Alunos dorminhocos e um jogo

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Alunos dorminhocos
5 de Janeiro de 2015
Resumo
Objetivos principais da aula de hoje: entender a necessidade de se
explorar um problema para chegar a uma solução; criar o hábito (ou
pelo menos entender a importância) das demonstrações formais; ver
algumas primeiras dicas de como resolver um problema.
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O problema dos alunos dorminhocos
Imagine uma aula de matemática com a seguinte propriedade:
• Cada aluno nesta aula tira uma única soneca: isto é, ele cai no sono
num certo instante de tempo s e acorda no instante de tempo t > s.
(Contaremos s, t e todos os números entre eles como momentos em
que o dado aluno está dormindo.)
• Dados quaisquer dois alunos, há ao menos um instante de tempo em
que ambos estão dormindo.
Demonstre que há pelo menos um instante de tempo em que todos os alunos estão dormindo simultaneamente.
1.1
Introdução
Vamos usar este problema como nosso ponto de partida no curso. Como
veremos, ele é um tı́pico problema em que a tese é intuitiva, mas uma solução
correta pode não ser muito simples de escrever. Alguns dos pontos que
buscaremos enfatizar são:
1. O que podemos ganhar tentando imaginar uma solução?
2. Será que “desenhar o problema” nos ajudará?
1
3. Como descobrimos quais técnicas e conceitos matemáticos devem estar
envolvidos na solução do problema?
4. O que é a hipótese? O que é a tese? Como podemos enunciá-las de
forma formal?
5. Como devemos apresentar a solução do problema?
1.2
Explorando o enunciado
Eis uma dica fundamental para este problema.
Desenhe o problema e explore seu desenho!
Como se pode desenhar bem este problema? Vamos partir da maneira
habitual de pensar no tempo como uma linha reta. O que você enxerga
quando faz isto?
Com alguma sorte, você deve enxergar algumas coisas. Primeiro, o
tempo que cada aluno gasta dormindo é um intervalo fechado na reta, isto é,
um conjunto de números reais entre t e s (incluindo os dois extremos). Além
disto, quando falamos que dois alunos têm algum instante comum de soneca,
isto quer dizer que os intervalos correspondentes têm interseção não-vazia.
Isto nos dá um ponto fundamental para a solução formal do problema.
Do ponto de vista formal, este é um problema sobre
interseções de intervalos.
Em segundo lugar, a validade da tese deve ficar mais intuitiva: se dois
intervalos se interceptam e um terceiro intercepta estes dois, é evidente que
os três se interceptam em algum lugar. O mesmo vale em desenhos com
mais intervalos. Para se convencer disto, você deve seguir um princı́pio útil.
Será que o enunciado funciona?
Isto é, será que eu consigo desenhar intervalos que respeitam a restrição
do problema (quaisquer dois se interceptam) sem satisfazer a conclusão de
que todos têm um ponto comum de interseção? Tente bastante até se convencer de que isto não é possı́vel.
Há uma outra maneira de tentar fazer o problema “quebrar” que frequentemente nos ajuda a entendê-lo.
Mude um pouco o enunciado e veja se o resultado
pretendido ainda vale.
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É um pouco difı́cil entender como isto deve ser feito de inı́cio, portanto
eis uma dica simples. Vamos supôr que cada aluno pode tirar duas ou mais
sonecas. Neste caso, é fácil observar que o resultado não vale. Eis um
contra-exemplo com três alunos que dormem nos tempos:
[1, 2] ∪ [3, 4], [3, 4] ∪ [6, 7] e [1, 2] ∪ [6, 7].
É, portanto, fundamental só termos uma soneca por aluno.
O valor desta constatação é o seguinte. Imagine que um estudante apresenta o que acredita ser uma solução deste problema que não faz uso do fato
que cada aluno tira uma única soneca. O exemplo que exibimos acima mostra que esta solução tem de estar errada, porque ela se aplicaria a situações
em que não vale a conclusão final do problema. 1
1.3
Por que buscar uma solução formal?
A esta altura você e eu já estamos convencidos de que o problema está correto
e de que sua conclusão é intuitiva. A questão é: será que não estamos nos
iludindo? Há vários casos em que um enunciado que parece verdadeiro se
revela falso. Um matemático ilustre chamado Gian Carlo Rota (1932 - 1999)
escreveu:
Na maior parte do tempo, o trabalho de um matemático é um
emaranhado de chutes, analogias, frustação e a vontade de acreditar
que as coisas são simples. Demonstrações não são a parte central das
descobertas; normalmente elas são apenas a maneira que termos para
impedir que nossas mentes nos enganem.[G. C. Rota]
Duas coisas estão implı́citas nestas frases. A primeira é que a demonstração formal só deve ser tentada quando já entendemos bem o problema e
queremos ter certeza de que estamos certos. Em vários casos isto nos exigirá
voltar várias vezes à fase de exploração do problema, buscando detalhes que
podem nos ter passado desapercebidos e tentando novas ideias.
Em segundo lugar, Rota nos alerta que às vezes nossas mentes nos enganam. Isto é, se queremos estar certos, devemos usar a intuição como
caminho para descobrir uma demonstração formal.
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É claro que, ao menos em princı́pio, há a possibilidade do estudante fazer uso de uma
hipótese que impede o exemplo acima, mas é mais geral do que os intervalos fechados. O
professor deve ter cuidado para não ser injusto com este aluno, que pode ter tido uma
ideia brilhante; mas, na prática, é bem mais provável que estejamos diante de um erro.
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Há também um argumento pedagógico para a busca de provas corretas.
Um dos principais motivos para se aprender Matemática é desenvolver o
pensamento lógico-dedutivo. É exatamente esta forma de raciocinar que
exercitamos ao buscar uma demonstração formal. A intuição é a luz que
ilumina nosso caminho dedutivo, mas é o rigor que nos dá segurança e
firmeza.
1.4
Explorar com vistas a resolver
Nossa exploração do problema já nos deu motivos para “acreditar” no problema. Agora vamos voltar a explorar o enunciado tentando achar caminhos
para resolvê-lo. Esta frequentemente é a parte mais difı́cil, na qual só nos
tornamos melhores com tranquilidade e bastante treino.
Esta exploração de caminhos é em grande parte uma maneira de buscar
a técnica certa para cada problema. Infelizmente os problemas não vêm com
etiquetas indicando o que podemos fazer, então grande parte do nosso treino
será na direção de tentar desenvolver nosso faro para as boas ideias.
Por ora, vai ser útil usar dicas. Eis uma que é muito boa para o caso.
Procure extremos!
Este é um princı́pio geral vago. No nosso contexto particular, ele consiste
em se observar que, se há uma soneca comum, ela só pode começar quando
o útimo aluno cai no sono e tem de terminar com o primeiro que desperta.
Alguns desenhos devem deixar claro que estes dois tempos são os limites da
soneca comum. Agora já temos mais clareza do que provar.
Objetivo novo: provar que há uma soneca comum, que vai
do momento em que o último aluno cai no sono até o primeiro
despertar.
Note: em geral é necessário tentar vários objetivos até que um funcione.
Neste caso isto não será necessário.
1.5
Do enunciado ao formalismo: hipótese e tese
Este é um passo que frequentemente omitimos na prática, mas que tem
sempre de estar presente (ainda que de forma implı́cita), porque a noção de
corretude em Matemática passa necessariamente pelo formalismo.
Primeiro vamos lembrar que temos um problema sobre intervalos fechados. Para sermos mais formais, vamos supôr que temos n alunos, onde n > 1
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é natural. Numeraremos os alunos de 1 a n. O tempo em que um aluno
1 ≤ i ≤ n dorme é um intervalo Ii = [ai , bi ] com ai < bi .
Agora vamos formular nossas hipótese e tese. A hipótese deve esclarecer
que temos intervalos fechados que se interceptam dois a dois. A tese deve
afirmar que todos os intervalos se interceptam. Em “matematiquês”, isto se
escreve assim.
Teorema 1. Hipótese: I1 , . . . , In sã o intervalos da forma Ii = [ai , bi ] com
ai < bi . Temos ainda que Ij ∩ Ij 6= ∅ para quaisquer 1 ≤ i < j ≤ n.
Tese: I1 ∩ I2 ∩ · · · ∩ In 6= ∅.
1.6
A demonstração
Como já dissemos acima, a estratégia da prova será provar que o intervalo
J = [max ai , min bj ],
que possivelmente é degenerado, corresponde a momentos de soneca comum.
Fazemos isto em partes.
Parte 1: J é mesmo um intervalo. Para provar isto, precisamos mostrar
que max ai ≤ min bj . Seja i∗ um ı́ndice tal que ai∗ = max ai e seja j∗ tal
que bj∗ = min bj . Sabemos que os intervalos Ii∗ e Ij∗ se interceptam (por
hipótese).
Afirmação não-trivial: se dois intervalos fechados se interceptam, o menor ponto de um é menor que o maior ponto do
outro.
Esta afirmação é destacada por ser o ponto chave da prova formal. Ela
é o principal ponto da prova em que usamos o fato de que lidamos com
intervalos.
Para demonstrar a afirmação, sejam A = [x, y] e B = [z, w] dois intervalos fechados quaisquer com x ≤ y e z ≤ w. A afirmação diz que y ≥ z
sempre que A ∩ B 6= ∅. Vejamos porque isto é verdade.
Se A ∩ B é não-vazio, tome t ∈ A ∩ B e note que:
t ∈ A ⇒ x ≤ t ≤ y e t ∈ B ⇒ z ≤ t ≤ w.
Portanto, z ≤ t ≤ y, o que implica z ≤ y, como desejado.
No nosso caso particular, isto diz que ai∗ ≤ bj∗ , o que completa a primeira parte da prova.
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Parte 2: J ⊂ I1 ∩· · ·∩In . Basta mostrar que J ⊂ Ik para todo 1 ≤ k ≤ n.
Mas isto segue claramente do fato que ak ≤ max ai ≤ min bj ≤ bk .
Exercı́cio 1. Voce consegue mostrar que J = I1 ∩ I2 ∩ · · · ∩ In ?
Exercı́cio 2. Voce consegue mostrar que dois intervalos fechados se interceptam se e somente se o menor ponto de um deles é menor que o maior
ponto do outro? No que isto difere da “afirmação não-trivial”acima?
Exercı́cio 3. O que mudaria na prova se os intervalos fossem abertos?
Exercı́cio 4. Recorde os comentários feitos nas seções anteriores. De que
maneira eles apareceram na prova formal? O que lhe pareceu mais ou menos
importante para o resultado final?
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Um jogo e um roteiro
Jogos matemáticos oferecem um dos melhores caminhos para treinarmos a
ideia de explorar o problema, seja preliminarmente, seja já com vistas a
resolvê-lo. Eis um exemplo adaptado da OBM 2011 (note que usamos a
convenção de que 0 não é natural).
Vamos jogar o seguinte jogo. Eu começo escolhendo dois naturais i ∈ N
(o inı́cio) e a ∈ N (o alvo) com i > 1. Escrevo a numa folha de papel e i no
quadro negro. A partir daı́ só você age. A cada rodada você tem um número
b ∈ N no quadro negro e pode substitui-lo por qualquer b0 da forma b0 = n.m,
onde n, m ∈ N e n + m = b. Seu objetivo é conseguir escrever o alvo a no
quadro ao fim de um número finito de rodadas (em particular, você ganha
em 0 rodadas se i = a). Por exemplo, se eu escolho i = 5 e a = 50, você
pode vencer com a seguinte sequência de substituições:
5 → 6 = 2 × 3 → 8 = 2 × 4 → 15 = 3 × 5 → 50 = 5 × 10.
Do mesmo modo, você pode ganhar se i = 10 e a = 194.
10 → 25 = 5 × 5 → 100 = 5 × 20 → 99 = 1 × 99 → 194 = 2 × 97.
Por outro lado, se i = 4 e a = 5, você pode se convencer que eu ganho.
Prove que, se i > 4, você sempre pode vencer o jogo.
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2.1
Explorando o jogo
A exploração deste problema começa testando as regras do jogo para ver se
a entendemos. Depois disso, podemos lembrar de um princı́pio geral muito
importante:
Princı́pio das histórias de detetive: tudo que é mencionado
no enunciado do problema deve ser encarado como uma possı́vel
pista para a solução.
O que é mencionado no enunciado? Além das regras, a úica coisa dita é
que o número i deve ser maior do que três. Esta informação é relevante? É
útil? Eis um outro princı́pio geral.
Uma hipótese é útil sempre que o enunciado quebra quando a
removemos.
Veja que a hipótese é útil: se tomamos i = 1, nem dá para sair do lugar,
enquanto que com i = 2, 3, 4 só conseguimos diminuir o valor no quadro.
O que muda quando i > 4? A esta altura quem explorou o problema já
sabe (ou pelo menos intui): se o número no quadro é pelo menos quatro,
sempre dá para subir! Vamos tentar ser mais formais e indicar como se
faz isto. Veja que, dado b ∈ N, sempre podemos transformálo em b0 :=
2 × (b − 2) = 2b − 4. Para que b0 > b, é necessário e suficiente que b > 4.
Agora vem uma outra ideia geral:
Explorar involve descobrir como você pode se mexer!
De fato, já vimos que, partindo de um número maior que 4, podemos
criar números cada vez maiores. Isso nos diz que podemos ultrapassar qualquer alvo estabelecido, mas ainda não é claro que podemos atingir exatamente os alvos.
Explorando mais um pouco, no entanto, fica claro que também dá para
descer usando a passagem b → b − 1 = (b − 1) × 1. O ponto crucial é que a
“queda” é controlada: ao contrário da subida, sabemos exatamente o quanto
descemos em cada passo!
A esta altura a maioria dos alunos já sabe o que fazer para atingir o alvo:
basta subir até ultrapassar o alvo e depois descer de um em um. Isto ainda
não é uma solução formal porque para isso precisamos de algo que está certo
sem deixar margem a dúvidas. Ou seja, precisamos escrever melhor e mais
precisamente nossa ideia.
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2.2
Enunciado e prova formais
Vamos procurar exprimir nosso problema da forma mais formal possı́vel.
Para facilitar, começamos com uma definição.
Definição: dados x, y ∈ N, escrevemos x → y se existem n, m ∈ N com
x = n + m e y = n × m.
Ou seja, x → y significa que podemos passar de x para y em um estágio
do nosso jogo.
Hipótese: i ∈ N com i > 4; a ∈ N.
Tese: existem k ∈ N ∩ {0} e (i0 , . . . , ik ) ∈ Nk+1 com i0 = i, ik = a e
i0 → i1 → i2 → · · · → ik .
Prova. Vamos dividir a prova em duas partes, usando dois conceitos diferentes. Fixamos um i > 4 o tempo todo e dizemos que
1. a ∈ N é ultrapassável se existem k ∈ N ∩ {0} e (i0 , . . . , ik ) ∈ Nk+1 com
i0 = i, ik ≥ a e i0 → i1 → i2 → · · · → ik .
2. a ∈ N é atingı́vel se existem k ∈ N ∩ {0} e (i0 , . . . , ik ) ∈ Nk+1 com
i0 = i, ik = a e i0 → i1 → i2 → · · · → ik .
Nosso objetivo pode ser reformulado como provar que todo natural é
atingı́vel. Nossa ideia de prova será fazer isto em duas partes.
Lema 2. Todo a ∈ N é ultrapassável.
Lema 3. Todo a ∈ N que é ultrapassável é também atingı́vel.
Veja que esta divisão respeita a ideia de que temos duas maneiras de “andar no jogo”: uma é subir sem controle até ultrapassar e a outra e descer
até atingir o alvo. Note ainda que a tese segue trivialmente da combinação
dos dois lemas.
Prova do primeiro lema. Vamos provar isto por indução em a. Note que
a = 1 é ultrapassável e que, de fato, todo a ≤ 5 é ultrapassável com k = 0,
porque i = i0 ≥ a automaticamente.
Para fazer o passo indutivo, queremos mostrar que se a é ultra, a + 1
também é ultra. Fixe então um a que é ultra e tome k ∈ N, (i0 , . . . , ik ) com
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i = i0 → i1 → . . . toik ≥ a. Veja que, se ik > a, então já ultrapassamos
a + 1. Por outro lado, se ik = a, podemos tomar a = 2 + (a − 2) e fazer
ik+1 = 2 (a − 2) = 2a − 4.
ik+1 ultrapassa a + 1 sempre que 2a − 4 > a, ou seja, a ≥ 5. Por outro lado,
se a < 5, então a + 1 ≤ 5 e neste caso é automaticamente ultrapassável,
como observado acima.
Prova do segundo lema. Observe primeiramente que dizer que a é ultrapassável significa dizer que ∃` ∈ N ∪ {0} tal que a + ` é atingı́vel. Portanto,
fixado um a ∈ N ultrapassável, podemos definir
`(a) := min{` ∈ N ∪ {0} : a + ` é atingı́vel.}
Afirmamos que `(a) = 0, de modo que o próprio a é atingı́vel. Para provar
isto, vamos supor (por absurdo) que `(a) = ` > 0, de modo que a + `
é atingı́vel, mas obrigatoriamente a + (` − 1) não é atingı́vel (afinal, ` é
mı́nimo!).
Como a + ` é atingı́vel, a + ` = ik para alguma sequência (i0 , . . . , ik )
como vimos acima. Agora observe que
a + ` = 1 + (a + ` − 1)
e tome ik+1 := a + ` − 1. Veja que ik → ik+1 , logo (i0 , . . . , ik+1 ) atinge
a + ` − 1. No entanto, isto contradiz o fato de que a + ` − 1 não é atingı́vel,
que seguiu da suposição de que `(a) > 0. Deduzimos que `(a) = 0, CQD.
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