PSICOPATOLOGIA DA TRANSICIONALIDADE: EM BUSCA DE UMA RAIZ COMUM ÀS DIVERSAS FORMAS DE ADICÇÃO Garzon, Francisco Tosta, Rosa Maria “Na saúde, contudo, dá-se uma ampliação gradual do âmbito de interesses e, por fim, esse âmbito ampliado é mantido, mesmo quando a ansiedade depressiva se aproxima. A necessidade de um objeto específico ou de um padrão de comportamento que começou em data muito primitiva pode reaparecer numa idade posterior, quando a privação ameaça.” (Winnicott, 1975, p. 17) Como vimos, no caso do “menino dos cordões”, que motivou a presente pesquisa, Winnicott (1975) observou o uso fetichizado dos cordões, que passaram a servir como mecanismo de negação da separação. Diante da constante ausência de sua mãe, seja por hospitalizações, ou por depressão, o menino viu-se privado do contato com a mãe, ainda muito cedo em sua vida. Na adolescência, o menino desenvolveu adicção a drogas. Examinando esta história, Winnicott identifica que uma patologia na área dos fenômenos transicionais – que consideramos ser uma patologia da transicionalidade poderia ensejar a adicção a determinado objeto ou conduta, descrita então por ele em termos do uso fetichizado de um objeto. Além da possibilidade mencionada por Winnicott (1975), em que ocorreria o uso fetichizado de um objeto, que neste caso passa a ser utilizado para negar a separação em relação à mãe, pensamos o surgimento das adicções como um modo falho de relação do sujeito com a realidade, de modo mais amplo, como sugeriu Winnicott, levando em consideração uma patologia da transicionalidade. O caso oferecido por Winnicott é apenas uma provocação, uma possibilidade entre muitas de constituição de uma adicção. Propomos pensarmos para além deste caso de uso fetichizado de um objeto, buscando aquilo que determinaria tal padrão de uso do objeto. O uso fetichizado de um objeto caracteriza-se pela atribuição, ao objeto em questão, de características que ele originalmente não possui. No caso do menino dos cordões, o objeto que originalmente desempenha a função de atar, amarrar, conectar, ligar, passa a ter a função de negar a separação - função esta, que representa uma forma peculiar de subversão de seu escopo essencial. O que existe por trás do uso fetichizado de um objeto é a manutenção da possibilidade de manipulação onipotente do ambiente, como ocorria imaginariamente, do ponto de vista do bebê, na fase de dependência absoluta. Permanece, em certa medida, a possibilidade de atribuição mágica de valores ao objeto. No entanto, se todos passam por situações que suscitam sofrimento psíquico, ansiedade, angústia, por que alguns partem para o uso fetichizado de um objeto enquanto outros encontram maneiras diversas de lidar com estas situações? Aí se insere a questão da transicionalidade, o ponto a partir do qual Winnicott nos parece ter inserido a cogitação acerca da patologia dos fenômenos transicionais. O uso fetichizado de um objeto se torna economicamente viável e passa a ser a solução única, a escravizar o sujeito, quando não existe, pela via da transicionalidade, possibilidade diversa. O objeto fetichizado surge para mediar, de forma mágica, onipotente, a relação do sujeito com a realidade, de modo que o sujeito possa manipular, imaginariamente, através do objeto, os aspectos da realidade que representam para ele fonte de desprazer, ameaça, sofrimento. Na saúde, como diria Winnicott, o sujeito valer-se-ia da transicionalidade e de todo universo de possibilidades que ela introduz, para mediar sua relação com o mundo. O viver criativo, que consideramos ser a expressão máxima da transicionalidade, seria possível e o sujeito habitaria o espaço da localização cultural, vivendo em um mundo que ele cria e encontra ao mesmo tempo, que tem para ele o sentido do “familiar” e dá a ele a sensação de que a vida merece ser vivida (Winnicott, 1975) Neste sentido, o objeto de adicção representa algo que não pode ser obtido através da via transicional, segundo Winnicott (1975), por uma falha /patologia na área dos fenômenos transicionais. Na saúde, a transicionalidade deve ser capaz de fornecer alternativas ao objeto de adicção. Assim, a relação existente entre uma adicção e a transicionalidade resta no fato de que a adicção, enquanto solução que faz do adicto seu escravo, aparece como sintoma da falha transicional do sujeito. Mas o que significa dizer que alguém sofre de uma patologia da transicionalidade? A nosso ver, significa ter comprometida sua capacidade de viver criativamente. Segundo Winnicott (1975), a capacidade para o viver criativo é fruto do exercício amplo da transicionalidade, talvez em sua expressão máxima. A patologia em questão pode incidir sobre vários aspectos da transicionalidade, podendo se dar, por exemplo, no nível dos fenômenos transicionais, como no caso do menino dos cordões. No entanto, como não trataremos de especificidades desta natureza, ao considerarmos este tipo patológico uma patologia da transicionalidade, reconhecemos seus efeitos mais exuberantes sobre o viver criativo. A economia psíquica que determina a escolha de um só objeto, uma só solução para mediar a relação do sujeito com a realidade, baseia-se em uma incapacidade de encontrar em si mesmo ou no mundo soluções constantemente criadas para lidar com o desprazer ou com a ausência do outro. Automaticamente, o adicto volta-se para a solução que pode há muito ter encontrado, ignorando outras formas de expressão ou alívio que estão em si e no mundo para ser encontradas e combinadas. Não estamos sugerindo que o adicto seja simplesmente uma pessoa pouco dotada de criatividade, no sentido usual da palavra. Pelo contrário, é muito comum que grandes criativos do campo das artes, por exemplo, sejam adictos. Sugerimos, sim, que exista uma limitação em sua capacidade para o viver criativo, segundo o concebeu Winnicott.1 No mesmo sentido, não sugerimos que qualquer tipo de uso de objeto para mediação da realidade (mesmo o uso de drogas) configure uma adicção. Nosso critério é claro: entendemos o adicto como aquele que se torna escravo de uma só solução. (McDougall, 2001) A solução adictiva seria, assim, uma tentativa de auto-cura, de proteção diante de uma realidade que surge como insuportável, opressiva, a atingir um sujeito que possui recursos transicionais limitados para estabelecer as negociações que abrandariam o caráter contundente desta experiência. Mas qual seria, então, a dinâmica desta patologia da transicionalidade que limita o viver criativo e que poderia levar à escolha econômica adictiva? A resposta está na incapacidade de sustentar o processo dialético entre os registros do mundo subjetivo e do mundo objetivamente compartilhado de que a transicionalidade depende para ser uma via possível de relação entre o sujeito e o 1 Lembramos aqui que segundo Winnicott, a “criatividade que estamos estudando relaciona-se com a abordagem do indivíduo à realidade externa.” (WINNICOTT, 1975, p. 98) Esta abordagem do indivíduo em relação á realidade externa tem sua expressão consagrada naquilo que Winnicott (1975) denominou “viver criativo”, pensado por ele como: “By creative living I mean not getting killed or annihilated all the time by compliance or by reacting to the world that impinges; I mean seeing everything afresh all the time “ (WINNICOTT, 1990, p.41) mundo. Segundo Thomas Ogden (1995), esta incapacidade em sustentar o processo dialético levaria o sujeito a viver sua relação com o mundo a partir de uma posição mais próxima de um dos pólos da relação dialética em questão. O sujeito, assim, estaria mais próximo da loucura ou isolamento impostos pela polarização na subjetividade, que teria conexão limitada com a realidade compartilhada ou, por outro lado, estaria mais próximo da objetividade que, segundo Winnicott também seria uma forma patológica: “(...) pode-se afirmar que existem pessoas tão firmemente ancoradas na realidade objetivamente percebida que estão doentes no sentido oposto, dada a sua perda do contato com o mundo subjetivo e com a abordagem criativa dos fatos.” (WINNICOTT, 1975, p. 97) A incapacidade de sustentação do processo dialético poderia, como vimos anteriormente, ocorrer de forma a ensejar a dissociação entre realidade e fantasia de modo a evitar um conjunto específico de significados, como ocorreu no caso do menino dos cordões (negar a separação) ou, ainda, de forma extrema, ensejar a cessação da atribuição de significado à percepção do mundo. (Ogden, 1995) No entanto, nossa hipótese é de que a adicção apareceria como sintoma de uma patologia da transicionalidade em casos menos extremos do que aqueles relativos a uma aproximação quase absoluta em relação a um dos pólos do eixo subjetividade – realidade compartilhada. Em casos em que a polarização comprometesse o processo dialético, prejudicando a capacidade do viver criativo pleno, mas nos quais ainda haveria contato com a subjetividade e com a realidade compartilhada. Em casos extremos (e hipotéticos) como na cessação de atribuição de sentido à realidade, o uso adictivo de um objeto pertencente ao mundo seria inviável, pois não haveria atribuição de sentido a este objeto enquanto solução para o sofrimento psíquico trazido pelo fechamento na realidade subjetiva. No outro extremo, pensando em caso hipotético de total assujeitamento à realidade objetiva, sequer existiria um self verdadeiro a sofrer imposições vindas de fora; não haveria, aí, o conflito psíquico, o desprazer trazido pelo contato com a realidade objetiva. Não haveria o uso de um objeto simplesmente porque o contato com a realidade externa não causaria mal-estar. Nossa hipótese incide, portanto, sobre os casos em que a capacidade para a transicionalidade seja limitada, de modo a favorecer a adoção de um objeto único a mediar a relação dialética entre os dois pólos da experiência. Resumo: Após acompanhar por muitos anos o caso de um menino que aparentemente apresentava uma patologia na área dos fenômenos transicionais e que na adolescência desenvolveu um quadro de dependência de drogas, Winnicott questiona se um investigador que efetuasse um estudo daquele caso de vício em drogas daria a devida consideração à psicopatologia manifestada na área dos fenômenos transicionais. A provocação sugere que o fenômeno da adicção a drogas poderia estar ligado a falhas ambientais que comprometeriam o processo maturacional, de forma a deixar o indivíduo incapaz (ou menos capaz) de criar e manter objetos internos ou objetos / fenômenos transicionais responsáveis por oferecer a segurança representacional necessária para enfrentar o ambiente e a ele se adaptar. Assim, esta pesquisa investiga de que forma uma psicopatologia na área dos fenômenos transicionais poderia estar relacionada ao surgimento, na vida adulta, de fenômenos adictivos de modo geral, como a dependência de drogas, álcool, comida, trabalho, esportes, do outro (seja de sua presença ou de seu sexo) e tantas outras formas de adicção existentes. Ainda, procura estabelecer, sem a pretensão de esgotar o assunto, um diálogo com a teoria clássica freudiana, inserindo o modelo das relações de objeto, em que se baseia a lógica winnicottiana, na tradição psicanalítica. Uma falha na capacidade de utilizar os objetos representacionais internos diante das ameaças provenientes do contato com o mundo externo, assim como de utilizar a experiência cultural como recurso diante de objetos internos ameaçadores, poderia ensejar uma saída psiquicamente econômica: a adicção a algo ou alguém que ocupe a lacuna existente na capacidade de mediação (viver criativo) entre mundo interno e mundo externo, ilusão e fato, assumindo a função de um elemento único a mediar a relação do sujeito com a realidade, que não encontra equivalente no repertório de fenômenos transicionais difusos do sujeito. - ABRAM, Jan. A Linguagem de Winnicott: Dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Trad. de Marcelo Del Grande da Silva. Rio de Janeiro, Revinter, 2000. - BARONE, Karina Codeço. Realidade e luto: um estudo da transicionalidade. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004. - DIAS, Elsa Oliveira. A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott. 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