O momento da comunicação do resultado

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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 156, 20-25
O momento da comunicação do
resultado sorológico para o HIV
sob a ótica winnicottiana*
Diva Maria Faleiros Camargo Moreno e Alberto Olavo Advíncula Reis
E
ste artigo baseia-se na prática da comunicação do resultado do teste
sorológico para o HIV aos usuários de um serviço público de saúde. O objetivo é fazer uma aproximação entre o papel do “aconselhador” frente ao resultado HIV positivo e o impacto do mesmo sobre o indivíduo que o recebe. A partir de algumas noções da teoria winnicottiana, é feita uma reflexão sobre o que
se passa no momento da comunicação deste diagnóstico, quando o profissional
de saúde precisa sair do lugar de “curador” para ocupar o lugar de “cuidador”.
Ele se torna presença plena de significado, possibilitando ao indivíduo a manutenção e/ou restituição da saúde.
Palavras-chave: HIV/Aids, teoria winnicottiana, comunicação do resultado
do teste HIV
T
his article is based on the practice of communicating HIV test results to users
at a public health service. The objective is to approximate the role of
“counselor” when communicating a positive HIV test result to the impact that
this information has on the individual who receives it. Based on notions from
Winnicott’s theory, a discussion is presented as to what happens when such a
diagnosis is communicated, when the health professional must abandon the role
of “healer” and take on the role of “caretaker”. Her presence becomes highly
meaningful, enabling the individual to maintain or recover his health.
Key Words: HIV/Aids; Winnicott, communication of HIV test results
*
Apresentado como Comunicação Oral no Encontro Regional da ABRAPSO em São Paulo, 1999,
e no IV Congresso Brasileiro de Prevenção em DST e Aids em Cuiabá, 2001.
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 156, abr. 2002
O momento da comunicação do resultado sorológico para o HIV...
A
s inovações de Winnicott no âmbito da teoria psicanalítica têm sido
alvo de interesse crescente por parte de
profissionais de saúde que trabalham em
instituições públicas. Particularmente,
dois artigos desse autor – “A cura”
(1970) e “O conceito de indivíduo saudável” (1967) – conectam-se à prática
cotidiana no atendimento em prevenção
à aids, especialmente no que se refere à
comunicação do resultado do teste sorológico anti-HIV ao indivíduo.
O contexto no qual essa prática ocorre
é constituído em grande parte pelo trabalho em um Centro de Testagem e
Aconselhamento (CTA) onde o cliente
recebe orientações sobre prevenção em
DST e aids (individualmente ou em grupo) antes de fazer o teste. Depois disso,
participa de uma entrevista quando, então, conhece o resultado do seu exame.
O tempo transcorrido entre os dois encontros é de aproximadamente quinze
dias. Os profissionais que fazem o atendimento são escolhidos ao acaso e nem
sempre são os mesmos nos dois encontros. Isso depende da disponibilidade na
escala de trabalho organizada pelo serviço no momento em que o cliente chega
(no primeiro dia), e do horário que marca
para retirar o resultado. O atendimento
pode ser anônimo – o cliente é identificado por uma senha, um pseudônimo e
um número de matrícula, ou identificado – quando informa seus dados pessoais.
Em ambas as situações, o atendimento é
ocasional e se processa sem a criação de
vínculos longos e/ou duradouros. Essa é
uma característica diferente daquela com
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a qual os profissionais da área psicológica estão habituados. A inexistência de
um tempo cronológico mais dilatado
contrapõe-se a um imenso tempo vivido, à medida que a revelação que a pessoa vem receber tem a dimensão que sintetiza todo o espaço ocupado entre a vida
e a morte. Não temos muito tempo para
estar com o cliente, porém, antagonicamente, o espaço desta consulta adquire
uma dimensão que não tem tamanho,
não se restringe ao tempo físico, cronológico. Resta ao profissional e ao cliente, a apropriação desse tempo em toda a
sua amplitude e é, neste aspecto, que a
teoria winnicottiana revela mais uma vez
sua fecundidade.
A reflexão que se estriba em seu pensamento é sobretudo importante quando se
trata de associá-lo à comunicação do resultado positivo do teste anti-HIV. É neste contexto específico que a noção de
cura, para Winnicott, adquire todo seu
relevo. Diz o autor:
Acredito que “cura”, em suas raízes, signifique cuidado. [grifo do autor] (...) A cura,
no sentido do tratamento, da bem-sucedida erradicação da doença e sua causa, tende hoje a se sobrepor ao cuidado. (WINNICOTT, 1992b, p. 87-8)
O autor está se referindo ao quanto, na
medicina, prioriza-se a cura da doença e
o restabelecimento da saúde e, segundo
ele, não deveria ser assim.
No caso do diagnóstico HIV positivo
não se pode falar de cura, sendo ela impossível no sentido tradicional do termo
em decorrência dos avanços insuficien-
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tes no estágio atual da evolução da ciência. Assim, cabe ao profissional desenvolver o cuidado. E isso não é fácil, haja
vista o que diferentes trabalhos de representação social sobre diversos temas
de saúde têm mostrado reiteradamente
(SIGAUD, 1997). Diferentemente de uma
postura que elide e atenua o relato das
decorrências graves e sérias da infecção
constatada, ou daquela que enfatiza os
dados técnicos e descreve objetivamente a história natural da doença por meio
de uma neutralidade que mal esconde o
embaraço e a angústia deste momento, o
que o indivíduo que procura o atendimento, em geral, espera é a existência de
uma palavra que lhe prometa a cura.
Essa não se lhe pode prometer, mas
muitas vezes apega-se à promessa do
adiamento do aparecimento dos primeiros sintomas da doença que a nova terapêutica promete, recalcando o fato de
que ela restringe e limita o dia-a-dia do
indivíduo, em função das peculiaridades
de sua administração. Acrescenta-se,
aqui, as recentes notícias a respeito da
resistência aumentada do vírus à medicação, em função dos efeitos da mesma
a partir de tratamentos interrompidos ou
de re-infecção da pessoa. Em face disso, defesas são criadas nos profissionais
e estimuladas no próprio sujeito que
ouve o resultado do teste positivo, na
tentativa de superar a angústia de morte
e a impotência que se apossam de ambos, nessa situação que poderia se chamar de traumática (no sentido winnicottiano), já que, muitas vezes, ela “... significa quebra de continuidade da existên-
cia de um indivíduo” (W INNICOTT ,
1992a, p. 18).
Winnicott lembra dos limites dos seres
humanos, cuidando de seus semelhantes
e de quanto, nesse “confronto clínico”,
tem-se que ter a humildade de encarar e
lidar com isto. Esse confronto, segundo
Winnicott, exige que o profissional se
coloque no mesmo patamar que o cliente, sem hierarquia. A idéia que permeia
este trabalho é a de que a aids, mais do
que qualquer outra doença, propicia e
determina uma mudança de direção em
que os profissionais vêm-se obrigados.
Tal mudança implica, igualmente, um remanejamento no plano das identificações
heróicas do terapeuta (ANZIEU, 1981). É
inevitável e necessária a saída do lugar
de “curadores” para ocupar o lugar de
“cuidadores”, passando antes pelo próprio medo da verdade de cada profissional em particular e pelas suas identificações. Neste caso, estar-se-á propiciando
um encontro mais saudável com o indivíduo, que lhe permita ativar seu self.
Nesse momento, tão difícil e traumático,
deve-se criar a possibilidade para o indivíduo de continuar sua existência
por meio do resgate ao seu senso de
existir, seu senso de ser para que ele possa sentir-se um ser humano, antes de
se sentir um indivíduo soropositivo.
Para que isso ocorra, a relação precisa
ser viva, autêntica e livre, e os profissionais de saúde têm que funcionar como
um ambiente satisfatório – em linguagem
winnicottiana, ambiente facilitador –
que propicie ao indivíduo a adaptação
a este objeto novo que a vida lhe aprePulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 156, abr. 2002
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senta: o resultado sorológico positivo.
Mais acima se fez menção à adoção de
defesas rígidas por parte do indivíduo e
do profissional. Tal situação tem como
conseqüência, freqüentemente, a articulação de uma prótese ou de um tamponamento destinado a se evitar uma ameaça de transbordamento da dor psíquica
causada pelo anúncio do resultado positivo carregando com ele fantasias de
morte. Construindo defesas excessivas
(um exemplo disso é a racionalização),
aproxima-se da possibilidade de se apossar de um falso self e, por essa via, impedir o indivíduo de utilizar recursos
saudáveis relativos ao verdadeiro self.
Um funcionamento muito defensivo por
parte do profissional, ativado para prevenir a desintegração frente a essa consulta
marcada com teor de veredicto e de julgamento, poderia constituir, por si só,
um ambiente não-saudável, sem provisões, sem sustentação. Seria impeditivo
da mobilização das angústias, medos e
culpas e da criatividade característica de
um ambiente relaxado, não ameaçador
que, segundo Winnicott, é um recurso
humano fundamental e necessário à aceitação da dor e sua melhor medicação.
Este momento – da comunicação do diagnóstico – é de suma importância e necessita ser compreendido como um
momento de suprimento adaptativo,
nem sempre possível, em função do próprio self do profissional de saúde, do seu
próprio olhar e do encontro com o sujeito. Tal situação assemelha-se à relação
mãe-bebê, no momento em que a mãe
vai apresentando os objetos na dosaPulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 156, abr. 2002
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gem adequada ao bebê, funcionando
... como um agente adaptativo [que] apresenta o mundo de forma a que o bebê comece com um suprimento da experiência
de onipotência [grifo do autor], que constitui o alicerce apropriado para que ele, depois, entre em acordo com o princípio da
realidade. (WINNICOTT, 1992a, p. 24)
Até que o bebê não esteja em condições
de tolerar frustrações e conflitos com a
realidade, a mãe aguarda, adiando até
que isso lhe seja suportável.
Nesse tipo de encontro com o cliente, o
profissional se colocaria no lugar dessa
mãe não-invasiva. Não se propõe a fechar o espaço aberto ocasionado pela
comunicação. Não oferece uma resposta
pronta e estereotipada oriunda do seu
preparo técnico e de um pensamento elaborado e compacto, com excessivo uso
do intelecto, de interpretações e de significados. Em oposição, o profissional
tampouco pode ignorar o cliente submetido a forte impacto e precipitado na impotência. Não pode se mostrar ausente e
alheio ao seu sofrimento. Não pode oferecer um espaço vazio de significações.
Seu lugar é “entre”, um lugar intermediário, segundo Winnicott, uma terceira
área da experiência, uma área situada
entre o interno e o externo daquele que
está à sua frente. É o espaço de intersecção entre a objetividade (realidade) e a
subjetividade. Dessa forma, está disponível para conter os conflitos e a dor do
indivíduo, ao mesmo tempo em que entra em contato com o que ele lhe traz,
aproveitando-se deste espaço e deste
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Diva Maria Faleiros C. Moreno e Alberto Olavo Advíncula Reis
momento para ativar a confiança do sujeito a fim de fortificá-lo e permitir-lhe
ter acesso ao seu self e progredir no seu
próprio desenvolvimento, lançando mão
de suas potencialidades.
Entende-se que Winnicott sublinha e enfatiza o potencial criativo do ser humano na sua capacidade de dar conta das
situações que provocam sofrimento e
dor, desde que tenha tido o seu processo maturacional constituído adequadamente. Torna-se mister transpor esses
ensinamentos para a situação ora enfocada enfrentada pelos profissionais de
saúde (a comunicação do resultado soropositivo), procurando transformar
esse momento num espaço potencial
onde haja lugar para as projeções oriundas do mundo interno do indivíduo, em
que seja possível a simbolização. O profissional responsável pela comunicação,
sob essa ótica, torna-se presença plena
de significado, dando-lhe sustentação,
apoio, confiança, e possibilitando a manutenção e/ou restituição da saúde.
Winnicott diz que a saúde não pode ser
descrita apenas em termos individuais.
Ele ressalta, com isso, a necessidade de
uma inter-relação mãe-bebê desde o início da vida e do quanto um ambiente favorável e saudável é essencial desde então. Para ele:
Seria nocivo para a saúde o fato de um indivíduo ficar isolado a ponto de se sentir
independente e invulnerável. Se essa pessoa está viva, sem dúvida há dependência!
(...) a saúde social depende da saúde individual (...) a sociedade tem que cuidar de
seus membros enfermos. (W INNICOTT ,
1992b, p.17)
Neste olhar para o indivíduo tem-se que
levar em conta a relação que ele estabelece com a sua situação singular frente
ao resultado soropositivo e suas conseqüências nas relações pessoais, nas relações com a sociedade, com os seus ideais
e projetos de vida. Diz Winnicott:
... a saúde não é fácil. A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos,
sentimentos conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto quanto características positivas. O principal é que o homem ou a mulher
sintam que estão vivendo a própria vida,
assumindo responsabilidade pela ação ou
pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, podese dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou autonomia. (Ibid., p. 22)
Essa crença na capacidade do ser humano de viver a própria vida e se responsabilizar por ela, tão veementemente
apontada por Winnicott, fornece inspiração e encorajamento para seguir o caminho ora proposto, não por considerá-lo
miraculoso ou mágico, porém possível.
A despeito de todas as suas implicações,
como bem salientado ao longo do presente trabalho, o momento da comunicação do resultado sorológico é apenas um
encontro que se processa de maneira
bem definida em um lugar e um horário
de atendimento. Ora, são justamente essas categorias que podem ser oferecidas
buscando a transformação. Assim, a única coisa a se oferecer ao indivíduo é o
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 156, abr. 2002
O momento da comunicação do resultado sorológico para o HIV...
espaço e o tempo, o nosso espaço e o
nosso tempo. O nosso que pode ser traduzido como mútuo, comum, elo de ligação, compromisso com o outro, aceitação e compreensão. Como dizem
Ayres e col.:
O cuidado é essa atividade realizadora na
qual caminho e chegada se engendram mutuamente (...) é o cuidado, como realização
racional desta intervenção, que demarca a
legítima constituição dos sujeitos... (1997,
p. 35)
Espera-se, com essa forma de atendimento, tornar a experiência mais humana e verdadeira para ambos: profissional
e cliente. No mínimo, a partir do diagnóstico, o mundo destas pessoas soropositivas será percebido como mais digno, ético e saudável. „
REFERÊNCIAS
ANZIEU, Didier. Le corps de l’oeuvre. Paris:
Gallimard, 1981.
AYRES, José Ricardo C. M.; FRANÇA JR .,
Ivan; CALAZANS, Gabriela J. Aids, vulnerabilidade e prevenção. In: Saúde
reprodutiva em tempos de aids. Rio de
Janeiro: ABIA/IMS/UERJ, 1997.
SIGAUD, Cecília H. A representação social
da mãe acerca da criança com Síndrome de Down. Dissertação de mestrado
não publicada, Faculdade de Saúde
Pública da USP, São Paulo, 1997.
WINNICOTT, Donald W. (1970). O conceito
de indivíduo saudável. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1992a.
____ (1967). A cura. In: Tudo começa em
casa. São Paulo: Martins Fontes,
1992b.
Artigo recebido em janeiro/2002
Aprovado para publicação, em março/2002
PSICOWAY
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O número de maio/2002 da
Pulsional Revista
de Psicanálise
terá como tema
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