dos
alunos. A atividade de ensino, assim, é permeada pela atividade social coletiva e
pela atividade de aprendizagem individual. Segundo Vigotsky, essa apropriação
implica a transição de conhecimentos do plano social externo (atividade social
coletiva) para o plano individual interno, o que implica o desenvolvimento de
Na teoria do ensino desenvolvimental de V. Davydov, “o principal conteúdo da atividade
educativa é a apropriação de métodos generalizados de ação no domínio dos conceitos científicos e
as mudanças qualitativas que ocorrem, nesse processo, no desenvolvimento mental da criança. [...]
A aprendizagem não é apenas a aquisição de um domínio do conhecimento, nem mesmo aquelas
ações ou transformações que o aluno realiza no curso da aquisição de conhecimento; é
principalmente um processo de mudança, de reorganização e enriquecimento da própria criança. O
pressuposto desse modelo de atividade educativa, com base na tarefa educativa, abre caminho para
uma análise da participação ativa do sujeito no processo de aprendizagem e permite-nos dar um
passo à frente na superação do intelectualismo reinante no conceito corrente do processo de
educação” (Davydov; Markova, p. 1987, p. 6).
1
11
processos internos de interiorização, em que o social se incorpora no individual.
Ou seja, por um lado, os processos psicológicos superiores estão enraizados no
desenvolvimento social e cultural, e, por outro, a apropriação da experiência social
humana histórica ocorre por meio de uma atividade psicológica interna propiciada
pelo processo de ensino-aprendizagem.
O terceiro elemento diz respeito ao fato de que o processo de apropriação
envolve a formação de conceitos científicos para além dos conceitos empíricos,
cuja peculiaridade consiste em que a principal função da escola é atuar no
desenvolvimento do pensamento dos alunos, introduzindo-os no domínio do
caráter abstrato e generalizante dos saberes, de modo que os alunos aprendem
formando abstrações, generalizações e conceitos. Desse modo, uma das questões
mais centrais da teoria histórico-cultural é saber de que forma os indivíduos
aprendem a fazer abstrações e generalizações de modo a ultrapassar os limites da
experiência sensorial imediata e como os professores atuam com a mediação
didática para a formação desses processos nos alunos. Assim, os objetos de
conhecimento (conteúdos) e o método pelo qual são investigados cientificamente
são a base da qual decorrem o método de ensino e as formas de organização da
aprendizagem do aluno (Libâneo, 2009). É importante assinalar que o processo de
apropriação consiste na reelaboração subjetiva de conhecimentos, capacidades e
habilidades constituídos socialmente a partir de ferramentas culturais já
desenvolvidas socialmente. Em síntese, “a apropriação é o resultado da atividade
empreendida pelo indivíduo quando ele aprende a dominar métodos socialmente
desenvolvidos de lidar com o mundo dos objetos e a transformar esse mundo, os
quais gradualmente tornam-se o meio da atividade própria do indivíduo”
(Davydov; Markova, 1987, p. 5).
O quarto elemento da formulação acima põe em relevo que o processo de
apropriação ocorre em contextos de práticas sociais, culturais e institucionais,
dada a natureza social das funções psicológicas superiores. Com isso, as atividades
de uma disciplina na sala de aula orientadas para a formação de processos mentais
por meio dos conteúdos científicos precisam estar articuladas com as formas de
conhecimento cotidiano vivenciadas pelos alunos, nas quais estão implicadas as
práticas sociais e cotidianas e as diversidades sociais e culturais que lhe são
próprias.
Com base nessa formulação teórica, se conclui que a didática se define como
um campo científico interdisciplinar cujo objeto é o ensino orientado para a
aprendizagem e cujo propósito é prover a organização adequada da atividade de
ensino e aprendizagem com vistas ao desenvolvimento de capacidades intelectuais
e formação da personalidade integral dos alunos. Em sua natureza, a didática
oferece as condições e os modos de mediação da relação dos alunos com os objetos
de conhecimento, com vistas à apropriação e internalização da experiência social e
histórica da humanidade expressa nos conteúdos científicos e artísticos. A didática
é uma disciplina pedagógica, ou seja, um ramo da pedagogia, ao lado de outras
disciplinas como a teoria da educação, a teoria da organização escolar, a teoria da
escola, psicologia educacional. Pode ser entendida como uma disciplina unitária
que abarca em seu campo teórico-investigativo a didática básica (que compreende
a teoria do ensino e as características do ensino-aprendizagem em seu conjunto) e
as didáticas disciplinares que, em articulação com a didática básica, estuda as
12
peculiaridades do processo de ensino-aprendizagem de cada uma das disciplinas,
considerando sua lógica própria em conexão com os processos de aprendizagem
em contextos sociais e culturais.
A contribuição da teoria histórico-cultural à didática é sumamente
relevante, indicando o vínculo explícito entre a didática e a lógica científica das
disciplinas. Supõe uma relação indissolúvel entre o plano epistemológico (da
ciência ensinada) e o plano didático, ou seja, o vínculo essencial entre
conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico-didático. Uma síntese das
considerações acima pode ser expressa assim: a) A questão “campo do didático” se
resolve, em primeira instância, pelo papel do ensino em criar as condições para
assegurar a relação do aluno com um saber (mediação, compartilhamento de
significados), levando a uma mudança qualitativa nas relações com esse saber
(transformação das relações que o aluno mantém com os saberes); b) não há
didática fora dos conteúdos e dos métodos de investigação que lhes correspondem
(não há conteúdos fora dos métodos de cada ciência de constituição desses
conteúdos); c) não há didática fora da relação do aluno com o conteúdo (fora da
transformação das relações do aluno com o conteúdo); d) Não há didática separada
das práticas socioculturais e institucionais em que os alunos estão envolvidos, as
quais impregnam os conteúdos.
4. Derivações para o campo investigativo e profissional
Mencionamos anteriormente que a didática está no centro da formação
profissional dos professores, na condição de que seja capaz de investigar, definir e
viabilizar os saberes profissionais para a ação profissional. Sua ajuda aos
professores depende da rigorosidade como disciplina e como campo investigativo.
Somente assim pode ajudar profissionalmente aos professores, formulando
marcos teóricos e conceituais e perspectivas metodológicas que os ajudem a
compreender como assegurar a unidade do processo de ensino e aprendizagem e
como atuar nas situações didáticas. São apresentadas neste último tópico algumas
derivações pontuais sobre pistas para o fortalecimento do conteúdo da didática
como disciplina e como campo de investigação.
Superar a fragmentação entre a atividade de ensino e a atividade de aprendizagem
Ensino e a aprendizagem compõem uma unidade, não sendo termos nem
idênticos nem separados. Conforme Prestes:
Para Vigotski, a atividade obutchenie (instrução) pode ser definida como uma
atividade autônoma da criança, que é orientada por adultos ou colegas e
pressupõe, portanto, a participação ativa da criança no sentido de apropriação
dos produtos da cultura e da experiência humana. [...] uma atividade autônoma
da criança que é orientada por alguém que tem a intencionalidade de fazê-lo
(2012, p. 224).
Por sua vez, Pimenta escreve que o objeto de estudo da didática é o ensino
em situação, “em que a aprendizagem é a intencionalidade almejada e na qual os
sujeitos imediatamente envolvidos (professor e aluno) e suas ações (o trabalho
com o conhecimento) são estudados nas suas determinações histórico-sociais”
(1997, p. 63). A superação da fragmentação mencionada depende do
reconhecimento do caráter social do ensino em que está presente a
13
intencionalidade na orientação da atividade dos alunos, no sentido de auxiliá-los
em sua aprendizagem por meio de conteúdos de tarefas de aprendizagem, como
também de organização do ambiente social para a atividade de aprendizagem e
para o desenvolvimento humano. Ao mesmo tempo, reconhece-se que a
aprendizagem, enquanto relação do aluno com o processo de conhecimento,
implicando especialmente um processo de mudança, de reorganização e
enriquecimento do próprio aluno, na dependência de sua participação ativa nesse
processo. Ou seja, à didática cabe assegurar a unidade entre o ensino e a
aprendizagem, para o que precisa recorrer às dimensões epistemológica,
psicológica e sociológica.
Ter como referência básica da didática a mediação da relação do aluno com os
saberes (conteúdos) em situações didáticas contextualizadas
O campo da didática ganhará consistência ao reconhecer que não há
didática que não tenha como foco a relação com os conteúdos enquanto referência
necessária para a formação das capacidades intelectuais. O centro da atividade
escolar não é o conteúdo em si nem o aluno. Uma visão da didática baseada nos
saberes a aprender se opõe tanto a uma visão tradicional como a uma forte
tradição escolanovista e de educação popular em nosso país. Os conteúdos devem
ser vistos como o conjunto de conhecimentos científicos de uma disciplina,
constituídos social e historicamente, produtos da experiência social e histórica
humana, considerados importantes para promover o desenvolvimento mental dos
alunos. Davydov escreve que “o ensino realiza seu papel principal no
desenvolvimento mental, antes de tudo, por meio do conteúdo do conhecimento a
ser assimilado” (1988, p. 172) uma vez que, ainda segundo esse autor, os
conteúdos são os meios para a formação dos processos mentais). Por isso, dizemos
que a didática se ocupa dos processos de ensino e aprendizagem referentes ao
ensino de conteúdos específicos, em situações socioculturais concretas.
Considerar a inseparabilidade entre conteúdos e metodologias investigativas da
ciência ensinada
A didática e as didáticas disciplinares operam em três planos: a lógica dos
saberes (plano epistemológico), a lógica da aprendizagem (plano psicológico), a
lógica dos contextos socioculturais e institucionais. No primeiro, trata-se de
considerar a gênese, estrutura e processos investigativos dos conteúdos e os
modos de organizá-los e ensiná-los em relação a cada campo científico. No segundo
plano, consideram-se as formas de aprendizagem dos alunos em relação à
aquisição e à internalização desses conteúdos. No terceiro, trata-se da interface
necessária entre a organização do ensino e as práticas socioculturais; mais
especificamente, entre os conceitos científicos e os cotidianos e locais envolvidos
nas práticas dos alunos. A didática busca a unidade entre esses planos.
Especificamente em relação ao primeiro plano, afirma-se que os métodos de
ensino são derivados dos processos investigativos pelos quais se chega à
constituição de um conteúdo. Isso quer dizer duas coisas: a) que os métodos de
investigação de uma ciência estão atrelados ao seu conteúdo: b) que os métodos de
ensino de uma ciência são inseparáveis dos métodos investigativos dessa ciência
(Libâneo, 2009). O didata francês Philippe Meirieu (1998, p. 118) descreve a
mesma idéia de outra forma: “nenhum conteúdo existe fora do ato que permite
14
pensá-lo, da mesma forma que nenhuma operação mental pode funcionar no
vazio”. Ou seja, a formação de capacidades mentais supõe os conteúdos, pois essas
capacidades estão já presentes nos processos investigativos e procedimentos
lógicos da ciência ensinada. A noção de conteúdo, portanto, está associada
diretamente à formação de capacidades mentais, no sentido de que a mediação
didática do professor consiste em traduzir os conteúdos de aprendizagem em
procedimentos de pensamento. Ora, isso implica as características de
aprendizagem dos alunos em conexão com os contextos socioculturais e
institucionais de aprendizagem.
Considerar a inseparabilidade entre a didática e as didáticas específicas
Uma vez compreendida a inter-relação entre a didática e a epistemologia
das disciplinas, não há separação possível entre a didática e as didáticas
específicas. Elas são interdependentes, pois o objeto de estudo de ambas é o
processo de ensino-aprendizagem, ambas visam a compreender a mediação
didática dos conteúdos para a aprendizagem e a promover e ampliar o
desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos e a sua personalidade. A
organização pedagógico-didática dos conteúdos pressupõe uma análise
epistemológica desses conteúdos em que se analisam o objeto da ciência ensinada,
seus métodos de investigação e os resultados da investigação, junto com a análise
psicopedagógica das condições de ensino-aprendizagem. A didática (básica),
portanto, inclui entre seus conteúdos elementos da teoria do conhecimento e dos
processos de desenvolvimento e aprendizagem, implicações socioculturais do
ensino-aprendizagem e, especialmente, as peculiaridades epistemológicas das
disciplinas e de seus métodos de investigação. Essa didática, enquanto teoria do
ensino e aprendizagem, generaliza princípios e procedimentos obtidos a partir das
ciências da educação – psicologia, sociologia, antropologia, entre outras – e das
pesquisas resultantes das próprias disciplinas específicas, pondo-os a serviço do
processo de ensino e aprendizagem das disciplinas. Ela oferece às disciplinas
específicas o que é básico, essencial e comum ao ensino, mas em íntima conexão
com a lógica cientifica das disciplinas. Por sua vez, as didáticas específicas (ou
disciplinares), a partir dos saberes pedagógico-didáticos sobre ensino e
aprendizagem e da estrutura conceitual e procedimentos investigativos da ciência
ensinada, pressupõem conteúdos como aspectos epistemológicos do processo
geral do conhecimento, peculiaridades epistemológicas da disciplina, processos e
procedimentos investigativos da disciplina, processos externos e internos do
desenvolvimento humano e da aprendizagem. Ou seja, as didáticas específicas têm
como objeto de estudo as peculiaridades do processo de ensino-aprendizagem de
cada uma das disciplinas, visando à sua organização pedagógico-didática, em
correspondência com os níveis de ensino a atender e características individuais e
socioculturais dos alunos. Em síntese, embora a didática e as didáticas específicas
tenham cada uma sua especificidade, elas formam uma unidade, já que são
mutuamente referenciadas (Libâneo, 2008).
15
Integrar as práticas socioculturais e institucionais, em que estão inseridas a
diversidade humana e as diferenças, às práticas pedagógico-didáticas no trabalho
com os conteúdos
Na perspectiva histórico-cultural, as práticas socioculturais vivenciadas
pelos alunos são integrantes das práticas pedagógicas, inseparáveis delas. Com
efeito, as práticas socioculturais e institucionais que crianças e jovens
compartilham na família, na comunidade e nas várias instâncias da vida cotidiana
são, também, determinantes na formação de capacidades e habilidades, na
apropriação do conhecimento e na identidade pessoal. Dessa forma, as práticas
socioculturais aparecem na escola tanto como contexto da aprendizagem quanto
como conteúdo, influenciando nas mudanças na aprendizagem e no
desenvolvimento dos alunos. A integração entre práticas socioculturais e práticas
pedagógicas significa um movimento de ida e volta entre os conceitos cotidianos
trazidos pelos alunos e os conceitos científicos presentes na matéria, de modo que
o professor, ao propor tarefas de aprendizagem aos alunos, faz integrar os
conhecimentos científicos e as práticas socioculturais de que os alunos participam
e vivenciam. Vai-se dos conceitos científicos à realidade concreta, e da realidade
concreta do conhecimento local e cotidiano para os conceitos abstratos de um
conteúdo. Hedegaard e Chaiklin denominam essa estratégia de “abordagem do
duplo movimento”. Eles escrevem:
Na abordagem do duplo movimento, o plano de ensino do professor deve
avançar de características abstratas e leis gerais de um conteúdo para a
realidade concreta, em toda a sua complexidade. Inversamente, a aprendizagem
dos alunos deve ampliar-se de seu conhecimento pessoal cotidiano para as leis
gerais e conceitos abstratos de um conteúdo (2005, p. 69 e 70).
Nesse entendimento, numa perspectiva crítico-social, boa escola é a que se
organiza de modo a articular a formação cultural e científica com as práticas
socioculturais (levando em conta a diversidade social e cultural, redes de
conhecimento, diferentes valores, etc.) de modo a promover interfaces pedagógicodidáticas entre o conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento
local e cotidiano (Libâneo, 2012c). A escola, assim, assegura a formação cultural e
científica para todos, isto é, o desenvolvimento de capacidades intelectuais por
meio dos conteúdos, considerando, no processo pedagógico, que essa formação se
destina a sujeitos diferentes, diferença como condição concreta do ser humano e
das situações educativas.
Repensar o sentido da investigação propriamente pedagógica: o que é ou deveria ser
a pesquisa em pedagogia e didática
No campo da didática e da formação de professores, os procedimentos de
pesquisa sobre o ensino têm sido tomados, na maior parte das vezes, de
empréstimo aos métodos investigativos da sociologia, por exemplo, a pesquisaação. Enquanto isso, as pesquisas sobre aprendizagem e sala de aula realizam-se,
mais frequentemente, no campo da psicologia. Procurei argumentar ao longo deste
texto que o didático está na confluência do epistemológico, do psicológico e do
social. Tenho defendido que a pesquisa em educação, em quaisquer das ciências da
educação, deve subordinar-se ao objeto da pedagogia que, a meu ver, são as ações
e processos formativos propiciados pelas várias modalidades de educação. O
conceito que expressa essa ideia de modo mais completo é este: a educação é uma
16
prática social, materializada numa atuação efetiva na formação e desenvolvimento
de seres humanos, em condições socioculturais e institucionais concretas, implicando
práticas e procedimentos peculiares, visando a mudanças qualitativas na
aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos. Desse modo, a especificidade
do enfoque pedagógico-didático está nas formas pelas quais a educação e o ensino,
como práticas sociais, formam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos
indivíduos. O resultado social, pedagógico, cultural, da escola expressa-se nas
aprendizagens efetivamente consumadas. Com isso, tenho o entendimento de que
toda pesquisa em educação, seja pelo lado da sociologia, da psicologia, da
antropologia, da economia, da história da educação, da didática, seja pelo lado da
cultura, do currículo, das políticas sociais, da gestão do sistema de ensino e das
escolas, etc., deve ter como ponto de referência as ações e processos formativos
propiciados pelas várias modalidades de educação.
Considerar a necessidade de mudança radical no formato curricular da formação
profissional de professores para a educação básica
Buscou-se argumentar neste texto sobre a inseparabilidade entre didática e
didáticas disciplinares, didática e epistemologia da ciência ensinada, conhecimento
pedagógico e conhecimento disciplinar, o que leva a duas exigências para o
exercício profissional dos professores: o conhecimento do conteúdo e o
conhecimento didático do conteúdo. Conforme mencionado, as instituições
formadoras no Brasil não têm conseguido superar nos currículos a dissociação
entre o conhecimento pedagógico e o conhecimento disciplinar considerando-se,
também, que essa separação tem características muito diferentes quando se
analisa a concepção de formação e organização curricular do curso de licenciatura
em pedagogia e nos demais cursos de licenciatura. Desse modo, cada um desses
percursos formativos encontra o seu dilema. Na licenciatura em pedagogia põe-se
assim: para entender o problema pedagógico da mediação entre o sujeito e o
conhecimento, apenas a formação pedagógica não é suficiente. Essa é precisamente
uma questão epistemológica. Nos demais cursos de licenciatura o dilema põe-se
inversamente: para entender como se ensina um conteúdo para que os alunos de
apropriem deles de modo significativo, somente o conhecimento do conteúdo é
insuficiente. Essa é precisamente uma questão pedagógico-didática.
A lógica da argumentação trazida aqui sobre a inter-relação entre o
conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico leva à conclusão de que o
sistema de formação de professores precisa buscar uma unidade no processo
formativo em que essa inter-relação possa ser assegurada. Tal unidade será
garantida em um centro de formação de professores para a educação básica
(Libâneo; Pimenta, 1999). Essa busca de unidade implica reconhecer que a
formação inicial e continuada de professores precisa estabelecer relações teóricas
e práticas mais sólidas entre a didática e a epistemologia das ciências, de modo a
romper com a separação entre conhecimentos disciplinares e conhecimentos
pedagógico-didáticos. Isso poderá ser assegurado se esses dois percursos
formativos considerarem: a) ênfase no estudo dos conteúdos que serão ensinados
nas escolas da educação básica; b) privilegiamento no ensino da relação
conteúdo/método, em que os métodos são reconhecidos a partir do conteúdo; c)
garantia na formação profissional da integração entre o conhecimento do conteúdo
17
e o conhecimento didático do conteúdo; d) assegurar a unidade entre as três
lógicas: dos saberes, das aprendizagens, dos contextos socioculturais.
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