Notas para uma TEORIA DO DESENVOLVIMENTO GEOGRÁFICO DESIGUAL, de David Harvey Prof. Ivo M. Theis Estrutura 0 Antecedentes [Harvey, 2004] 1 Preâmbulo [71-75] 2 A estrutura do argumento [75-77] 3 A inscrição material dos processos sociais na ‘teia da vida’ [77-90] 4 Acumulação/desvalorização por despossessão [90-95] 5 Acumulação de capital no espaço e no tempo [95-109] 6 7 5.1 Mudanças no/do mercado 5.2 As leis coercitivas da competição espacial 5.3 Divisões geográficas do trabalho 5.4 Competição monopolística 5.5 Aceleração e aniquilação do espaço pelo tempo 5.6 Infra-estruturas físicas para a produção e o consumo 5.7 A produção da ‘regionalidade’ 5.8 A produção de escala 5.9 Sistemas territoriais de administração política [o Estado intervencionista] 5.10 A geopolítica do capitalismo A política das lutas sociais [109-115] 6.1 Movimentos sociais e acumulação por despossessão 6.2 Conflitos sobre a inscrição material dos processos sociais na ‘teia da vida’ Comentário [115-116] 0 Antecedentes [Harvey, 2004] “o que falta [...] é uma compreensão das forças que constroem legados histórico-geográficos, formas culturais e modos de vida distintivos – forças onipresentes na longa história da cultura capitalista da mercadoria e de sua dinâmica espaço-temporal, sem a ela confinar-se” [107]. Um esboço de uma ‘teoria dos desenvolvimentos geográficos desiguais’ [TDGD] aparece em alguns trabalhos anteriores de David Harvey (2004), destacando-se o capítulo 5 de Espaços de Esperança. Aí o argumento aparece formulado com base em dois componentes principais: A produção de escalas espaciais A produção de diferenças geográficas No primeiro caso, o autor defende que “não se pode entender o que acontece numa dada escala fora das relações de acomodamento que atravessam a hierarquia de escalas – comportamentos pessoais (por exemplo, dirigir automóveis) produzem (quando agregados) efeitos locais e regionais que culminam em problemas continentais, de, por exemplo, depósitos de gases tóxicos ou aquecimento global” [108]. Mais adiante, ele lembra que isso acontece por que “as escalas em que a atividade humana pode ser orquestrada é algo que depende [...] das inovações tecnológicas [...] bem como de várias condições político-econômicas mutáveis [...] elas resultam igualmente de lutas de classes e de outras formas de luta política/social, ao mesmo tempo em que definem as escalas em que se tem de travar a luta de classes” [109]. No segundo caso, o autor afirma que “a longa geografia histórica da ocupação humana da superfície da terra e da evolução distintiva das formas sociais [línguas, instituições políticas e valores e crenças religiosas] inseridas integradamente em lugares com qualidades todas suas tem produzido um extraordinário mosaico geográfico de ambientes e modos de vida sócio-ecológicos [...] Esse mosaico geográfico é uma criação, aprofundada pelo tempo, de múltiplas atividades humanas” [111]. “Mas as diferenças geográficas são bem mais do que legados histórico-geográficos. Elas estão sendo perpetuamente reproduzidas, sustentadas, solapadas e reconfiguradas por meio de processos político-econômicos e sócio-ecológicos que ocorrem no momento presente” [111]. 2 O autor sugere que algumas mudanças foram aceleradas com o processo de globalização, que mudanças nas atividades produtivas estão relacionadas com mudanças culturais e ecológicas – todas indicando novos patamares de diferenças geográficas: “o mosaico geográfico sempre esteve em movimento em toda e qualquer escala. Sua volatilidade contemporânea deixa no entanto a impressão disseminada mas superficial de anarquia global – em vez de operação de forças de produção sistêmicas de desenvolvimento geográfico desigual” [112]. Em conclusão, o autor propõe uma “concepção geral de desenvolvimento geográfico desigual que [...] envolve uma fusão desses dois elementos, a mudança das escalas e a produção de diferenças geográficas. Temos por conseguinte de pensar em diferenciações, interações e relações tanto interescalares como intra-escalares” [112]. 1 Preâmbulo Harvey (2006, p. 71) defende que a TDGD precisa ser aprofundada, não apenas por razões políticas, mas por que as desigualdades sociais no interior do mundo capitalista nas décadas recentes parecem ter aumentado. Dentre as abordagens que confluem para a problemática dos ‘desenvolvimentos geográficos desiguais’ [DGD], podem ser destacados: Os enfoques historicistas/difusionistas [tipo teoria da modernização] As argumentações construtivistas [tipo desenvolvimento do subdesenvolvimento] As proposições ambientalistas [tipo determinismo geográfico] As interpretações geopolíticas [tipo teoria do imperialismo] O autor não nega por completo essas abordagens. Pelo contrário, ele considera que todas têm algo a acrescentar para a construção de um campo unificado da TDGD [74]. 2 A estrutura do argumento Qualquer TDGD tem que ser simples a ponto de se fazer compreensível e complexa o suficiente para abarcar as nuances e especificidades que requerem interpretação. Para tanto, evocam-se quatro condicionalidades: 3 A inscrição material dos processos de acumulação de capital na teia sócio-ecológica da vida; A acumulação por despossessão – uma generalização da concepção de Marx acerca da acumulação primitiva, a partir da qual seres humanos, natureza e dinheiro são convertidos em mercadorias e postos em circulação como capital; A acumulação de capital no espaço e no tempo; As lutas políticas, sociais e de classes em distintas escalas geográficas. Quanto á sua concepção de teoria, Harvey (2006, p. 76) propõe que esta indique a força e a relevância de certos processos que são aparentemente independentes uns dos outros; mas, eles devem ser trazidos juntos num dinâmico campo de interação. Isto implica a construção de argumentos sobre como a teia da vida e a acumulação por despossessão e a acumulação através da reprodução ampliada trabalham juntos; e como a dinâmica das lutas políticas e de classes impulsionam mudanças contínuas dos DGD no contexto do capitalismo. Por isso, a concepção de Harvey (2006) repousa em duas dimensões metodológicas principais: A primeira diz respeito ao modo como se relacionam, em Marx, o abstrato e o concreto; a dialética é esse modo que permanentemente ‘negocia’ o particular com o universal; A segunda se refere à perspectiva de espaço: a teoria social tende ou a excluir a espacialidade de toda análise ou a tratá-la como mero container imutável no interior do qual ocorrem processos sociais; a TDGD concebe o espaço de forma relativa e relacional. 3 A inscrição material dos processos sociais na ‘teia da vida’ DGD refletem as diferentes formas nas quais os diversos grupos sociais têm inscrito seus modos de socialização na teia da vida, entendida esta como um sistema sócio-ecológico. O problema é encontrar uma maneira de conferir sentido às diversificadas, particulares e mesmo idiossincráticas variações geográficas em relação a processos gerais de acumulação, lutas sociais e transformação ambiental. Portanto, a teoria precisa constituir-se em estrutura de argumentos capaz de identificar os complexos modos nos quais os processos sociais estão materialmente inscritos na teia da vida. 4 Um conhecimento crítico do cotidiano, fundado nas relações dialéticas entre eventos abstratos e concretos, indica que “tudo o que acontece no local de trabalho e no processo de produção e consumo está, de alguma maneira, contido no interior do processo de acumulação e circulação de capital. Quase tudo o que comemos e bebemos, vestimos e usamos, ouvimos e vemos, nos vem em forma de mercadorias e está configurado por divisões do trabalho, pela busca de nichos de produtos, pela evolução geral de discursos e ideologias que incorporam os preceitos do capitalismo” (Harvey, 2006, p. 82). Entretanto, isso tudo [as mercadorias e os processos] não esta ‘fora do espaço’: a competição territorial que está por trás das relações do cotidiano tem uma importância incomum no processo de acumulação de capital e nos DGD [85]. A crítica às relações do cotidiano conduz à construção de possibilidades para a sua transformação. É preciso considerar as relações metabólicas entre acumulação de capital e natureza. Uma compreensão dos DGD depende, fundamentalmente, da produção da natureza por meio das atividades capitalistas. As condições físicas e ecológicas variam enormemente ao longo da superfície da terra [87]. Por isso, a possibilidade de mobilizar e apropriar excedentes físicos varia consideravelmente de um contexto sócio-ecológico a outro – e a circulação de capital reflete este fato. Todavia, a apropriação da natureza também depende de tecnologia, formas de organização da produção, diferentes divisões do trabalho, desejos e necessidades, assim como convenções culturais. Ao transformarem o ambiente físico, os seres humanos que vivem em sociedade estão necessariamente se transformando a si mesmos – ponto crucial da dialética da relação metabólica entre seres humanos e natureza. Assim, pois, de uma perspectiva ecológica, cumpre compreender como a acumulação de capital opera nos processos ecossistêmicos, reconfigurando-os e degradando-os – e aqui basta lembrar na aceleração dos fluxos de energia, nas alterações nos balanços de matéria e nas mudanças ambientais. Em síntese: a TDGD implica uma inscrição dos processos sociais e ecológicos na teia da vida [88]. Transformada a natureza, tem-se como resultado um ‘ambiente construído’ – e talvez a cidade seja o melhor exemplo de natureza convertida em ambiente construído. Por muito tempo, os habitantes da cidade renunciaram ao seu direito de fazer a cidade de acordo com o seu desejo em favor de proprietários de imóveis, incorporadores, especuladores, do capital financeiro e dos que controlam o Estado. Estes acabaram sendo os agentes que fizeram a 5 cidade pelos seus habitantes – e assim também fizeram os próprios habitantes. Estes abriram mão de se forjarem e se constituírem a si mesmos em favor do capital, que reestruturou e continua a reestruturar o cotidiano dos habitantes da cidade por meio de projetos que asseguram os interesses dos detentores do capital. Se os resultados deste processo não parecem tão simpáticos, há que se modificá-los. O método dialético é crucial para compreender onde se está e como se chegou até aqui, mas também é vital para entender para onde se deseja ir e como se pode, coletivamente, chegar lá. “A rica variedade encontrada no como, por que e onde da inscrição material dos processos sociais e ecológicos na teia da vida deve ser uma consideração fundamental em qualquer tentativa de construir uma teoria geral dos DGD” (Harvey, 2006, p. 89). 4 Acumulação/desvalorização por despossessão Todas as sociedades geram excedentes. Condições naturais favoráveis podem favorecer a produção de maiores excedentes. Todavia, a apropriação de excedentes depende completamente das relações de poder que dominam no interior das sociedades. No contexto do capitalismo, a capacidade de produção de excedentes é menos relevante que a habilidade de sua apropriação, de convertê-los em propriedade privada e de lançá-los em circulação para a obtenção de novos excedentes. Aliás, o capitalismo passa a predominar precisamente quando a burguesia passa a controlar o destino dos excedentes. As lutas em torno da apropriação, do controle e do uso de excedentes nunca pararam. Mas, mais importante é a tentativa incessante de estender o poder capitalista por territórios, setores e domínios nos quais excedentes – ou condições que favorecem sua produção – ainda não foram incorporados à circulação de capital [91]. Terra, outros valores de uso que podem ser convertidos em mercadorias, dinheiro e força de trabalho são recursos – distribuídos desigualmente pelo território – que são mobilizáveis para atividades geradoras de excedentes. Esses recursos estão geograficamente distribuídos e localizados. Sua apropriação, portanto, depende de estratégias espaciais para lograr acesso e controle [ver o exemplo do turismo, p. 92]. Pelos tempos afora, diferentes formações sociais sofreram os efeitos da depredação perpetrada pelo capital. Nos casos em que não se conseguiu combatê-lo, as elites locais se uniram a ele. Até certo ponto, parece possível mobilizar excedentes autonomamente no 6 interior de uma dada formação social – a China oferece o exemplo bem-sucedido do período mais recente. Mas, depois de certo ponto, os excedentes são mobilizados a partir de uma combinação de influências externas e forças internas no âmbito de um processo de acumulação integrado à economia capitalista mundial. Os DGD são expressão óbvia desses processos. Daí resulta que a acumulação por despossessão é uma condição para que o capitalismo alcance aparência de estabilidade. Os DGD estão na base dessa estabilidade [92]. A acumulação de capital [por despossessão] é um processo necessariamente alicerçado na teia sócio-ecológica da vida. Mas, acumulação de capital é, para além de produção e circulação de excedentes, apropriação de recursos alheios. Por isso, qualquer TDGD sob o capitalismo precisa incorporar a noção de acumulação por despossessão como força crucial para a sua validação [95]. 5 Acumulação de capital no espaço e no tempo A TDGD parte do pressuposto de que há um processo de acumulação em curso, cujas principais características são (Harvey, 2006, p. 95): A atividade econômica se expande e o crescimento é aceito como inevitável e visto como bom em si mesmo; O crescimento é sustentado mediante a exploração do trabalho vivo no processo produtivo; A luta de classes é parte integrante do processo, mas não o ameaça; A mudança tecnológica é inevitável e vista como boa em si mesma; O sistema é contraditório e inerentemente instável – condições de produção de capital no local de trabalho conflitam com a realização do capital no mercado; Crises [de superprodução = overacummulation] são inevitáveis; Os excedentes das crises de superprodução passam por um processo de desvalorização. Crises de superprodução são resolvidas por mudanças temporais [temporal shifts] e espaciais [spatial fix]; as mudanças espaciais implicam em exportação de excedentes de capital e força de trabalho para espaços novos e mais lucrativos [96]. 7 5.1 Mudanças no/do mercado Trazer juntos força de trabalho e meios de produção num dado local de produção e encaminhar os produtos acabados para os consumidores implica movimentos espaciais que perduram no tempo. No período recente, tem sido dada atenção, apropriadamente, a cadeias de produção, a relações sociais no interior do mercado, ao poder do capitalismo mercantil – e se essas mediações facilitam ou não a circulação de mercadorias e favorecem a extração de mais-valia. DGD são gerados por tais processos. 5.2 As leis coercitivas da competição espacial O capitalismo assenta num dinamismo tecnológico e organizacional que conduz a constantes mudanças nas funções produtivas. Estas levam a uma permanente instabilidade da paisagem geográfica do capitalismo [97]. 5.3 Divisões geográficas do trabalho A competição intercapitalista promove relocalizações da atividade econômica em direção a espaços mais vantajosos para formas específicas de produção de mercadorias, reconfigurando permanentemente o território. Espaços urbanos são privilegiados por concentrarem funções de comando e controle, P&D, marketing e finanças, assim se tornando particularmente atrativos para certos capitais e certas formas de produção – o que pode levar a economias de aglomeração. De processos de centralização e dispersão resulta uma paisagem geográfica em constante mudança. Regiões ricas tendem a crescer e se tornar mais ricas, regiões pobres tendem a se tornar mais pobres [98]. 5.4 Competição monopolística Duas estratégias que permitem sustentar vantagens monopolísticas para os agentes capitalistas são (Harvey, 2006, p. 99): Crescente centralização de capitais, Proteção a vantagens tecnológicas – mediante leis de patentes e diretitos de propriedade intelectual. 8 Essas estratégias fortalecem as forças empenhadas no processo de acumulação de capital – e as situam nos espaços urbanos nos quais existem condições favoráveis à adoção de tais estratégias. Os espaços mais destacados são as global cities – nós importantes das redes que configuram os DGD. 5.5 Aceleração e aniquilação do espaço pelo tempo Posto que a distância é medida em termos de tempo e custos de movimentação, há pressões para reduzir as fricções da distância por meio de inovações nos transportes e nas comunicações. A isso se pode chamar ‘aniquilação do espaço pelo tempo’ [Marx]. Isso favorece a produção de desigualdades geográficas. Qualquer arranjo espacial estruturado, em outras épocas, sob certa forma de organização de transportes e comunicações terá que se ajustar às novas modalidades de transportes e comunicações vigentes. Tomando em conta as diferentes capacidades de mobilidade de capital e trabalho no contexto das novas formas de organização de transportes e comunicações, haverá espaços nos quais certas produções podem florescer, mas haverá outros em que isso não será possível – o que gerará novas desigualdades geográficas. 5.6 Infra-estruturas físicas para a produção e o consumo Infra-estruturas de transportes e comunicações espacialmente localizadas são requisitos para propiciar maior mobilidade espacial a certas formas de capital e trabalho. Paradoxalmente, novos investimentos tendem a se concentrar lá onde já existem infra-estruturas – o que conduz a um processo de urbanização concentrador de infra-estruturas e de capitais, que aí melhor se acumulam que nos espaços não tão bem dotados de infra-estrutura [101]. 5.7 A produção da ‘regionalidade’ [aspas minhas] Investimentos no ambiente construído definem espaços regionais para a circulação de capital. Nesses espaços, produção, distribuição, trocas e consumo, oferta e demanda [em particular, de força de trabalho], lutas de classe, cultura e estilos de vida estão unidos no interior de um sistema aberto que, todavia, apresenta certa ‘coerência interna’ [102]. 9 Consciência e identidade regional, até mesmo lealdades afetivas, podem estar presentes numa dada região. E quando há um aparelho de governança e poder estatal, o espaço regional pode abarcar uma unidade territorial que opera como um tipo definido de espaço de consumo e produção, bem como de ação política. A coletividade pode assegurar certo grau de autonomia ao assumir a responsabilidade de prover infra-estrutura e suporte institucional que definem um modo específico de ela reportar-se ao processo de acumulação de capital, como ao resto do mundo. Uma aliança de classes em nível regional emerge para estabelecer um padrão de governança, em que os pilares são, fundamentalmente, a saúde econômica e o bem-estar da coletividade regional, antes que os interesses de classe [102]. Aqui entram as ‘coalizões regionais para o crescimento’ e outras estruturas de governança dedicadas a melhorar a capacidade competitiva da região/do território vis-à-vis outras regiões/outros territórios. As burguesias locais [pequenos comerciantes, proprietários de terras etc.] podem oferecer suporte popular e representantes da classe trabalhadora podem ser persuadidos a se unirem a uma aliança de classes local na perspectiva de que o bem-estar da região deverá prover benefícios também para eles. A estrutura das alianças locais é altamente variável, dependendo de quem toma a liderança, qual é o projeto [de desenvolvimento regional] e como este é articulado. Assim, uma variável das mais importantes no contexto dos DGD é a natureza e a forma do processo de formação das alianças regionais de classes [103]. As evidências indicam que a regionalidade está em permanente processo de mudança – em face da acumulação regional de capital. Uma posterior acumulação de capital sempre se confronta – às vezes, revoluciona – as estruturas regionais antes existentes. A TDGD tem que considerar a força embutida em tais processos. 5.8 A produção de escala A aniquilação do espaço pelo tempo engendra transformações de escala na estruturação sócio-temporal da acumulação de capital [104]. As escalas geográficas dominantes em que a acumulação teve lugar mudaram ao longo do tempo. Existe uma hierarquia de escalas – frequentemente, dadas como local, regional, nacional e global – mas, o capital mesmo gera suas próprias escalas de circulação. A escala de regionalidade que faz sentido num tempo não necessariamente faz sentido noutro. Estruturas regionais precisam ser entendidas como inerentemente instáveis, ao 10 mesmo tempo em que a volatilidade dos fluxos de capital e trabalho se tornam endêmicos aos DGD do capitalismo. 5.9 Sistemas territoriais de administração política [o Estado intervencionista] O planeta tem sido ‘reterritorializado’ pelo poder da burguesia. O surgimento do Estado Nacional é produto da luta da burguesia para exercer seu domínio político, configurando novos territórios lá onde ela ia sendo vitoriosa [105]. A globalização do capitalismo engendra novas formas de territorialização, favorecendo mudanças na organização dos sistemas de transportes e comunicações e nas alterações de escala requeridas pelo processo de acumulação de capital. A globalização não tornou o Estado Nacional irrelevante, mas o neoliberalismo certamente obrigou a uma mudança em suas funções. Para criar um ‘bom clima para os negócios’, o Estado sob o neoliberalismo se converteu em ‘comitê executivo dos interesses do capital’. Estruturas territoriais adequadas de poder e administração são necessárias para o processo de acumulação de capital. O Estado, apesar de combalido, é o instrumento que provê as précondições para a produção, a troca e o consumo. A administração estatal é, pois, um agente ativo do processo de acumulação e circulação de capital. O Estado, contudo, permanece sendo uma entidade que existe também como terreno de luta de classes e de formação de alianças de classes. Isto requer alguma forma de governança democrática. As frações da burguesia e outras classes e grupos sociais lutam por seus interesses num contexto de instabilidade político-ideológica. Os resultados são os DGD. Estados e outras entidades [por exemplo, governos metropolitanos] são forçados a adentrar em lutas competitivas com outros Estados e entidades por vantagens econômicas e políticas [106]. 5.10 A geopolítica do capitalismo Uma contradição central existe no interior do capitalismo entre lógicas territoriais e capitalísticas de poder. Ela esta internalizada na acumulação de capital, dada a tensão entre regionalidade e formação de alianças territoriais de classes, de um lado, e livre circulação geográfica de capital, de outro [107]. 11 Os capitalistas operam mais em nível de espaço e tempo contínuos, enquanto políticos são mais vinculados a espaço e tempo absolutos. Firmas vêm e vão, mas Estados são entidades que permanecem no tempo e estão confinados a fronteiras territoriais fixas. A dialética da lógica territorial e da lógica capitalística de poder produz efeitos que podem desembocar em imperialismo e geopolítica. A estabilização do capitalismo no longo prazo resulta da síntese desta dialética – que, territorialmente, se expressa na expansão dos espaços para a penetração do capital. 6 A política das lutas sociais Lutas de classes e entre frações de classes, embora inscritas na dinâmica da acumulação capitalista, parecem pouco afetar a micro-dinâmica de um sistema totalmente capaz de reproduzir-se através da imprevisível geopolítica da formação/resolução de crise(s). Mas, o que acontece, de fato, quando lutas de classes e outras formas de lutas políticas e sociais emergem como ativas determinantes de DGD? [109] 6.1 Movimentos sociais e acumulação por despossessão Lutas relacionadas à acumulação primitiva ou à acumulação por despossessão estão presentes no mundo atual como estiveram no passado. Elas variam enormemente. As mais comuns são aquelas por acesso a terra e espaço para viver, por recursos cruciais como água, biomassa [florestas] e outras formas de energia. Não menos relevantes são as lutas por dignidade, reconhecimento e direitos. Todavia, o ponto que deve chamar atenção é menos ‘que questões mobilizam’ e mais ‘como esses movimentos estão ligados à problemática geral da acumulação por despossessão’. A variedade de lutas relativas à despossessão revela quem são os despossuídos, quem se apropria, de que se apropria e quais são as possibilidades de luta que se apresentam para os despossuídos no contexto mais amplo da dinâmica da acumulação capitalista no espaço e no tempo. Essa enorme variedade de lutas em torno da despossessão suscita incerteza, mas não deve obscurecer o seu caráter político, um componente essencial de uma TDGD. 12 6.2 Conflitos relativos à reprodução ampliada do capital No âmbito mais geral do processo de acumulação identificam-se lutas sociais de diversos tipos. A mais óbvia emerge do antagonismo de classes, entre capital e trabalho, na produção de excedentes. Conflitos em torno de salários, contratos de trabalho, extensão da jornada, condições de trabalho estão onipresentes neste contexto, por isso adentram a arena política e se tornam ingredientes vitais da agenda do Estado capitalista. O equilíbrio de forças no interior de qualquer aliança regional de classes varia de um lugar a outro, dependendo de formas de organização, níveis de consciência de classe, memória e tradição coletiva etc. Todavia, são relevantes também as lutas de caráter mais regional, incluindo a geografia dos investimentos em infra-estrutura, a territorialização da ação governamental, a formação de alianças de classe, as lutas por vantagens geopolíticas. A tradição marxista tende a se concentrar nas lutas diretas entre capital e trabalho. Contudo, é um equívoco ignorar essas últimas, na medida em que elas se referem diretamente aos DGD – e não meramente como produto, mas como elemento ativo que impulsiona a dinâmica mais geral da acumulação capitalista. Se a competição entre unidades territoriais governa a dinâmica capitalista, então a emergência de regiões bem-sucedidas e centros de acumulação de capital altamente competitivos afeta a situação global. Se uma dada região se torna a mais dinâmica e mais bem-sucedida na produção de um certo bem, ela passa a ser referência para o mundo em termos de custos, condições de trabalho, padrão tecnológico, organização sindical etc. Os resultados de tais processos, centrais para qualquer TDGD, são contingentes à natureza das alianças de classes, ligando fluxos de capital, trabalho e informação ao longo do espaço global. Não é simples identificar pistas que conectam as diversas lutas no contexto da reprodução ampliada do capitalismo e o papel dos DGD na dinâmica mais geral da acumulação de capital. No entanto, é a questão a ser explicitamente explorada em qualquer teoria geral dos DGD. 6.3 Conflitos relativos à inscrição material dos processos sociais na ‘teia da vida’ O capitalismo trata como mercadorias muitos dos elementos fundamentais da teia da vida que, não obstante, não são produzidos como mercadorias. Aqui se incluem trabalho, tudo o que se refere à natureza e formas específicas da existência social – como dinheiro, mas 13 também cultura, tradição, inteligência, memória etc. A mercantilização de tudo [commodification of everything] infecta cada aspecto do cotidiano. Muitas lutas se contrapõem à mercantilização que afeta a teia da vida. Indivíduos e coletividades buscam proteger-se a si e aos outros da destruição perpetrada pela conversão de seres humanos e natureza em mercadorias. Entretanto, alguns movimentos contra as conseqüências destrutivas da mercantilização – como o ambientalista – não necessariamente convergem com outras formas de movimento social, embora estejam todos posicionados contra a dinâmica da acumulação capitalista. As alternativas indicadas por todas essas modalidades de lutas – ambientalismo, socialismo, anarquismo, feminismo etc. – tendem a não se concretizar na medida em que as questões do cotidiano de indivíduos e coletividades não são adequadamente contempladas e não somam entre si. O desafio é reunir as diversas lutas políticas sem apagar as diferenças existentes entre os movimentos. Essa tarefa pode ser lograda a partir das suas inter-relações no interior de um movimento anti-capitalista mais amplo. Claramente, nem todas essas lutas são ‘lutas de classes’. Ignorar a natureza multifacetada de tais lutas sob as condições presentes é o equivalente a retroceder à criação de alianças anti-capitalistas que pode afetar, de alguma forma, talvez até transformar, o capitalismo predatório dominante. 7 Comentário Essas notas em direção a um campo teórico unificado dos DGD constituem um pequeno passo no âmbito da construção de um quadro teórico apropriado para dar conta de uma das características mais intrigantes e politicamente mais destacadas do mundo contemporâneo – seu crônico e permanentemente variável estado de DGD [116]. Referências HARVEY, D. Espaços de esperança. Trad. A. U. Sobral; M. S. Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2004. HARVEY, D. Spaces of global capitalism: towards a theory of uneven geographical development. London; New York: Verso, 2006 [“notes toward a theory of uneven geographical development”, p. 69-116]. 14