arquivo - Cristália

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economia
ENTREVISTA
UMA PATA ENTRE
GARNISÉS
Com estilo discreto, o Laboratório Cristália trilha,
há 42 anos, um caminho diferente da maioria: coloca
suas fichas na inovação, desenvolve e produz metade
dos insumos de que necessita, amplia a participação no
exterior e parte para a profissionalização do negócio
‘A
texto EDUARDO BELO foto PABLO DE SOUSA FOTOGRAFIA
“A GENTE TRABALHA COMO UMA PATA: bota um
6
%
tem sido,
aproximadamente,
o percentual do
faturamento que
o Cristália investe
todos os anos
em pesquisa,
desenvolvimento
e inovação
8 6 brasileiros.com.br
ovo grande e não faz estardalhaço, num mundo de muito garnisé.” Essa é apenas uma das
várias metáforas que pontuam as conversas de
Ogari Pacheco, criador e presidente do Laboratório Cristália. Mas é talvez a que melhor ilustre seu estilo à frente do laboratório conhecido
por ser o mais inovador do Brasil. Pacheco não
gosta de barulho. Só muito recentemente adotou o estilo low profile. Antes era “no profile”.
Tem sido assim há 42 anos. Esse paulistano
criado no interior, silencioso como um mineiro – ou uma pata –, tem relegado seus feitos à
discrição, enquanto muitos cacarejam pequenas realizações.
O laboratório nasceu de uma louca ousadia.
Recém-formado, depois da residência no Hospital das Clínicas de São Paulo, Pacheco foi
clinicar em Itapira, no interior paulista. A clínica que dividia com um colega foi batizada de
Cristália – e ainda funciona. Ao mesmo tempo,
passou a trabalhar em um hospital psiquiátrico.
Com divergências em relação à direção, ele e
outros médicos deixaram o emprego. Os colegas
o chamaram para assumir o comando de outro
hospital do mesmo gênero. Achavam que ele
levava jeito para o negócio. Aceitou reticente.
Com o tempo, propôs que passassem a fabricar os medicamentos utilizados. Os remédios
representavam 6% do custo hospitalar.
Quase foi internado ali mesmo, mas conseguiu convencer os sócios. O pequeno laboratório
agosto 2014
produzia muito além do volume absorvido pelo
hospital. Era preciso vender o excedente. Foi
contratado um experiente representante de
vendas, e os resultados começaram a aparecer
depressa, mas o rapaz morreu em um acidente
de carro. O próprio doutor Pacheco assumiu
a função. Começou a participar de licitações
públicas. Mesmo sem experiência, alcançou
volume de vendas que justificasse a escala
industrial e acabou sendo obrigado a produzir cada vez mais.
Pacheco imprimiu seu estilo ao negócio.
E seu estilo é fazer diferente da maioria. Foi
assim que o laboratório passou a atacar segmentos não ocupados. Com faturamento de
R$ 1,4 bilhão em 2013 (16,5% maior que no
ano anterior), quatro laboratórios (dois em São
Paulo e dois em Itapira), 2.500 funcionários e 74
patentes registradas, o Cristália produz metade
dos insumos que usa, enquanto o restante da
indústria estabelecida no Brasil importa 90%
das necessidades.
Primeiro laboratório nacional certificado
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) para produzir insumos farmacêuticos
a partir da biotecnologia, o Cristália exporta
para mais de 30 países e está em vias de obter
a certificação da agência reguladora dos Estados Unidos – o que deve abrir os mercados
americano e europeu. É o principal fornecedor de anestésico hospitalar do País e fabrica
remédios para o tratamento de AIDS e câncer.
Possui parcerias com outros laboratórios e participa de consórcios para atender programas
oficiais específicos. Integra a Orygen Biotecnologia, sociedade com Biolab e Eurofarma,
criada para produzir medicamentos biossimilares, e o Supera, também com a Eurofarma.
De fala pausada, prudente e eivada de
neologismos, quatro filhos, 76 anos, o doutor
Pacheco sai de casa todos os dias pouco depois
das seis da manhã. Divide seu expediente
entre o conjunto de laboratórios em Itapira e
a sede da empresa, no Morumbi, zona sul da
capital paulista. Frequentemente viaja pelo
Brasil, mas se esforça para dormir todas as
noites em casa, em Campinas. Fã de esportes,
em especial do futebol, que jogava de cinco
a seis vezes por semana na juventude, dorme por volta das 22 horas, menos quando o
Corinthians joga à noite. Acompanha as partidas do clube com fervor, a menos que um
desastre se insinue. “Se me der um desprazer
de levar 7 a 1, desligo a TV antes...”
No dia 23 de julho, Pacheco recebeu a
reportagem da Brasileiros em seu escritório do
Morumbi, para a entrevista, na qual contornou
perguntas sobre detalhes do negócio e esquivou-se com elegância de falar dos concorrentes e dos problemas da economia brasileira.
COUVE OU
CARVALHO?
Opção de Ogari
Pacheco, presidente
do Cristália, foi por
semear uma árvore
sólida e duradoura
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economia | entrevista
“Não era difícil concluir que, ao produzir
Brasileiros – O Cristália é muito conhecido por ser inovador, característica rara entre os laboratórios farmacêuticos do Brasil. Por que inovar
em um mercado que o normal é copiar?
Ogari Pacheco – É uma questão de filosofia. Eu estabeleceria uma
comparação, uma metáfora muito conhecida, a da couve e o carvalho.
Escolhemos plantar carvalho. Quem vê agora o Cristália obtendo resultado com vários produtos inovadores sem muito estardalhaço, desconhece que trabalhamos há cerca de 30 anos no campo da farmoquímica
e 15 no da biotecnologia. Os frutos estão surgindo agora de algo que foi
semeado há muito tempo.
Por que essa escolha?
Não era muito difícil concluir que produzir genéricos, por exemplo,
seria muito mais simples e rentável. Porém, que isso ia levar todo mundo para o mesmo caminho e acabar em uma disputa canibalesca, como
está ocorrendo agora... Não tenho nada contra a
produção de genéricos. Mas é difícil defendê-la.
Qualquer um pode fazer. Nós escolhemos pro- US$
duzir aquilo que era mais difícil, exatamente
BI
para ser menos atacável, menos canibalizável.
é o déficit anual da
O País importa princípios ativos barbaramente.
balança comercial
O déficit da balança comercial em farmoquíbrasileira em
farmoquímicos e
micos e medicamentos é de US$ 13 bilhões.
medicamentos. O País
O Brasil não faz nem 10% do que consome, e
produz apenas 10%
o que faz é insumo corriqueiro. Escolhemos
do volume de insumos
tentar produzir Insumos Farmacêuticos Ativos
que a indústria
(IFAs), produzir princípios ativos não disponído setor necessita
veis facilmente no mercado há 30 anos. Tivemos
de formar mão de obra para produzir as matérias-primas. Com isso, hoje a gente consegue ter um grupo de produtos
exclusivos ou semiexclusivos, que são menos facilmente canibalizados.
13
Mas o Cristália também produz genéricos...
Genéricos, para nós, é ponta de linha. Como trabalho com fornecimento
de medicamentos a hospitais, o hospital precisa de determinado produto para complementar anestesia. A gente produz como complemento, como parte do pacote.
Esse caminho que o Cristália escolheu lhe permite concorrer com
grandes laboratórios internacionais?
Cometemos uma sucessão de erros. Por sorte, cometemos erros. Quando
bolamos o laboratório, foi para baixar o custo operacional dos hospitais. Não tínhamos experiência em fabricar
medicamentos. Fizemos um laboratoriozinho pequeno.
O primeiro erro foi que esse laboratório produzia muito mais do que os hospitais consumiam.
Fiquei com um pepino na mão. Tinha um excedente de produção e tinha de vender. Só que a
gente não sabia vender. Passamos a participar
de licitações públicas, que era o caminho mais
fácil de colocar o produto, uma vez que não
tínhamos a máquina comercial. E cometemos
alguns outros erros. Quando a gente ia participar
de uma licitação, vamos supor, de cem unidades, um número hipotético, era lógico racionar
que eu devia cotar mais do que cem, porque não
iria ganhar tudo. Catávamos 150. Ganhávamos
130, mas tínhamos capacidade para produzir
apenas cem. Erro de cálculo. Tinha de comprar
equipamento para fazer o que faltava. No ano
seguinte, cotava mais e ganhava mais. Em oito
anos, éramos um dos maiores fornecedores de
licitação, pela sucessão de erros...
Por que se inova tão pouco no Brasil?
Porque é muito mais fácil copiar, além de ser
rentável. É a lei do mínimo esforço. Para que
vou batalhar e ficar inventando moda se tenho
rentabilidade interessante copiando o que existe? Simples assim.
Sua resposta dá a entender que essa é uma
característica do seu setor, mas a indústria
brasileira como um todo é muito pouco inovadora e em alguns segmentos nem sequer
copia. Existe explicação para isso? Em que o
Cristália pode servir de exemplo para outros
setores que também poderiam inovar?
Eu posso responder no campo farmacêutico, que
cresceu, e cresceu muito, estimulado pela lei
dos genéricos. Até então, copiava-se e vendia-se por meio de uma política comercial agressiva, forma eufêmica de dizer “empurroterapia”.
Com o advento da lei dos genéricos, foi preciso copiar tecnicamente bem. Os genéricos têm
uma formulação boa. O brasileiro sabe fazer
bem a imensa maioria dos produtos disponíveis no mundo e os copia bem. O homem inova,
De vez em quando o mundo é varrido por
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genéricos, o setor sofreria canibalismo
inventa, desde que desceu das árvores. Quando
aprendeu a trabalhar com fogo, quando desenvolveu a flecha, o arco, a roda, estava inventando. Invenção é coisa de todo dia. Só que de
vez em quando o mundo é varrido por modismos. Agora, inovação é o tema, como se não
existisse. Existiu sempre. O que foi a caldeira
se não o que possibilitou à locomotiva andar?
Inovação pura. O que Santos Dumont fez com
o Demoiselle? Decorreram menos de cem anos
entre o Demoiselle e a chegada à Lua, um ritmo
alucinante de inovação. Portanto, ocorre isso
no dia a dia. Agora, por trás da inovação, há o
estímulo. E ele tem muito de econômico. Se o
indivíduo ganha tudo facilmente, ele tem pouco
estímulo para produzir coisas novas. Isso vale
para o indivíduo, para a empresa, para o País.
A Arábia Saudita está em cima de um oceano de petróleo. Tem dinheiro para caramba.
Não obstante, o desenvolvimento tecnológico,
industrial, é pequeno.
Quem cuida dos estímulos no Cristália
para mantê-lo no caminho da inovação?
Podia, eufemicamente, dizer: “O conselho decide, é política do conselho”. É de fato política
do conselho, mas se eu disser que não interfiro,
estaria mentindo. Com certeza, estou envolvido na decisão.
O laboratório investe quanto em inovação?
Antigamente, era um percentual do faturamento. Continua assim?
O percentual caiu, porque aumentou o faturamento. Invisto na medida da necessidade.
Hoje, por exemplo, gira em torno de 6%. Já foi
mais. Com o crescimento do faturamento, caiu
um pouco o percentual, mas, nominalmente,
o volume é maior. Não tenho a menor intenção de pretender ditar regra nem dizer qual o
caminho. Estou dizendo o que faço. Consegui
convencer os acionistas a distribuir apenas
10% do lucro. É suficiente para todo mundo
viver bem. Os 90% ficam retidos para investir
no desenvolvimento da empresa e de projetos. Por isso,
o Cristália é uma empresa capitalizada. Muitas pessoas
me perguntam: “Você não está interessado em fazer um
IPO (Oferta Inicial de Ações, na sigla em inglês)?”. Quando for necessário pegar dinheiro no mercado, acho que o IPO é um bom caminho. Mas
até agora não tem sido necessário. Somos uma empresa capitalizada em
busca de projetos, e não uma empresa com ideias em busca de dinheiro.
A empresa pode continuar a crescer no ritmo atual?
Nosso projeto é acelerar o crescimento, de forma bem equacionada. Não
precisamos fazer loucuras. Está indo muito bem, obrigado.
Qual é o foco desse crescimento?
Temos suporte em um tripé. Primeiro Pesquisa, Desenvolvimento e
Inovação (P&D&I), para desenvolvimento de novas moléculas, novas
fórmulas. Na farmoquímica e na biotecnologia, para produzir os insumos necessários à
produção. De um lado, produzo os insumos
que preciso. De outro, com esses insumos,
patentes já foram
desenvolvo os produtos que vão impulsionar
registradas pelo
a empresa e vão se transformar em medicaCristália. O
laboratório investe
mentos na prateleira da farmácia. Com uma
em princípios ativos
vantagem: a farmoquímica e a biotecnologia
para combate ao vírus
trabalham dirigidamente. Tentam desenvolda AIDS e também
ver o que eu preciso. Não é moto próprio. Se
em medicamentos
tiver uma ideia muito boa, por que não? Mas
voltados para o
tratamento do câncer
a prioridade é o que necessitamos.
74
Qual tem sido a taxa de êxito?
O índice é muito bom. Não posso me queixar de forma alguma. Claro
que quem trabalha com pesquisa tem de saber que algumas coisas não
vão dar certo. Nós não somos deuses. Mas o índice de sucesso tem sido
bastante aceitável.
Adquirir outros laboratórios faz parte da estratégia de crescimento?
Eu não fecho olhos à oportunidade e não faço loucuras. Às vezes me
oferecem, já me ofereceram, empresas que não eram suficientemente
atrativas. E já houve empresas que nos interessaram e nós adquirimos...
O processo de negociação está sempre aberto.
O Cristália já participa do mercado internacional, está em mais
de 30 países e tem a perspectiva de obter a certificação para o
mercado americano. Isso vai mudar a escala de participação do
laboratório no exterior?
modismos. Agora, inovação é o tema”
brasileiros.com.br 8 9
economia | entrevista
“Consegui convencer os acionistas
a distribuir apenas 10% do lucro.
Os 90% ficam retidos para investir
Temos buscado certa modificação no sistema de atuar. Vender medicamentos, e vendemos em vários países, é interessante, mas mais interessante é se a gente conseguir vender inteligência, tecnologia, e isso
estamos agora começando a fazer. É dessa maneira que a gente pretende estender nossa atuação. Isso multiplica a participação.
Em que tipo de medicamento?
Antirretrovirais foi a primeira incursão. A segunda é de citostáticos,
medicamentos para câncer.
Em que países?
Como são negócios em andamento, prefiro declinar posteriormente.
O senhor pensa em acessar o mercado da
Europa, Estados Unidos e Japão?
Existem negociações em andamento.
Isso tem prazo para ocorrer?
Isso não é como gravidez, que tem data definida para nascer. É quase como semear:
dependendo das condições climáticas, pode
brotar antes ou depois. Mas eu me refiro à
Europa. Japão não. Não surgiram oportunidades ainda.
R$
1,4
BI
foi o faturamento
registrado pelo
laboratório em
2013, valor cerca
de 16,5% maior
que o obtido no
exercício anterior
A eventual entrada nesses mercados muda a escala? O laboratório começa a se tornar um competidor global?
Costumo raciocinar step by step. Costumo sonhar, sim, mas com os pés
no chão. Não faço parte do time que come mortadela e arrota peru. Isso
você encontra muito por aí...
Em sua filosofia de passo a passo também se inclui a profissionalização da gestão que o senhor vem implementando?
Nesse caso, sim, o parto tem data marcada. Eu tenho de aproveitar as
condições físicas que ainda tenho para concluir o processo de profissionalização da empresa. Portanto, tenho alguns anos...
Quantos anos?
Com certeza não chega a cinco anos.
O Brasil é um país tradicionalmente de empresas familiares.
Por que profissionalizar uma companhia tão marcada com a
sua personalidade?
Primeiro, porque não sou eterno. E segundo porque não sou eterno.
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agosto 2014
Só por isso?
Acho um motivo razoável.
Não é? Clone só existe na
biotech.
A profissionalização já trouxe algum resultado visível para a empresa?
Opa! Muitos. Ela está muito melhor com minha
atuação reduzida. Eles estão conseguindo
melhorar muito.
O senhor é um médico que se transformou
em gestor. Como foi esse aprendizado?
Na realidade, fiz Medicina, mais especificamente cirurgia, aprendi a operar. Fui para o
interior para montar uma clínica. Poucos anos
depois, fui convidado para fazer parte de um
grupo para montar um hospital de psiquiatria.
Não entendo nada de psiquiatria. Não havia
porque eu entrar. Eles insistiram: “Você tem
jeito para o negócio”. Jeito para o negócio eu
nem sabia o que vinha a ser. O fato era que eu
devia ter mesmo jeito para o negócio, porque
o hospital deu certo, acabou virando laboratório. Fui aprendendo...
Olhando como gestor, como o senhor enxerga a economia brasileira.
(Longa pausa) O País tem enormes possibilidades, enorme potencial e tem carecido de
uma gestão adequada. Não quero polemizar
nem ofender ninguém, mas o Brasil merecia
uma gestão melhor. Com uma gestão adequada, meu Deus do céu! As possibilidades são
imensas. Porém, hoje, você está me perguntando sobre a economia atual, e eu tenho de
responder sobre o mundo em que vivemos,
não com o que sonhamos. E no mundo em
que vivemos, vamos nos desenvolver mais
lentamente do que poderíamos, por várias
razões. Até porque a economia mundial está
um tanto quanto lentificada. Mas sou um otimista incorrigível. Acho que vai dar certo.
Mas vai demorar...
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