REPARAÇÃO: Principio Fundamental para Efetivação da Justiça de

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REPARAÇÃO: Principio Fundamental para Efetivação da Justiça de
Transição no Brasil Pós Ditadura.
MADEIRA, Anderson Soares1.
PEREIRA, Fernanda Moreira Campos2.
VALE, Sergio Luiz Vasconcelos do3.
RESUMO
O presente texto traz comentários sobre os conceitos iniciais da justiça de
transição e sua aplicação por meio dos princípios de Chicago. Estuda o
mecanismo da reparação e suas formas de aplicação no período posterior à
ditadura militar no Brasil, indicando os dispositivos normativos que se inserem
nesse tema da reparação.
Palavras-chave: Justiça de transição; Reparação; Princípios de Chicago;
Ditadura no Brasil.
ABSTRACT
This text brings comments on the initial concepts of transitional justice and its
application through the Chicago of principles. Studying the mechanism of repair
and its application forms in the period of military dictatorship in Brazil , indicating
the regulatory provisions that falls within that repair theme
Keywords: transitional justice; repair; Chicago Principles; Dictatorship in Brazil.
1
MADEIRA, Anderson Soares: Professor da Universidade Estácio de Sá, Professor da Universidade
Cândido Mendes, Professor da Universidade de Barra Mansa; Advogado e Doutorando em Direito pela
UNESA.
2
PEREIRA, Fernanda Moreira Campos: Professora da Universidade Geraldo Di Biase;
Advogada e Mestranda em Direito Público pela UNESA.
3 VALE, Sergio Luiz Vasconcelos do: Professor da Faculdade Estácio-FAP; Advogado e
Doutorando em Direito Fundamentais e Novos Direitos pela UNESA.
1
INTRODUÇÃO
Inicialmente,
para
escorreito
entendimento
deste
debate,
é
primordialmente necessário trazer um cotejo sobre a chamada justiça de
transição que, em ligeiro conceito, se define como um conjunto de ações a
serem
aplicadas
em
um
determinado
Estado-Território,
visando
sua
reorganização democrática em momento posterior a um regime de exceção
que tal Estado tenha vivido e onde se identificou graves violações aos direitos
humanos4.
Esta espécie de justiça se apresenta sob a nomenclatura de
justiça de transição ou justiça pós-conflito, representando a
transição, mudança de um contexto nacional de conflito
armado ou de presença de regimes autoritários para um
governo democrático calcado na existência de um estado de
Direito5.
Swensson Junior6 identifica que ao problema de se decidir que medidas
devem ser tomadas pelo novo governo a respeito dos acontecimentos
relacionados ao regime anterior, nós chamamos de ‘justiça de transição”.
E ainda, se faz interessante complementar o conceito, com as definições
de Eduardo Loureiro Lemos7:
A justiça transacional representa uma resposta às violações
sistemáticas e generalizadas aos direitos humanos com o
escopo de promover a paz, a reconciliação e a democracia.
justiça de transição não se trata de uma forma especial de
justiça, mas justiça adaptada à sociedade em transformação
após um período de abuso patente dos direitos humanos.
4JAPIASSÚ,
Carlos Eduardo Adriano; MIGUENS, Marcela Siqueira. Justiça de Transição. Uma
aplicação dos Princípios de Chicago à realidade brasileira. In: Ana Lucia Sabadell; JanMichael Simon; DimitriDimoulis. (Org.). Justiça de transição. Das anistias às comissões da
verdade. 1ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
5Idem.
6 SWENSSON JUNIOR, LauroJoppert. (Re) pensar o passado – Breves reflexões sobre a
justiça de transição no Brasil. In: Revista Brasileira de Estudos constitucionais. Belo
Horizonte. Ano 2. n.7. Editora Forum. Julho/setembro 2008
7LOUREIRO LEMOS,Eduardo.Justiça de Transição.Belo Horizonte: DPlacido.p.35.2014.
2
A justiça de transição, por tanto, nada mais é que aplicação de meios
para resgatar a paz suprimida durante um regime de opressão, o fazendo com
inserção de ações em vários campos de atuação, com atos jurídicos e não
jurídicos.
Conforme estudo trazido à ordem jurídica por BASSIOUNI 8 , avista-se
como principais pontos de abordagem para o momento transitivo, as seguintes
ações:




Persecução dos autores das graves violações aos direitos humanos;
Buscar a verdade p o r m e i o d e investigações formais;
assegurar e promover devidas reparações às vitimas;
implementação de políticas de veto,sanções e medidas administrativas
destinadas à punição dos culpados;
 Promover a preservação memória;
 Assegurar a base do Estado de Direito e proteção de direitos
Fundamentais;
 Apoiar as atuações indígenas e religiosas que se posicionem contra as
Violações.
Os sete atos acima listados são, na verdade, os chamados princípios de
Chicago, que compõem uma teoria organizacional visando a efetivação da
justiça de transição, sendo visto como medidas penais e não-penais, que
devem ser adotadas para a reestruturação do Estado e o estabelecimento de
um Estado de Direito9.
O contexto trazido pela chamada justiça de transição, com base nos
chamados princípios de Chicago, tem o aspecto evidenciado em uma forma de
se restabelecer um sistema democrático de governo ou restauro da paz, com
ações que não deem ênfase apenas ao passado, mas também numa
8
BASSIOUNI, M.Cherif. The Chicago Principles on Post Conflict Justice. International
Human Rights Law Institute, 2007.
9 Ob.Cit. JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano; MIGUENS, Marcela Siqueira. Justiça de
Transição
3
perspectiva de futuro10, trazendo como uma de suas premissas a possibilidade
de efetivamente buscar a verdade e a consequente respostas à sociedade
sofrida pelo regime de exceção, respostas essas que perpassam pela
apuração ampla e responsabilização efetiva, além da possível reparação às
vitimas que tenham sofrido violações em seus direitos quando da atuação do
regime opressor.
É bem nítido que nos casos que se vislumbra a efetivação da justiça de
transição, a persecução penal não é ação de fácil manejo e aplicação,
sobretudo no que se refere a países que possuem em seu ordenamento uma
lei de anistia em vigor, tal como no Estado Brasileiro, a qual, ainda que suscite
ponderações quanto à sua validade, se faz um impeditivo para aquela
apuração penal, ao menos assim tem sido.
Uma lei de anistia, ainda que pudesse apagar o crime
ou a pena, não deveria interferir na reparação civil [...]
pois, enquanto a pena é direito do Estado, que pode
dispensá-la pela anistia, a reparação é direito da vitima
e , portanto, não poderia o Estado abrir mão, salvo se
assumisse essa obrigação11.
Na verdade a transição política no caso brasileiro, tem o processo de
transição por transformação, levada a cabo pelo próprio regime militar
autoritário, sem que a Sociedade Civil ou o Estado de Direito surgido fossem
capazes de efetivamente promover uma agenda de medidas transicionais que
não somente aquelas planejadas pelo próprio regime, planejamento este que,
por óbvio, não incluía a apuração e responsabilização penal dos agentes.
Neste sentido, a reparação passa a ser a medida mais reestruturadora e
mais incisiva para efetivação da transição, na medida em ser uma resposta que
pode ser mais facilmente dada aos que perseguem uma ação reprovadora do
10ALMEIDA,
Eneás de Stutz e TORELLY, Marcelo. Justiça de Transição, Estado de direito e
Democracia Constitucional: Estudo preliminar sobre o papel dos direitos decorrentes da
transição política para a efetivação do estado democrático de direito. Volume 2. Número 2.
Porto Alegre. Julho/dezembro 2010
11 LIMA SANTOS, Roberto. Crimes da Ditadura Militar: responsabilidade internacional do
Estado Brasileiro por violação aos direitos humanos. Porto Alegre: NuriaFabris,2010.p.254.
4
Estado aos atos violadores dos direitos fundamentais ocorridos no Brasil nos
anos do governo militar.
Como se pode observar, a reparação dos danos sofridos pelas vitimas
dos abusos cometidos pelo regime totalitário, se mostra como um ponto de
destaque nessa teoria sobre a efetivação da justiça de transição, isso porque,
sem que se tenha a devida reparação, a sombra das violações vividas por
quem sofreu os abusos do regime ditador, assim como o receio de se olhar
para traz e ver que nada foi feito no sentido de reprimir tais violações, acaba
por assombrar o futuro, na medida em que, sem a devida reparação, os atos
passados acabam por ganhar o ar de não reprováveis, trazendo a incerteza de
que poderiam ou não ser repetidos em momento futuro.
Desta forma a reparação surge como ato de extrema necessidade no
momento posterior ao período de violações, entendo-se que tais reparações
são medidas que visam além de indenizações e recuperações dos danos
morais e materiais, também buscam resgatar a história, as ideias, a alma dos
movimentos sociais e seus ideais12.
Reparação é um ato de ressarcimento, de indenização, de
compensação, como também, de reestabelecimento de um
determinado status. É a recuperação de um espaço político
e social, envolvendo atos para consertar algo que foi tratado
de forma errada e desastrosa. É a restauração do que foi
danificado, maltratado, desestruturado, destruído. A
reparação permite a compensação por danos morais e
materiais daquelas pessoas que sofreram de maneira
individual mas também os danos morais e materiais que
recaíram sobre toda a sociedade e inclusive sobre o próprio
aparelho do Estado, que passou a ser ainda mais
desacreditado, na medida que foi responsável pela
elaboração e execução de políticas públicas de repressão,
de subordinação, de violência, de prisões, assassinatos e
desaparecimentos de opositores políticos. A reparação
impõe ao Estado o reconhecimento de sua responsabilidade
pelos crimes cometidos por agentes que se encontram ou
encontravam a seu serviço13.
12
ALMEIDA TELES, Maria Amélia de. Reparação Começa com Anistia.In:Revista Brasileira de
Ciências Criminais.vol.53.p.119.Mar.2005.
13 Idem.
5
A atenção deve se voltar ao restabelecimento da igualdade perante a lei,
e é nesse aspecto que se identifica a reparação às vitimas sofridas em seus
direitos pelos atos do antigo regime totalitário. Sem que tais reparações
aconteçam, se torna impossível se restabelecer um fim ao regime totalitário
anterior.
O processo de reparação tem um objetivo não jurídico[...] de
devolver à vitima o senso de pertencimento à comunidade
política, de reconquistar sua confiança cívica. A vitima, que
foi violada pelo Estado, hoje é reparada pelo Estado em um
processo de reconciliação[...]14.
De uma forma geral, os comportamentos justo e injusto podem levar no
fazimento de normas que levariam ao conceito de Justiça, seja a Distributiva,
seja a Reparadora. A Distributiva, que não nos interessa nesse trabalho, seria
aquela onde se exterioriza com a concessão de honras, cargos, título e
salários, para aqueles que participam do sistema político vigente. Já a
Reparadora, se volta para o reconhecimento de determinada violação e a
consequente, e literal, reparação. Aqui o agente infrator é punido e o violado
ressarcido pelos danos causados, seja de ordens material e/ou moral.
Mas, para que essa fase se estabeleça, faz-se necessário que todo
arcabouço jurídico se coadune em um único pensamento, para tanto, as
normas de orientação para a nova fase democrática devem estar estabilizadas,
todas no mesmo sentido de efetivar-se a devida reparação, situação, ainda que
algumas providências tenham sido tomadas em prol dessa efetiva reparação,
ainda não foi possível plenamente ser vislumbrada no estado brasileiro.
14Torelly,
Marcelo D. Das Comissões de Reparação à Comissão da Verdade. In: Ana Lucia
Sabadell; Jan-Michael Simon; DimitriDimoulis. (Org.). Justiça de transição. Das anistias às
comissões da verdade. 1.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
6
2. DAS FORMAS DE REPARAÇÃO
O termo reparação, conforme Dicionário Michaelis15, seria o ato ou efeito
de reparar, conserto, reforma, restauração, indenização e satisfação dada à
pessoa ofendida, sendo que, no caso da efetiva reparação dadas às vitimas da
ação da ditadura, esse “conserto” ganha não somente o sentido da indenização
financeira por danos morais e materiais, encerra também reparações política e
social àquelas vitimas e, ao fundo, à toda sociedade.
[...]reparar guarda um conteúdo mais abrangente que
indenizar, já que este tem uma relação maior com dinheiro
enquanto o outro se refere ao conteúdo moral e às questões
simbólicas que estão para além da questão pecuniária. E é
justamente nisso que se baseia o processo de reparação.
Muito mais do que o recebimento do dinheiro, esse
momento traz à tona conteúdos morais e simbólicos que são
acionados em eventos, homenagens, nos depoimentos e
entrevistas concedidas pelos beneficiáveis e seus
simpatizantes e também nos discursos de seus opositores.
Tais conteúdos se revelam sobremaneira importantes para
as ciências sociais porquanto a partir deles se podem
perceber as representações sobre uma época, a partir das
condições de fala de determinados grupos sociais16.
Dimitri Dimoulis17 bem colocou que ‘’a justiça de transição não possui o
poder mágico de fazer desaparecer aquilo que foi feito, reerguendo a árvore
cortada”. No entanto, é possível que seja promovida a mudança através da
instauração
de
um
regime
de
liberdades
que
poderá
oferecer
responsabilizações para além da esfera penal.
A lei de anistia de 1979 serve de marco para transição política brasileira,
e de acordo com Marlon Alberto Weichert, Procurador Regional da República, a
15
MICHAELIS. moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 2000.(Dicionários Michaelis).
16Nilin Gonçalves, Danyelle. O preço do passado: o processo de indenização às vítimas
das ditaduras militares no Brasil e na Argentina: pagar apaga o passado? [N.P]
REPROGRAFIA
17 DIMOULIS, Dimitri. Justiça de transição e função anistiante no Brasil. Hiposiações indevidas
e caminhos de responsabilização. In: Justiça de Transição no Brasil (Org.). DIMOULIS,
Dimitri; MARTINS, Antônio; SWENSSON JÚNIOR, Lauro Joppert. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
92.
7
Lei de Anistia nasceu sob a seara da reparação econômica, no entanto nos
últimos anos, ela visa a reparação moral e a construção da memória18.
Desta forma, pode-se observar que a conduta de reparação a ser
adotada pelo Estado se define em vários atos que, além da indenização
propriamente dita, abrangem a restituição do status quo da vitima junto à
sociedade e, ainda, a viabilidade de aclaramento da verdade e a satisfação dos
erros cometidos19.
No que se refere à “restituição do status quo”, esta forma de reparação
tem como fundamento colocar a vitima na situação social e política em que se
encontrava antes de sofrer as violações. Essa ação visa, sobretudo, realocar a
vítima dentro da sociedade restaurando sua liberdade e sua atividade
profissional, visa ainda excluir as condenações ilegais e devolver sua
cidadania20.
Lima Santos21 afirma que a restituição ao status quo ante é considerada
a melhor forma de reparação no direito internacional, uma vez que trabalha
diretamente com direitos individuais à dignidade da pessoa humana os quais
jamais podem ser restituídos por meio de indenizações financeiras.
Também podemos citar como reparação, a restituição de propriedades
por ventura confiscadas, bem como serviços médicos e psicológicos de caráter
reabilitador.
São também medidas cabíveis e de alto grau de importância:
-a declaração de anistiado político;
-a contagem de tempo para aposentadoria;
18
Entrevista com Marlon Alberto Weichert. Instituo Humanos Unisinos. 2011. Disponível
em <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=29&taskdetalhe&id=46
768
19Ob.Cit. LIMA SANTOS, Roberto.p.265.
20 BASSIOUNI,M.Cherif. The Chicago Principles on Post‐Conflict Justice.International
Human Rights Law Institute, 2007.
21 Ob.Cit. LIMA SANTOS, Roberto.p.265.
8
-a garantia de registros de diplomas obtidos no exterior e
-a reintegração de servidores afastados em processos administrativos
sem o direito do contraditório (legislação de exceção).
A “indenização”, por sua vez, ainda que no caso aqui debatido seja em
prol de vitimas de graves violações de direitos humanos, tem as mesmas
características das indenizações deforma geral, assim, nada mais é que a
compensação financeira que visa reduzir os danos de natureza moral e/ou
material sofridos pelas vitimas.
Essa compensação financeira deve abranger toda espécie de perdas e
sofrimentos advindos das violações a que foram submetidas as vítimas e deve
preencher, além do dano físico e mental, todas as perdas econômicas por
perda de cargo e ocupação profissional ou educacional, assim como, custos
com tratamentos médicos e com assistência jurídica e, sobretudo, a
compensação pelo ferimento à reputação e dignidade.
Quanto o outro quesito de reparação que se identifica como “satisfação”,
entende-se este como a ação do Estado visando o reconhecimento das
ilegalidades perpetradas e a garantia de não repetição de tais atos violadores.
Nesse sentido da satisfação, inclui-se o pedido de desculpas às vitimas e à
comunidade internacional.
No que tange à “verdade” enquanto forma de reparação, há de se
identificar que são ações que visam o esclarecimento pleno e total das ações e
atos violadores, assim como dos agentes propagadores daqueles atos, além,
por lógico, do aclaramento das consequências trazidas às vitimas.
A “verdade”, como item da reparação, indica que cabe ao Estado
investigar e perquirir as responsabilidades, além de fornecer notícias sobre os
resultados encontrados, vale dizer, fornecimento de informações sobre as
vítimas, os que foram mortos, incluindo a localização de cemitérios
clandestinos;
pessoas
desaparecidas
e
as
circunstâncias
de
seu
9
desaparecimento22; entre outras ações que visem a descoberta de tudo que
possa servir de esclarecimento e forma de prevenção de não repetição futura.
3. A REPARAÇÃO NO ESTADO BRASILEIRO PÓS-DITADURA.
Desde a sanção da Lei da Anistia, observa-se tímida adoção de
mecanismos para o abrandamento dos agravos causados àqueles que
sofreram as perseguições políticas.
A Lei da Anistia, lei nº. 6.683/79, concedeu anistia a todos quantos, no
período compreendido entre 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexos com estes, também crimes eleitorais,
os que tiverem seus direitos políticos suspensos e os servidores punidos com
fundamento em Atos Institucionais e Complementares, de forma ampla, geral e
irrestrita.
Anistia tem origem do grego amnestía, que significa esquecimento. A
anistia por Fernando Capez é a “lei penal de efeito retroativo que retira as
consequências
de
alguns
crimes
já
praticados,
promovendo
o
seu
esquecimento jurídico”23. A partir da anistia, a reparação no Brasil se dá de
forma econômica num tímido processo de adoção de mecanismos para o
abrandamento dos agravos causados àqueles que sofreram as perseguições
políticas.
Ao longo das últimas décadas, o Estado brasileiro criou alguns
mecanismos que visam ações reparatórias às vitimas da ditadura militar, assim
como para familiares de tais vitimas, sendo destaque as leis 9.140/95,
chamada de Lei dos Desaparecidos Políticos, e Lei 10.559/2002, que cria a
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça brasileiro.
Com essas medidas legais, o Estado brasileiro passa a reconhecer sua
responsabilidade por todos os atos de violações de direitos cometidos durante
22Ob.Cit.
BASSIOUNI,M.Cherif.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1 : parte geral (arts. 1º a 120) / Fernando
Capez. — 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.
23
10
o período do regime militar, e aceita a viabilidade da reparação às famílias e
aos próprios atingidos pelas prisões, torturas, mortes e todas as outras
consequências advindas daqueles atos24, além de promover desarticulação dos
órgãos de repressão política:
Oferecer a reparação adequada às vítimas consiste em
concretizar um dos pressupostos basilares da Justiça de
Transição, caracterizando bem mais do que um alento de
cunho pecuniário às vítimas do período repressivo, mas um
reconhecimento estatal de que errou, cujo objetivo
fundamental é se redimir com os seus cidadãos, através de
uma conduta séria e justa, na tentativa de restabelecer uma
relação de isonomia e respeito. Observa-se que com a
reparação estatal, há o reconhecimento de sua
responsabilização, ainda que ínfima, diante de todo o
contexto pós-ditadura militar25.
No mecanismo de reparação implantada pelo Estado Brasileiro,
conforme já se disse, três ações do Governo Federal são destaque: a
Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a
Comissão de Anistia e a Comissão Nacional da Verdade.
Em 1995, no Governo de Fernando Henrique Cardoso, procedeu-se a
uma das primeiras medidas de justiça de transição, com a criação da CMDP –
Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei 9.140, estando
vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Segundo sua instituição, a CMDP tem como objetivos, dentre outros,
promover a busca de informações que permitam a elucidação de violações
contra os direitos humanos ocorridas durante a ditadura civil-militar brasileira,
precisamente entre o período de 1961 a 1979, período em que, inicialmente,
foram incluídos 136 nomes de pessoas desaparecidas, as quais foram
juridicamente declaradas como mortas.
24Ob.Cit
.ALMEIDA TELES, Maria Amélia de.
Bruna Gomes. O dever de efetivação da justiça transicional na redemocratização
brasileira. in: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/trabalhos2009_2/bruna.borges.pdf.
acesso em: 19 de abril de 2015.
25BORGES,
11
Contudo, a lei de 1995 recebe nova alteração, dada pela Lei 10.536 de
2004, e que estende o prazo de apuração para 05 de outubro de 1988, sendo
também incluídas no novo texto as mortes por suicídio e por traumas causados
pelo regime.
O objetivo claro e primeiro era solucionar os casos de desaparecimentos
e mortes ocorridas no período definido e, assim, promover a localização, a
identificação e a devolução dos seus restos mortais aos familiares, além de
reconhecer a responsabilidade do Estado e de proceder à reparação de
pessoas mortas ou desaparecidas e às suas famílias e, desde sua criação, a
CEMDP analisou 480 pedidos de reparação, dos quais, 362 foram deferidos e
aptos a receber reparação moral e econômica26.
A Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos PolíticosCEMDP, pode ser considerada como o primeiro passo para o reconhecimento
oficial das violências cometidas contra opositores políticos na história do
Brasil27.
A CEMDP teve um trabalho relativamente mais limitado em relação às
outras comissões também destinadas a promover as reparações ou verdades,
mas foi ponto fundamental para dar inicio a todos os passos seguintes, além de
ter dado considerada contribuição para as outras comissões com informações
obtidas com as investigações que promoveu.
Em 2002, no governo do presidente Lula, pela lei nº. 10.559/2002 houve
a implementação da comissão de anistia do Ministério da Justiça, por meio das
Caravanas da Anistia e outros projetos de cunho educativo.
A Comissão de Anistia se utiliza de duas fases para realização da
reparação: a primeira, com a declaração de anistiados políticos; e a segunda, a
reparação econômica única ou mensal, permanente e continuada.
26http://cemdp.sdh.gov.br/.
Acesso em 07 de abril de 2015.
de MORAES, Maria Lygia. Do direito à reparação In: Mortos e desaparecidos
políticos: reparação ou impunidade. 2. ed. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP, 2001.
27QUARTIM
12
Nessa frente de trabalho da Comissão da Anistia,oprincipal campo de
atuação vem sendo direcionado à reparação mediante o pagamento de
indenizações com base, sobretudo, aos danos materiais:
Desde a sanção da Lei da Anistia, observa-se a tímida
adoção de mecanismos para o abrandamento dos
agravos causados àqueles que sofreram as
perseguições políticas. A única medida relevante, e a
mais presente, é o pagamento de indenizações
realizado pela Comissão de Anistia, a qual dá maior
destaque aos danos materiais sofridos do que aos
danos morais suportados pelos anistiados28.
No entanto, em que pese a Comissão da Anistia primar pela reparação
econômica no sentido exato dos danos materiais, a lei criadora dessa
comissão, em seu art. 16, dispõe sobre a possibilidade de que a indenização
compreenda outros aspectos para além na esfera do dano material, no entanto,
os aspectos referentes aos danos morais não tem sido devidamente
considerados nas decisões que definem as reparações indenizatórias. Ou seja,
a indenização por dano moral não tem sido parâmetro para o cálculo da
quantia indenizatória das vitimas do regime militar.
Para melhor analisar o acima exposto, traz-se o caso da Anistiada Maria
das Dores Gomes da Silva, de forma a comparar a reparação de cunho
meramente material, realizadas pelas Caravanas da Anistia, e o aspecto da
necessidade da reparação econômica de cunho moral.
Requerimento de Anistia nº 2004.01.40170 - vivia
maritalmente com Amaro Luiz de Carvalho, num sítio
no Estado de Pernambuco. Era menor de idade e
trabalhava para prover seu sustento quando foi presa e
torturada por autoridade policial que não possuía
qualquer ordem do Poder Judiciário. Sua prisão
ocorreu simultaneamente à de seu companheiro, em
que ocorreram diversos disparos e uso de brutalidade.
28
MACHADO, Bruno Ribeiro.A justiça de Transição e a Reparação de Danos no Brasil: a
necessidade de consideração dos danos morais na fixação do quantum
indenizatório.IN:Revista de Direitos e Garantias Fundamentais.n° 5, 2011.
13
Menciona também que um dia depois de efetuada sua
prisão a produção do sítio foi totalmente depredada
pelo uso de máquinas e tratores particulares, ordem
esta emanada pela Secretaria de Segurança Pública de
Pernambuco, além do confisco e distribuição dos
animais entre os agentes que efetuaram o esbulho.
Torturada pelos agentes públicos sem saber os motivos
de sua prisão, somente conhecendo as causas de sua
prisão após muitos anos, sendo ocasionada pelo fato
de ser companheira de Amaro Luiz de Carvalho. Viu
seu companheiro ser torturado diversas vezes,
destacando que tais imagens não lhe saem da cabeça.
Após os maus tratos, já com a saúde bastante
comprometida, seus torturadores ofereceram a Amaro
Luiz de Carvalho uma refeição envenenada. Declara
que foi fiel até os últimos momentos de vida de seu
companheiro, quando este faleceu provavelmente por
uma refeição envenenada. Após, foi constrangida e
forçada a dar depoimento, o qual deveria mencionar
que, no momento da visita de rotina, seu companheiro
passava bem e apresentava ótima saúde.
A anistiada Maria das Dores Gomes da Silva obtém “reparação
econômica, de caráter indenizatório, em prestação mensal, permanente e
continuada, no valor de R$ 930,00 (novecentos e trinta reais), com efeitos
retroativos da data do julgamento em 02.04.2009 a 13.02.1999, perfazendo um
total retroativo de R$ 122.605,00 (cento e vinte e dois mil, seiscentos e cinco
reis), nos termos do artigo 1º, incisos I e II da Lei Nº. 10559, de 2002”29.
Pode-se abstrair do caso, que os danos morais sofridos pela anistiada
em questão foram intensos e jamais poderia ser excluído de uma efetiva
reparação.
Como se vê utilizando-se somente de indenizações patrimoniais para
efetivar a reparação dos ilícitos praticados, tende-se a identificar uma
DECISÃO DA COMISSÃO DE ANISTIA – D.O.U.: O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA,
no uso de suas atribuições legais, com fulcro no artigo 10 da Lei Nº. 10559, de 13 de novembro
de 2002, publicada no Diário Oficial de 14 de novembro de 2002 e considerando o resultado do
julgamento proferido pela Comissão de Anistia, na 8ª Sessão - Caravana da anistia na cidade
de Recife, realizada no dia 02 de abril de 2009, no Requerimento de Anistia Nº.2004.01.40170,
resolve: N 2.201 - Declarar MARIA DAS DORES GOMES DA SILVA portadora do CPF N
318.457.204-82.
29
14
reparação incompleta, sobretudo frentea valores que realmente causaram
maior subtração à dignidade das vitimas e familiares, por isso, a indenização
que não reconheça os danos morais causados ao indivíduo cerceia a
sociedade da reparação efetiva.
A transição, de fácil visão, opera-se com a mudança do regime, onde se
tem o fim do período de violações. Mas ao se falar em Justiça, tem-se a ideia
que se proceda a reparação por completo, e não somente sobre os danos
materiais causados pelo poder anterior, o que, apesar de saber-se não ser de
fácil apuração, o dano moral haveria, como de fato deve haver, de ser buscado.
Por fim, em 2011, no sentido do esclarecimento da verdade, no governo
de Dilma Rousseff, outra ação do poder público visando a efetivação de
medidas reparadoras se deu com a criação da comissão nacional da verdade CNV, que se fez com a lei nº 12.528/2011 e com a edição da lei de acesso à
informação, nº 12.527/2011, ambas com o fim de efetivar o direito à memória e
à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
No que tange à Lei de acesso à informação, esta tem um caráter geral
no que se refere sua abrangência, vez que não trata apenas de fornecer dados
sobre os acontecimentos do golpe militar e dos atos ali cometidos, a lei em
questão permite transparência ao Estado brasileiro de forma geral, tal como
emana a Constituição Brasileira de 1988, permitindo que seja possível a
divulgação de informações pelo Estado de forma espontânea ou a partir de
demandas de algum interessado.
Neste quesito, o Governo brasileiro andou bem no sentido de efetivar
garantias fundamentais, na medida em que o acesso à informação é uma
característica primaz de um Estado Democrático, indo certeiro no cumprimento
de garantias constitucionais e de tratados internacionais a que o Brasil adere,
assim como, acompanhando as tendências de países irmãos, como Peru (Ley
de Transparencia y Acceso a La Información Pública, de 2003), Chile (ley de
15
transparencia y acceso a La información pública, de 2008) e Uruguay (ley de
Derecho de Acceso a La Información Pública, de 2008)30.
Porém, no aspecto do esclarecimento da verdade diretamente coligada
ao período da ditadura militar, é a Comissão Nacional da Verdade – CNV que
nos traz os pontuais resultados.
Há de entender que a busca da tão desejada verdade dos fatos
ocorridos nas duas décadas de repressão militar e terror, ganhara seu
instrumento, a ferramenta responsável de trazer à luz, se não todos, mas ao
menos uma parte dos sombrios acontecimentos daquele período.
Composta em sua maioria por profissionais juristas, a comissão conta
ainda em sua formação com 01 cientista político e 01 psicanalista, tendo
encampado vários assessores e colaboradores, perfazendo uma equipe de 50
membros que trabalharam por 2 anos e 7 meses e ao fim produziu relatório com
3 volumes e 4,3 mil páginas31.
Durante os trabalhos a comissão indicou 201 desaparecidos, com a
certeza de 191 mortos, e identificou 377 agentes diretamente responsáveis na
repressão.
O relatório final da comissão, entregue à Presidente Dilma Roussef em
10 de dezembro de 2014, traz 29 recomendações como medidas a serem
observadas pelo estado.
A Justiça de Transição, tem como momento trivial e imprescindível, sob
pena de não se ter o conceito de Justiça, a reparação dos males causados pelo
regime autoritário, e isso se faz não somente com o pagamento de prejuízos
materiais, mas com toda a incidência de ações no âmbitos da restituição moral,
que inclui, não somente a compensação financeira do dano moral, mas com
todas ações no esclarecimento da verdade e na efetivação de que o estado
luta para que aqueles atos violadores não voltem a acontecer.
30
HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Acesso à Informação: Lei nº 12.527/2011. Belo
Horizonte: Fórum, 2013
31 Dados obtidos a partir do sitio eletrônico oficial da Comissão Nacional da Verdade, com
endereço: http://www.cnv.gov.br.
16
4. CONCLUSÃO
A Justiça Transicional cria a promessa do estabelecimento de momentos
melhores para uma sociedade, libertando os homens que sofreram
perseguições, pois a viabilidade trazida para superar os episódios evita a
propagação destes terríveis momentos.
Na seara nacional, infere-se que a justiça de transição em prática no
Brasil se inicia precisamente em 1979, ano da edição da lei da anistia, e se
estende até os dias atuais.
E mesmo que já se estenda por mais de 30 anos de abertura
democrática brasileira, ainda se tem muito a debater sobre os Direitos
Humanos e a ditadura no Brasil, sobre suas nuances políticas e sociais e suas
relações jurídicas e, claro, sobre as ações para efetiva transição.
O Brasil passou por uma parcial transição, na verdade, ainda passa, pois
evidencia um inacabado processo transicional32.
O que se percebe, entre a ratificação da Lei de Anistia e o atual
momento político do país, é um grande hiato, em que medidas de extrema
importância para a transição política ainda não foram tomadas.
Por óbvio, e sem desmerecer o que já se fez, vê-se que a transição
brasileira apresenta em sua linha do tempo vários pontos de destaque ali
inseridos, como: volta das eleições diretas, promulgação de uma nova
Constituição, Comissão Nacional da Verdade e outras. Porém, sem a efetiva
reparação a que merecem as vitimas das atrocidades perpetradas, não só a
transição não se faz completa, como o novo momento histórico democrático
não se efetiva definitivamente.
32
NASCIMENTO MARTINS, João Víctor. Juridicidade e Justiça de Transição. Belo
Horizonte: DPLACIDO.p.33.2014.
17
No Brasil, a Lei de Anistia vem impedindo a efetiva apuração e
responsabilização penal dos atores que praticaram as violações aos direitos. A
Justiça Reparadora se faz, por completo, quando o sucumbido tem
reconhecido seu direito de reparação, mas também se o agente violador for
punido pelos atos praticados.
Porém, é necessário que se atente que talvez a reconciliação que se
tem hoje, ainda que tênue, não tivesse sido alcançada se a persecução penal
tivesse sido posta em prática, na medida em que a instabilidade, por certo, viria
à tona, trazida pelos grupos que defendem a anistia nos moldes que se aplicou
até hoje.
Por outro lado, há de se notar um ligeiro esforço do Estado, desde a
década de 1990, em relação à busca de efetividade dos direitos à verdade e à
reparação, esforço pequeno, a bem da verdade, na medida em que não se vê
uma política cotidiana de reparação a termos satisfatórios.
Há de se observar, por exemplo, que muitas pessoas inocentes
morreram, sofreram lesões e tiveram perdas materiais por força da “guerra”
entre governo e oposição e tais pessoas, como vítimas que são, merecem
também ver indenizadas suas perdas.
Nesse rumo, a única medida relevante, e a mais presente, tem sido o
pagamento de indenizações feito pelo governo federal. Destarte, ter-se maior
ênfase aos danos materiais sofridos do que aos próprios danos morais
suportados pelos anistiados.
Vale dizer, todavia, que a indenização é medida correta, de certa forma
moral e razoável, sendo muito bem-vinda, mesmo não reparando em sua
plenitude todos os danos causados.
18
A “justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o
passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática” 33.
Essa passagem, somente se efetivará mediante devida e ampla apuração da
verdade e conseguinte reparação às vitimas e às famílias que sofreram o terror
à época da ditadura.
Nesse sentido, é bom se atentar que não se pode definir como vitimas
apenas as pessoas que efetivamente estiveram na luta contra o estado, os
chamados opositores do regime, vale dizer, diversas pessoas e suas famílias,
civis e integrantes da população comum também sofreram com as
dissonâncias do regime, tanto pelas ações arbitrárias dos agentes do Estado,
seja pelas ações violentas dos militantes de oposição.
Necessário que a sociedade, por meio de seus poderes estatais, defina
melhor o caminho a seguir em busca da efetiva democracia ou da sua definitiva
paz, incidindo, nesse contexto, a política de reparação, sendo o mecanismo
reparador, na ausência da responsabilização penal, o mais viável meio para
alcançar a reconciliação social no país pós-ditadura, já que as medidas
reparadoras alcançam níveis diversos de aplicação, abrangendo vários
âmbitos, desde o esclarecimento da verdade e compensação financeira das
vitimas.
O tempo não espera, e já há tempo demais na espera de eficientes
ações. É Preciso alargar o passo.
5. REFERÊNCIAS.
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papel dos direitos decorrentes da transição política para a efetivação do estado
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