SOUZA, Luisandro Mendes de

Propaganda
Apontamentos para uma Semântica do “mais”
Luisandro Mendes de Souza
Universidade Federal de Santa Catarina (PG – UFSC/CNPQ)
[email protected]
Abstract. The aim of this work is to understand and explain the semantic
behave of “mais” in Brazilian Portuguese (PB). The study of “more” can
allow to understand better scalar structures and comparatives. Our main
hypothesis is whether that “mais” behave alike in the three systems (Noun
Phrase, Verbal Phrase and Adjectival Phrase), being, therefore, plausible the
hypothesis of thematic relation (cf. Doetjes, 1997), or whether it can be
postulated that there are two distinct items, a quantifier on NP and VP, and a
degree modifier on AP.
Keywords. Formal semantics;
quantification; thematic relations.
presuppositions;
degree
modification;
Resumo. Este trabalho busca descrever e explicar o comportamento semântico
do “mais” no Português Brasileiro (PB). O estudo do “mais” pode permitir
que compreendamos melhor as estruturas escalares e comparativas do PB.
Nossa questão central é se o “mais” se comporta da mesma forma nos três
sistemas (SA, SN e SV), sendo, portanto, plausível a hipótese de relação
temática (cf. Doetjes, 1997), ou se podemos postular a existência de dois itens
distintos, um quantificador nos SNs e SVs, e um modificador de grau nos SAs.
Palavras-chave. Semântica Formal; pressuposição; modificação de grau;
quantificação; relações temáticas.
1. Introdução
Meu principal objetivo é descrever e compreender o funcionamento semântico do
item lexical "mais" no PB. A dificuldade inicial é a gama de contextos em que ele ocorre,
modificando sintagmas nominais (SN), sintagmas verbais (SV), sintagmas adjetivais (SA) e
eventos. Partindo de uma análise intuitiva inicial e de alguns postulados que a literatura nos
apresenta procuraremos expor alguns problemas que os dados nos oferecem.
2. Caracterização do objeto
Iniciemos nossa análise olhando para as sentenças abaixo:
(1) João comprou mais café.
(2)
A: Acho que as mesas não são suficientes para a festa.
B: Também acho, precisamos de mais mesas.
(3) Quero mais (uma) bolacha.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 403-408, 2005. [ 403 / 408 ]
(4) Maria é a aluna mais inteligente da turma.
(5) Não conheço pessoa mais indecisa que a Maria.
(6) João é o aluno que o professor mais gosta.
(7) João é quem corre mais na equipe.
(8) Foi o João que dançou mais na festa.
De um ponto de vista distribucional, nos exemplos o "mais" pode ser encontrado em
sintagmas nominais (SN) em (1), (2) e (3) modificando o nome ao qual ele se liga, em
sintagmas adjetivais (SA) em (4) e (5) modificando o adjetivo, e sintagmas verbais (SV) em
(6), (7) e (8) comparando eventos denotados pelos verbos gostar e correr. Ainda temos
contextos, (9) e (10), em que, dentro do SN, ele não modifica somente a denotação dos
nomes, mas sim os eventos que os nomes denotam:
(9) Flamengo sofre mais uma derrota pelo campeonato brasileiro.
(10) Mais um acidente com morte no trecho sul da BR 101.
Um ponto comum entre as sentenças é que todas ativam uma pressuposição.
Estaremos aqui assumindo a visão de Chierchia (2003), que concebe as pressuposições
como "condições sobre contextos de uso", ou seja, "as pressuposições de uma sentença são
condições que um contexto deve satisfazer para que essa sentença possa ser usada
apropriadamente" (Chierchia, 2003: 186). Para comprovarmos que se trata de
pressuposiçao, faremos o teste da p-família (família pressuposicional):
(1’) a. João não comprou mais café.
b. João comprou mais café?
c. Foi o João quem comprou mais café.
(2’) a. Não precisamos de mais mesas.
b. Precisamos de mais mesas?
(3’) a. Não quero mais bolacha.
b. Você quer mais bolacha?
Nos exemplos acima, a pressuposição que havia uma quantidade x anterior ao
momento de fala permanece, uma quantidade que faz parte do background conversacional,
compartilhado pelos interlocutores.
Agora olhando para os nomes que o "mais" modifica percebemos que ele parece ser
insensível às suas propriedades ontológicas, pois tanto combina com um nome massivo
como café, com contável plural como mesas e ainda com contável singular bolacha, cuja
leitura contável é licenciado pela presença do determinante uma. Sem a presença do
determinante "Quero mais bolacha", a única leitura possível seria enquanto um nome
massivo. O que temos constatado é que para viabilização da leitura contável é necessária
sempre a presença de um determinante ou um classificador que ative o type shifting1.
Nos exemplos em (4) e (5) também temos pressupostos, apresentados em (4”) e (5”)
respectivamente:
(4’) a. Maria não é a aluna mais inteligente da turma.
b. Maria é a aluna mais inteligente da turma?
(5’) a. Não é verdade que não conheço pessoa mais indecisa que a Maria.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 403-408, 2005. [ 404 / 408 ]
b. Você conhece alguém mais indecisa que a Maria?
(4”) Há outros alunos inteligentes na turma.
(5”) Há outras pessoas que o sujeito conhece, que podem ou não serem indecisas.
Os exemplos (4) e (5) mostram que os adjetivos inteligente e indecisa são graduais2.
Dentro do background conversacional, em (5), o indivíduo mapeia as pessoas que conhece
de um modo razoavelmente bem, e dentro de uma escala de indecisão que ele estabelece a
Maria se encontra no ponto mais alto. Analogamente, o uso de inteligente parece apresentar
o mesmo comportamento. Característica interessante das construções "mais A" é que
podemos supor também um tipo de comparação que se dá, ou que é ativada pelo uso do
adjetivo:
(13’) a. Maria é uma bela dançarina.
b. Há outras belas dançarinas.
Assim, através de (13’) podemos ver como há dois pressupostos distintos (13’a) e
(13’b), o primeiro que é projetado pelo “mais”, o segundo pelo uso do adjetivo “bela”.
Nas sentencas (6), (7) e (8) o mais está modificando a denotação do SV. Numa
primeira análise o "mais" está em contextos de verbos que possuem partes mínimas em sua
denotação. Correr e dançar são verbos de ação, e para reconhecermos sua classe acional
faremos os testes (cf. Chierchia, 2003):
(14)
(15)
a.
b.
c.
a.
b.
c.
* João correu em uma hora.
João correu por uma hora.
João está correndo → João correu.
* João dançou em uma hora.
João dançou por uma hora.
João está dançando → João dançou.
O teste identifica se as eventualidades são atélicas e pelo que podemos constatar
nossas sentenças passam em todos os testes. Ou seja, dançar e correr são claramente
processos que não possuem uma culminação claramente explícita. Assim, há claramente
partes mínimas na denotação dos verbos e analogamente pode-se dizer, então, que o "mais"
surge em contextos de verbos massivos. Mesmo a presença dos adjuntos em (14) e (15) não
altera a conseqüência.
Agora vejamos o exemplo (6), aqui trasncrito como (16), e o respectivo teste:
(16) João é o aluno que o professor mais gosta.
(16’) a. O professor está gostando mais do João.
b. * Professor goste do João.
c. O professor gosta mais do João, Maria quer fazer o mesmo.
Claramente gostar é um verbo de estado, mesmo admitindo gerúndio (sabemos que
há verbos estativos que o admitem, e alguns não em PB), ele não passa nos outros testes.
Do mesmo modo “mais” pode modificar verbos classicamente considerados com télicos,
como construir e escrever:
(17)
João construiu mais casas que o Pedro
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 403-408, 2005. [ 405 / 408 ]
(18)
Maria escreveu mais cartas que sua irmã.
O interessante dos exemplos em (17) e (18) é que podemos supor sub-eventos. Há o
evento de construir uma casa ou escrever uma carta. Em (17) temos o conjunto das casas
construídas por João e o conjunto das casa construídas por Pedro. O papel que o “mais”
parece exercer é relacionar estes conjuntos de eventos quantificando as partes do conjunto
constituído de sub-eventos. Do mesmo modo com (18). Agora, com os verbos de estado,
temos conjuntos claros, entretanto suas partes mínimas não são visíveis. Em (16) não
podemos supor sub-eventos de gostar. Assim, não podemos dizer o quanto o professor
gosta mais do João em relação com os outros alunos.
Temos pressupostos que são ativados também no SV, aplicando os teste em (19) e
(20) e mostrando o resultado em (19') e (20'):
(19)
a. João é quem corre mais na equipe.
b. João é quem corre mais na equipe?
c. Não é o João quem corre mais na equipe.
(20) a. Foi o João que dançou mais na festa.
b. Foi o João que dançou mais na festa?
c. Não foi o João que dançou mais na festa.
(19’) a. João corre na equipe.
b. Há outras pessoas que correm na equipe.
(20’) a. João dançou na festa.
b. Outras pessoas dançaram na festa.
Como podemos ver, temos um pressuposto que parece ser projetado pelo “mais”, o
que corresponderia a (a), e outro (b) que é o polo de comparação estabelecido.
Analogamente ao sistema SV temos:
(9) Flamengo sofre mais uma derrota pelo campeonato brasileiro.
(10) Mais um acidente com morte no trecho sul da BR 101.
que são SN deverbais que denotam eventos. Em (9) também temos um pressuposto que
parece ser ativado pelo mais: o Flamengo sofreu outra(s) derrota(s) antes. O "mais"
modifica então a quantidade de eventos que o nome deverbal derrota refere. Em (10’)
podemos supor que há um evento denotado pelo nome acidente.
(10’) a. Ocorreu mais um acidente com morte no trecho sul da BR 101?
b. Não ocorreu mais um acidente com morte no trecho sul da BR 101.
O pressuposto de (10') é: houve outros acidentes. Neste caso, o “mais” cria a
interpretação de reiteração de eventos, quantificando o evento denotado pelo nome
"acidente". Nos exemplos em (9) e (10) o "mais" não aparece sozinho, ele está ligado a um
determinante (um/uma), que aqui é um numeral. Assim, o "mais" estaria ligado ao numeral
formando um quantificador 'complexo' "mais um/uma" (cf. Chierchia, 2003), pois do
mesmo modo, poderíamos dizer mais dois acidentes.
2. Alguns Problemas
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 403-408, 2005. [ 406 / 408 ]
Na primeira parte expusemos de modo simples os contextos em que o "mais" ocorre
que são relevantes para os nossos objetivos: a descriçao do comportamento semântico do
"mais" e a tentativa de explicação de seu funcionamento. Nossa hipótese é se ele atua do
mesmo modo em todos os contextos em que ocorre, sendo a ativação do pressuposto um
indício, sustentando essa hipótese, dado que a pressuposição projetada é sistemática em
todos os sistemas, e a comparação estabelecida, nos SA também.
2.1 A hipótese temática
Doetjes (1997) partindo da análise de Zwarts (19923, cf. Doetjes, 1997) e sua
abordagem da modificação dos adjetivos de grau afirma que a relação que se estabelece
entre esses modificadores e os adjetivos pode ser explicada em termos de uma relação
temática. Zwarts (1992, cf. Doetjes, 1997) assume que os adjetivos de grau contêm uma
posição temática de grau, g-position, que é saturada por um modificador de grau, elementos
como tão (so), demais (too) e mais (more). A diferença do mais é sua não restrição de
categorias, enquanto o tão e demais se restringem ao domínio adjetivo (em inglês). A idéia
central do autor é que os adjetivos possuem em sua grade temática uma posição escalar de
grau que é saturada por um modificador de grau.
Doetjes (1997, pg. 18) apresenta a teoria do critério temático (com base em
Higginbotham, 1985):
CRITÉRIO TEMÁTICO:
a. X descarrega até um papel temático em Y.
b. Toda posição temática é descarregada de uma vez.
De acordo com Higginbotham (1985), um papel temático pode ser descarregado ou
saturado por uma ligação temática (theta binding). O verbo atribui papel temático aos seus
argumentos como resultado em que uma posição temática é descarregada. Em Maria comeu
bolachas o verbo comer atribui papel temático aos seus argumentos: Maria recebe papel de
agente, quem executa a ação de comer, e bolachas recebe o papel de tema ou paciente,
aquele que é afetado pela ação executada pelo agente, Maria.
Zwarts (1992, cf. Doetjes, 1997) assume que há uma posição temática de grau da
grade dos adjetivos que os modificadores de grau saturam. Assim, a relação que se
estabelece entre mais e inteligente e mais e indecisa, em (4) e (5) é uma relação temática,
dado que os adjetivos são graduais, o mais satura a posição temática que está aberta. A
diferença é que a saturação não se dá através da ligação temática, mas sim através da
identificação4.
Seguindo Zwarts, Doetjes vai defender que a relação que ocorre entre o "more" e os
sistemas SV e SN é a mesma. Supõe a existência de uma posição temática de quantidade,
q-position, que seria saturada por uma expressão quantificada. Como nos adjetivos, essa
modificação depende das propriedades do predicado, a referência cumulativa, ou seja, a
possibilidade de supormos partes mínimas na denotação dos verbos e dos nomes. Deste
modo, ela acredita que a relação que se estabelece entre o "more" e os SAs de um lado e
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 403-408, 2005. [ 407 / 408 ]
com os SVs e SNs de outro é a mesma. Teríamos, assim, um mesmo item que
desempenharia a mesma função em todos os itens e sistemas que modifica. Como vimos na
primeira parte, seu papel semântico é bastante sistemático e a projeção da pressuposição é
um indício claro disso
Nosso problema está em aplicar a mesma análise proposta por ela para a relação
entre o "mais" e os sistemas que modifica no PB. Compreender se a relação é a mesma que
há na língua inglesa e se a teoria pode mesmo ser relevante para entendermos o
funcionamento desse tipo de modificação, é a nossa tarefa inicial, pois pelo que
constatamos a análise que Doetjes (1997) propõe parece se adequar ao “mais” no PB.
3. Notas
1. Para uma explicação mais detalhada sobre type shifting, ver Doetjes (1997),
especialmente o capítulo 2.
2. A literatura não apresenta uma definição precisa e clara do que sejam adjetivos de grau
(gradable adjectives), acredito que a vagueza dos adjetivos permita que sejam chamados de
graduais, pois alto, gordo, quente, inteligente, são predicados altamente dependentes do
contexto para a determinação de sua referência (Barker, 2002), um adjetivo que não
apresenta este comportamento é "morto", pois não podemos dizer em sentido denotativo
que alguém está "muito morto" ou "bastante morto" ou ainda "mais morto que x"), Roberta
Pires de Oliveira (em conversa informal), nos aponta que pode ser o caso de determinação
de inclusão de categorias, pois desempregado possui um sentido bastante preciso, não
aceitando modificadores como bastante desempregado, ou X está mais desempregado que
Y.
3. Zwarts, J. X’–syntax – X’–semantics. PhD dissertation, OTS/ Utrecht University, 1992.
4. Dado a brevidade deste trabalho não poderemos nos aprofundar na definição de
saturação através da identificação. Para o leitor interessado ver Doetjes (1997), cap. 1.
4. Referências
BARKER, Chris. The Dynamics of Vagueness. In: Linguistics and Philosophy. 25: 1-36,
2002.
CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Trad. Luis A. Pagani, Lígia Negri e Rodolfo Ilari.
Campinas: Editora da Unicamp, Eduel, 2003.
DOETJES, Jenny. Quantifiers and Selection. Dissertação de Doutorado. Universidade de
Leiden, Holanda, 1997.
Higginbotham, J. On Semantics. Linguistic Inquiry 16: 547-593, 1985.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 403-408, 2005. [ 408 / 408 ]
Download