Comunicação A TRIDIMENSIONALIDADE E O PROFESSOR: RELAÇÕES E INTER-RELAÇÕES RAISER, Josiane Schueda1 Palavras-Chave: Auto-organização, Tridimensionalidade, Artes visuais e Ensino fundamental RESUMO: Auto-organização dos seres vivos, concepção sistêmica e pensamento complexo são termos bastante divulgados na atualidade, porém pouco compreendidos no meio educacional. Este texto estabelece relações sobre a importância do trabalho com a tridimensionalidade no cotidiano escolar e o reconhecimento do ser humano como ser aprendente durante toda sua existência. Decorre da análise de entrevistas com professores habilitados e atuantes em Artes nos anos iniciais do ensino fundamental, em escolas de ensino regular da região de Caçador (SC). Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, centrada no paradigma ecológico. O instrumento foi a entrevista fenomenológica, com a pergunta-chave: “Qual o significado da tridimensionalidade para você?” As entrevistas foram analisadas segundo o método fenomenológico. Os achados da investigação constituíram-se de duas essências fenomenológicas: Relações subjetivas e intersubjetivas e Dificuldades e possibilidades do fazer artístico na escola. INTRODUÇÃO A era tecnológica da contemporaneidade reconhece um ser humano cada vez mais interligado a tudo o que acontece no mundo. São redes de comunicação cada vez mais abrangentes e complexas. Porém, toda essa evolução tecnológica possibilitou realmente uma ampliação nos contatos; a vivência humana tornou-se mais “humanizada” e envolvida com o universo? A ciência moderna direcionou um olhar bastante aprofundado para as especificidades, definindo a “razão” como ponto específico do ser humano. A cognição, em especial, centralizada no cérebro, passou a ser o aspecto essencial do ser humano. Somos diferentes dos outros seres vivos porque “somos racionais”. Mas o que é ser racional? Isso significa que nossas emoções deixam de existir? Nossos órgãos sensoriais são somente caminhos para nosso cérebro? Desenvolver a cognição implica trabalhar a racionalidade desvinculada do corpo? 1 Universidade do Contestado – Campus de Caçador –SC Tais pensamentos também permitiram que o sistema educacional trilhasse caminhos cada vez mais afeitos às especificidades dos componentes curriculares, desvinculando o ser humano do universo de que faz parte. A noção de auto-organização, inicialmente vinda das biociências, tem sido o alicerce de muitas outras áreas do conhecimento, tais como a sociologia, a psicologia, as organizações administrativas, a antropologia, a educação. Se entendermos os sistemas vivos como uma rede de relações e inter-relações, não podemos continuar com a visão de que o conhecimento se dá em especial na mente, através de estímulos externos, ou seja, já não é possível desvincular, nos seres humanos, o cérebro do corpo. Essa nova visão tem implicações nos procedimentos escolares, em especial nos procedimentos dos professores para com as questões voltadas à aprendizagem em arte. Muito além da produção artística, o trabalho com a tridimensionalidade envolve um tratamento para o desenvolvimento da sensibilidade, abrangendo uma opção metodológica mais conectada ao ser humano do que à razão propriamente dita. O ser humano é uma rede interligada; o que pensa é fruto de um caminho elaborado a partir de suas experiências individuais e coletivas. RELAÇÕES SUBJETIVAS E INTERSUBJETIVAS Mostra-se bastante pertinente a reflexão de Maturana (1998, p. 12): “Acho que não se pode considerar nenhuma pergunta sobre os afazeres humanos, no que diz respeito ao seu valor, à sua utilidade ou àquilo que se pode obter deles, se não se explica o que é que se quer”. O professor, durante sua formação, recebe influências teóricas, porém o que muitas vezes acontece, é que, ao deparar-se com o dia-a-dia, deixa de refletir sobre a vinculação teoria/prática. A função da teoria é oferecer embasamento, esquemas e perspectivas de análise para melhor compreender as ações, bem como possibilitar combinações em função do universo escolar e do contexto social e cultural dos educandos. Também a opção por uma prática alicerçada em determinada teoria revela a identidade do professor de Artes. Para Oliveira e Hernandez (2005, p. 63), “Na identidade docente estão presentes os conceitos, as relações que o professor estabelece com sua área de conhecimento, sua leitura de mundo, sua ética profissional e o valor que dá a sua profissão de professor e esta identidade é única, intransferível, não traduzível”. Trabalhar com arte na educação demanda um comprometimento maior do que simplesmente “dar aulas”. O convívio diário desperta reflexões sobre o que ocorre numa sala de aula, envolvendo também ponderações sobre a postura do professor e dos alunos. Infelizmente, em grande parte das escolas, o trabalho em sala de aula ocorre mais de forma expositiva por parte do professor, não instigando o aluno à participação efetiva em seu processo de aprendizagem. Os conteúdos arrolados nos planos de ensino não são flexíveis e, na maioria das vezes, determinam o tempo e o espaço na sala de aula. As aulas são preparadas em função desses conteúdos, e não em função dos processos de aprendizagem. Por esse motivo, tornam-se enfadonhas, não despertando o interesse da maioria dos envolvidos. Mesmo com tantos estudos direcionados à aprendizagem, o ensino continua desvinculado. É impressionante como encontramos crianças regularmente matriculadas nos anos iniciais do Ensino Fundamental que não têm interesse em “estar” na aula. O desejo de aprender, de conhecer, perpassa pelas situações criadas em sala de aula. Segundo Humberto Maturana (1998, p. 29) “A educação como ‘sistema educacional’ configura um mundo, e os educandos confirmam em seu viver o mundo que viveram em sua educação. Os educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao ser educados no educar” . Portanto, o que falta nas escolas é a mudança de paradigma dos que a estão dirigindo e administrando. Também, o que está faltando nas escolas é o prazer. Considerar o professor como alguém também aprendente é considerar o aluno como alguém com potencialidades para ensinar. O aprender/ensinar estão interligados numa sala de aula. Porém, o “clima” que se estabelece favorece ou não à aprendizagem. Morin (2002, p. 95) aponta que “O outro não apenas é percebido objetivamente, é percebido como outro sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco, o ego alter que se torna alter ego” [grifos do original]. É importante destacar, em especial com os alunos entre 6 e 12 anos, que a relação positiva entre professor/aluno cria no ambiente escolar desejo necessário para a aprendizagem. Para Maturana (1998): “O educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de convivência. O educar ocorre, portanto, todo o tempo de maneira recíproca. Ocorre como uma transformação estrutural contingente com uma história no conviver, e o resultado disso é que as pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura de acordo com o conviver da comunidade em que vivem.” (MATURANA. 1998, p. 29) São as emoções que determinam ações e cabe ao professor dinamizar essas emoções. Emoções são disposições corporais dinâmicas, que determinam para onde nos movemos. É na interação professor/aluno que se passa a conhecer o outro e a aceitá-lo, e essa é a base para a convivência. Além disso, se as emoções regem as ações, a intenção de apreender perpassa pelas emoções e, conseqüentemente, não podemos conceber a relação professor/aluno desvinculada do desejo por conhecer. Não é a razão que leva à ação, mas a emoção. Assmann (2004) assevera que: “É preciso perguntar-se, às vezes, em relação a casos concretos de aprendizagem, se […] o professor ainda sabe sintonizar-se com as sensações que os alunos experimentam diante das variadas formas de apresentação de textos e imagens. Aprender com curiosidade a aprender – é o despertar do prazer de conhecer, de compreender, descobrir, construir e reconstruir o conhecimento, ter curiosidade.” (ASSMANN. 2004, p. 38-39) A relação professor/aluno perpassa na sintonia entre ambos – e essa sintonia permite aliar o prazer pelo conhecimento. É importante que o professor se coloque também como aprendente nas situações da sala de aula. A completude das relações professor/aluno se dá na aprendizagem e o entendimento de que os alunos podem contribuir para elevar positivamente as ações em sala de aula favorece e dinamiza todo o processo. DIFICULDADES E POSSIBILIDADES DO FAZER ARTÍSTICO NA ESCOLA Ocupar um espaço: este é o aspecto essencial de uma obra tridimensional. O impacto causado ao observador não é meramente visual, este “ocupar um espaço” envolve a mudança da paisagem, tanto física, quanto emocional. Envolver-se em atividades voltadas à tridimensionalidade na escola permite muito mais do que a produção artística; permite que o aluno construa possibilidades. A opção pela tridimensionalidade é, justamente, pelo seu caráter pleno, a não por uma visão unilateral, a visão do todo, tanto em seus aspectos formais quanto informais. Ao trabalhar com a tridimensionalidade, o aluno ultrapassa a vivência, chegando à experiência. A experiência na tridimensionalidade é transformada em conhecimento. Barbosa (1998, p. 23) afirma que “Conhecer significa ter uma experiência e não apenas ter experiência”. E completa: “A experiência, seja qual for o seu material (ciência, arte, filosofia e matemática), para ser uma experiência, precisa ter qualidade estética. É a qualidade estética que unifica a experiência enquanto reflexão e emoção. […] A qualidade estética é pervasiva, e, embora atinja seu ponto máximo no estágio da complementação da experiência, ela permeia todo o processo contínuo de produção e percepção que regula a experiência. Conhecimento e reconhecimento; construção e reconstrução; produção e percepção da produção corporificam a experiência que tem a qualidade estética como elemento unificador.” (BARBOSA, 1998, p. 22-23) A experiência envolve reflexões e revisões, muito além da mera produção. Os percursos da produção, o contato com os materiais, a definição de forma e conteúdo, o encontro consigo mesmo, a obra concluída não obedecem a direções predefinidas e acontecem numa relação de redes de significação que são construídas por meio de patamares de sentido, que se estruturam com o todo poético. Para produzir artisticamente, não basta o rótulo da “criatividade”. A criatividade não está alicerçada apenas à originalidade, mas a um “novo reconstituído”. Nas palavras de Duarte Jr. (1994, p. 96-97), “a criatividade se assenta sobre formas de pensamento distintas do pensamento rotineiro […] a relação se dá primordialmente através dos significados sentidos, ou dos sentimentos” [grifos do original]. Os caminhos podem cristalizar-se e as vivências podem integrar-se em formas de comunicação, em ordenações concluídas, mas a criatividade se refaz sempre. Implica uma força crescente. Reabastece-se nos próprios processos através dos quais se realiza. Portanto, a criatividade está em todos os aspectos da vida, mas precisa de instigação para que se processe. Esta instigação pode ser do entorno/ambiente, ou do próprio ser para sua existência, ou sobrevivência. Numa produção artística tridimensional, diferentes aspectos se mesclam e fundem-se numa unidade. As partes não desaparecem e não perdem seu caráter próprio. Apesar das diferenças das partes constitutivas, a obra possui uma qualidade única. Os processos pelos quais passa o aluno também envolvem uma rede interligada. Mais do que um simples transmissor de conhecimento ou situações já constantes da história do ser humano, o professor de artes, através de conteúdos da tridimensionalidade, constitui-se numa referência para a construção e estruturação da composição do pensar do aluno, pelo prazer em conhecer, pelo impulso à criatividade, pela capacidade de provocar a troca da certeza pela incerteza, o “já determinado” pela busca de novas formulações. A tridimensionalidade deve estar presente nas escolas para que se possa apreender, conhecendo a si próprio, ao outro e ao mundo. Na pesquisa realizada com professores de arte que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, percebeu-se que a significação da tridimensionalidade não é coesa, alguns não haviam parado para refletir sobre isso. Acreditamos também que suas percepções acerca da tridimensionalidade variam por causa das vivências de cada um. Ao procurar mostrar o que se trabalha da tridimensionalidade na escola regular, em especial com os anos iniciais do Ensino Fundamental, pouco foi revelado. Ou seja, não se faz muito mais do que meras técnicas com argila, massas e, principalmente, sucata. No decorrer deste estudo, ao invés de respostas, surgiu um número maior de questões. Vale dizer: antes perguntávamos “o que se faz”?; agora indagamos: porque não se faz? O que está faltando para que os arte-educadores não incluam novas formas de produção artística, além dos tradicionais desenhos, pinturas, colagens em suas aulas? Dentre as justificativas elencadas, surgiram a falta de espaço, a escassez de material, o pouco tempo, a ausência de apoio, o desinteresse por parte dos alunos. Foi apontada ainda a carência de espaços formais na região que ofereçam oportunidades ao aluno de interagir com obras de arte, em vez de apenas observá-la através de meios de comunicação. E mais: será que os aspectos arrolados não perpassam por um déficit do próprio professor, seja no momento de sua formação, seja no decorrer de suas vivências, tanto como artista, quanto como educador? Não haverá possibilidade de reversão dessa trajetória tão enraizada? Que alternativas existiriam para novas possibilidades de prazer nas escolas, tanto para alunos quanto para professores? CONSIDERAÇÕES FINAIS Não é mais possível pensar no ser vivo como uma máquina, dotado de engrenagens que atuam isoladamente para seu funcionamento. Também já não podemos conceber uma atuação educativa desmembrada, solta, desvinculada do todo. O processo ensino-aprendizagem é demonstrado na própria atuação dos envolvidos. Em clima de diálogo, de questionamentos, em momentos de explicações, momentos de silêncio, na troca de informações é que acontece o conhecimento. O professor que atua com artes nas escolas conhece a importância de seu papel na construção de saberes. Porém, é necessário muito mais do que isso. É indispensável que saiba quem é, as razões pelas quais faz o que faz e que se conscientize do lugar que ocupa na sociedade. Precisa refletir sobre a sua experiência profissional, a sua atuação educativa, a sua metodologia de trabalho, as suas estratégias e o embasamento que o leva à ação em sala de aula – e fora dela. E, por fazer parte desse complexo sistema dos seres vivos, poderá questionar-se constantemente sobre “o que fazemos de nossa existência humana e que curso queremos dar a ela”. A efetivação da prática do professor de artes encerra a necessidade de um envolvimento total entre educador, educando e conteúdos. Seu compromisso é o de reconhecer que essa integralização: educador, educando e conteúdos é o que dará significação a suas aulas. Ao professor cabe oferecer oportunidades para que os aprendentes possam criar, apreciar, contextualizar, pois assim terão oportunidades de transformar, experimentar, sentir prazer, estabelecer relações e conhecer idéias, culturas e histórias, produzindo um sentido estético e relações com o meio social em que estão inseridos – a arte, por si mesma, possibilita isso, desde que o aprendente sinta com a corporeidade. Daí porque, o professor, especialmente, deve reconhecer seu papel como educador, pois também depende dele o resgate do prazer pelo apreender. É evidente a necessidade de um redimensionamento em todo o processo escolar, em especial para as aulas de arte. Já não é possível desvincular os “conteúdos” do dia-a-dia do aluno; é necessário trazer a escola para perto da realidade contemporânea, tanto nos aspectos relativos à arte, quanto aos relacionados à vida. Desmitificar as relações de poder e a competitividade nos contatos humanos e respaldar o amor nas relações sociais é tarefa da Educação. É urgente uma mudança de paradigmas. Pensar numa totalidade, complexidade, interação, integração, teias, instiga-nos a um redimensionamento da prática educativa, em especial na arte. Somos parte integrante desse sistema complexo que é a vida. Seremos sempre educadores, porém conservaremos o nosso viver como aprendentes. Nosso mundo é produzido por nós – ainda existe, portanto, a possibilidade de inserirmos a subjetividade humana nas escolas. REFERENCIAS: ASMANN, Hugo. Curiosidade e prazer de aprender. Petrópolis: Vozes, 2004. BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. 3.ed. Campinas: Papirus, 1994. OLIVEIRA, Marilda Oliveira de; HERNANDEZ, Fernando (Orgs). A formação do professor e o ensino das artes visuais. Santa Maria: Ed. UFSM, 2005. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Trad. José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do Futuro. 5.ed. Trad. Catarina Eleonora F da Silva e Jeanne Sawaia. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2002.