“Se não está quebrado, não conserte”, afirma economista sobre a

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O Cafezinho, 22 de dezembro de 2016
“Se não está quebrado, não conserte”, afirma
economista sobre a Previdência
Economista Carlos Pinkusfeld Bastos, da UFRJ, aprofunda debate
sobre previdência e disseca reforma previdenciária de Michel Temer. Para
ele, "não apenas a ideia de uma quebra do sistema é equivocada como a sua
suposta correção da forma como está sendo proposta traria efeitos
distributivos regressivos, socialmente prejudiciais aos trabalhadores". No
Brasil Debate A questão da previdência pública e a natureza do sistema de
repartição Uma vez compreendido que a previdência é um sistema de
contribuição e transferência em dado período de tempo, e não um sistema de
seguro intertemporal, revelam-se a possível natureza redistributiva que
envolve seu debate e os ataques que sofre por setores da sociedade Por Carlos
Pinkusfeld Bastos
A questão da previdência entrou definitivamente no centro do debate
político e econômico como um elemento importante da agenda de reformas
conservadoras. Tal discussão oscila entre debates contábeis, ideológicos e
até demográficos. Sem diminuir a importância de tais questões, é curioso
notar que, ao se tratar de um tema eminentemente econômico, o que menos
se observa é, exatamente, o aprofundamento do debate, e confronto de ideias,
segundo abordagens teóricas distintas. Entretanto, um ponto inicial, e
possivelmente o mais fundamental, aquele que uma vez compreendido
elimina boa parte dos malentendidos, é explicar o que é um sistema de
previdência público de repartição. Tal sistema é um programa de tributação
e transferência, ou seja, são cobrados impostos e contribuições de um
subconjunto da sociedade e tais valores são transferidos para outro
subconjunto, composto por aposentados e pensionistas. A forma como o
Estado arrecada as receitas que serão transferidas para pensionistas e
aposentados depende de uma economia política específica do arranjo de
contribuições previdenciárias: as receitas da previdência podem advir de
diferentes formas de impostos dependendo de uma decisão da sociedade
pactuada através de seus corpos de deliberação e decisão política. Tais
contribuições podem incidir, majoritariamente, sobre lucros, por exemplo (e
não sobre rendimentos de trabalhadores ativos), ou sobre o consumo através
de impostos indiretos (que são pagos indistintamente por ativos e inativos).
Entretanto, pode-se dizer que, usualmente, mas não exclusivamente, as
receitas do sistema são obtidas por contribuições feitas por trabalhadores
ativos, sendo esta forma de contribuição em boa medida relacionada à
própria formação histórica dos sistemas de previdência pública, como se
discutirá mais à frente. Um primeiro ponto importante a se observar é que
se, por um lado, as contribuições para a previdência podem elevar a carga
tributária, as suas “despesas”, ou pagamentos, retornam à sociedade em
quase sua totalidade. Como o próprio nome deixa claro, as transferências da
previdência apenas realocam renda dentro da sociedade e seu impacto
líquido sobre o conjunto desta é praticamente zero, sendo a diferença
composta pelos reduzidos gastos operacionais do sistema de previdência.
Assim, em princípio, a carga tributária requerida para o pagamento de
benefícios da previdência não é uma subtração de renda da “sociedade”
como um todo, e sim sobre um grupo da sociedade e redistribuído a outro.
Esse tipo de sistema previdenciário pode ensejar arranjos de tributação e
transferências que estimulem o nível de atividade econômica. Numa
abordagem da demanda efetiva (ou Keynesiana/kaleckiana), o produto e
emprego dependem da demanda efetiva, ou seja, do resultado dos gastos (e
tributação) do governo, setor privado e setor externo, sem que haja nenhuma
tendência natural ao pleno emprego dos fatores de produção. Neste caso, há
distintas formas de impacto de um determinado desenho de sistema tributário
sobre o produto. Quando ocorre a cobrança de impostos sobre indivíduos de
maior propensão a poupar e as transferências são feitas para aqueles com
maior propensão a gastar o sistema tributário tem características
expansionistas. Arranjos de previdência assim organizados, mais generosos
e distributivistas, teriam um impacto positivo sobre o nível de renda! Como
dito anteriormente, tais conclusões só se tornam claras à medida que a
verdadeira natureza de um sistema público de contribuição é explicitada,
afastando-se do debate comparações ou “metáforas” indevidas que remetem
a sistemas de seguro individual; sistemas nos quais os indivíduos
acumulariam riqueza em seu período ativo para gastá-los no período de
inatividade. De acordo com tal “metáfora” os esquemas de repartição, e
especificamente os pagamentos dos ativos à previdência, emulariam as
decisões de poupança relacionadas ao ciclo da vida. A contrapartida contábil
desta inadequada “metáfora” do seguro seria a acumulação de “passivos” por
parte do responsável pelos pagamentos previdenciários, o Estado. Tal
incompreensão da verdadeira natureza do sistema previdenciário não é nova;
é tão antiga quanto a própria origem do sistema. Bismarck, o pioneiro na
implementação da previdência na Alemanha, refutava a ideia de vinculá-la a
um seguro pessoal, negando, assim, a própria razão de ser: a caracterização
do Estado como benevolente, que cuida do bemestar dos seus cidadãos.
Outro marco na implantação de esquemas de previdência, o Beveridge
Report, reconhecia que um sistema público se baseava na capacidade do
Estado de tributar para prover recursos aos pensionistas e aposentados, e que
tal esquema não tinha nenhuma relação com a ideia de acumulação pessoal
de ativos, que caracteriza um seguro. Entretanto, a utilização de uma “ficção
de seguro”, ou seja, a cobrança de contribuição individual que estaria
relacionada aos pagamentos futuros de aposentadorias seria uma ferramenta
politicamente útil para conscientizar os trabalhadores acerca dos custos do
sistema. O próprio economista John Maynard Keynes reconhecia que a
forma “ficcional” como se apresentava um sistema de contribuições pessoais
relacionado a pensões futuras, era, simplesmente, uma característica de
natureza política que tinha o objetivo de lembrar aos trabalhadores que
benefícios só seriam legítimos se tivessem como contrapartida uma
contribuição prévia. Essa ficção alcançou seu status teórico mais sofisticado
na reflexão do economista Paul Samuelson que desenvolveu um modelo no
qual contribuição e benefício se relacionam por uma “taxa de retorno” (que
chamou de juros biológicos) igual ao crescimento dos salários. A tentativa
de apresentar uma formalização de um sistema de transferências públicos
através de uma “ficção do seguro” foi veementemente contestada tanto por
economistas simpáticos a tal esquema, como Abba Lerner, quanto por
críticos, como Milton Friedman. Ambos se opunham à tentativa de
representar de forma equívoca um sistema público de tributação e
transferência com o objetivo de transformá-lo politicamente mais
“aceitável”. Uma vez entendida a verdadeira natureza do sistema torna-se
mais fácil entender o debate que cerca a questão do pagamento de pensões
no futuro. Não há discordância que quanto maior for o produto per capita no
futuro maior será o produto a ser repartido. Repartição esta que é feita, entre
indivíduos ativos e inativos, no sistema público usual, segundo algum
critério de natureza sociopolítica. Segundo a abordagem da demanda efetiva,
como não existe uma tendência da economia de chegar ao pleno emprego,
políticas de estímulo à demanda efetiva fazem com que aumente a renda e o
consumo
agregado escapando-se de um trade off que poderia ocorrer caso se
registrasse um maior grau de dependência (ou a relação) entre trabalhadores
inativos por ativos. Assim, no agregado podese aumentar o consumo
mantendo-se os benefícios aos trabalhadores inativos com políticas de
estímulo à renda e ao emprego. Logo, o debate de previdência não independe
das formas distintas de abordagens teóricas adotadas para a compreensão do
funcionamento de uma economia capitalista e não é, simplesmente, a
consequência inelutável de cálculos demográficos. Estes fornecem as
características populacionais futuras que influenciarão a capacidade
laborativa da população, mas a produção a ser repartida por tal população
depende de como se interpreta o processo de determinação do produto e da
acumulação de capital. Uma vez compreendida que a previdência é um
sistema de contribuição e transferência em um dado período de tempo, e não
um sistema de seguro intertemporal, revela-se a possível natureza
redistributiva que envolve o seu debate, e os ataques que sofre por certos
setores da sociedade. Por exemplo, uma elevação dos salários recebidos ao
longo da vida de um trabalhador, em consequência da existência de um
sistema de previdência de repartição, financiado em alguma medida pela
taxação de lucros, pode causar uma redistribuição entre lucros e salários em
favor do último, caracterizando uma situação redistributiva a favor dos
trabalhadores. Vale lembrar, também, que mudanças demográficas não
operam apenas na elevação de gastos. À medida que a população envelhece,
uma série de gastos relacionados à infância e outros serviços como, por
exemplo, segurança, se reduz. Há que se considerar ambos os efeitos e não
apenas aqueles que representam aumento de gastos e transferências.
Certamente, seria contraditório com a abordagem da demanda efetiva
defender que uma redução do gasto não teria um efeito contracionista sobre
o produto. Apenas queremos ressaltar que os fatores demográficos colocam
aos gestores de política econômica opções de alocação de recursos que
devem ser levadas em conta na consecução do objetivo de maximização do
bem-estar da sociedade, no qual se inclui a manutenção do alto emprego.
A discussão importante a ser feita diz respeito a escolhas da sociedade
sobre a trajetória do desenvolvimento econômico e divisão do produto social.
Se, por um lado, a metáfora do seguro foi imposta por formuladores de
sistemas públicos de previdência como uma forma de mascarar sua
verdadeira natureza redistributiva, por outro é forçoso reconhecer que os
trabalhadores aderiram a esta metáfora com a expectativa de que uma ideia
de contribuição presente para futuro recebimento de renda fosse tornar mais
rígido o pacto político de manutenção do benefício previdenciário. As
propostas de reformas correntes, não apenas no Brasil como em outras partes
do mundo, revelam que a estratégia dos trabalhadores se mostrou
equivocada. Uma vez aceita a verdadeira natureza previdenciária de
cobrança, contemporânea, de imposto, e transferência via pagamento de
benefício, a ideia de uma “quebra da previdência” perde seu sentido lógico.
Afinal, isso só seria possível caso houvesse uma acumulação de ativos que
deveria fazer frente a compromissos fixos de remuneração futura e uma
incompatibilidade atuarial entre tais ativos e compromissos explicitaria tal
“quebra”. Num sistema de tributação e transferência não só a ideia é fora de
propósito como também esforços intertemporais de “consertar” uma crise
que não pode existir em um esquema contemporâneo são também um
contrassenso. É claro que medidas como, por exemplo, a isenção tributária
sobre as contribuições de patrões, pode causar um desequilíbrio entre
receitas e despesas, mas sua “solução” deve ser um item do conjunto da
política fiscal de um dado período, que se constitui de decisões de gasto,
tributação e análise dos impactos macroeconômicos de tais decisões. Como
defendido neste artigo, a preocupação do gestor de política econômica deve
ser com a manutenção de um nível de demanda efetiva compatível com um
baixo desemprego, elevada ocupação da capacidade produtiva e,
indiretamente, acumulação de capital com impacto sobre a elevação da renda
per capita no futuro. Cortes de gasto presentes vão na contramão de tal
lógica. Como diz o dito popular no idioma inglês: “If it ain´t broken don´t
fix it”, ou “se não está quebrado não conserte”. Neste caso, não apenas a
ideia de uma quebra do sistema é equivocada como a sua suposta correção
da forma como está sendo proposta traria efeitos distributivos regressivos,
socialmente prejudiciais aos
trabalhadores e indiretamente nefastos à acumulação de capital no longo
prazo. A suposta solução seria um enorme problema - See more at:
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