a interface entre língua e cultura ou de cimo a uma

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 32 – As interfaces da gramática.
A INTERFACE ENTRE LÍNGUA E CULTURA, OU DE COMO UMA
GRAMÁTICA CUMPRE UMA FUNÇÃO RELACIONAL
Maria Helena Mira MATEUS1
RESUMO
Partindo da afirmação de que “a língua é um factor de identificação cultural”, revêem-se
diferentes perspectivas das relações entre língua e cultura e entre língua e pensamento,
perspectivas que emergem das obras de Herder (século XVIII), Humboldt (século XIX),
Whorf e Sapir (século XX). Faz-se em seguida uma referência à gramática generativa e
à sua característica de teoria mentalista. A par desta teoria, refere-se a importância que
foi adquirindo, na segunda metade do século XX, a teoria variacionista decorrente de
estudos sociolinguísticos e da análise da variação das línguas. Essa variação interage
com a variação cultural das sociedades, o que permite concluir que o estudo da variação
linguística na sua vertente gramatical põe em relevo a função relacional que a gramática
exerce como uma interface entre a língua e a cultura.
PALAVRAS-CHAVE
Identificação cultural; sociolinguística; variação linguística; bilinguismo; crioulo
Existe um pressuposto de que partimos muitas vezes nas reflexões sobre as relações
entre língua e cultura e que está contido na frase: a língua é um factor de identificação
cultural. Verificamos no entanto que, frequentemente, uma só língua identifica culturas
distintas, bastando referir o Inglês, o Castelhano ou o Português.
Ao questionar esta afirmação fui levada a rever diferentes perspectivas sobre as relações
entre língua e cultura. Julguei de interesse iniciar essa reflexão lembrando Herder, um
filósofo do século XVIII cuja obra teve grande influência nos séculos XVIII e XIX.
Herder e os filósofos que se lhe seguiram romperam com a perspectiva empirista e
descritiva do estudo das línguas, e passaram a atribuir à linguagem uma nova atenção
1
Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras / Instituto de Linguística Teórica e Computacional, Rua
Conde de Redondo, 74 – 5º, 1150-109, Lisboa, Portugal, [email protected].
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desenvolvendo uma progressiva reflexão sobre as funções das línguas na sua relação
com aspectos das culturas nacionais.
É neste enquadramento que se entendem afirmações como as dos Românticos alemães,
com relevo para Wilhelm von Humboldt que, no século XIX, estabeleceu uma relação
entre as línguas e as culturas dos povos. No ensaio Sobre a origem das formas
gramaticais e sobre a sua influência no desenvolvimento das ideias pode ler-se que o
que caracteriza o mérito de uma língua são as suas formas gramaticais, que permitem a
representação do pensamento abstracto.
Mesmo quando não dirigimos voluntariamente a atenção sobre
uma forma gramatical, ela produz e deixa a impressão de uma
forma, e deste modo favorece o desenvolvimento do
pensamento abstracto (HUMBOLDT, 1822-23, p.37)
Para Humboldt, as características da forma possibilitam o reconhecimento da "acção do
pensamento", pelo que
uma língua nunca alcançará uma excelente constituição
gramatical se não tiver o feliz privilégio de ser falada, pelo
menos uma vez, por uma nação de inteligência viva ou de
pensamento profundo (HUMBOLDT, 1822-23, p.33).
Para este filósofo existe portanto, entre língua e pensamento caracterizador de uma
nação (entenda-se também, da sua cultura), uma dialéctica impulsionadora da elevação
do pensamento abstracto, que tem como motor inicial a superioridade da comunidade
nacional.
Se passarmos da filosofia oitocentista de matriz alemã para as primeiras décadas do
século XX encontramos uma diferente interpretação da relação língua-cultura. Vejamos
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como exemplo marcante a concepção dessa relação expressa por linguistas e
antropólogos norte-americanos.
O contacto e a análise de línguas índias da América ao tempo pouco conhecidas,
sobretudo da língua dos Hopi, levaram Benjamin Lee Whorf, linguista e antropólogo
(embora engenheiro de formação) a registar diferenças estruturais entre essas línguas e
as indo-europeias ocidentais, pondo em destaque o facto de a língua Hopi poder
transmitir numa única expressão o espaço e o tempo, diferentemente das línguas em
que as duas noções se verbalizam em expressões independentes.
Whorf concluiu que a apreensão da realidade decorre das formas que a língua põe à
disposição dos falantes. Veja-se como Whorf explicou o modo como a língua Hopi
exprime a noção ‘espaço-tempo’:
Entre as propriedades peculiares do tempo em Hopi está a de
que o tempo varia com cada observador, não permite a
simultaneidade e não tem dimensões, isto é, não lhe pode ser
atribuído um número maior do que um. Os Hopi não dizem:
“Eu fiquei durante cinco dias” mas “Eu parti no quinto dia”
(WHORF, 1956, p. 216).
Em consequência, as línguas, segundo Whorf, evidenciam diferenças estruturais entre
si, e essas diferenças reflectem-se na cultura:
Cada língua é um vasto sistema diferente dos outros no
qual são ordenadas culturalmente as formas e as
categorias pelas quais as pessoas não só comunicam
como também analisam a natureza e os tipos de relações
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e de fenómenos, ordenam o seu raciocínio e constroem a
sua consciência (WHORF, 1956, p.252).
De acordo com esta perspectiva, Benjamin Whorf recusa a teoria de uma gramática
universal, tal como recusa os princípios universais do pensamento: Por isso afirma:
“Não existe uma fonte universal do pensamento humano. Os falantes das diferentes
línguas vêem o Cosmos diferentemente, por vezes de modo aproximado, por vezes de
modo bastante diferente”.
A personalidade fascinante de Whorf, a novidade das suas teorias e o contacto com
Sapir que foi o seu professor em linguística fez com que as posições dos dois fossem
agregadas no que se denomina a hipótese de Sapir-Whorf. Na realidade, porém, existem
bastantes diferenças na perspectiva de ambos sobre a relação entre língua e cultura.
Na obra de Sapir, Linguagem, surgida em 1921, a relação entre língua, raça e cultura
não implica uma interdependência como fazia a perspectiva whorfiana:
Nada mais fácil que provar que um grupo de línguas não tem
qualquer correspondência necessária com um grupo racial ou
uma área cultural. Pode-se até mostrar que uma só língua não
raro intercepta linhas de raça e cultura (…) O que se dá com a
raça, dá-se com a cultura. Línguas sem qualquer parentesco
partilham de uma só cultura; línguas intimamente cognatas quando não uma língua única - pertencem a círculos de cultura
distintos (SAPIR, 1921, pp.206 e 210-11)..
Sapir foi um linguista "mentalista" preocupado com a face oculta da língua, ancorada
no subconsciente do homem. A relação que estabelece entre língua e pensamento
funda-se no conceito de que existe um nível abstracto e "profundo" do sistema
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linguístico subjacente à superfície apreensível. Esse nível, que permite o funcionamento
geral da língua, constitui a sua gramática que todos os falantes possuem mas de que não
tomam consciência. Esta perspectiva teve sequência durante o século XX.
Nos últimos sessenta anos desse século, um conjunto de orientações no estudo da
linguagem, em interacção com o aprofundamento no conhecimento do cérebro,
inflectiu para uma relação entre linguagem e cognição. Neste percurso, a linguística
recebeu, a partir de então, uma valiosa contribuição da teoria generativa desenvolvida
por Chomsky que recusou uma análise das línguas puramente descritiva e
fundamentada na psicologia behaviorista.
Na perspectiva generativa, os estudos linguísticos procuram utilizar os factos das
línguas para identificar os princípios da gramática universal e a sua relação com
mecanismos psicológicos, e radicam na convicção de que o homem possui uma
faculdade particular, a faculdade da linguagem.
Estamos assim afastados dos dois conceitos atrás referidos no que respeita à relação
estabelecida entre língua e cultura:

Por um lado, os estudos linguísticos deixaram de incluir a análise da diversidade
das línguas com o fim de demonstrar que elas provam, na sua complexidade, o
nível idêntico de complexidade cultural atingido pelas comunidades que as
falam, (Humboldt).

Por outro lado, não se considera já que as línguas sejam condicionadoras de
uma específica maneira de interpretar a realidade (Whorf).
A partir de meados do século XX, e em paralelo com a perspectiva cognitivista da
gramática generativa, desenvolveram-se estudos sociolinguísticos que deram uma
atenção especial às questões da variação linguística e às relações entre língua e cultura
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apreensíveis a partir de análises variacionais. A importância atribuída à variação das
línguas, em interacção com a modificação sincrónica e diacrónica das sociedades, abriu
campo para o estudo dos factores intervenientes nessa variação, internos e externos,
históricos e resultantes do contacto entre línguas, e para o desenvolvimento de
perspectivas teóricas nesta área.
Progressivamente, foi-se radicando a convicção de que bilinguismo e multilinguismo,
alternância de códigos, surgimento de línguas mistas e de línguas crioulas, embora
suponham, evidentemente, capacidades cognitivas e programas inatos, não estabelecem
com essas capacidades e programas uma relação de causa a efeito – ou seja, a variação
das línguas não resulta apenas das capacidades cognitivas do homem ligadas à
linguagem, mas da interacção dos factores linguísticos e dos factores socioculturais.
Por outro lado, as propriedades linguísticas, em estreita aliança com as sociedades em
mudança, são responsáveis por mutações nas línguas. Essas mutações desenvolvem-se
num contínuum, desde as variações internas de uma variedade (como, por exemplo, as
diferenças dialectais que se verificam na variedade europeia do português), passando
por alternância de códigos (que decorre de um contacto frequente e prolongado dos
falantes de uma língua com outra diferente, como o provam os sociolectos dos
imigrantes portugueses em França), até à criação de línguas mistas e ao surgimento de
novas línguas.
Nestas incluem-se, de forma particular, as línguas crioulas que têm propriedades
comuns e propriedades diferenciadoras conforme a língua que lhes serviu de base.
Sabemos que os crioulos se desenvolveram num contexto de colonização, com presença
dos colonizadores e de grupos heterogéneos de colonizados em situação de escravatura.
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A criação das línguas crioulas decorre, portanto, da necessidade de comunicação entre
línguas e culturas diversas. Não se trata de um mapeamento de características culturais
numa nova língua; trata-se, sim, da progressiva criação de uma língua autónoma cuja
gramática estabelece uma interface entre diferentes línguas e culturas, e reflecte as
difíceis relações entre saberes e interpretações do mundo, entre vivências culturais
distintas. Estamos portanto diante de criações linguísticas que relacionam línguas e
culturas diversas.
Finalmente, pode acrescentar-se a referência a uma situação que confirma a função
relacional da gramática de uma língua na sua utilização por falantes de diferentes
línguas e culturas. Sirva-nos de exemplo o contexto multicultural e multilinguístico que
encontramos hoje em muitos países, quer em consequência da existência de um
plurilinguismo tradicional (de que são exemplo países como Moçambique ou Angola),
quer em resultado de fluxos migratórios que levam grupos de falantes a deslocarem-se
para novos ambientes sociolinguísticos na procura de melhores condições de vida.
Neste tipo de contextos podemos distinguir duas situações diversas:

Um país integra línguas e culturas nativas que são maternas para grande parte da
população (como as línguas bantas em Moçambique), mas que convivem, no
quotidiano e na escola, com uma língua diferente, não materna (neste caso, o
português).

A maioria da população de um país tem como língua de escolarização a sua
língua materna, mas convive quotidianamente com as línguas de populações
imigrantes, nomeadamente em situação escolar (populações dos países
ocidentais da Europa).
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Em ambos os casos, estamos perante a aprendizagem de mais do que uma língua, e da
tomada de consciência de gramáticas diferentes quer pelo contacto quotidiano, quer em
ambiente escolar. Esta situação tem reflexos na criação de pontes de entendimento entre
línguas e culturas, funcionando as gramáticas das línguas como interfaces que
contribuem para a aquisição de um espírito de cidadania tolerante.
Como conclusão, podemos acentuar a importância da convivência de línguas e culturas
diferentes nas situações multilinguísticas e multiculturais acima referidas. É convicção
justificada psicológica e sociologicamente que saber mais do que uma língua e,
sobretudo, aprender a tomar consciência da gramática de uma segunda língua e das
diferenças que possui em relação à gramática da língua materna tem reflexos positivos
no desenvolvimento dos mecanismos psicológicos e na aceitação da existência de
outras línguas e de outras culturas. Podemos assim manter a afirmação inicial de que,
na sua posição de interface entre língua e cultura, o tecido gramatical cumpre, na
realidade, uma função relacional.
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