Número 15 – Janeiro / Junho – 2005 - ISSN 2179 5215 JAMMÁWA-ARARA: ABORDAGEM ETNOGRÁFICA PRELIMINAR Emerson Carvalho de Souza1 1 Prof. MSc em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás. Introdução A comunidade Jamináwa-Arara localiza-se hoje na Aldeia de São Sebastião, à margem esquerda do Rio Bagé, afluente do Rio Tejo no estado do Acre, na região do alto Juruá, próximo à cidade de Marechal Thaumaturgo. Constam em literaturas que a primeira notícia que se tem sobre a localização dos JamináwaArara, data do início do séc XX, nas proximidades do Rio Tejo. Realizaram, contudo, uma série de migrações ao longo da região registradas por viajantes, geógrafos, entre outros, ora fugindo de tentativas de escravização, ora de conflitos com seringueiros, os quais "contratavam" seus serviços. Durante muito tempo, o grupo Jamináwa-Arara foi forçado a trabalhar nos seringais em condições subumanas. Essa, entre tantos outros tipos de violência sofrida por tal etnia, fez com que muitas mulheres migrassem para Rio Branco, capital do estado, para viverem como profissionais do sexo, outras vivem, ainda nas ruas, sobrevivendo apenas de esmolas. Atualmente podemos contar mais de 100 indivíduos nessa condição pela capital do Estado. O total da população da aldeia de São Sebastião é de 42 pessoas, pelo que pude averiguar no período de 25 de fevereiro até 20 de março, junto aos membros da comunidade. Ainda, algumas pessoas na comunidade são consideradas Nauá, ou seja, brancos e mestiços (não índios que se casam com mulheres ou homens Jamináwa-Arara). As informações do "censo" foram coletadas tomando como referência os habitantes de cada casa da aldeia. A aldeia São Sebastião conta com casas dispostas, em sua maioria, espalhadas pela região, sem um rigor de estarem frente a frente ou em círculo. Não há um estilo único de construção, contudo parece está sendo introduzido um padrão novo nas casas, pois observamos a divisão de interiores em algumas residências.Todavia, todos utilizam tronco de paxiúba e as cobrem com palha de buriti. Já na escola da aldeia, o telhado é feito de zinco e as paredes são de tábuas. A aldeia Jamináwa- Arara, que nos dias atuais ainda guarda traços do passado, assemelha-se às outras comunidades do Estado do Acre, ou seja, muitas etnias indígenas da região apresentam uma forma de organização semelhante aos habitantes da comunidade de São Sebastião. 103 Número 15 – Janeiro / Junho – 2005 - ISSN 2179 5215 A questão da identidade étnica A língua do Jamináwa-Arara apresenta traços da língua Jamináwa também da língua Arara. Ambas pertencem à família lingüística Pano. Segundo a classificação de Rodrigues (1986), essa família inclui outras línguas como Kaxinawá, Shanenawá, Katukina, Náwa, Nukini, entre outras. A língua Nukini já é quase extinta, não constando com mais documentação do que simples lista de palavras coletadas aleatoriamente. As demais contam com estudos descritivos em andamento. Com respeito à questão da confirmação ou redefinição do tipo de parentesco existente entre o Jamináwa-Arara e os Jamináwa e ainda os Arara, não pude obter, com os auxiliares de pesquisa, um esclarecimento ou uma afirmação que não deixe margem à dúvida. Os Jamináwa-Arara, no mesmo tempo em que se dizem diferentes do Jamináwa, dos Arara e não índios, conforme pude documentar em entrevistas, também se consideram semelhantes a todos os demais seres humanos, como foi registrado em suas narrativas míticas, e em especial na definição de seu criador, espécie de um herói mítico, "pai de todos nós". "Um dia, um homem, um velhinho, matava várias espécies de animais, veado, queixada, cotia. Depois de um tempo, de matar vários bichos, o velhinho guardou todos num saco. Numa certa manhã, todos os bichos se transformaram numa nação e foram embora despedindo do velhinho como se fosse um pai. Os índios andaram, andaram e chegaram até um grande lago (rio Solimões) e não havia jeito de atravessar. Então boiou no lago um enorme jacaré que ia de um lado ao outro e disse para os índios matarem animais para ele comer, pois estava com fome e, desse modo, fazendo isso, ele deixaria todos atravessarem em suas costas. Muitos saíram para caçar. Um índio, meio bravo, matou um jacaré pequeno. Logo depois, o jacaré cantou uma música, dizendo que não precisava matar mais bichos, e todos podiam levar para ele comer. As pessoas deixavam a comida e iam atravessando nas costas bicho. Quando o jacaré grande viu o jacaré pequeno, ficou com raiva de ter matado seu parente e derrubou as pessoas que estavam atravessando e comeu todas. O jacaré afundou e as pessoas que já haviam atravessado pelas costas do jacaré não conseguiram voltar e os irmãos ficaram separados." Portanto, segundo a interpretação dos indígenas, o velhinho" é o pai de todos os seres humanos, que, a princípio, eram todos iguais. As diferenciações começam a existir quando, o homem ou nação, mata um parente jacaré pequeno) do jacaré grande (espécie de mediador entre o bem e o mal). Surgem, então, os brancos por oposição aos índios; e as nações que não conseguem atravessar ficando junto ao velhinho, formam a família do grupo Pano, e os que atravessam formam os índios bravos e os demais indígenas. Assim, os que ficaram junto ao "velhinho" formaram Pano, os que não ficaram tornaram-se brancos ou outros índios, falando línguas diferentes. Desse modo, surgem também a distinção entre as línguas indígenas Pano, outras línguas, inclusive as ocidentais, Entretanto, mesmo assim, o velhinho continua sendo para os Jamináwa-Arara o "pai de todos nós", índios e não índios. 104 Número 15 – Janeiro / Junho – 2005 - ISSN 2179 5215 Tal situação notoriamente paradoxal envolve a identidade étnica (ser e não ser índio) no discurso; isso se estende para considerações metalingüísticas. Se, por um lado, no trato do discurso de igualar-se/mostrar-se semelhante a todos os povos, encontrei, por vezes, testemunhos de que as línguas dos povos Jamináwa, Arara e Jamináwa-Arara são línguas muito parecidas com pouca diferença entre si. Podemos observar por exemplo, as partes do corpo humano: /bapú/ cabeça, /shutá/ dente, /ronski/ pênis. Todas essas palavras são compartilhadas pelas duas etnias que se encontram em contato. Por outro, quando no contexto de mostrar as peculiaridades/ diferenças que caracterizam os Jamináwa encontrei tão somente a confirmação de que Jamináwa e Arara são completamente diferentes e que, inclusive, não há qualquer entendimento entre os falantes das duas línguas, que, além disso, não se consideram parentes e que a formação do grupo Jamináwa -Arara envolve questões políticas, as quais não tive acesso naquele momento. Vejamos: Português Jamináwa-Arara Arara Cachorro /Kãmãl / / paeta/ mato /iwi/ / di! Dessa forma, o que está em questão ao meu ver muito claramente, é o fato de que a distinção entre as línguas, quando feita, não escolhe critérios exclusivamente lingüísticos, mas também critérios históricos e políticos. De fato, um estudo sistemático comparativo das duas línguas poderá lançar luzes sobre a questão, sem que o critério estritamente lingüístico seja tido como "a palavra final", e sim, sirva a esclarecer, inclusive, aspectos históricos envolvidos. Um breve estudo: diglossia e bilingüismo. Em relação à questão da diglossia, acredito que neste caso ela possa ser definida como propõe a sociolingüística Catalã, como situação de línguas em conflito, como processo de conflito histórico de mudança necessária de uma língua a outra, com substituição e normalização como processos de eliminação inevitável de uma das línguas nascida do contato entre as duas, uma espécie de língua "crioula". SegundoKremnite'z; (apud Fargetti 1993): Les sociolinguistes catalans ont dynamise'le concept de diglossie qui, au début, et dans les termes de Ferguson, était conçu comme asses statique jusqu'à sa fin et d'avoir consideré le precessus linguistique jusqu'à sa fin et d'avoir montré ses aboutissements possibles: ou bien Ia normalisation de Ia langue dominée et Ia disparition de Ia langue jadis dominante dans un espace donné, ou bien Ia disparition de Ia langue dominée et sa substituition définitive dans l'espace en questiono 105 Número 15 – Janeiro / Junho – 2005 - ISSN 2179 5215 A situação de diglossia entre os Jamináwa-Arara parece estar em conflito, pois o contato com não índios é intenso e se pode afirmar com precisão que somente as crianças encontram em situação de bilingüismo receptivo, isto é, elas apenas entendem o que a anciã da aldeia fala. Tal anciã, considero aqui de fato como bilíngüe, pois transita com fluência entre a gíria (nome dado à língua Jamináwa-Arara pelos habitantes da comunidade São Sebastião) e o português. Pelo relato da anciã, já no tempo de seu pai, a situação era semelhante a atual, pois o homem falava português com relativa fluência, e os demais aprenderam com ele. Com base nesta informação, indagamos se isto não seria um indício de continuidade do processo de diglossia existente? Dos tempos do genitor até os dias de hoje, os contatos se intensificaram e, além disso, intensificou também o número de pessoas que sai da aldeia com o objetivo de estabelecer comércio, ou de buscar tratamento médico com a comunidade não índia mais próxima. Contudo, ainda resquícios da língua são falados por alguns componentes da aldeia e, a anciã, em momentos de ira, assume a postura monolíngue e quase todos, inclusive as crianças entendem a gíria. Isto nos leva a crer em uma certa estabilidade da língua na aldeia. Todavia, mesmo que os contatos aumentem e que quase todos falem português, podemos afirmar que há uma tendência de perda da língua Jamináwa ou Arara, de deslocamento total? Não há evidências suficientes para isso. Pelo que se sabe da história do povo, ele oferece sempre uma forte demonstração de resistência cultural e lingüística. Cabe aqui ressaltar que ao assumir o termo diglossia significando "contato ou conflito" entre línguas, não implica, é claro, neutralidade do ponto de vista político, nem fecha a questão para comunidade Jamináwa-Arara. Uma vez que, acabar dizendo que a tendência futura, contrariando toda a história de resistência do povo, mesmo em face ao brutal decréscimo populacional, será que a língua Jamináwa ou Arara sejam substituída pelo português definitivamente, ou seja, que haja um "desaparecimento da língua indígena, o que seria um determinismo indesejável e sem fundamento ao meu ver. Portanto, como opção teórica, tomo o ponto de vista a definição adotada pela sociolingüítisca catalã. Entretanto, há de se considerar, devidamente, as diferenças de situação quanto ao caso específico da comunidade de Catalão, uma vez que tal comunidade apresenta uma organização política, histórica e lingüística completamente diferente da comunidade Jamináwa-Arara do Brasil. 106 Número 15 – Janeiro / Junho – 2005 - ISSN 2179 5215 Conclusão À luz do que mencionamos anteriormente, parece haver uma certa estabilidade da diglossia. Na aldeia São Sebastião raramente se usa a gíria, ou seja, o uso do português é predominante. A gíria é acionada em situações determinadas: - quando os anciões "acalmam" as crianças para dormir - em situações em que a anciã está nervosa, ou seja, ralhando com as crianças; e - em casos extraordinários em que as pessoas (pesquisadores) pedem para ela falar, como foi o meu caso. Entretanto, essa notória aparência estável na distribuição do uso das línguas – português e gíria – leva-me a acreditar, de fato, na possível existência de diglossia. Segundo Fishiman, diglossia remete à função social das variantes em uma comunidade de fala e, bilingüismo remete à aquisição e uso de duas línguas por um indivíduo. Assim, a situação da comunidade São Sebastião é a seguinte: somente a anciã se encontra como bilíngüe, os outros, falam Português. Contudo, no vocabulário dos integrantes da comunidade existe a presença de muitos empréstimos lingüísticos advindo da gíria. Em relação às crianças, todas falam Português. As meninas, por ficarem mais perto da anciã, aprendem músicas e histórias. Os meninos, por sua vez, dominam apenas o português. Já as mulheres apenas escutam a anciã narrar os mitos, embora, às vezes, tais mitos são narrados ora em português, ora na gíria. À primeira vista, as mulheres índias que são casadas com índios apresentam uma compreensão melhor da gíria, já as mulheres casadas com seringueiros dominam menos o vocabulário da língua em questão. No que concerne aos homens, os filhos da anciã apresentam uma compreensão maior da gíria, todavia delinear o grau de bilingüismo, ou diglossia não é tarefa fácil, portanto, ambos conceitos merecem um tratamento adequado em estudos posteriores. No âmbito da educação, existe na aldeia uma escola construída pela Funasa, onde os alunos assistem às aulas freqüentemente, entretanto as aulas são ministradas em português, por um professor de formação com a 4ª série do Ensino Fundamental. Por fim, como proposta da comunidade Jamináwa-Arara haveria: a) a proposta de trabalho de formação com os professores já existentes, e b) o ensino bilíngüe. Todavia, este último, depende dos avanços na descrição da língua falada na aldeia de São Sebastião, tarefa a qual me ocupo atualmente. 107 Número 15 – Janeiro / Junho – 2005 - ISSN 2179 5215 Referências Bibliográficas FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 3ªed., Rio de Janeiro: Record, 1999. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. HAMEL, R. E. e SIERRA, M. T. Diglosia y conflicto intercultural. Boletín de Antropología Americana, México, Universidad Iztapalpa, Autónoma Metropolitana, 1983. ROCHA, Everaldo. O que é etnocentrismo. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. SEKI, Lucy (org). Lingüística Indígena e Educação na América Latina. Ed. Unicamp, 2000. 108