O SIGNIFICADO DO OUTRO E A IMPOSSIBILIDADE DA RELAÇÃO

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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982-6613
Vol. 3, Edição 7, Ano 2008.
O SIGNIFICADO DO OUTRO E A IMPOSSIBILIDADE DA RELAÇÃO EU-TU
Raquel Silva de Brito
[email protected]
Brasília-DF
2008
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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982-6613
Vol. 3, Edição 7, Ano 2008.
O SIGNIFICADO DO OUTRO E A IMPOSSIBILIDADE DA RELAÇÃO EU-TU
Raquel Silva de Brito1
[email protected]
Resumo
O que o outro representa em minha vida? É possível a relação com o outro numa dimensão
dialogicamente autêntica, ou sempre conduzimos as relações utilizando-se do outro com
meio? Refletir sobre a nossa condição de seres de relações e individualidades, nos impulsiona
inevitavelmente a uma reflexão de seu significado enquanto consciência independente da
minha ou enquanto ser que altera a minha existência. Ao mesmo passo que necessitamos do
outro, não assumimos a nossa conseqüente realidade existencial de limitações.
Palavras-chave: Outro – Relação – Reciprocidade – Individualidade.
A vida é uma dinâmica de construções, desconstruções e reconstruções de relações.
Dinâmica porque construir, desconstruir e reconstruir são movimentos que se repetem
intermináveis vezes. O ser humano é dotado da capacidade de fazer, refazer, criar e recriar
relações.
É igualmente complicado retomar, uma vez desfeita e perdida, a disposição para o
relacionar-se. Isso ocorre porque necessitamos do outro para nosso próprio reconhecimento.
Mas a idéia de se encontrar num estado de dependência em relação ao outro, nos causa
assombro. Além disso, a relação com o outro nos causa uma série de tensões e contratempos,
pois um olhar alheio ao nosso, desde que permitamos, pode ser determinante em nossas
escolhas. Desejamos a conquista da liberdade e a sobrevivência de nossa autenticidade e, em
contrapartida, vivemos o impasse entre essa condição e a sociabilidade como necessidade
humana.
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Graduada em Filosofia e Especialista em Filosofia pela Universidade de Brasília. Professora do Ensino
Fundamental e Médio desde 1998.
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Relacionar-se é despojar-se de si mesmo em certa medida. E quem estaria hoje
disposto a esta aventura, considerando que nos encontramos num mundo com tendência
egoística e amante da individualidade? Aventura porque despojar-se de si em favor do outro é
atirar-se a uma realidade desconhecida. O outro representa uma consciência independente da
nossa, mas que significa exatamente a descentralização do meu mundo, ou seja, me traz a
consciência de que não sou o único ser de vontade e liberdade que existe. A liberdade do
outro interfere na minha forma de existência a partir do momento que provoca em mim uma
reflexão dos meus atos. Isso se deve ao fato de que não sou um ser isolado de consciência
irreflexiva.
Mesmo considerando esses impasses, até que ponto é possível controlar o impulso
que me impele ao outro? O outro, além de outras implicâncias, é indispensável a mim para a
criação de uma conduta reflexiva. É por essa razão que nos dirigimos a ele como necessidade.
Não é possível repensar uma relação desconsiderando o interesse que me conduz ao outro
como um meio para meus fins.
Diante disso, pergunta-se: é possível a relação Eu-Tu?
Segundo Martin Buber, em sua produção filosófica “Eu e Tu”, é necessário resgatar a
relação dialogicamente autêntica. O filósofo defende a relação Eu-Tu como um tipo de
relação que maximiza o valor do outro enquanto ser de presença. Nesta relação há
reciprocidade. Reciprocidade seja aqui entendida como um encontro autêntico entre dois
seres, não apenas duas consciências que buscam objeto de conhecimento, mas que buscam em
supremacia a relação com o outro em sua totalidade. Nessa perspectiva, o outro não deve ser
reduzido a predicativos, ou seja, não deve ser visto como condição de objeto, mas de ser que
não pode ser representado, onde há de fato o encontro e o reconhecimento mútuo.
Nesta relação há uma mistura de passividade e espontaneidade. Isso porque não
enxergamos o outro como um “Isso”, mas pelo contrário reconheço-o enquanto presença e me
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disponho, nesse reconhecimento, a também ser visto como um outro, um Tu.
O pensador coloca a dupla possibilidade de aparecimento do Eu. Nenhum ser seria
totalmente pessoa, nem inteiramente egótico2. Na dimensão da relação dialógica recíproca, o
Eu assume uma postura de autenticidade e de reconhecimento do outro enquanto Tu. Na
segunda possibilidade o Eu se revela como limitador da condição do outro o vendo apenas
como meio favorável a seus fins ou como um limitador de sua liberdade.
Para se concretizar a relação Eu-Tu, segundo Buber, considera-se o princípio de
totalidade. Vejo o ser que se me apresenta como um ser completo, sem as dissociações de
meu julgamento. Na relação Eu-Isto, pelo contrário, não há totalidade, não há relação, há
apenas a experiência do outro, a garantia da objetividade no contato com outra consciência. À
medida que prevalece a relação Eu-Isto, o Eu assume uma conotação que se distancia do seu
autêntico sentido. Só há autenticidade onde há encontro e reciprocidade.
Temos também a consideração acerca dos sentimentos. Segundo o pensador, a
relação autêntica inclui sentimentos, mas não provém deles. Sentimentos representariam
apenas acessórios dispensáveis. Tudo seria acessório em meio à relação autêntica, pois se
afirma não haver meios nessa relação. Os meios, dessa forma, seriam obstáculos à relação.
A relação com o Tu é imediata. Entre o Eu e o Tu não se interpõe nenhum
jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; e a própria memória
se transforma no momento em que passa dos detalhes a totalidade. Entre Eu
e Tu não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação; e a própria
aspiração transforma-se no momento em que passa do sonho à realidade.
Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são
abolidos, acontece o encontro. (BUBER, 2006, p. 24).
O encontro com o Tu é narrado por Buber como um momento único, mas que nos
conduz a extremos que causam muito mais questões que satisfação.
Nossa proposta aqui é demonstrar que há na relação Eu-Tu uma série de
impossibilidades.
2
Refere-se a ego, individualidade. Pode-se entender esse termo como uma forma de designar uma postura
utilitarista diante das relações.
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A primeira delas é afirmar que não se pode haver nada entre Eu e Tu. Não seria um
meio o sentimento que nos impele à busca do outro? Se não pode haver meios nessa relação, o
que seriam então os sentimentos e as expectativas que nos movem à continuidade desse
processo? O problema nessa concepção buberiana, está em não admitir uma relação autêntica
onde haja meios. Relações são permeadas por uma série de sentimentos. Sentimentos são
meios, portanto os meios existem nas relações. As condições em que se revelam as relações
humanas pós-modernas demonstram claramente a necessidade dos meios na relação, de
motivos que tornem autênticos e necessários o ato de dirigir-se ao outro, mesmo que este
outro seja também um meio.
As expectativas também são meios que fazem parte da relação entre as pessoas. A
maioria das relações é nutrida por expectativas, embora não seja necessário criá-las. Se essa
postura é positiva ou não, não nos compete considerar agora, mas o fato é que inevitavelmente
as pessoas esperam uma das outras. Possivelmente as expectativas podem representar uma
tentativa de tornar o outro objeto das suas aspirações, o que torna a relação uma troca mútua
de interesses?
Pensar nessa linha de raciocínio nos conduz a outros questionamentos. Se há sempre
um interesse, um meio que move a minha relação com as pessoas, seria possível admitir uma
relação em totalidade? Como apreender a realidade do outro como realidade adversa a minha?
Como considerar o outro com totalidade sendo que muitas vezes não compreendo nem a
minha própria realidade existencial? Insiste-se, aqui, na impossibilidade de alcançar o outro
em sua totalidade. Não nos é permitido tal faceta, pois o outro, assim como nós, é um ser de
liberdade. Apreender a condição do outro em sua totalidade seria tratá-lo como uma realidade
acabada, quando na verdade estamos em constante transformação, criando e recriando novas
formas de ser e estar no mundo. Não repetimos um modo estático de ser. “Construímos,
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destruímos e alteramos constantemente nosso modo de ser no mundo.” 3.
Outra provocação que pode ser suscitada é: devo me dispor à relação com o outro?
Desde quando relacionar-se com o outro é fundamento para minha existência? E mesmo que o
seja, o que me obriga a estar disposto a esta relação? Muitas de nossas atitudes são
determinadas pela nossa postura de vivência social e cultural. Admitir a necessidade do outro
pode ser uma realidade provocada com o tempo, mas também uma necessidade determinada
pela historicidade. Em outras palavras, pode ser considerável uma postura de vida de
isolamento, mas os nossos ditames e modelos culturais nos dizem que somos seres sociais e
que necessitamos do outro.
Mesmo se desconsiderássemos essa hipótese, outro questionamento nos viria: quem é
o outro? Uma realidade isolada de mim ou uma realidade construída nessa infindável relação
de interesses, expectativas e sentimentos? Jean Paul Sartre chega afirmar que “O inferno são
os outros” 4. Nessa fala sartreana percebe-se que não suportamos o olhar de julgamento do
outro, porque este olhar nos mede, influenciando, inclusive, as nossas escolhas. Relacionar-se
com o outro não é algo simples. Se se admite essa influência do outro nas minhas escolhas –
considerando-se que isso acontece conforme a minha permissão e em intensidades e
circunstâncias possivelmente diferentes – afirma-se então a impossibilidade de uma relação
autêntica, porque, neste sentido, estaria prejudicada a autonomia do ser e toda sua
autenticidade. Como conceber uma relação autêntica se, em toda relação, e mediante escolha
própria, um interfere na postura do outro retirando assim sua autenticidade individual?
Quando o outro é visto como um meio na relação, isso significa que é útil para a
construção do meu projeto existencial. Pode-se aí, afirmar a necessidade do outro enquanto
meio para alcançar os meus fins. Não há absolutamente nada de negativo nesta postura. A
3
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Revista Mente cérebro e Filosofia. Editora Duetto, n°5, pág.47, 2007.
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Civilização Brasileira. 2005.
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nossa ética é uma ética de relações movida a interesses. É preciso abandonar a concepção de
que o interesse degrada e desvaloriza a relação com o outro. O interesse move a realidade das
relações.
Buber afirma em uma de suas reflexões que o homem não pode viver sem Isso, mas
aquele que vive somente com o Isso não é homem5.
O problema do individualismo é super-dimensionar essa condição, ou seja, viver
como se unicamente o seu ser fosse o relevante ao mundo. Pode-se naturalmente admitir uma
relação em que é possível conservar sua individualidade sem ter que necessariamente isolar-se
e desconsiderar ambientes coletivos.
O fato irreversível, que aqui se defende – e o próprio Buber haveria de afirmar isso
em sua obra, embora fosse um defensor da relação dialógica – é que todo ser há de se tornar,
irremediavelmente, um objeto. Trocando em miúdos, mesmo que por um instante haja
reciprocidade e o outro seja de fato visto como um Tu, ele acabará retornando a coisificação6
e será novamente um meio, um “Isso”.
Estaremos condenados, pelo princípio da liberdade, a fazer do outro um objeto e a
estar também nesta condição diante do outro. Esta é a dinâmica de nossa existência de seres
de relação. Ora seremos sujeitos no mundo, ora seremos objeto, tanto quanto realidade que
deseja ser conhecida pelo outro, como sendo meio para determinados fins. A concepção de
não ser ético usar pessoas como meios, foi vencida pelas evidências que nos transparecem nas
relações entre seres.
Por que pensar e repensar relações?
Para os que não acreditam em natureza humana, pensar e repensar relações para
entender o processo de construção da existência humana. Porque a existência humana é uma
arquitetura não-planejada, mas edificada pela dinâmica das relações. Relações de todas as
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SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Civilização Brasileira. 2005.
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dimensões.
Para os que assumem uma tendência determinista, pensar e repensar relações para
situar-se enquanto ser e conduzir de forma equilibrada a dinâmica da vida.
Não se pretende aqui, condicionar essa compreensão às tendências, mas às verdades
incontestáveis do que é perceptível em nossas vivências.
A autonomia que o ser contemporâneo busca construir é confundida com a ausência
da necessidade do outro, ou mesmo o reconhecimento da necessidade do outro simplesmente
como meio. Reside nesta postura uma situação que não pode ser vista negativamente.
Visualizar no outro um meio para meus interesses segue a dinâmica de uma sociedade
utilitarista sim, mas, em contrapartida, reorganiza os ditames da compreensão emocional e nos
encaminha a uma nova perspectiva de relação na tentativa de priorizar um estado de
liberdade, o que muitos confundiriam com uma postura de autodefesa.
Nesses termos é louvável a autodefesa como um mecanismo de proteger
vulnerabilidades e fragilidades comuns ao molde do comportamento humano. Buscar soluções
para conflitos existenciais e situações cotidianas problemáticas, sem que necessariamente o
outro seja essa solução, é uma postura de autonomia do ser, de alguém que assume a
construção da própria existência. A postura individualista pode gerar uma condição de
egoísmo e, por conseqüência, um desejo de superação do estado de necessidade do outro.
Não desejamos aqui, desconsiderar a alteridade, mas simplesmente dar mérito a
autonomia do ser em detrimento de relações baseadas na completa interdependência entre as
partes e, portanto, de inautenticidade.
O estado de dependência do outro retira a autenticidade da relação e a autonomia das
partes envolvidas. Depender do outro é permanecer escravizado às influências e
determinações externas. Não há, nessa perspectiva, individualidade. Sou dominado por uma
vontade alheia e, portanto, levado a admitir que sou limitado em minha liberdade.
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Ainda na obra de Martin Buber, é mencionado o “Tu eterno”, que Buber chamaria
assim para designar “Deus”, o transcendente. Considerando esse termo, Buber afirma que
cada pessoa é uma perspectiva para esse Tu. E para o pensador não é possível reconhecer o
Tu do outro, se antes não tive a possibilidade de conhecer o Tu absoluto.
Como é possível a compreensão dessa relação? Deus, que seria aqui o Tu eterno, é
indefinível, incomensurável. Se não há possibilidade de estabelecer relação com o ser que se
me apresenta enquanto fenômeno e que me é visível e alcançável nos termos da experiência, o
que dizer da relação com o indefinível? Há aí uma série de instigações a serem feitas. A
primeira delas é que se o conhecimento de Deus é condição para uma relação autêntica entre
pessoas, isso só afirma ainda mais a impossibilidade dessa relação, porque Deus não se dá a
conhecer. Não há relação se não se conhece.
Outra questão a analisarmos é, mais uma vez, a existência dos meios em qualquer
relação. Não diferentemente, na relação com o transcendente, Deus também é visto como
meio. Um meio de aquietar as angústias humanas, um meio de descansar nossos anseios
diversos, um meio de buscar a satisfação espiritual e, portanto, um meio. Dificilmente o Tu
eterno será buscado unicamente como fim. Na realidade de “coisificação 6” que vivemos Deus
também é uma coisa entre tantas que nos servem a satisfação pessoal. Além disso, como seria
possível estar isento de expectativas neste caso, se quando se busca a relação com Deus não se
busca apenas essa relação, mas também todos os fins que permeiam esta busca?
Pode-se perceber, diante de tais considerações, a impossibilidade de uma relação
nestes termos colocados por Martin Buber, pois há sempre, nas ambiências das relações
humanas, meios para intermediar esta relação, não se podendo desconsiderar expectativas,
sentimentos e a consciência do outro enquanto ser de liberdade o que, portanto, nos impede de
alcançar o outro enquanto totalidade.
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Entenda-se esse termo como o processo de considerar a pessoa de ser à coisa, a objeto.
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REFERÊNCIAS
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro. 2006.
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Civilização Brasileira. 2005.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Vozes. 1999.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Nova Cultural.1989.
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