Texto de apoio ao curso de Especialização Atividade física adaptada e saúde Prof. Dr. Luzimar Teixeira Hepatite Autoimune Stéfano Gonçalves Jorge INTRODUÇÃO A hepatite autoimune (HAI) é uma doença causada por um distúrbio do sistema imunológico, que passa a reconhecer as células do fígado (principalmente hepatócitos) como estranhas e desencadeia uma inflamação crônica e destruição progressiva das mesmas. Cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, colangite autoimune e outras hepatopatias crônicas que têm bases imunológicas, pelas suas manifestações colestáticas e pela resposta insatisfatória à corticoterapia, são consideradas à parte. Mesmo a HAI provavelmente é um conjunto de doenças diferentes, como pode-se observar pelas manifestações, achados laboratoriais, evolução e resposta ao tratamento tão distintos que o diagnóstico faz-se por meio de um sistema de score (pontuação) e há descrições de subtipos diferentes de hepatites autoimunes, descritos abaixo. Para melhor compreender a HAI, é necessário entender alguns termos: • • • • • • • • anticorpos são substâncias produzidas pelo sistema imunológico para destruir vírus, bactérias e outros agentes nocivos; para produzir anticorpos, o sistema imune precisa reconhecer esse agente nocivo como estranho ao organismo; praticamente todas as substâncias têm moléculas em sua superfície que podem ser analisadas pelas nossas células do nosso sistema imune; ao encontrar um antígeno, nosso sistema têm a capacidade de diferenciar o que é nosso e normal do que é estranho e deve ser eliminado (nesse caso, chamamos essas moléculas que deflagram a imunidade de antígenos); nas doenças autoimunes, nosso sistema imunológico reconhece como antígenos (auto-antígenos) componentes de alguma de nossas células normais (no caso da HAI, componentes dos hepatócitos); esse erro pode ser causado por uma bactéria, substância tóxica ou vírus que têm, em sua superfície, um antígeno muito semelhante a algum componente de nossas células (o que acaba "confundindo" o sistema imunológico) - chamamos esses agentes de gatilhos; após esse erro, o organismo passa a produzir anticorpos (auto-anticorpos) contra células específicas, levando a uma doença auto-imune. geralmente, o tratamento é baseado em suprimir o sistema imunológico, não tratando a causa da doença, uma vez que não temos ainda como alterar esse erro. DIAGNÓSTICO A hepatite autoimune é caracterizada por: • anticorpos contra pontos específicos dos hepatócitos (nucleares, citosólicos ou microssomais); • • • • • aumento nas gamaglobulinas (proteínas do sistema imunológico), especialmente a IgG; pelo menos hepatite de interface (necrose em saca-bocado ou hepatite periportal) à biópsia hepática; melhora com a corticoterapia; os primeiros sintomas surgem em períodos de exacerbação da doença, podendo ser fatais; ausência de achados clínicos ou laboratoriais que indiquem outra causa para a hepatite além da HAI. Como não há um exame específico para a HAI, o diagnóstico é baseado em um score (sistema de pontos), onde características da HAI "ganham" pontos e características que sugiram outras causas "perdem" pontos. Antes do tratamento, pontuação maior de 15 significa diagnóstico de certeza e de 10 a 15 seria uma "provável" HAI. Como uma das características da HAI é a melhora com a corticoterapia, há pontuação após o tratamento: acima de 17, certeza e entre 12 e 17 provável. Essa diferenciação existe porque precisamos de um diagnóstico provável ou de certeza para começar um tratamento. Se esse tratamento não surtir nenhum efeito benéfico, é pouco provável que o diagnóstico de HAI esteja correto. Score Diagnóstico para HAI Gênero feminino Marcadores virais +2 Fenótipos HLA IgM anti-HAV ou HBsAg -3 B8-DR3 ou DR4 +1 Fosfatase alcalina / AST HCV RNA -3 Resposta tratamento > 3 vezes -2 anti-HCV / RIBA -2 completa +2 < 3 vezes +2 todos negativos +3 parcial 0 falência 0 ao Gamaglobulina ou IgG Hemotransfusão > 2,0 vezes +3 sim -2 sem resposta -2 1,5 - 2,0 vezes +2 não +1 recaídas +3 1,0 - 1,5 vezes +1 Álcool - - < 1,0 vezes 0 < 25 g/d +2 - - ANA, SMA ou anti-LKM1 > 60 g/d -2 - - > 1:80 +3 Outra doença autoimune - - 1:80 +2 paciente ou parente 1:40 +1 Achados histopatológicos < 1:20 0 hepatite lobular e necrose em +3 ponte Pré-tratamento Anticorpo mitocôndria anti- necrose em ponte +2 definitivo > 15 positivo -2 rosetas +1 provável 10-15 infiltrado plasmocitário intenso +1 Pós-tratamento Drogas +1 Score Diagnóstico sim -2 alterações biliares -1 definitivo > 17 não +1 alt. sugest. de outra patologia -3 provável 12-17 CLASSIFICAÇÃO São descritos 3 subtipos de HAI, com características laboratoriais e clínicas diferentes, mas o tratamento é idêntico. No futuro, é possível que cada um deles tenha um tratamento específico para a sua causa, com melhores resultados. Subtipos da HAI Tipo 1 (80%) Tipo 2 (4%) Tipo 3 (3%) Auto-anticorpos característicos ANA, AML Anti-LKM1 Anti-SLA/LP Auto-anticorpos associados Anti-actina, pANCA Anti-LC1 ANA, AML Autoantígenos desconhecido P450 IID6 (CYP2D6) tRNP Idade 16-30 anos 2-14 anos 20-40 anos Gênero Feminino (70%) Feminino Feminino (91%) Tireoidite autoimune Tireoidite autoimune Diabetes Sinovite Sinovite Doenças imunológicas comuns Vitiligo Colite ulcerativa Colite ulcerativa Tireoidite autoimune Doença de Graves Doença de Graves Aparecimento agudo 40% Comum Comum HLAs associados DR3, DR4 B14, DR3 DR3 Alelos susceptíveis DRB1*0301, DBR1*0401 C4A-QO, DRB1*07 desconhecido Hepatite fulminante Sim Sim - Rápida Sim Cirrose aos primeiros sintomas Sim (25%) Tratamento Prednisona com ou sem azatioprina ANA ( anticorpo antinúcleo ); AML ( anti músculo liso ); Anti-LKM1 ( microssomo fígado/rim 1 ); antiSLA/LP ( anti antígeno solúvel hepático/fígado pâncreas ); anti-LC1 ( anti citosol hepático tipo 1 ); pANCA ( anticorpos citoplasmáticos anti-neutrofílicos perinucleares ). Essa divisão em três subtipos procura apenas agrupar características semelhantes laboratoriais e clínicas, mas não é definitiva. Os auto-anticorpos descritos em cada um deles pode existir nos demais. Se dividirmos a HAI pelo auto-anticorpo encontrado, teremos outras classificações. Auto-anticorpos associados à HAI Auto-anticorpos Auto-antígenos ANA Histonas, ribonucleoproteínas AML Componentes actínicos e não actínicos HAI tipo 1 Anti-LKM1 P450 IID6 (CYP2D6) Anti-SLA/LP* tRNP HAI tipo 1, tipo 3 e hepatite crônica criptogênica pANCA Desconhecido HAI tipo 1 criptogênica Receptor asialoglicoproteína* Glicoproteína transmembrana Actina* Actina polimerizada F Anti-LC1* Formiminotranferase, ciclodeaminase, HAI tipo 2, doença em mais jovens e argininosuccinatoliase mais agressiva (ser)sec Implicações Clínicas centrômeros, HAI tipo 1 HAI tipo 2 e Síndrome autoimune poliglandular tipo 1 e hepatite crônica hepatocítica Todas as HAI, reflete atividade da doença e tendência a recidiva HAI tipo 1, doença em mais jovens e baixa freqüência de remissão * em estudo ou de uso limitado Portanto, essas subdivisões têm função didática (para ensino) e científica (para comparar tratamentos e investigar as causas da doença). Não há utilidade do ponto de vista prático. TRATAMENTO A prednisona, sozinha ou em associação com a azatioprina, produz remissão (normalização) clínica, bioquímica e histológica em 65% dos portadores de hepatite autoimune severa dentro de 2 anos. A expectativa de vida após tratamento em 10 e 20 anos são acima de 80% e é igual à da população da mesma região, idade e sexo. Portadores de doença com o mesmo grau de agressividade, se não tratados, têm uma mortalidade de 50% em 3 anos e 90% em 10 anos. O risco-benefício da corticoterapia (uso de corticosteróides, como a prednisona) em portadores de doença mais leve não é tão clara. A cirrose se desenvolve em 49% em 15 anos e a mortalidade em 10 anos é de 10%. Com essa evolução mais lenta, o custo-benefício do tratamento deve ser bem avaliado. Mudanças cosméticas (espinhas, aumento de peso) ocorrem em 80% dos pacientes em 1 ano de tratamento. O risco de câncer (fora do fígado) com a corticoterapia é 1,4 vezes o normal. Consideramos como indicações absolutas de tratamento (onde ele é necessário): • • • sintomas incapacitantes; elevação constante e alta de transaminases ( AST e ALT ) e gama-globulinas; necrose em ponte ou multilobular na biópsia. Consideramos como indicações relativas (aonde ele possivelmente é necessário): • • • sintomas moderados; alterações laboratoriais; evidências de progressão da doença. Indicações de Tratamento Absolutas Relativas Nenhuma AST constantemente acima de 10 AST menor que 10 vezes o normal vezes o normal Alteração mínima de AST ou gamaglobulina AST constantemente acima de 5 e AST constantemente acima de 5 Sintomas gamaglobulinas constantemente acima vezes o normal, mas gamaglobulinas ausentes de 2 vezes o normal abaixo de 2 vezes mínimos ou Necrose em ponte Hepatite periportal Cirrose inativa Necrose multilobular Sintomas leves a especialmente fadiga Sintomas incapacitantes - Morbidades que podem piorar com o tratamento Progressão da doença - - moderados, Insuficiência hepática com atividade inflamatória leve O tratamento da hepatite autoimune é realizado com prednisona (20 mg por dia) ou prednisona (10 mg por dia) em associação com azatioprina (50 mg por dia), conforme tabela abaixo. O tratamento combinado é preferível, pois está associado a menor incidência de efeitos colaterais (10%) que a prednisona sozinha (44%). Esquema de tratamento Início do tratamento Intervalos pred + aza (mg) pred (mg) Interrupção do tratamento pred + aza (mg) pred (mg) Semana 1 30 + 50 60 7,5 + 50 15 Semana 2 20 + 50 40 7,5 + 50 10 Semana 3 15 + 50 30 5 + 50 5 Semana 4 15 + 50 30 5 + 25 5 Semana 5 10 + 50 20 2,5 + 25 2,5 Semana 6 manutenção manutenção 2,5 + 25 2,5 Semana 7 manutenção manutenção - - A escolha do esquema depende, portanto, de diversos fatores: Contra-indicações relativas por medicação Prednisona Prednisona + azatioprina Pós-menopausa Citopenia Osteopenia Neoplasia ativa Labilidade emocional Gravidez ou desejo de engravidar Acne ou sinais cushingóides Intolerância a azatioprina Obesidade Baixa atividade da tiopurina metiltransferase Hipertensão arterial lábil Tentativa de tratamento curta ( < 6 meses ) Diabetes - O tratamento é mantido até remissão ("cura") clínica, bioquímica e histológica, toxicidade pelas drogas, falência do tratamento ou inabilidade de remissão após 3 anos de tratamento ( resposta incompleta ). Mesmo após a normalização dos exames laboratoriais, a melhora histológica pode demorar mais 3 a 6 meses, portanto á necessária uma biópsia para avaliar a melhora histológica antes de interromper o tratamento, diminuindo os riscos de reativação da doença. A retirada da medicação também deve ser feita de forma gradual, em 6 semanas. Alternativas de tratamento em situações especiais Situação Opções Primeira recidiva após Retratamento com o esquema tradicional retirada da medicação Reduzir lentamente a dose de prednisona de modo a manter a mínima dose Múltiplas recidivas após necessária para sustentar AST < 5 vezes o normal retirada da medicação Azatioprina (2 mg/kg dia) indefinidamente após a retirada da prednisona Altas doses de prednisona (60 mg dia) por 1 mês ou prednisona 30 + azatioprina 150 por 1 mês seguidas de redução mensal até dose convencional apenas se houver melhora laboratorial Falência de tratamento Tratamentos empíricos, de eficácia micofenolato mofetil ou ciclosporina) duvidosa (6-mercaptopurina, Transplante hepático se descompensação apesar do tratamento Resposta incompleta após Prednisona em baixas doses ou azatioprina indefinidamente 3 anos de tratamento Transplante ao primeiro sinal de descompensação (ascite) contínuo Redução ou retirada da droga, dependendo da gravidade Toxicidade pelas drogas Manutenção com a droga tolerável Tratamento com drogas alternativas (6-mercaptopurina, micofenolato mofetil ou ciclosporina) Recidivas Recidivas ocorrem em 49% dos pacientes dentro de 6 meses da retirada do tratamento e em 74% em 3 anos, pois a causa da doença não é resolvida. Nesses casos, o tratamento é reiniciado. Essas pessoas que têm recidiva são mais predispostas a novas recidivas e progressão mais rápida da doença. Por esse motivo, aqueles que têm múltiplas recidivas podem ter um tratamento alternativo (abaixo), com bons resultados, sem alteração na sobrevida. Falência do tratamento É a deterioração clínica, laboratorial e/ou histológica mesmo com o tratamento adequado. Utiliza-se então altas doses de prednisona e azatioprina, com melhora laboratorial em 75% em 2 anos, mas com melhora histológica em apenas 20%. Outros tratamentos, como 6-mercaptopurina, ciclosporina e tacrolimus não são adequados. O melhor tratamento para aqueles com falência terapêutica é o transplante hepático. A sobrevida em 5 anos é de 80% e os autoanticorpos e a hipergamaglobulinemia desaparece em todos os pacientes em 2 anos. Pode haver recidiva da doença em 17%, mas nesses raramente a recidiva leva a cirrose ou perda do fígado transplantado.