O Adamastor

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OS LUSÍADAS
CANTO V
O canto anterior terminou com o Velho do Restelo a amaldiçoar a expansão para o Oriente, o que
desde logo sugere ao leitor que a viagem não será fácil.
Ora, terminada a narração da História de Portugal, Vasco da Gama vai contar ao rei de Melinde
como decorreu a sua viagem de Lisboa até ali. Mais uma vez, realidade e fantasia se misturam, pois a
par da indicação do percurso geográfico efetuado aparecem episódios fantásticos.
Nesta etapa da viagem, os navegadores enfrentam inúmeros perigos que reforçam a ousadia dos
Portugueses. Os fenómenos atmosféricos como o Fogo de Santelmo e a Tromba Marítima geraram nos
navegadores um grande receio, mas que estes conseguiram superar.
Surge-nos, mais adiante, um episódio cómico. Fernão Veloso, um marinheiro fanfarrão resolve
arriscar-se em terra, mas logo se arrepende e volta para o barco perseguido pelos africanos.
Um ponto crítico desta etapa da viagem era, sem dúvida, a passagem do Cabo das Tormentas,
famoso pelos inúmeros naufrágios aí ocorridos. O episódio do Gigante Adamastor representa de um
modo simbólico a desproporção de forças: por um lado, a fragilidade das naus e dos homens a bordo,
por outro, a fúria do mar, magnificamente personificada por este gigante aterrador.
Porém, os problemas dos Portugueses não terminariam aqui. Ultrapassadas as dificuldades de
navegação, surge uma doença mortal: o Escorbuto, provocado pela falta de ingestão de alimentos
frescos.
Por fim, Vasco da Gama termina a sua longa narração iniciada no Canto III.
O Adamastor – Plano da Viagem (Episódio simbólico)
Estância 37: Tinham passado cinco dias de navegação com ventos favoráveis, desde que a armada partira da
baía de Santa Helena, quando, numa noite em que estavam de vigia à proa, viram formar-se sobre as suas
cabeças uma nuvem que escurecia os céus.
Estância 38: A nuvem era tão escura e carregada que inspirava um grande medo. Ouvia-se ao longe o
estrondo das vagas contra os rochedos. Vasco da Gama interpela Deus, questionando-o sobre a ameaça que
estava prestes a abater-se sobre eles e que parecia ser pior que um temporal.
Estância 39: Ainda Vasco da Gama não tinha acabado de dizer isto e já um vulto disforme e gigantesco se
erguia diante deles. O rosto era sombrio, a barba desgrenhada, os olhos encovados, a expressão medonha e
má, os cabelos cheios de terra, a boca negra e os dentes amarelos.
Estância 40: Era tão grande que podia ser considerado um segundo colosso de Rodes, que foi uma das sete
maravilhas do mundo. Falava com uma voz cavernosa, que parecia vir do fundo do mar. Arrepiavam-se as
carnes e os cabelos só de o ouvir e ver.
Estância 41: E disse: "Ó gente mais audaz que qualquer outra que tenha praticado grandes feitos! Tu, que
nunca repousas dos trabalhos e das guerras, pois te atreves a romper os limites e a navegar nos mares que
eu guardo, e nos quais nunca ninguém navegou:
Estância 42: … pois vens desvendar os segredos da natureza e do mar que nunca nenhum mortal conheceu,
ouve e fica sabendo os males que eu tenho preparados para castigar o teu atrevimento quer no mar, quer na
terra que, com dura guerra, virás a dominar.
Estância 43: Fica a saber que todas as naus que fizerem esta viagem terão como inimigo este lugar, com
ventos e tempestades terríveis. Na primeira armada que aqui passar eu farei subitamente um castigo
inesperado, mas destruidor.
Estância 44: Aqui espero vingar-me do primeiro que me descobriu. E não será esse o único castigo da vossa
ousadia; todos os anos vereis naufrágios, perdições e o menos doloroso dos males será ainda a morte.
Estância 45: Do primeiro fidalgo que teve o título de Vice-rei, serei eterna sepultura. Aqui deixará os troféus
das suas vitórias sobre os turcos; aqui se vingarão dele as cidades de Quíola e Mombaça.
Estância 46: Também um outro homem ilustre, na companhia da formosa dama que o Amor lhe deu,
escapará ali vivo de um naufrágio, para encontrar em terra morte com maior sofrimento.
Estância 47: Depois de terem caminhado muito tempo pela areia ardente, verão morrer os filhos de fome,
verão os Cafres roubar à esposa os vestidos que a cobriam, até a deixarem exposta ao calor, ao frio, ao vento,
inteiramente nua.
Estância 48: E, os que escaparem, verão os míseros amantes morrer abraçados na mesma sepultura, depois
de lágrimas e lamentos que comoveriam as próprias pedras."
Estância 49: O monstro horrendo continuava a vociferar os destinos dos Portugueses quando Vasco da Gama
lhe perguntou: "Quem és tu?". Retorceu os olhos, deu um espantoso brado como se a pergunta lhe tivesse
doído, e respondeu:
Estância 50: "Eu sou aquele oculto e grande cabo que se estende em direção ao Polo Sul, onde termina a
costa africana, e a quem vós chamais Tormentório. Os grandes geógrafos da antiguidade não me
conheceram, e a vossa ousadia muito me ofende!
Estância 51: Fui um filho da Terra, do mesmo modo que o foram os Gigantes revoltados. Chamo-me
Adamastor, e estive na guerra contra Júpiter; não fui dos que colocaram monte sobre monte para chegar ao
céu, mas andei no mar, em guerra contra Neptuno.
Estância 52: Foram os amores da esposa de Peleu (Tétis) que me fizeram tomar tão grande empresa.
Desprezei outras deusas do céu para amar só a princesa das águas. Vi-a um vez, na companhia das
Nereidas, sair nua das águas, e logo senti um desejo que ainda agora dura.
Estância 53: Como me não era possível consegui-la, por ser tão feio de figura, resolvi conquistá-la à força, e
expus o assunto a Dóris. Esta, com medo, fala-lhe por mim, mas ela respondeu com um sorriso: "Qual será o
amor da Ninfa que aguente o dum gigante(?)...
Estância 54: ...mas, para evitar a guerra no Oceano, procurarei uma forma de, respeitando a honra, evitar
prejuízos". Trouxe-me esta resposta Dóris. Eu não consegui compreender este engano. Como são cegos os
amantes! Fiquei cheio de desejo e de esperanças.
Estância 55: Já sem saber o que fazia, numa noite prometida por Dóris, vejo de longe o vulto de Tétis. Corro
para ela como louco, abraço-a e beijo-lhe os olhos, as faces, os cabelos.
Estância 56: Oh! Tenho até vergonha de o contar: julgando ter nos braços quem amava, encontrei-me
abraçado a um duro monte, e em vez de apertar um rosto angélico, tinha um penedo nas mãos. Eu próprio me
senti de pedra: era um penedo junto a outro penedo.
Estância 57: Ó formosa ninfa! Já que a minha presença te não agradava, que te custaria manter-me nesta
ilusão, fosse ela monte, nuvem, sonho ou nada? E fujo, quase louco, do desgosto e do vexame ali sofridos, a
procurar outro mundo onde ninguém da minha dor se risse.
Estância 58: Já então meus irmãos tinham sido vencidos na sua guerra, para que deuses vãos se sentissem
mais seguros, alguns estavam sepultados sob vários montes. E como contra o céu não há defesa, comecei a
sentir o castigo dos meus atrevimentos.
Estância 59: A carne é agora terra dura; os ossos fizeram-se penedos. Estes membros que aqui vês, e esta
figura estendem-se pelo mar. Enfim, transformei-me neste cabo. E, para ainda mais me magoar, cerca-me
Tétis nestas águas.
Estância 60: E, dizendo isto, com um medonho choro, o Adamastor desapareceu dos nossos olhos. Desfezse a nuvem negra e o mar soou muito longe. Eu pedi a Deus que removesse as trágicas profecias do
Adamastor.
Divisão do episódio em partes:
Introdução (estâncias 37 a 40): Aparecimento e descrição do Adamastor
Desenvolvimento (estâncias 41 a 59): Discurso do Gigante num tom de voz ameaçador (ameaças e
profecias); história do Adamastor
Conclusão (estância 60): Desaparecimento do Adamastor e agradecimento de Vasco da Gama
Esquematização do Episódio
Localização das naus
Preparação do ambiente para o aparecimento do Gigante
Estrofes 39 e 40 Caracterização da figura do Adamastor : aspetos físicos e morais
Discurso do Adamastor:
 referência à ousadia dos portugueses;
 profecias do gigante sobre o futuro dos Portugueses: de carácter
Estrofes 41 a 48 profético e ameaçador o discurso é efetuado num tom de voz horrendo e grosso, anuncia os
castigos e os danos por si reservados para aquela "gente ousada", que invadira os seus
domínios. Promete-lhe castigos como a morte de algumas pessoas que lá vão passar:
Bartolomeu Dias; D. Francisco de Almeida e a família Sepúlveda.
Interrupção do discurso por Vasco da Gama "Quem és tu?": incomodado com as profecias,
Vasco da Gama interroga o monstro sobre a sua identidade. É essa questão tão simples que
Estrofe 49
promove a profunda viragem do seu discurso, fazendo-o recordar a frustração amorosa
passada e meditar na sua atual condição de solitário e petrificado.
Na segunda parte do discurso do Gigante, o assunto é de carácter autobiográfico: explicação da
Estrofes 50 a 59
sua génese; referência ao seu drama amoroso; referência à sua metamorfose.
- Súbito desaparecimento do Adamastor
Estrofe 60
-Pedido de Vasco da Gama a Deus para que as profecias do Gigante não se realizassem.
Estrofes 37 e 38
Caracterização do Adamastor: aspeto aterrador; grande e disforme; pernas e braços imensos;
olhos encovados; cabelos crespos e sujos; boca negra; dentes amarelos; ar medonho; rosto sombrio;
postura agressiva; voz horrenda e grossa; sensível; apaixonado; solitário; triste
Principais contrastes no episódio:
- Prosperamente os ventos sopravam # uma nuvem carregada e assustadora;
- Aspeto gigantesco do Adamastor # pequenez dos marinheiros;
- Tom de voz horrendo e grosso # voz pesada e amarga;
- Ameaças e profecias trágicas # história do amor não correspondido;
- O Gigante que ameaça e assusta # O Gigante que ama e chora;
- Força brutal do Gigante # Fragilidade da ninfa Tétis
Evolução dos comportamentos destas duas personagens
... do Gigante
... de Vasco da Gama
1- mostra-se rancoroso, vingativo, ameaçador;
1- amedrontado: "arrepiam-se as carnes e o cabelo";
2- dor profunda, raiva, desespero; humaniza-se,
chora, reconhece a sua derrota;
2- sem medo, de cabeça erguida (Alçado), num tom
de igual para igual, quase de desafio;
3- desaparecimento
3- atitude de fé: no momento em que o Gigante, a
chorar, desaparece, o Gama pede a Deus que
"removesse os duros/Casos que Adamastor contou
futuros."
Repara que a evolução dos comportamentos é oposta.
Significado / Simbolismo do episódio
Geograficamente: simboliza o Cabo das Tormentas, posteriormente chamado da Boa Esperança;
Mitologicamente: o Gigante apaixonado pela deusa Tétis, transformado em promontório pelos deuses, que
não toleram ousadias; símbolo da frustração amorosa;
Simbolicamente série de perigos e dificuldades que os Portugueses tiveram de enfrentar e vencer. No dizer
de Amélia Pinto Pais, este episódio "é uma espécie de abóbada arquitetónica do Poema, em que vêm
concentrar-se as grandes linhas da epopeia: o real-maravilhoso (...); a existência de profecias (...); é
igualmente um episódio lírico (...); por outro lado, é igualmente um episódio trágico (...). É sobretudo um
episódio épico, em que se consolida a vitória do homem, "bicho da terra", sobre uma natureza poderosa."
Figuras de estilo
Estrofe
38
Nome da figura de Estilo
Aliteração
Exemplo
“Bramindo, o negro mar de longe brada”
39
Dupla adjetivação
“Se nos mostra no mar, robusta e válida”
40
Comparação
“ Ó gente ousada, mais que quantas/ No mundo
cometeram grandes cousas”
41
Apóstrofe
“Ó gente ousada”
45
Perífrase
“De quem me descobriu suma vingança”
48
Eufemismo
“… as almas soltarão”/ “Da fermosa e misérrima prisão”
57
Hipérbole
“Ó Ninfa, a mais bela fermosa do Oceano”
57
Gradação
“Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?”
Adamastor
O Adamastor de Os Lusíadas, poema épico de Camões, recupera a figura mitológica de um dos titãs que se
revoltaram contra Zeus e foram, por este, castigados e transformados em rochedos, ilhas e promontórios.
Inicialmente, o seu aspecto é o de uma figura descomunal, estranha e medonha. A aparência horrenda do
gigante é sugerida ainda antes de ele surgir, quando, nas estrofes 37 e 38 do canto V, se forma uma
«temerosa nuvem negra», acompanhada dos bramidos do mar irado. Este aspeto negro e carregado do céu e
do mar funciona como uma espécie de presságio, anunciando qualquer coisa de temível, que vem a
corporizar-se no Adamastor.
A sua imagem traduz as dificuldades sentidas pelos navegadores na passagem do oceano Atlântico para o
oceano Índico, ao dobrarem o cabo das Tormentas, mais tarde da Boa Esperança. É mais um processo de
enaltecimento, ao encarnar a vingança dos elementos naturais face à audácia dos navegadores portugueses,
que se atreviam a penetrar em espaços até então inacessíveis ao homem.
Na primeira parte do seu discurso, o Adamastor apresenta-se como senhor do mar desconhecido, ameaçando
os portugueses, que queriam devassar os seus domínios secretos, e profetizando para eles duros castigos
futuros. Na segunda parte do seu discurso, o Adamastor, identificando-se com o cabo Tormentório e
elogiando-se por ter conseguido o domínio dos mares, logo se abre em confidências, revelando os
acontecimentos que o levaram até àquele estado. A sua paixão por Tétis mereceu o castigo dos deuses, que
converteram o seu gigantesco corpo no cabo das Tormentas.
O Adamastor surge, no poema de Camões, como uma criação maravilhosa, a corporizar e simbolizar a quase
intransponível força do mar. O gigante é, pois, o símbolo das forças cósmicas que continuamente limitam o
homem. A vitória sobre o obstáculo que este gigante constitui significa o completo domínio dos mares pelos
portugueses
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