REVISÃO DA LITERATURA Associação entre hipofosfatemia e alcoolismo Hypophosphatemia in chronic alcoholic patients Juliano Terra Lauar, Luiz Henrique de Lima Araújo, Érica Ligório Fialho Marcus Vinícius Bigonha Gazolla, Rita de Cássia Corrêa Miguel Residentes de Clínica Médica do Hospital Júlia Kubitschek (FHEMIG) Luciana Diniz Silva Gastroenterologista do Hospital Júlia Kubitschek (FHEMIG. Mestre e doutoranda em Gastroenterologia-Faculdade de Medicina-UFMG. Roberto Eduardo Salum Nefrologista do Hospital Júlia Kubitschek (FHEMIG) RESUMO A hipofosfatemia é um distúrbio hidro-eletrolítico que comumente acomete pacientes etilistas, principalmente casos graves que necessitam de hospitalização. Essa alteração tem repercussões importantes no organismo, pois o fósforo é essencial para a manutenção das atividades vitais. No alcoolista, a depleção do fósforo associa-se às alterações hematológicas (anemia hemolítica, trombocitopenia e disfunção leucocitária), rabdomiólise, hepatite, pancreatite a abaixamento do nível de consciência. Dentre os mecanismos que ocasionam hipofosfatemia nesses pacientes, destacam-se o uso prolongado de antiácidos, desnutrição protéico-calórica, diarréia, vômitos freqüentes e efeito fosfatúrico do álcool. Entretanto, apesar da prevalência elevada e da gravidade clínica, distúrbios do fósforo nem sempre são pesquisados nesses pacientes. É essencial que a equipe médica envolvida no cuidado do paciente etilista avalie a concentração sérica do fósforo, pois o diagnóstico precoce e a correção rápida da hipofosfatemia podem evitar o aparecimento de complicações clínicas graves. PALAVRAS-CHAVE: Hipofosfatemia, alcoolismo, pacientes hospitalizados. ABSTRACT Hypophosphatemia is a hidroeletrolytic disturb commonly encountered in alcoholic patients, particularly in the severely ill admitted to medical wards. This disturb has important repercussions in the organism because phosphate is essential to maintain the vital activities. In alcoholic patients, hypophosphatemia is associated to hematologic disturbances (hemolytic anemia, trombocytopenia, leucocitary disfunction) rhabdomyolysis, hepatitis, pancreatitis and altered mental state. The main mechanisms of phosphate depletion in these patients include the use of antiacids, poor nutrition, diarrhea, vomiting, and a phosphaturic direct effect of alcohol. Besides the high prevalence and the clinic severity, phosphate disturbs are not always investigated. The medical team taking care of alcoholic patients must be alert to the risk of hypophosphatemia and attempt to early diagnosis and treatment, avoiding severe complications. KEY WORDS: Hypophosphatemia, alcoholism, hospitalized patients. INTRODUÇÃO O fósforo, principal ânion do compartimento intracelular (CIC), participa da formação das membranas celulares, dos ácidos nucléicos e das proteínas do núcleo celular. No organismo, é encontrado sob a forma de fosfato e está envolvido em diversas etapas do metabolismo celular, isto é, regulação da atividade enzimática, participação do processo de armazenamento calórico e produção celular de energia. Desempenha, também, papel decisivo no forne38 cimento de oxigênio aos tecidos, sendo responsável pela concentração de 2,3 difosfoglicerato (2,3 DPG) e trifosfato de adenosina (ATP) nas hemácias.1 Assim, a homeostase do fósforo é essencial para a manutenção das atividades vitais. A concentração sérica desse íon varia de 0,89 a 1,44 mmol/l (2,8 a 4,5 mg/dl). Hipofosfatemia é definida por níveis séricos de fósforo inferiores a 2,5 mg/dl, sendo classificada em leve (2 a 2,5 mg/dl), moderada (1 a 2 mg/dl) e grave (<1 mg/dl).1 Deficiência desse íon pode ocasionar disfunção dos sis- JBG, J. bras. gastroenterol., Rio de Janeiro, v.6, n.1, p.38-40, jan./mar. 2006 ASSOCIAÇÃO ENTRE HIPOFOSFATEMIA E ALCOOLISMO temas respiratório, cardiológico, hematológico, músculo esquelético e nervoso.2 Embora a hipofosfatemia seja relativamente incomum, essa alteração pode ser detectada em 0,25% a 2,15% dos pacientes hospitalizados.3 Entretanto, em determinadas situações clínicas como no alcoolismo, na septicemia, na cetoacidose diabética e na desnutrição protéico-calórica acentuada, observa-se freqüência elevada da hipofosfatemia, variando de 10% a 25%.4 Nos pacientes alcoolistas, a redução da concentração sérica do fósforo é identificada principalmente nos casos graves que necessitam de hospitalização. Em um estudo caso-controle, conduzido nos Estados Unidos, maior prevalência da hipofosfatemia foi detectada em pacientes etilistas admitidos na unidade de emergência (30,4%) que em pacientes hospitalizados para tratamento eletivo do alcoolismo (2,5%) ou em pacientes internados com doenças não associadas ao uso de álcool (1,8%). Ainda, nesse estudo, eventos como delirium tremens e convulsão foram identificados principalmente nos pacientes alcoolistas avaliados no pronto atendimento.5 Entretanto, apesar da prevalência elevada e da gravidade clínica, distúrbios do ânion fosfato nem sempre são pesquisados em pacientes internados devido a complicações do alcoolismo. MECANISMOS DA HIPOFOSFATEMIA NO PACIENTE ALCOOLISTA A dieta diária de um adulto saudável contém 800 a 1.400 mg de fósforo. Cerca de 90% desse íon é absorvido no intestino, principalmente no jejuno, pelo transporte passivo e, em pequena proporção, pelo transporte ativo, que é estimulado pela 1,25 dihidroxi-vitamina D 3 [1,25(OH)2D3]. A maior parte do fósforo é excretada na urina, entretanto, aproximadamente 10% são eliminados nas fezes. O metabólito da vitamina D e o paratormônio (PTH) são considerados os principais reguladores da absorção intestinal e da excreção urinária de fósforo, respectivamente.1 O fosfato representa 1% do peso corporal total do adulto, que equivale a 500 a 800 gramas de fósforo. Cerca de 80% desse ânion estão presentes nos ossos, enquanto 20% são encontrados no compartimento extracelular (CEC), ligado às proteínas, lipídeos, carboidratos e a outros componentes das fibras musculares.1 A hipofosfatemia pode resultar da transferência do fósforo do CEC para o CIC, nessa situação as reservas corporais de fósforo estão normais. Alternativamente, a hipofosfatemia pode estar associada a uma depleção das reservas corporais totais em decorrência de ingestão dietética deficiente, redução da absorção gastrintestinal ou aumento das perdas renais.6 Nos pacientes alcoolistas, a hipofosfatemia e a depleção de fosfato são causadas por vários mecanismos. Dentre eles destacam-se fosfatúria inadequada, desvio do fósforo para dentro das células e aumento da perda gastrintestinal de fosfato.7 Assim, nesses pacientes, as causas mais comuns de hipofosfatemia consistem em uso prolongado de antiácidos, desnutrição protéico-calórica, diarréia, vômitos freqüentes e efeito fosfatúrico do álcool.8 Adicionalmente, outras alterações hidro-eletrolíticas e ácido-básicas, associadas ao etilismo, podem contribuir para redução dos níveis séricos de fósforo: hipomagnesemia, acidose e alcalose metabólicas.9 MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA HIPOFOSFATEMIA NO PACIENTE ALCOOLISTA No alcoolismo, várias condições clínicas podem estar associadas à hipofosfatemia. Dentre elas destacam-se as alterações hematológicas, a rabdomiólise e a alteração do nível de consciência.5 Em estudo pioneiro, Lichtman et al. verificaram concentração reduzida de adenosina trifosfato em eritrócitos de um paciente urêmico com hipofosfatemia grave.10 Posteriormente, outros autores, avaliando pacientes etilistas, identificaram anemia hemolítica associada à diminuição acentuada dos níveis séricos de fósforo (inferior a 1 mg/dl) e da adenosina trifosfato em glóbulos vermelhos, respectivamente.11,12 Além deste aspecto, a queda dos níveis de ATP intracelular, secundária à hipofosfatemia, pode ocasionar trombocitopenia e disfunção leucocitária.1,13 Rabdomiólise é outra manifestação clínica detectada no paciente alcoolista com redução da concentração sérica do fósforo.14,15 Algumas hipóteses têm sido aventadas para explicar os possíveis mecanismos implicados na miopatia associada ao uso de álcool. Dentre elas destacam-se a lesão direta da fibra muscular, a alteração da permeabilidade da membrana celular e o desarranjo do metabolismo muscular. Entretanto, estudos têm demonstrado que somente a presença do etanol não é suficiente para iniciar a necrose muscular aguda. Outros fatores, associados ao alcoolismo, isto é, distúrbios hidro-eletrolíticos e deficiências nutricionais são necessários para desencadear a lesão do tecido muscular.16,17,18 As manifestações clínicas são variáveis, sendo observado quadro de fraqueza, dor, edema e paralisia muscular. Os achados laboratoriais incluem mioglobinúria, elevação sérica de creatinafosfoquinase (CPK), hipercalemia, hiperuricemia, hipercalcemia e níveis séricos elevados de uréia e creatinina. Além das alterações já mencionadas, quadros de hepatite e pancreatite, nos pacientes alcoolistas, também podem estar associados à redução dos níveis séricos de fósforo. 19,20 Finalmente, Funabiki et al., acompanhando um paciente etilista, verificaram associação entre hipofosfatemia e confusão mental com abaixamento do nível de consciência.21 Nesse caso, é provável que a isquemia tecidual seja a principal causa da encefalopatia JBG, J. bras. gastroenterol., Rio de Janeiro, v.6, n.1, p.38-40, jan./mar. 2006 39 JULIANO TERRA LAUAR ET AL metabólica. Essa alteração seria causada por depleção do fosfato seguida por redução de 2,3 difosfoglicerato eritrocitário, que ocasiona aumento da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio e menor liberação deste aos tecidos. Os sintomas desse quadro neurológico são variáveis e, geralmente, são exteriorizados como irritabilidade, confusão mental, delirium, alucinações auditivas e visuais, convulsão, coma e neuropatia periférica.2,14 TRATAMENTO DA HIPOFOSFATEMIA Quando as reservas corporais totais de fósforo estão normais, não é necessária a suplementação desse íon. Caso ocorra depleção dessas reservas, pode ser necessária uma suplementação de 1.000 a 2.000 mg de fósforo, diariamente, durante duas semanas. Reposição oral é realizada pela ingestão de alimentos ricos em fósforo (1 mg de fósforo/ml de leite de vaca) ou de cápsulas de fosfato de sódio ou potássio (2 a 3 gramas/dia). Na hipofosfatemia grave está indicada reposição endovenosa [2,5 a 5,0 mg de fosfato por quilo de peso; diluído em solução salina e infundido em seis horas (velocidade máxima de 1,5ml/h)]. Durante a reposição de fosfato é recomendado avaliar os níveis séricos de cálcio, magnésio, fósforo e potássio a cada seis horas.1,2,13 As complicações da administração do fosfato incluem diarréia (depois da administração oral), hipocalcemia, calcificação metastática, hipotensão, hipercalemia, hipernatremia e acidose metabólica.13 CONCLUSÃO Distúrbios da concentração sérica do fósforo, em particular a hipofosfatemia, freqüentemente acomete pacientes etilistas, principalmente, casos graves que necessitam de hospitalização. Essa alteração pode ocasionar disfunção dos sistemas respiratório, cardiológico, hematológico, músculo esquelético e nervoso. Entretanto, apesar da prevalência elevada e da gravidade clínica, a redução da concentração sérica desse íon nem sempre é investigada no paciente alcoolista. Cabe aqui enfatizar a importância do diagnóstico precoce e da correção rápida da hipofosfatemia, pois essas medidas podem evitar o aparecimento de complicações clínicas graves que ameaçam a vida. 4. Camp MA, Allon M. Severe hypophosphatemia in hospitalized patients. Miner Electrolyte Metab 1990;16:365-68. 5. Ryback RS, Eckardt MJ, Pautler CP. Clinical relationships between serum phosphorus and other blood chemistry values in alcoholics. Arch Intern Med 1980:140:673-7. 6. Knochel JP. The pathophysiology and clinical characteristics of severe hypophosphatemia. Arch Intern Med 1977;137:203-20. 7. Elisaf MS, Siamopoulos KC. Mechanisms of hypophosphataemia in alcoholic patients. Int J Clin Pract 1997;51:501-503. 8. Stein JH, Smith WO, Ginn HE. Hypophosphatemia in acute alcoholism. Am J Med Sci 1966;252:78-93. 9. Mostellar ME, Tuttle EP. Effects of alkalosis on plasma concentration and urinary excretion of inorganic phosphate in man. J Clin Invest 1964;43:138-49. 10. 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