8 RELAÇÃO MÉDICO-MÉDICO Neury José Botega O MÉDlCO Apalavra médico vem de medeor, meditor, e significa pensar, entender, julgar, ser inspirado estar entusiasmado. A palavra terapeuta de therapeuin, que significa acompanhar o doente, auxiliando o poder curativo da natureza (Seguin, 1982). As motivações para a escolha da medicina como profissão são de cunho sociológico, econômico e psicológico. Influem o ambiente familiar e o status que a profissão goza na sociedade, trazendo honra, prestígio e gratificação a desejos altruístas de curar os doentes e de atendê-los em suas necessidades. Influem, ainda, uma sociedade que necessita de médicos, os ganhos financeiros que podem ser auferidos com a profissão e a disponibilidade econômica para cursar uma faculdade. Em relação à vocação para a medicina, Seguin (1982) fala-nos de um talento inato, de um "Eros terapêutico", que é algo mais do que um amor humanitário que o médico pode sentir por seu paciente, senão um movimento autêntico para o indivíduo particular que se acha diante dele e que não é um doente, mas um ser humano. Em uma visão psicanalítica, as brincadeiras infantis e seu corolário, as fantasias inconscientes que expressam, são a matéria-prima da fantasia vocacional. No caso do médico, a fantasia primitiva se centraria na esperança e na necessidade de curar e recuperar seus objetos queridos (Langer e Luchina, 1978). Freud, em 1910, já reparara que o brincar de médico satisfazia especialmente impulsos infantis de curiosidade sexual. Posteriormente, sem perder sua intensidade, essa pulsão deslocaria seu alvo para outro objeto, não-sexual. O instinto sexual presta-se bem a isso, já que é dotado de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objeto imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser altamente valorizados. (Freud, 1987, p.72) O brincar de médico também funciona como um jogo de identificações, no qual a criança assume ora o lugar de uma mãe confortadora, que alivia a dor, ora o papel de pai. Neste caso, a brincadeira funciona como uma tentativa de superar ativamente experiências prévias de temor ao pai. A identificação assim obtida reconforta e fortalece a auto-estima. No entanto, esse mecanismo pode, no médico, ser distorcido, exagerado, levando a impulsos agressivos e ao sentimento de onipotência, com incapacidade de reconhecer as próprias limitações e com descaso pelas necessidades do paciente. Continuando dentro de uma visão da psicanálise, sublimação e reparação expiatória (de um sentimento de culpa) são outros mecanismos psicológicos utilizados para lidar com a agressividade. Distúrbios nesses mecanismos podem impedir o médico de controlar seus impulsos agressivos sádicos diante de certos pacientes. Por outro lado, podem ocasionar sentimentos de culpa ou necessidade de expiação que conduzem a atitudes masoquistas. O depoimento seguinte revela algo das vivências de um médico que entrevistamos por ocasião de uma pesquisa sobre atitudes em relação aos aspectos psicológicos da prática médica no hospital geral (Botega, 1989): O que mais me afeta é a mulher que está grávida e rejeita a gravidez ou a criança. Lembro-me de plantões que dava no início da carreira, onde tinha que realizar várias curetagens pós-aborto. Então fazia sem anestesia, como uma parte da punição a uma criminosa. E a gente assumia isto: "Fez aborto?! Agora sofre!". A gente se influenciava pelo ambiente. Mas ao longo do tempo mudei minha atitude, porque ninguém aborta por prazer. Aborto é uma experiência terrível pra mulher. Atualmente sinto pena. Em seu dia-a-dia, o médico atende pais, mães, crianças, pessoas que se assemelham a seus objetos primitivos, mas que também podem representar uma imagem de si mesmo, seja de criança ou de adulto. Em seu inconsciente, seus pacientes podem se confundir com seus entes queridos ou com ele próprio. Por exemplo, certa vez, um médico residente comentou que passara duas horas interrogando "uma mãe desnaturada" que havia entregue sua filha para adoção: Tenho algo semelhante em minha vida. Acabei indo morar com meus avós quando era criança. Achava que minha mãe me abandonara. No fundo, acho que ela devia ter insistido mais comigo ... 1 O "pensar que eu poderia ter nascido ele" é uma idéia que, de tempos em tempos, assalta o profissional de saúde, como veremos no relato a seguir. É uma vivência freqüente, ligada à identificação que fazemos com nossos pacientes: ... Quando a gente pega um paciente jovem com quadro de mielopatia, por exemplo ... O paciente começa a desenvolver uma paraplegia, tetra ... e até chegar a isso lança-se mão de muitas coisas e [...], ou você não consegue por problemas monetários, estrutura do hospital [...], ou consegue tudo isso e não consegue o diagnóstico, por estar além do seu conhecimento. [...] É uma coisa angustiante, e a gente se identifica, acaba vivendo no lugar dele. [...] Pensar que eu poderia ter nascido ele ..." Em uma proporção considerável de casos, O paciente põe o médico em posição, em disposição, inclusive o intima a responder a uma demanda de reparação. O médico, atribuindo-se esse desejo, pode até sentir-se muito valorizado. Os intensos desejos de dependência do paciente encontram guarida em um médico igualmente movido por essas necessidades. Ele passa a atuar, então, "em defesa do paciente": Em tais casos, por sua parte, o médico pede ao paciente que o mantenha em posição: na posição daquele que quer o bem de seu paciente, que quer proporcionar-lhe uma reparação. A fantasia de onipotência subjacente a essa demanda e a essa resposta impõe-se fortemente no determinismo da conduta terapêutica, ainda que possa, também, ser lida como seu reverso: o padecimento pela impotência. (Raimbault, 1985, p.34). Langer e Luchina (1978, p.133-134) referem-se a este aspecto específico da profissão médica: a reparação tem de ser feita tão concretamente, sobre seres humanos tão semelhantes a objetos primitivos, de tal modo que deixa vulnerável quem a exerce: Para poder trabalhar adequadamente, sem sobrecarga de tensão, onipotência ou culpa, o médico necessita afastar-se da fantasia primitiva e elaborá-la. Deverá adquirir maturidade e capacidade de aceitar as limitações impostas pela realidade, de não confundir demasiadamente os enfermos com seus objetos primitivos, nem consigo mesmo, e de poder tolerar a frustração do fracasso, da incurabilidade e da morte do paciente. Se não se alcança isso, a profissão toma-se angustiante, torturante, e deixa obcecado quem a exerce. Alguns médicos sentem-se incomodados com essa demanda emocional dos pacientes e com o risco de se identificarem com eles. Podem, também, se incomodar, e mesmo temer, pacientes psiquiátricos, notadamente os psicóticos, movidos por impulsos sexuais e agressivos. Procuram, então, restringir sua atuação a aspectos técnicos, valendo-se de diversos mecanismos de defesa, notadamente evitação, isolamento de emoções, intelectualização, humor, deslocamento e negação (Millan e cols., 1999). Alguns médicos desenvolvem verdadeiras "couraças protetoras", perdendo a capacidade de se sensibilizar e de utilizar suas reações emocionais como instrumento semiológico. Para se colocarem acima da enfermidade e imunes à morte, alguns médicos constroem um pseudo-sefj, idealizado, mitológico, que, por meio de mecanismos de defesa, os leva próximo do divino (Hoirisch, 1976). Passam a depositar (projetar) suas angústias e seu medo nos pacientes, neles procuram suas respostas e apaziguamento. A falha ou a derrubada desses mecanismos por uma situação clínica difícil ou por um insucesso terapêutico faz o médico defrontar-se com a impotência. E são muitas as impotências vivenciadas: diante da desgraça social, da morte, do paciente que não melhora logo ou daquele "que se queixa sabe-se lá de quê". Seguem, a esse respeito, outros relatos de médicos entrevistados (Botega, 1989): O paciente que me faz mal é o paciente chagásico, porque são pacientes que a gente tem muito pouca coisa a fazer por eles, ou nada. E o tipo de paciente que é um coitado na vida. É revoltante, pois quando eu estava na faculdade e atendia esses pacientes com Chagas, eu pensava o seguinte: "Isso aqui um dia vai acabar ..." E a gente tá, hoje, recebendo pacientes que tô vendo que foram infectados quando eu estava no curso médico. Pra mim, é a angústia de ver logo melhorar o paciente, ter que quebrar a cabeça, ficar em cima dele, esperar ele melhorar ... Cê quer resolver logo e sabe que vai demorar. .. coma hepático, encefalopatia hepática ... Fico muito angustiado com isso ai, não tenho paciência. [...] Eu, como residente, agora tô com uma angústia maior. Era mais feliz quando era interno ... A gente acaba conversando com a família, com os amigos, conta uns casos ... Aquela história, né ..., que médico não pára de falar de medicina nem quando tá passeando. Então, talvez, seja nessa hora que tem a válvula de escape,ficar falando, contar pros amigos os casos dos pacientes ... Eu, por exemplo, conto mais em casa ... 2 O médico atual pode curar um sem-número de patologias, participa de verdadeiros "milagres" da ciência. Mas, se de um lado, o corpo biológico está sendo desvendado e "reparado" cada vez melhor, de outro, alguns médicos percebem que o sofrimento do paciente escapa de suas possibilidades terapêuticas. Na formação médica, as conexões de sentido feitas a respeito das doenças (e do sofrimento) são colocadas sempre fora, na ciência, e não no sujeito. O profissional acaba encontrando muita dificuldade para lidar com qualquer sofrimento que não esteja diretamente relacionado a uma alteração anatômica visível ou explicação fisiopatológica, uma realidade que vem de um mundo de constante visibilidade, circunscrito pelo corpo do paciente. No Capítulo 19, sobre somatizações, vemos como muitos médicos esperam uma queixa principal para orientar o raciocínio clínico, dentro de uma teoria que esclareça e ordene um mundo restrito ao biológico. No extremo oposto, há o risco de uma identificação excessiva com os pacientes atendidos, de acabar sofrendo junto com eles. Às vezes, o profissional identifica-se tanto com uma pessoa enferma que acaba se confundindo com ela. Vai-se entristecendo, sentindo-se abatido, "carregando-a" para casa nos finais de semana, perdendo a sensação de que, afinal, tem o direito à felicidade, independentemente da dor de quem está cuidando. Isso acontece muito com profissionais da saúde e com cuidadores, de modo geral: essa necessidade imperiosa de cuidar do outro, acompanhada de auto-abandono. Pode haver, também, a sensação ilusória de ser insubstituível e um sentimento que mistura desprezo e inveja em relação às pessoas que conseguem viver a vida mais felizes. Chega-se facilmente ao esgotamento, com mau humor constante e depressão. Notadamente, os médicos mais jovens mostram-se angustiados ao se verem, ainda com certo grau de inexperiência e insegurança, colocados diante dos problemas dos pacientes e da instituição assistencial, tendo que responder a uma "demanda de reparação" (Botega, 1989; Nogueira-Martins, 1995; Stella e Nogueira-Martins, 1997). Muitos desses profissionais entram em crise pessoal, chegam ao esgotamento e a vários transtornos mentais, como pode ser melhor visto no Capítulo 10, sobre a saúde mental do profissional de saúde. Outras vezes, o lugar do conflito pessoal, ativado pelo encontro com o paciente, passa a ser projetado em uma instituição cheia de problemas, problemas que, afinal, existem de fato. A impotência para minorar o sofrimento do paciente, muitas vezes, fica sendo "da instituição". Há, também, uma crise de identidade pela qual passa a profissão médica. Mello Filho (1983) vê nessa crise a atuação de diferentes fatores, entre os quais: a fragmentação e a superespecialização da medicina, a despersonalização da assistência médica, o desprestígio da classe, com descenso no status pessoal e social. O médico teria perdido o seu "impacto como pessoa" sobre o paciente, sentindo-se dependente de seus colegas especialistas em termos profissionais e econômicos. Segundo esse autor, observa-se, atualmente, um entrechoque de posições doutrinárias dentro da medicina, e o médico não deixa de se envolver pessoalmente nesse conflito. Assim, à espera de um paciente em crise pela doença e pela hospitalização, encontra-se outro ser também em crise, latente ou manifesta. Crise que o médico precisa conter para tratar outra crise, a do paciente. LIVRO: PRÁTICA PSIQUIÁTRICA NO HOSPITAL GERAL: INTERCONSULTA E EMERGÊNCIA- Neury José Botega... {et al.} - 2ª Ed - Porto Alegre: ARTMED , 2006. 3