Podemos retirar a ética das mãos dos filósofos? José Costa Júnior Doutorando em Filosofia – UFMG Professor de Filosofia – IFMG [email protected] Resumo: Após Darwin publicar A origem das espécies em 1859, deu-se gradualmente o reconhecimento de que os humanos, como todos os seres vivos, são frutos de um processo natural. Também surgiram investigações sobre a natureza das capacidades humanas em termos evolutivos. Especulou-se que a moralidade é uma capacidade originada no processo evolutivo, hipótese que motivou o biólogo evolucionista Edward O. Wilson a defender em Sociobiology (1975) que “chegara a hora da ética ser temporariamente removida das mãos dos filósofos e ser entregue aos biólogos”. Diversas investigações prosseguiram a partir desse programa, com o objetivo de explicar a moralidade a partir do processo de seleção natural. Nosso objetivo é discutir se uma compreensão biológica da moralidade é plausível e em quais termos. Palavras-chave: moralidade; darwinismo; altruísmo; sociobiologia; psicologia evolucionista; O britânico Charles Robert Darwin (1809-1882) foi prisioneiro de um dilema. Sabia que a hipótese que alentava sobre a dinâmica do florescimento e desenvolvimento das formas de todos os seres vivos, incluindo assim os seres humanos, seria fruto de intensas controvérsias e especulações. Sua hipótese contrariava a noção comum a muitos de que a ordem natural das coisas implicava a necessidade de um Criador e que os seres humanos foram criados “à imagem e semelhança”1 deste mesmo ser identificado como divino. A proposta darwiniana apontava que, assim como todas as formas de vida já existentes, os seres humanos eram fruto de um longo, lento e contingente processo natural de desenvolvimento da vida. Assim, essa considerável contestação fez com que um angustiado Darwin maturasse cautelosamente a sua “perigosa ideia” 2 por duas décadas, sem lançá-la 1 Gênesis 1:26. A identificação da teoria evolucionista darwiniana como uma ideia “perigosa”, devido ao seu alcance é desenvolvida por DENNETT, 1995. 2 ao público da época. Por algum tempo Darwin manteve sua teoria em particular, compreendendo a necessidade de ter prudência e cuidado. Talvez fosse apressada demais, muito perigosa e heterodoxa, ainda carente de reflexões mais sofisticadas e extensas. Desse modo, não via necessidade de se apressar para publicá-la. As principais preocupações estavam ligadas ao real impacto de suas considerações sobre os seres humanos, sua natureza e suas condições de existência diferenciadas em relação ao restante do mundo vivo. As hipóteses antropológicas lançadas por Darwin foram publicadas somente em 1871, no The Descent Of Man. No entanto, ainda no On The Origin of Species, vemos um resguardado cientista com expectativas acerca das implicações de sua hipótese acerca da origem e da diversificação das variadas formas de vida para a compreensão dos humanos: “No futuro distante, visualizo novos campos que se estendem para pesquisas ainda mais importantes. A psicologia irá basear-se num fundamento novo, o da necessária aquisição gradual de cada faculdade mental. Nova luz será lançada sobre o problema da origem do homem e de sua história.” 3 Já no The Descent Of Man, onde Darwin aplica suas hipóteses evolucionistas ao desenvolvimento do homem e suas características. Explica que os seres humanos são descendentes de uma linhagem organizada, de um “peludo e quadrúpede habitante do velho mundo” (DARWIN, 1871: p. 30). No entanto, o principal desafio de Darwin e a principal dificuldade com esta explanação, é o elevado padrão das qualidades sociais e éticas nos seres humanos. Darwin reconheceu, que, apesar da impopularidade potencial de seu ponto de vista, uma explicação evolucionista da vida tinha necessariamente de que explicar o homem. Explicar a estrutura física do Homo sapiens não seria difícil; não representava um problema maior do que o de qualquer outra espécie avançada. Entretanto, o comportamento humano, no entanto, mantinha-se como obstáculo. Darwin destinou atenção considerável ao comportamento animal, uma característica biológica cuja evolução pode ser explicada como a evolução de outras características. Sua abordagem para a evolução do comportamento animal era semelhante à sua estratégia geral de contabilização de características morfológicas, ou seja, mostrar uma gradação na natureza, que passava do simples ao complexo, como ilustração do modo pelo qual uma estrutura complexa (ou comportamento) poderia ter se desenvolvido através de modificações sucessivas e graduais. Mas e 3 DARWIN, 1859, p. 351. as faculdades “superiores” do homem? Será que poderia proporcionar um cenário para mostrar de forma convincente o surgimento dos muitos sentimentos detidos que não tinham análogo no resto do mundo animal? Darwin estava bem preparado para analisar a questão, pois tinha lido muito sobre a natureza humana e sobre o que era então chamado de “economia política” (FARBER, 1994: p. 47). Os assuntos foram os que muitas vezes discutia em sua família e em seu círculo social, e seu interesse já tinha apresentado algumas consequências. Desafiado por esta questão, Darwin dedicou um grande capítulo do livro às explanações evolucionistas sobre o florescimento de um sentido moral, mostrando como esse traço humano pode ter evoluído em duas etapas principais. Primeiramente, a raiz para a sociabilidade humana encontrar-se-ia nos instintos sociais. A sociabilidade é um traço cujas origens podem ser encontradas na história evolutiva dos homens, ou seja, nos seus “parentes próximos”, em que, por exemplo, outros animais “inventaram” o ninho, e passaram a cuidar dos seus filhotes. Produzir seres capazes de cumprir responsabilidades parentais requer mecanismos sociais adiantados da história evolutiva. Ao mesmo tempo em que facilitava a manutenção da prole e do grupo, os instintos sociais equilibravam a agressão entre os indivíduos. Tornou-se possível distinguir entre “eles” e “nós” e apontar a agressão para os indivíduos que não pertenciam ao grupo. Este comportamento é claramente adaptativo através da seleção natural, no sentido de assegurar a sobrevivência de uma família. Em segundo lugar, com o desenvolvimento das faculdades intelectuais, os seres humanos podiam refletir sobre suas ações e suas motivações e assim aprovar ou desaprovar as ações de outros indivíduos. Isso conduziu ao desenvolvimento de uma consciência que se colocou como “juiz supremo” de todas as ações (DARWIN, 1871, 125). Assim, a sociabilidade e a sensibilidade moral eram características humanas que floresceram naturalmente ao longo do processo evolutivo da espécie. A existência de um “sentido moral”, desenvolvido ao longo da evolução da humanidade, facilitou a convivência humana, e possibilitou o desenvolvimento da técnica e da cultura. Historicamente, uma segunda relevante contribuição à relação entre a teoria evolução e a compreensão da situação ético-política foi desenvolvida por Herbert Spencer (1820-1903), defensor fervoroso da teoria evolucionista, porém, com uma visão diferenciada do processo evolucionista, uma condição decisiva para sua hipótese sobre a relação entre a ciência evolucionista e as discussões ético-político- sociais. Spencer estava, no entanto, mais interessado em tais implicações que Darwin. Enquanto para este último, o sentimento moral do homem tinha sido um problema interessante em história natural, para Spencer, a origem e a validade da moral era central para todo o seu sistema filosófico. Afirmou em sua autobiografia que seus primeiros escritos começaram com o exame de uma questão “éticopolítica”, e embora a questão levou-o a muitos tópicos relacionados, sempre voltava para aquele, embora em formas avançadas (SPENCER, 1904: p. 321, citado em FARBER, 1994: p. 77). A carreira de Spencer avança cada vez mais caracterizada por historiadores como uma busca para a formulação de um novo conjunto de regras absolutas de conduta e uma cruzada para defendê-las. Estas regras, com base no senso moral do homem, prescrevia a conduta individual e definia os limites do Estado. O desejo de uma compreensão completa da base moral da sociedade certamente levou Spencer muito longe: um estudo da evolução física, psicológica e social do homem. Assim, começou sua carreira com uma consideração de como o homem deve viver, e então partiu para uma pesquisa de caráter generalista que esboçava a evolução histórica do sistema solar, da Terra, e dos habitantes da Terra, bem como o desenvolvimento psíquico, social e político do homem. Também tentou descobrir o processo subjacente, responsável por essa evolução, antes de retornar ao tema da vida adequada. É atribuída a Spencer a criação da terminologia “darwinismo social”, que passou a designar, de maneira disforme e sem muitos critérios, as tentativas de explicar a dinâmica social levando em consideração a dinâmica da seleção natural. Para Spencer, é possível para os seres humanos chegar a um saber totalmente unificado e devemos buscar a lei fundamental que estrutura o Universo. Nesse sentido, a teoria da evolução faz parte desse processo. O darwinismo social de Spencer foi mais discutido e causou polêmica porque foi compreendido por muitos como “uma apologia para alguns dos sistemas sociais mais horríveis que a humanidade já teve,” como, por exemplo, o nazismo alemão, além do pensamento liberal extremista (FIESER, 1006 p. 69). Spencer sugeria que, assim como na luta pela sobrevivência entre todas as formas, a vida é um esforço para seres aptos para a existência plena. Desse modo, para que os melhores sobrevivam, é necessário buscar uma forma de política que não ajude os fracos. Assim, declara que “ajudar ao mal multiplicar-se, é, de fato, o mesmo que fornecer para nossos descendentes uma leva de inimigos” (SPENCER, 1874: p. 346). A filosofia de Spencer foi bastante discutida, particularmente em América do Norte no séc. XIX, declinando significativamente no séc. XX. O que a hipótese de Spencer fazia era elevar os fatos biológicos levados em consideração pelos evolucionistas na elaboração da teoria da evolução (o esforço para a existência dada a seleção natural) apontando que a organização política condizente com essa situação deveria fomentar a “sobrevivência do mais apto”, terminologia que Darwin acaba por adotar em edições posteriores de On The Origin of Species. Spencer argumentava que a evolução levava necessariamente ao progresso, transitando de um estado pior a um estado melhor (no sentido “moral” das palavras) e que qualquer instância que suportasse as forças evolutivas, seria consequentemente boa. Assim, a natureza nos mostra o que é bom movendo-se para tal situação; onde “evolução é um processo que, automaticamente, gera valor” (SPENCER, 1874: p. 354). Se a evolução avançar para bem e para o melhor, nós devemos aceitá-lo, além do interesse próprio. As melhores características sociais são identificadas como prazer e felicidade dos indivíduos. Se o processo evolutivo nos dirigir para este prazer universal, nós temos uma razão egoísta para sermos bons, a saber, queremos a felicidade universal. Porém, igualar o desenvolvimento evolutivo com o progresso social a partir do processo natural que elimina aqueles que “não são adaptados”, envolvendo julgamentos valorativos que não poderiam ser realizados sem mais evidências é questionável. Trata-se de uma associação pouco explicada e que exige uma defesa mais ampla entre aquilo que é e aquilo que deve ser, conforme já identificado por David Hume (1711-1776) no séc. XVIII. Além disso, tal associação entre um programa ético-político e as condições naturais da existência humana seria duramente criticada pelo filósofo G. E. Moore (1873-1958) no início do séc. XX, identificando a prática de fundamentar os valores humanos na natureza como um raciocínio falacioso, identificado por Moore como “falácia naturalista”. Muito em decorrência da série de ataques que o darwinismo social sofreu após a as análises sobre suas implicações e deturpações, a compreensão da humanidade e de suas relações a partir do viés evolucionista perdeu considerável espaço. No entanto, com os desenvolvimentos da biologia evolutiva e da ampliação dos estudos do processo evolutivo em si, novas possibilidades surgiram na segunda metade do séc. XX. Entre tais, podemos situar a sociobiologia, “o estudo sistemático da base biológica de todo o comportamento social”, na definição de seu principal teórico e sintetizador, Edward O. Wilson (1929) (WILSON, 1975: p. 120). De maneira geral, trata-se de uma disciplina que busca utilizar os pressupostos da biologia evolutiva para explicar algumas das características da evolução humana. Os “sociobiólogos” focam assim nas diferentes características do comportamento humano e procuram explicá-las como respostas adaptativas a ambientes ancestrais. Apesar do texto fundador da disciplina ter vindo a público somente em 1975, já em 1948, alguns pesquisadores decidiram iniciar uma pesquisa interdisciplinar envolvendo ecologia, zoologia, filosofia e sociologia. A nova disciplina apontava encontrar regularidades universais válidas no comportamento social dos animais e dos seres humanos, desenvolvidas através do processo de seleção natural. O campo não teve grandes resultados até que Edward Wilson publicou o polêmico Sociobiology: The New Synthesis. No último capítulo desta obra, simbolicamente intitulado “Man: From Sociology to Sociobiology”. Wilson faz análises à luz da nova ciência acerca da “natureza humana”, suas capacidades e limites. Para o objeto de nosso trabalho, é emblemática a análise que Wilson faz acerca do estudo sobre as práticas e ações humanas: “Chegara a hora de a ética ser removida das mãos dos filósofos e ser entregue aos biólogos” (WILSON, 1975: pag. 575). Assim, na visão de Wilson, a sociobiologia tornava os filósofos, ao menos temporariamente, insignificantes quanto às questões da ética, cujos elementos poderiam ser explicados biologicamente: “Nossa consciência com todas as emoções como o ódio, amor, culpa, medo, e outros investigados pelos filósofos que desejam compreender os padrões de bem e de mal, evoluíram através da seleção natural. Essa indicação biológica simples é necessária para explicar a ética” (WILSON, 1975: pag. 576). Assim, segundo tal compreensão, as atitudes e ações humanas evoluíram sob a pressão da seleção natural. Sociabilidade, altruísmo, cooperação, agressividade, ciúme, forte sentimento grupal são todos elementos explicáveis em termos de raízes biológicas do comportamento social humano, que contribuíram de algum modo para a sobrevivência da espécie. Surgida na década de 1980, numa continuidade ao programa sociobiológico, a psicologia evolucionista tem o objetivo de compreender os mecanismos psicológicos evolutivos que formariam a base da mente e do comportamento humano, descobrindo os módulos que constituem a natureza humana universal. Muitas vezes vista como uma continuidade da sociobiologia aplicada à constituição da mente humana trata-se de uma análise dos mecanismos próximos do comportamento humano em uma perspectiva evolucionista. Procura assim respostas últimas sobre quais contribuições tais mecanismos trazem para o sucesso reprodutivo dos indivíduos. (ALCOCK, 2001). Um dos pressupostos dessa abordagem é que nenhum mecanismo próximo interno existente no comportamento social pode ser analisado profundamente sem ser explorado em termos de seu comportamento adaptativo e sua contribuição para a aptidão e manutenção do indivíduo. Do mesmo modo, nenhum comportamento adaptativo ocorre sem que suas causas próximas subjacentes não possam ser investigadas. Nesse sentido, a psicologia evolucionista difere da sociobiologia por mudar seu foco do comportamento para mecanismos cognitivos como itens que precisam de explicação evolutiva. Os psicólogos evolucionistas tendem a pensar na mente como um conjunto de dispositivos modulados, onde cada um evoluiu como solução para um problema diferente e tendem a acreditar que tais adaptações variam muito pouco entre os seres humanos (VERNAL, 2011). Outro pressuposto da psicologia evolucionista é que nossa estrutura mental foi delineada pelos problemas adaptativos enfrentados pelo cérebro humano durante toda a experiência humana no ambiente ancestral. Dentre os inúmeros campos de pesquisa que abordam o comportamento humano a partir de tal perspectiva (a etologia humana, a ecologia comportamental, a antropologia evolutiva e a sociobiologia), a psicologia evolucionista busca descobrir os órgãos mentais que constituem nossa natureza universal, além da articulação desses órgãos para a resolução dos desafios evolutivos impostos à nossa espécie. Há uma mudança de foco em relação ao programa da sociobiologia: na psicologia evolucionista, busca-se compreender como a evolução criou por seleção natural as adaptações anatômicas que são universais entre os homens, criou também adaptações psicológicas universais (TOBBY E COSMIDES, 1992). Apresentamos aqui uma rápida análise de três hipóteses de base evolucionista acerca da condição humana e algumas de suas implicações. Assim como no contexto do florescimento da teoria evolucionista, há ainda uma preocupação com suas implicações para a compreensão das pessoas e da sociedade. No âmbito científico, a teoria evolucionista passou a ser cada vez mais aceita, defendida e comprovada ao longo do séc. XX e início do séc. XXI. Porém, no âmbito ético e político, suas implicações ainda são muito debatidas. É provável que, pela primeira vez, desde que a vida emergiu do caldo biológico primordial, seres vivos possam compreender como se tornaram aquilo que são. Reconhece-se assim que a ciência tem um papel relevante na compreensão de nossa natureza. Porém, sem os radicalismos já propostos por algumas correntes, pois um naturalismo ingênuo pode conceber ilusões impróprias. No entanto, ainda cabe questionar e investigar se a ciência, ao esclarecer fatos sobre a natureza humana, pode contribuir de algum modo para fundarmos um sistema coerente para a mais importante das questões: afinal, como havemos de viver? Referências BARKOW, Jack, COSMIDES, Leda & TOOBY, John. The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culture. Oxford: Oxford University Press, 1992. BROWNE. Janet. A Origem das Espécies de Darwin: Uma Biografia. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Tradução de Eugênio Amado. Belo Horizonte. Editora Itatiaia, 1985. DARWIN, Charles. A Origem do Homem e a Selecção Sexual. Tradução de Susana Varela. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2009. DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Tradução de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. DENNETT, Daniel. A Perigosa Idéia de Darwin. Tradução de Talita Rodrigues. São Paulo: Editora Rocco, 1995. 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