produção de queixas de linguagem escrita no contexto de

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PRODUÇÃO DE QUEIXAS DE LINGUAGEM ESCRITA NO
CONTEXTO DE UM POSTO DE SAÚDE E O PAPEL QUE A
EDUCAÇÃO EXERCE SOBRE SUA ATENUAÇÃO.
MENDONÇA, Fernando Wolff - CEPIGRAD/NAPNE/UFPR
[email protected]
Eixo: Diversidade e inclusão
Agencia financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
O presente trabalho busca avaliar os efeitos de um programa existente no âmbito de
educação em uma unidade de atenção básica a saúde. Estão envolvidas neste programa
crianças com queixa escolar relativas à linguagem escrita e manifestadas na relação de
ensino-aprendizagem encaminhadas pela escola. Discute-se os efeitos educativos do
programa, quando família, escola e serviço terapêutico produzem conhecimento sobre
este processo e os auxiliam na constituição da escrita. Foram analisadas durante quatro
meses duzentos e quarenta (240) famílias que apresentavam queixa escolar de
alfabetização para com seus filhos. Os dados foram coletados mediante realização de
entrevista inicial com as famílias, onde foram identificados o perfil sócio-econômico,
grau de instrução e os conhecimentos sobre a função da linguagem escrita e o uso da
escrita em situações familiares. Familiares e professores das escolas foram orientados na
estimulação e no trabalho com a função social da escrita na escola e na residência
utilizando a escrita para os registros cotidianos como bilhetes, listas, recados e
assemelhados, enquanto a criança aguarda atendimento da queixa de dificuldade.
Posteriormente, foi realizado entrevista com os pais sobre as práticas realizadas em casa
e sua participação na constituição da escrita de seus filhos. Os resultados deste
programa apontam para uma redução de encaminhamentos das crianças para a área de
saúde, melhora no processo de aquisição da linguagem escrita. Indicam ainda para uma
participação mais efetiva dos pais no processo educacional junto à escola e o
reconhecimento da pratica de escrita como fator de contribuição para a aprendizagem.
Os referenciais abordados estão na perspectiva sócio-histórica e nas práticas de escrita
como ferramenta social.
Palavras chave: educação, prevenção, escrita, sócio-histórica.
Introdução
A questão da queixa em escrita
O presente trabalho surge na realidade de um serviço de atendimento a
linguagem oral e escrita em um posto de saúde na região metropolitana de Curitiba.
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Neste serviço, profissionais da fonoaudiologia atendem os encaminhamentos de escolas,
creches da rede pública e privada que enfrentam dificuldades no processo de
alfabetização, quer por não conseguir alfabetizar quer por apresentar dificuldades na
escrita.
Uma das reclamações mais freqüentes de pais com filhos em idade escolar é a de
que as instituições de ensino, públicas ou privadas, populares ou burguesas, não têm
dado uma resposta adequada e em tempo hábil às crianças que sofrem com estas
dificuldades no Ensino Fundamental. As dificuldades de leitura e escrita atingem alunos
que estão nos bancos escolares, em todos os países. A escola ainda não responde,
eficazmente, ao desafio de trabalhar com as necessidades educacionais das crianças,
especialmente às relacionadas com as dificuldades de linguagem escrita.
A distância entre o discurso do aluno e o discurso da escola se alarga quando
constatamos que os padrões lingüísticos postulados para a variante culta são
determinados pela gramática normativa, que prescreve as regras do bom uso da língua, a
partir de sua modalidade escrita, literária e não contemporânea. Os problemas que daí
advêm são significativos, pois a modalidade lingüística escrita é muito menos usada que
a falada em qualquer momento histórico-cultural; a manifestação literária da língua é
produzida apenas por um grupo limitado de falantes, geralmente letrados; e sua não
contemporaneidade ignora o caráter dinâmico da língua, representando-a por algo que
ela já não é.
O percurso realizado pelas famílias em busca de solução, visto que esta condição
põe em risco a vida escolar de seus filhos, passa pela escuta da dificuldade na escola, o
encaminhamento para o serviço, a marcação e realização de procedimento de
caracterização de queixa, e aguardo em fila de espera por volta de oito a dez meses para
que esta criança possa ser atendida, avaliada e orientada em suas dificuldades.
Este processo gera uma grande expectativa familiar, pois costumeiramente a
queixa é produzida baseada em sintomas e em classificações de síndromes que
afetariam a leitura a escrita e a aprendizagem. Muitas destas queixas são nomeadas
como dislexias, disortografias e déficit de aprendizagem sem que a devida avaliação
seja realizada, ela esta apenas baseada nas observações da escola.
Este procedimento não vem a ser uma novidade no âmbito escolar, mas as
conseqüências que este processo gera nas relações entre a família a escola e o sujeito
geram marcas significativas na historia do aprendiz. O não diagnóstico em tempo hábil
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faz com que suspeitas passem a ser tratadas como doenças, e problemas educacionais
sejam tratados como problemas de saúde.
É freqüente o questionamento dos pais sobre a necessidade de acompanhamento
médico, de medicação, de condição mental de seus filhos. Por outro lado a escola que
também esta insegura quanto às dificuldades enfrentadas pelo aluno, fica frente a um
impasse na formatação de adaptações curriculares que possam ser úteis para que ela
possa aprender de modo diferenciado e então o sujeito fica sem uma intervenção entre o
período de avaliação, diagnóstico e orientação.
Sabemos que na alafabetização a criança participa das interações sociais e
constrói para si um repertório de conceitos e significados conseguindo interagir de
modo mais efetivo. Apropria-se de diferentes ferramentas sociais que possibilitam uma
outra manifestação da linguagem humana, a linguagem escrita. LURIA comenta esta
apropriação quando diz::
As origens deste processo remontam a muito antes, ainda na pré-história
do desenvolvimento das formas superiores do comportamento infantil;
podemos até dizer que quando uma criança entra na escola, ela já
adquiriu um patrimônio de habilidades e destrezas que a habilitará a
aprender a escrever em um tempo relativamente curto. (1994, p. 143)
Assim, no momento em que a criança está adquirindo os conceitos da oralidade
ela está adquirindo habilidades instrumentais e sígnicas que lhe permitirão construir
registros da sua oralidade de forma a registrar seu pensamento mediante o uso da
escrita.
As descobertas sucessivas que a criança está fazendo do ato de escrever estão
relacionadas ao crescimento da sua experiência com a linguagem oral e o domínio das
formas de pensar a sua atividade. Ou seja, ela terá de descobrir que seus rabiscos podem
estar relacionados a uma forma de registro que lhe permita retomar esta experiência
significativa posteriormente. LURIA (1994) fala de um “auxílio funcional na
recordação”, “um signo auxiliar” como fator para que ela possa estabelecer uma
relação sígnica entre o traço e a idéia, utilizando-se da escrita como um meio de evocar
experiências sígnicas já representadas mentalmente.
Enquanto a criança consegue entender e utilizar este signo como algo que
represente uma idéia, ela então passa a controlar seu próprio comportamento a partir
deste uso (LURIA, 1994). Sendo assim, a escrita assume um papel duplo, tal como a
5169
linguagem oral de organizar a atividade reflexiva. Pois como diz OLSON, (1998, p. 90)
“a escrita transforma o discurso em objeto da consciência” e serve como registro
das transformações geradas pela escrita sob a forma de texto. Nas palavras de LURIA
(1994, p. 146), “a escrita é uma destas técnicas auxiliares para fins psicológicos; a
escrita constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para recordar e
transmitir idéias”.
A escrita remete à compreensão do discurso, está vinculada à consciência do que
se diz; logo a fala - mediante a palavra e discurso, significado e sentido - é que estará
como pré-história da linguagem escrita. OLSON (1998, p. 91) confirma ao argumentar
que “as crianças aprendem com a escrita um modelo para pensar sobre a fala e a
linguagem, (...), alteram a cognição e a consciência”.
A linguagem enquanto criação do próprio ser humano reorganiza a atividade
cognitiva e a linguagem escrita, pela sua forma estruturada, representa um pensamento
muito mais organizado, ou seja, um pensar sobre a oralidade. Busca-se com ela a
compreensão do discurso, a reflexão e a crítica da fala como forma de entender os
processos relacionados à vida social e as interações.
Assim, crianças que já se apropriaram da linguagem escrita e já fazem uso dela
como ferramenta de comunicação e planejamento de uma atividade textual atingiram
um nível de representação mais elaborado que o simbolismo inicial da linguagem,
chegaram a um nível de representação de “segunda ordem” (VYGOTSKY, 1998). Isto
as torna crianças que estão em condições de participar das interações sociais mediadas
pela escola e que necessitam de uma interação significativa para se constituir sujeito
sociais.
O significado que a escrita tem é assegurado por MCLANE (2002, p. 297),
quando relata que:
As crianças descobriram que a escrita poderia ser usada para ampliar e
elaborar muitas funções comunicativas já atendidas pela fala, e que ela
poderia tornar meio efetivo e poderoso de expressão e auto-afirmação,
um meio para agradar, brincar e se exibir, mostrar competência,
provocar, ofender e desculpar.
Portanto, a escrita assume papel fundamental na humanização da criança e serve
de elemento mediador entre os conhecimentos obtidos por ela na atividade prática em
busca da formação de suas funções mentais superiores.
5170
Sendo assim, a linguagem é uma ferramenta da construção da consciência e
mediadora das relações sociais. Com essa função social, ela poderá ser utilizada como
instrumento de participação dos sujeitos em sociedade, que, pela sua experiência
educacional, foram apropriando-se dessa ferramenta como forma de pensar e conceber
as suas vidas. Tendo domínio da linguagem, poderão estar nas mais diferentes situações
sociais, que pensarão e construirão sua participação pela compreensão que a linguagem
traz do mundo social e cultural.
Como aspecto cultural, pelo fato de nos apresentar em diversas situações
cotidianas, na hora da troca de informações com o outro, sabemos em qual posição
estamos e até onde podemos ir com o que falamos. Sabemos nos comportar
adequadamente, pois construímos a nossa consciência humana nessas trocas, e
percebemos que a forma e o modo de falar com o outro estão ligados à nossa cultura.
Em nossa sociedade, as pessoas com quem convivemos também manifestam
esse tipo de atitude com a sua linguagem. Essa diversidade nos leva a construir a
consciência de quem somos, como e com quem queremos conviver e participar nossas
questões. SOARES (2000) nos coloca de modo claro essa questão, quando nos diz:
É no processo de enunciação que se constituem os sentidos; esse processo e,
portanto, esta constituição de sentidos é determinada pelo contexto em que
esse processo ocorre, entendendo por contexto, aqui, não apenas as condições
pragmáticas imediatas, mas sobretudo as condições e circunstâncias sociais;
essas condições e circunstâncias sociais variam em diferentes grupos sociais,
portanto, os processos de enunciação constroem diferentes sentidos em
diferentes grupos sociais (de pensar, sentir, perceber).
Assim, além do contexto individual em que nos colocamos, podemos saber
que o contexto de sociedade também se reflete na linguagem, pois se estivermos
imaginando o que se representa com o papel da pessoa que pede auxílio na situação
exemplificada no início desse texto, veremos que nela está representada as mazelas
sociais da falta de oportunidades, da dimensão capitalista e da dimensão antropológica.
Ou seja, a linguagem usada e praticada na sociedade reflete a cultura e a sociedade em
que vivemos.
A família assume um papel fundamental neste contexto por que ela faz parte
do grupo social que tem fundamental importância no ensino da linguagem e da escrita
para a criança. Não que a escola não o seja, ao contrário, sabemos que a função da
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escola fundamental é o que instrumentalizar a criança no desenvolvimento da
linguagem e do pensamento, mas que no contexto citado, o do processo de
encaminhamento ao atendimento da dificuldade de aprendizagem, as expectativas
geradas sobre as famílias fazem delas agentes mais presentes durante o momento de
avaliação.
Na medida em que estamos neste contexto,entendemos que ele pode contribuir
significativamente para a análise e superação da queixa apresentada pela criança.
Afinal, nascemos imersos em um mundo onde os sistemas de relações estão constituídos
ao longo de um processo histórico, ou seja, nascemos em grupos sociais que por
necessidade de sobrevivência criaram códigos que servem para comunicar os
conhecimentos adquiridos pelos mesmos aos demais integrantes e àqueles que estão
iniciando na vida social, ou como nas palavras de LEONTIEV (1977, p. 267):
Podemos dizer que cada homem aprende a ser um homem. O que a
natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. Élhe preciso ainda entrar em relação com os fenômenos do mundo
circundante, através de outros homens, isto é, num processo de
comunicação com eles.
Desta forma podemos nos imaginar sujeitos sociais, ou participantes de um
determinado grupo social na medida em que tomamos posse dos sistemas de
comunicação, o que revela a nossa inclusão neste sistema social. Graças a esta
participação social podemos identificar e criar consciência de nosso papel na sociedade
e da forma que nós podemos fazer parte dela, ou seja, quando participamos de
interações sociais e trocamos conhecimento com os sujeitos de nosso grupo social,
estamos nos constituindo sujeitos desta participação. Sendo assim, o ambiente onde esta
criança esta inserida pode contribuir na estimulação se estes tiverem ou forem
conscientizados das possibilidades de estímulo e práticas sociais de linguagem que
permitam a construção da escrita.
Sabemos que muitas famílias não têm a informação e nem a formação adequada,
por que foram excluídos do processo social de constituição escolar, logo não tem a
clareza e a noção de como podem contribuir para este processo. Para BAKTHIN (1980,
p. 84), “não nascemos organismo biológico, nascemos camponeses, aristocrata,
proletário ou burguês”. Isto se no momento em que os grupos onde estamos inseridos
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já se constituíram enquanto seres e produziram o seu sistema de representação de
acordo com o contexto social e cultural em que vivem.
Outro aspecto relevante da linguagem é a possibilidade de relação dela com o
conhecimento individual de cada um. Na perspectiva de Vygotsky, citado por LURIA
(1994), a consciência é um sistema estrutural com função semântica. Dessa forma,
relaciona a tomada de consciência com a apropriação dos significados produzidos pelos
instrumentos culturais desenvolvidos pela sociedade em que esse sujeito se insere.
GÓES (2000), ao se referir à natureza social das funções psicológicas, afirma
que “elas emergem e se consolidam no plano de ação dos sujeitos, tornam-se
internalizadas, isto é, transformam-se para construir o funcionamento interno”. Por
transformação, entende-se não se tratar de uma consciência preexistente que se atualiza,
tornando-se assim uma base biológica ampliada, mas, sim, de uma criação de um novo
modo de funcionar em que o sujeito é o regulador.
Entende-se então que a apropriação tem na reconstrução interna do sujeito, e
não em uma cópia dela, modelos dos modos de ação do outro e as representações dos
atos produzidos por ele. Esse modo de “auto-regulação” (VYGOTSKY, 1987) é o
fundamento do ato voluntário, sendo assim, o modo pelo qual a criança começará a
internalizar os processos sociais; importante na aprendizagem do uso dos instrumentos
práticos e na internalização dos elementos semióticos da linguagem. Dessa forma ela
reflete o modo como cada um de nós representa individualmente sua sociedade.
Temos então de estar atentos para utilizarmos a linguagem como um
instrumento de humanização e de construção de sujeitos socialmente ativos. Uma vez
que, como educadores, dentro dessa perspectiva dialógica e social de fazer uso da
linguagem,
representamos
os
instrumentos
de
humanização
pelo
nosso
comprometimento com a sociedade.
Entendemos que a linguagem escrita é fruto de esforço coletivo e tem um
significado social: possibilita ao sujeito ampliar seu conhecimento do mundo e do
tempo em que está inserido. Portanto, a relação entre escrita e significado é essencial.
Não há possibilidade de alfabetização sem relação escrita-mundo, escrita-contexto.
O sucesso na alfabetização exige a transformação da escola em “ambiente
alfabetizador”, rico em estímulos que provoquem atos de leitura e escrita, permitam
compreender o funcionamento da língua escrita, possibilitem a apropriação de seu uso
social e forneçam elementos que desafiam o sujeito a pensar sobre a língua escrita.
5173
Considerando o que foi exposto, entendemos que o tempo de espera que a
família, a escola e o serviço avaliativo esperam podem ser aproveitados para
estimulação das relações sociais e culturais com a linguagem oral e escrita e que este
modo de abordar a queixa pode contribuir para uma intervenção positiva, superando ou
pelo menos, estimulando a criança a vivenciar a escrita em contexto familiar e social.
Entende-se a escrita como Magda SOARES (2002) define o
LETRAMENTO
como
sendo o estado em que vive o indivíduo que sabe ler e escrever e exerce as práticas
sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive: ler jornais, revistas,
livros, saber ler e interpretar tabelas, quadros, formulários, sua carteira de trabalho, suas
contas de água, luz, telefone, saber escrever e escrever cartas, bilhetes, telegramas sem
dificuldade, saber preencher um formulário, redigir um ofício, um requerimento, etc. A
alfabetização e o letramento se somam, são complementos. Enquanto que “alfabetizar
significa orientar a criança para o domínio da tecnologia da escrita, letrar significa levála ao exercício das práticas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 2002). O
importante é criar hábitos e desenvolver habilidades, sentir prazer de ler e escrever
diferentes gêneros de textos. O letramento é um processo que se estende por toda a vida.
E em todas as áreas de conhecimento e em todas as disciplinas aprendemos por meio de
práticas de leitura e de escrita.
Letrar é função e obrigação de todos os educadores, mesmo porque cada área
do conhecimento tem uma linguagem específica tanto no campo da informação, como
dos conceitos e dos princípios. Assim, como uma prática educacional, é nela que o
educador poderá trazer para o aprendiz as condições de pensar e formular conceitos
sobre as mais diferentes áreas do conhecimento, tendo por mediador a linguagem escrita
em suas manifestações sociais.
Para realizar esse processo, o educador deve ter claro que a criança precisa ter
a compreensão dos motivos que levaram o homem a produzir textos. Não deve ser um
ato mecânico, instrumental, em que a língua parece um objeto morto e inanimado.
Diferente dessa posição, a linguagem escrita reflete o poder criador do homem, que, nas
mais diferentes situações e contextos, encontram meios de se comunicar com o outro,
deixando marcas sígnicas de sua representação do fenômeno.
O registro de suas idéias, mediante a palavra contextualizada, reflete a idéia de
VYGOTSKY (1987) quando ele atribui à palavra “a menor unidade de consciência
humana”. Faz isso porque ele tem claro que se o sujeito compreende o que está em sua
5174
volta é porque ao longo dos tempos foram criados registros conceituais que permitiram
que a palavra os representasse.
Portanto, essa construção coletiva, que reflete a conquista de um grupo social,
permite que a criança avance em suas relações com o mundo social. Tendo ela se
apropriado dessa forma de expressão tipicamente humana, ela pode inteirar-se dos mais
diferentes assuntos e conhecimentos, que irão impulsionar seu desenvolvimento social.
Mediante esse instrumento, a criança pode entender os fenômenos sociais em
suas mais diversas áreas: política, social, econômica etc. Com esse conhecimento, ela,
mediante o ato de ler e escrever, estará construindo a sua consciência social, abrangendo
o conhecimento de sua situação em relação a eles e ao mundo como um todo, tornandose assim um sujeito social.
Pensando desta forma, organizou-se um trabalho de orientação e de formação de
pais que possam, enquanto aguardam seus filhos serem atendidos pelo serviço de
avaliação de linguagem oral e escrita, visando a capacitá-los a usar a linguagem escrita
no contexto da família em práticas sociais uteis para a vida da criança e significativas
nas relações pais-filhos, o que fortalece os vínculos afetivos e estimula a curiosidade da
criança para a escrita e a participação familiar.
Desenvolvimento
O trabalho foi desenvolvido no ano de 2008, na realidade de um serviço publico
de atendimento em fonoaudiologia. O trabalho foi organizado a partir do cadastro de
crianças encaminhadas pelas escolas para avaliação de aprendizagem. Em abril de 2008
existiam neste cadastro cerca de 280 crianças registradas para atendimento de queixa
escolar sendo que, uma vez triadas e registradas, deveriam aguardar vaga para avaliação
e atendimento. O serviço de triagem consiste em entrevista inicial breve com
responsáveis e levantamento de características de linguagem oral e escrita, mediante um
protocolo de serviço que investiga desvios de oralidade, aspectos funcionais da
motricidade oral, audição e aquisição da escrita.
Realizada a triagem, se o sujeito apresenta alteração no protocolo inicial, é
cadastrado em livro de espera para ser avaliado e atendido em sua dificuldade
específica. O tempo aproximado de espera entre a triagem e o atendimento é estimado
em 10 meses, o que pode a vir a comprometer o andamento escolar dos alunos. Também
foi percebido que muitos alunos que já estiveram em atendimento, retornavam para
5175
nova triagem e avaliação em menos de um ano de trabalho escolar após alta
fonoaudiológica.
Considerando esta realidade, entendeu-se que o tempo de aguardo em espera
poderia ser alvo de um trabalho com a família e a escola. Pensou-se que a partir da lista
triada poderia haver uma orientação e capacitação dos cuidadores para estimular a
criança em práticas de escrita em ambiente exterior a escola. Também foi considerado a
importância de capacitar os professores e a gestão escolar sobre as práticas sociais e
sobre o trabalho a ser desenvolvido com cuidadores. O segmento escolar, professores e
gestores não será alvo de nossa analise neste texto.
Desta forma, a partir da lista de triagem foram chamados os cuidadores dos
alunos com queixa escolar, em um total de 20 encontros, para uma orientação de duas
horas sobre práticas sociais de escrita. Primeiramente estes pais realizam uma entrevista
inicial sobre sua ocupação, o que era escrever, como utilizavam a escrita em casa, grau
de instrução, quem auxiliava os alunos nas tarefas, e de que modo interferiam sobre as
dificuldades.
Feita a entrevistas, os pais recebiam durante duas horas atividades, em grupos de
12 famílias representadas, orientações, material de apoio, espaço para questionamento e
resposta de dúvidas. Neste momento eram orientados a utilizar de escrita e leitura,
solicitar ao aluno sua participação no contexto familiar na elaboração de tarefas diárias
que envolvessem escrita, tais como recados, listas, bilhetes, notas, cartas e, que após a
escrita pelo mesmo, pudesse reler, analisar sua escrita, corrigir e até consultar o
dicionário para ajustes textuais. Após os cuidadores poderiam auxiliar na reflexão sobre
a escrita do autor dos textos mediante releituras coletivas e perguntas sobre o que estava
escrito, também foram orientados a não mostrar onde estava o erro, mas levar o aluno a
reler ate achar, poderiam indicar que havia erro.
Após estas orientações, os pais poderiam a partir de trinta dias após, retomar
novas orientações em horário de plantão aos pais, nos moldes do Plantão Institucional,
proposto por MARCONDES (2006) , para receberem as informações que necessitassem
adicionalmente. Marcamos que, em nenhum momento solicitou-se que os cuidadores
exercessem a função pedagógica ou de professor, mas que deveriam apenas praticar
hábitos de escrita, leitura e reflexão sobre textos no ambiente familiar.
Ao final de cada encontro com familiares foi realizada entrevista sobre o
conteúdo de a informação ser relevante, se houve acréscimo ao conhecimento e prática
familiar e se havia notado maior apropriação da escrita do aluno no contexto familiar.
5176
Todos os procedimentos eram registrados em fichas de acompanhamento familiar.
Durante 4 meses elas foram acompanhadas e, no fim do quarto mês entrevistamos sobre
como o cuidador via os resultados e a necessidade da permanência do sujeito para
avaliação e tratamento fonoaudiológico.
Resultados
Para a análise dos resultados serão considerados os momentos iniciais e finais,
como elementos de comparação sobre o valor da informação sobre práticas sociais de
escrita na vida escolar do aluno com dificuldades na escrita.
Na entrevista inicial, o perfil familiar que busca ao serviço está caracterizado por
pessoas de classe trabalhadora, assalariada e de trabalho informal, tendo como formação
média o ensino fundamental. Devido às características do trabalho não possuíam
práticas de leitura e escrita no ambiente doméstico e que escrever era uma necessidade
para ter melhor oportunidades na vida. A maior prática de letramento familiar está
relacionada à religiosidade.
Com relação ao auxilio do aluno nas tarefas escolares relatam que buscam
ajudar, mas que não se sentiam capazes por não saber como, e que de sua forma de ver
poderiam atrapalhar a escola. Relatam da dificuldade de apoiar devido ao trabalho. Foi
relatado que quando ajudavam procuravam corrigir o que encontravam de errado, mas
que a forma de correção está relacionada ao apontar para o erro e apagar para escrever
novamente, muitas vezes escrevendo ou ditando ao aluno.
No segundo momento, ou seja, após as orientações e os plantões de atendimento,
quando é realizada a entrevista de aproveitamento, o posicionamento do cuidador é de
que, em primeiro lugar percebia um novo interesse da criança em participar, pois agora
ela se tornara responsável por varias tarefas na rotina familiar, que isto valoriza as
relações entre os membros e, que quando o sujeito fazia sua atividade familiar,
perguntava onde podia ver a palavra escrita para escrever corretamente. Também que as
atividades sociais realizadas a leitura de placas indicativas, de informações eram
buscadas com mais intensidade pelos alunos. Outros relatam que pararam de brigar
tanto devido às tarefas, mas que puderam não só acompanhar como aprender mais com
as leituras e escritas coletivas. Relatam que perceberam os reflexos das atividades na
escrita, visto que muitos erros anteriormente cometidos diminuíam gradativamente de
ocorrência. Também foi relatado a diminuição das queixas da escola e o surgimento de
elogios por parte dela.
5177
Perguntados se depois destas atividades ainda percebiam a necessidade de
avaliação e atendimento terapêutico, cerca de 60% das famílias acreditavam que não
haveria mais necessidade, que as dificuldades haviam sido superadas parcial ou
completamente. Nos 35% das famílias ainda percebiam que seus filhos necessitariam de
intervenção do terapeuta e 5% não se sentiam capazes de avaliar.
Considerações
Percebemos então, que informar e capacitar a família é uma estratégia
fundamental para a apropriação da escrita por parte de criança, e que práticas sociais
levam a maior compreensão e significação do ato por parte do aprendiz. Esta condição
ajuda a criança a produzir significação as palavras e a compreender mentalmente a
função que a escrita exerce sobre o pensar e o agir. Para a escola, atenua a angústia de
saber o que se pode fazer com o aluno com dificuldades e contribui para a redução dos
encaminhamentos por dúvidas sobre as capacidades cognitivas de seus alunos.
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