Internacionalização das políticas educacionais e o funcionamento

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INTERNACIONALIZAÇÃO
DAS
POLÍTICAS
EDUCACIONAIS
E
REPERCUSSÕES NO FUNCIONAMENTO PEDAGÓGICO-CURRICULAR DAS
ESCOLAS
José Carlos Libâneo
Introdução
Há cerca de 30 anos tem início na história da educação um processo global,
planejado, sistemático e institucionalizado de uniformização das políticas educacionais
em escala mundial, em que joga um papel decisivo os organismos internacionais
multilaterais (FMI, Banco Mundial, UNESCO, entre outros). Com objetivos e
estratégias concertados supranacionalmente, a partir de acordos bilaterais, tais
organismos passam a influir em planos, programas, diretrizes e formas de execução
ligados a políticas econômicas, financeiras e sociais, ainda que os países possam fazer
ajustes às realidades locais.
No campo da educação, princípios, normas e procedimentos em relação a
políticas educacionais de países em desenvolvimento ou emergentes passam a ser
formulados em boa parte pelo Banco Mundial devido à liderança que veio assumindo
em relação aos demais organismos desde os anos 1990. Um marco histórico em relação
às influências supranacionais na educação mundial foi a realização da Conferência
Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jontien, Tailândia, em 1990,
organizada e dirigida pelos seguintes organismos: Banco Mundial (BIRD), Organização
das Ações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco),), Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef). Dessa Conferência resultaram uma série de outras regiões com os países
membros para avaliação e monitoramento da execução de seus princípios, normas e
procedimentos pelos países credores de empréstimos. Um número significativo de
pesquisadores brasileiros vêm produzindo estudos e análises, com base em documentos,
visando compreender esta complexa trama que envolve as relações internacionais entre
países ricos e pobres, particularmente em relação à educação (LEHER, 1998; DE
TOMMASI, WARDE E HADDAD, 1998; ALTMANN, 2002; FRIGOTTO E
CIAVATTA, 2003; NEVES, 2005; EVANGELISTA e SHIROMA, 2004, 2007;
SHIROMA, GARCIA e CAMPOS, 2011, FREITAS, 2011a e b; BUENO E
FIGUEIREDO, 2012, entre outros). Em face desses estudos, é imperioso que os
professores em exercício e os futuros professores tomem conhecimento do papel
decisivo que organismos internacionais vêm assumindo na definição das políticas
educacionais no Brasil e como vem ocorrendo. Com efeito, políticas, diretrizes e
normas que vêm regulando as ações em educação em nosso país precisam ser
compreendidas no contexto da globalização das relações econômicas, sociais e culturais
que caracterizam as formas de manutenção e expansão do capitalismo contemporâneo.
No entanto, os estudos que mencionamos não parecem ainda suficientes para atingir a
consciência crítica dos intelectuais da educação, técnicos da educação, políticos,
dirigentes de associações cientificas e sindicais. Mais grave ainda é débil presença
desses estudos em relação aos impactos da internacionalização das políticas
educacionais nos aspectos curriculares e pedagógico-didáticos no interior das escolas.
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Com efeito, não se pode falar em objetivos educacionais, currículo, organização de
escolas, formação de professores, práticas de avaliação, et5c. se referenciar esses temas
às influências internacionais e reformas educativa conduzidas no mundo todo no quadro
dessas influências. É neste âmbito que se insere o presente texto.
O que é a internacionalização das políticas educacionais
Compreende-se por internacionalização processos e ações relacionados com
influências de organismos internacionais multilaterais sobre sistemas educacionais de
países credores desses organismos. Trata-se de um fenômeno típico da globalização
econômica e política em que agências de controle monetário, comercial e creditício em
nível mundial, ligadas às nações mais ricas, definem um conjunto de princípios, regras e
procedimentos ligados à governança pública destinados a articular empréstimos com
formas de monitoramento e controle de programas de financiamento em relação a países
tomadores desses empréstimos. No caso de países em desenvolvimento ou emergentes,
tais programas estão ligados hoje a políticas sociais, educação, saúde, segurança. Ao
monitorar e regular esses países, os organismos internacionais intervêm na formulação e
execução das políticas públicas, ainda que os governos tenham alguma margem de
atuação para redefini-las em razão de peculiaridades nacionais. Podem ser citados entre
os organismos internacionais multilaterais: Fundo Monetário Internacional (FMI),
Banco Mundial (BM), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das
Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO), Organização Mundial
do Comércio (OMC), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Há também organismos regionais como
Organização dos Estados Americanos (OEA), Tratado Norte-americano de Livre
comércio (NAFTA), MERCOSUL, Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (CEPAL), entre muitos outros, bem como uma variedade de Organizações Não
Governamentais internacionais e nacionais.
Conforme Herrero (2013), esses organismos ou agências, de cunho comercialmonetário e creditício-internacionais, foram criados pelos Estados Unidos, na
Conferencia de Bretton Woods (1944) realizada no estado de New Hampshire (EE.UU),
para regulamentar, no âmbito do direito internacional, seu predomínio em assuntos
mundiais e o desenvolvimento do capitalismo no período pós-segunda guerra mundial.
Essa Conferência reuniu quarenta e quatro nações com o objetivo de refundar o
capitalismo após a forte crise estrutural que os EUA haviam sofrido na guerra e, assim,
definir novas regras para as relações econômicas e comerciais entre os países, tarefa que
coube principalmente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional.
Inicialmente o Banco Mundial se dedica a conceder empréstimos com juros baixos para
a reconstrução de países devastados pela guerra. Com a intensificação da globalização
econômica, passou a fazer empréstimos a países em desenvolvimento para implementar
sua infraestrutura e impor políticas de controle nas políticas econômicas e sociais desses
países (HERRERO,). Conforme esse autor:
Atualmente, em um mundo dirigido pelo neoliberalismo capitalista há instituições
oficiais que controlam e dirigem o espaço econômico mundial, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do
Comercio (OMC), estabelecidas as duas primeiras como já mencionado, na Conferencia
de Bretton Woods e a terceira em 1995, em pleno progresso do processo de
globalização. Os Chefes de Estado dos países mais desenvolvidos constituíram o G-8
formado pela Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Itália, Japão, Reino Unido e Rússia,
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ampliado posteriormente no G-20, constituído por países industrializados e emergentes.
Na União Europeia cabe destacar o Banco Central Europeu (Ib.)
Mais especificamente no campo da educação, internacionalização significa a
modelação dos sistemas e instituições educacionais conforme expectativas
supranacionais definidas pelos organismos internacionais ligados às grandes potencias
econômicas mundiais, com base em uma agenda globalmente estruturada para a
educação, as quais se reproduzem em documentos de políticas educacionais nacionais
como programas, projetos de lei, etc.
O principal evento diretamente relacionado com a as políticas educacionais foi a
Conferência Mundial sobre Educação para Todos (1990). Seguiram-se a ela, a
Conferência de Cúpula de Nova Delhi, Índia (1993), Cúpula Mundial de Educação para
Todos, Dakar (2000), sendo esses encontros destinados a avaliar e modificar os termos
definidos na Conferencia de Jomtien que é, ainda, hoje, o documento de referência paras
políticas educacionais dos países pobres. O Banco Mundial, por sua vez, elabora
regularmente relatórios técnicos sobre suas atividades. Os documentos originados
dessas conferências assinados pelos países membros e as orientações políticas e técnicas
do Banco Mundial vêm servindo de referência às políticas educacionais do Brasil: Plano
Decenal Educação para Todos (1993-2003), Plano Nacional de Educação (2001-2010),
LDB de 20061 e outras diretrizes para a educação do Governo FHC e, em sequência, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e outros instrumentos legais e
organizativos do Governo Lula, que continuam em vigor até o presente numa infinidade
de ações socioeducativas implantadas com a gestão do ministro Haddad e mantidas pela
atual gestão do Ministério da Educação. Cabe registrar que no Brasil as orientações
internacionais são assumidas pelo Movimento Todos pela Educação (SHIROMA,
GARCIA e CAMPOS, 2011;).
Políticas internacionais para a educação e a redução da pobreza
Estão disponíveis vários estudos apresentando e discutindo a lógica das relações
entre pobreza, desenvolvimento econômico e escola (LEHER, 1998; EVANGELISTA e
SHIROMA, 2004, 2006; RABELO, MENDES SEGUNDO E JIMENEZ, 2009,
SHIROMA, GARCIA e CAMPOS, 2011, FREITAS, 2011; BUENO E FIGUEIREDO,
2012, EVANGELISTA E LEHER, 2012, entre outros). Nesses trabalhos se esclarece
que a partir de 1968, mas, principalmente, dos anos 1970, os sucessivos relatórios do
Banco Mundial vêm associando as políticas educacionais ao combate à pobreza. Esses
relatórios expressam claramente a tese de que os financiamentos do Banco devem estar
centrados em programas de alivio à pobreza e de redução da exclusão social, como
condição para o aumento da produtividade em função do desenvolvimento na ótica do
neoliberalismo econômico. Obviamente, a reforma no sistema educacional aparece
como política prioritária, a educação fundamental como motor do desenvolvimento, tal
como se lê em documentos do Banco:
A educação básica se concebe como um meio para satisfazer as necessidades mínimas
de aprendizagem das massas de modo que todos os indivíduos possam participar
eficazmente no processo de desenvolvimento. Por conseguinte, a educação básica pode
ser útil para incrementar a produtividade e, também, melhorar as oportunidades dos
grupos menos desfavorecidos. (BM 1974, p. 60)
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Não é demais lembrar que no art. 87 da LDB/1996, §1º se estabelece que o Plano Nacional de Educação a ser encaminhado ao
Congresso Nacional deve estar em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos.
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A educação é a pedra angular do crescimento econômico e do desenvolvimento social e
um dos principais meios para melhorar o bem-estar dos indivíduos. Ela aumenta a
capacidade produtiva das sociedades e suas instituições políticas, econômicas e
científicas e contribui para reduzir a pobreza, acrescentando o valor e a eficiência ao
trabalho dos pobres e mitigando as consequências da pobreza nas questões vinculadas à
população, saúde e nutrição (...). O ensino de primeiro grau é a base e sua finalidade
fundamental é dupla: produzir uma população alfabetizada e que possui conhecimentos
básicos de aritmética capaz de resolver problemas no lar e no trabalho, e servir de base
para sua posterior educação (BM, 1992, in TORRES, P. 131).
Está claro nos documentos que a educação fundamental (denominada nos
documentos como “educação básica”) constitui-se em política compensatória para
proteção dos pobres uma vez que mantidos nessa condição não poderiam ajustar-se aos
padrões do desenvolvimento econômico. Ela cumpre, assim, um papel de integração
social, pois supre os pobres de conhecimentos mínimos, especialmente alfabetização e
matemática, bem como de habilidades de sobrevivência como planejamento familiar,
cuidados com a saúde, nutrição, saneamento e educação cívica, tal como aparecem
reiteradamente nos documentos. Segundo Soares, “as políticas de alívio à pobreza têm
caráter instrumental, subordinando-se ao objetivo de evitar a emergência de tensões
sociais que possam comprometer a continuidade das reformas econômicas” (SOARES,
p.30).
O Banco vem, assim, centrando suas políticas em duas diretrizes: investimento
nas áreas sociais dos países em desenvolvimento e criação de parcerias mais intensas
com as ONGs e outras organizações da sociedade (HADDAD, p.58). Trata-se
claramente de planejar políticas sociais para instrumentalizar a política econômica,
como fica claro em documento do Banco Mundial de 1990, citado por Coraggio:
Segundo o Banco, sua estratégia tem dois componentes: 1) promover o uso produtivo
do recurso mais abundante dos pobres, o trabalho, mediante um ‘eficiente cresci mento
do trabalho intensivo, baseado em adequados incentivos de mercado, infraestrutura
física, instituições e inovação tecnológica’; 2) fornecer aos pobres os serviços sociais
básicos, em especial, saúde primária, planejamento familiar, nutrição e educação
primaria. (...) É importante destacar que, nesta visão, o Banco considera ‘o investimento
em educação como a melhor forma de aumentar os recursos dos pobres’ (Banco
Mundial, 1990, in: CORAGGIO, 1996, p. 85).
É assim que surge o termo “satisfação de necessidades básicas de
aprendizagem”, subtítulo da Declaração Mundial sobre Educação para todos, de Jontien.
Unem-se assim, nas estratégias de combate à pobreza, os termos educação para todos,
satisfação de necessidades básicas de aprendizagem, aumento da produtividade dos
pobres. Qual é a questão a desvelar na relação entre as políticas de combate à pobreza e
a educação pública? É, precisamente, a lógica perversa dessa relação sintetizada na
expressão “educação para todos”, tal como escreve Coraggio:
(Educação para todos significa) degradar o conceito intrínseco de saúde, educação ou
saneamento, refletido na utilização do adjetivo “básico”. (...) Para tanto, segmenta-se de
fato a população em dois setores: os pobres que só dispõem de serviços básicos
gratuitos ou subsidiados, os quais tendem a ser de menor qualidade; os que obtêm
serviços mais amplos, integralmente por meio do mercado, incluindo serviços “básicos”
de melhor qualidade (p. 88).
Kruppa (2001), com base em documentos setoriais do Banco Mundial de 1990 a
2000, sintetiza as políticas e formas de atendimento aos diferentes níveis educacionais
em relação aos países emergentes:
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Educação Infantil: ênfase no cuidado e saúde da criança pequena para a população de
baixa renda, com uma visão educacional, recomendando-se que “os custos de sua oferta
sejam assumidos, em parceria, com as ONGs, em especial, em relação ao pagamento de
pessoal, e que o gerenciamento dessa oferta fique, também, à cargo dessas entidades”.
Educação Básica (ensino fundamental): deve ter como conteúdo principal um
mínimo de reposição educacional destinado a pessoas de baixa escolaridade (o
"minimum learning basic"). Embora o Banco incentive o custeio dessa modalidade
escolar por meio de contribuições da comunidade, “admite que a sua oferta principal
seja de responsabilidade do setor público”.
Ensino Médio: Deve ser aberto àqueles que demonstrem capacidade para seguilo, assegurando-lhes bolsas de estudo, uma vez que a sua oferta deva ser feita,
prioritariamente, pelo setor privado.
Ensino superior: o Banco é renitente ao afirmá-lo como espaço de atuação
exclusiva do setor privado, propondo fundos para bolsas de estudo destinadas aos
capazes, mas com renda insuficiente.
Educação de Adultos: Ainda que sejam elogiados certos programas de educação
à distância (como os da Fundação Roberto Marinho), e que o Banco se diga
compromissado com os termos acordados na "Conferência Mundial de Educação para
Todos", não há, nos documentos estudados, qualquer ênfase para essa questão,
principalmente em relação à América Latina.
A essas estratégias do Banco Mundial em que se percebe tendência à
privatização da oferta educacional, se liga outra, mais recente, relacionada com a
subordinação da educação ao mercado de trabalho. Em documento do Banco Mundial
denominado "Aprendizagem para todos: Investimento no conhecimento e nas
habilidades das pessoas para promover o desenvolvimento" (2011), verifica-se que a
estratégia para se alcançar a “Aprendizagem para Todos” na próxima década é que “os
indivíduos aprendam, dentro e fora da escola, desde a pré-escola, por meio do mercado
de trabalho.
Dentro das ligações entre os sistemas de educação e o mercado de trabalho, o
aprimoramento da relevância do mercado de trabalho é um dos principais objetivos da
nova Estratégia. Atualmente, muitos jovens em países em desenvolvimento estão
deixando a escola e entrando no mercado de trabalho sem o conhecimento, as
habilidades e as competências necessárias para prosperar em uma economia global
competitiva. Com foco na aprendizagem, a nova estratégia vai voltar a atenção não
apenas para a matrícula e conclusão mas para verificar se os egressos da escola têm o
conhecimento e as habilidades necessárias relacionadas ao mercado, e o objetivo é
aumentar a parte de projetos que inclui objetivos voltados para o mercado de trabalho.
Em outro trecho do documento, são citados como principais desafios “melhorar
a capacidade do sistema de ensino para contribuir para o desenvolvimento da força de
trabalho e garantir que alunos desfavorecidos e de baixo desempenho tenham acesso à
qualidade e a oportunidades de aprendizagem relevantes”. Para isso, entre as prioridades
do Banco está a de promover a igualdade de oportunidades de aprendizagem para as
populações desfavorecidas por meio de por programas flexíveis de competências, leiase, “conteúdos mínimos”.
Analisando as políticas internacionais para a educação, Freitas argumenta que os
organismos multilaterais, ONGs, movimentos pela educação vinculados a corporações
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empresariais (no Brasil, especificamente, o Movimento Todos pela Educação),
“procuram implementar a visão de educação como subsistema do aparato produtivo”
(2011, p. 1) definindo objetivos para a escola a partir de necessidades estratégicas de
mão de obra. Trata-se de uma política explícita do governo, alinhado aos interesses
corporativos empresariais, de vincular políticas educacionais a produtividade do
trabalho (p.5), regulando a formação de trabalhadores para necessidades imediatas da
economia. Em razão disso, os sistemas educacionais dos países emergentes, com o
suporte de organismos internacionais, estabelecem o que o aluno fará em determinado
nível de ensino de modo a ser medido no seu desempenho de competências. Ou seja,
são medidas habilidades básicas, não o desenvolvimento conceitual de alto nível (p.8).
Tais resultados servirão para responsabilizar gestores, diretores, professores e alunos.
Verifica-se, pois, que as políticas educacionais recomendadas pelos organismos
internacionais subordinam-se aos programas sociais de combate à pobreza. A educação
enquanto necessidade básica baseada em conteúdos mínimos constitui-se em condição
para melhorar a produtividade da população pobre (como força de trabalho), o que
significa incluir os pobres no sistema econômico (ao menos por meio do emprego), no
mercado de consumo (como consumidores) e no exercício da cidadania (como sujeitos
comportados). Por outro lado, Evangelista e Shiroma comentam que a tese do combate à
pobreza pelas estratégias do sistema econômico internacional fica comprometida uma
vez que esse próprio sistema está estruturalmente implicado na produção da pobreza
(2012, p. 50). Rabelo, Mendes Segundo e Jimenez reforçam esse entendimento ao
mostrar que as políticas educacionais propostas para os países do capitalismo periférico
visam ajustar os indivíduos aos ditames do trabalho explorado. Elas se efetivam pela
negação do conhecimento junto com a manipulação ideológica das consciências, “com
vistas à naturalização da exploração e de seus desdobramentos no plano da
desumanização crescente do próprio homem” (2009, p. 4). Os documentos dos
organismos internacionais têm, assim, o propósito de difundir modelos cognitivos
culturais a serem internalizados pela população, pelos diretores de escola, professores,
técnicos de educação, com extenso uso das mídias. Ou seja, concepções e conceitos
globais, normas e procedimentos vão fazendo a cabeça dessas pessoas, as quais os
assimilam cognitivamente por estratégias de comunicação. Por exemplo, documentos do
BM e da UNESCO, reproduzidos em documentos nacionais, introduziram conceitos que
estão incorporados na subjetividade dos professores tais como: educação inclusiva,
ciclos de aprendizagem, competências, ações socioeducativas.
Estudos e análises correspondentes às décadas posteriores conforme mencionados e
os próprios programas atualmente em andamento no Ministério da Educação, mostram
que boa parte dessas políticas está em vigor no Brasil. As orientações, baseadas na
análise econômica, repercutem nas políticas educativas e servem de base para a
formulação de currículos, formas de funcionamento das escolas, sistema de formação de
professores, formas de avaliação do sistema de ensino, das escolas e das aprendizagens.
As políticas educacionais em vigor no Brasil estão inseridas nessa estratégia de proteção
social para os pobres. Já em 2009, Algebaile caracterizava as políticas de expansão das
escolas no Brasil como utilização delas para “atenuação dos conflitos potenciais
vinculados ao quadro de intensificação da pobreza, redução de direitos e desmonte de
horizontes”. Desse modo, a escola transformou-se num lugar de atender carências de
saúde, de lazer, de assistência social, atendendo a ações que deveriam caber a outros
setores do estado e de outras instancias da sociedade. Os objetivos de ensinar e aprender
passaram ao segundo plano, reduzidos a prover apenas conteúdos mínimos para
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sobrevivência social, não para desenvolver a inteligência, formar capacidade de
raciocínio, formar capacidades mentais.
São, pois, suficientes os indícios de que as políticas educacionais formuladas por
organismos internacionais desde 1990 presidem as políticas para a escola em nosso país,
havendo razões para suspeitar que as vêm afetando negativamente o funcionamento
interno das escolas e o trabalho pedagógico-didático dos professores. Na medida em que
a educação escolar fica restrita a objetivos de solução de problemas sociais e
econômicos e a critérios do mercado, fica comprometido o seu papel em relação a seus
objetivos prioritários de ensinar conteúdos e promover o desenvolvimento das
capacidades intelectuais dos alunos. Desse modo, tais políticas atuam no
empobrecimento da escola e nos baixos índices de desempenho dos alunos e , nessa
medida, atuando na exclusão social dos alunos na escola, antes mesmo da exclusão
social promovida na sociedade.
A visão de escola e do processo de ensino-aprendizagem nos documentos internacionais
Os documentos a que temos nos referido formulam orientações gerais e
raramente chegam a detalhamentos em relação a aspectos pedagógico-didáticos. A
mencionada “melhoria da qualidade da educação” é quase sempre vista na lógica da
análise econômica, já que notoriamente, no caso do Banco Mundial, as políticas são
formuladas por economistas para serem executadas por educadores. Trata-se, no dizer
de Torres, de um modelo educativo que tem pouco de educativo, já que sofre de duas
ausências, os professores e a pedagogia, precisamente o âmbito em que seriam
contemplados os aspectos qualitativos que constituem a essência da educação
(TORRES, 1996) A mesma autora aponta que a dominância do discurso econômico
exclui o discurso propriamente educativo como as realizações da escola, as relações e
processos de ensino-aprendizagem na aula, o da pedagogia e da educação, bem como
seus profissionais como os professores e especialistas em educação, embora se afirme
nos documentos que as políticas educacionais se definem em nome da aprendizagem, da
escola e da sala de aula.
As políticas para a escola e sala de aula são contempladas nas Declarações
Mundiais mencionadas em três orientações: a) centrar a educação nas necessidades
básicas de aprendizagem; b) prover instrumentos essenciais e conteúdos da
aprendizagem necessários à sobrevivência; c) considerar a educação básica (ensino
fundamental no Brasil) como base para a aprendizagem e o desenvolvimento humano
permanentes. Com efeito, eis como aparece na Declaração Mundial de Jontien a noção
de aprendizagem:
Artigo 1 - Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem - Cada pessoa - criança,
jovem ou adulto - deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas
voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades
compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a
escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos
básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes),
necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas
potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do
desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e
continuar aprendendo. A amplitude das necessidades básicas de aprendizagem e a
maneira de satisfazê-las variam segundo cada país e cada cultura, e, inevitavelmente,
mudam com o decorrer do tempo.
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Ou seja, os conteúdos e métodos de educação precisam ser desenvolvidos para
servir às necessidades básicas de aprendizagem dos indivíduos e das sociedades,
proporcionando-lhes o poder de enfrentar seus problemas mais urgentes - combate à
pobreza, aumento da produtividade, melhora das condições de vida e proteção ao meio
ambiente - e permitindo que assumam seu papel por direito na construção de sociedades
democráticas e no enriquecimento de sua herança cultural.
Tão claras intenções parecem compatíveis com uma visão democrática da escola
para todos defendida por setores progressistas, ainda mais que são assentadas em
sólidos diagnósticos sobre a situação de analfabetismo, pobreza, falta de acesso à
população pobre aos conhecimentos e às tecnologias. No entanto, se examinadas tendo
em conta as políticas globais dos organismos financeiros internacionais, logo se verá
como foram impregnadas da intencionalidade economicista e pragmática. Verifica-se aí
uma visão instrumental de aprendizagem que ao longo das políticas dos órgãos
multilaterais vai adquirindo uma conotação cada vez mais pragmática e imediatista.
Numa compreensão mais restrita, a aprendizagem é vista meramente como necessidade
natural, desprovida de seu caráter cultural e cognitivo. O papel do ensino fica
dissolvido, reduzindo a possibilidade de desenvolvimento pleno dos indivíduos já que
crianças e jovens acabam submetidos a um currículo de noções “mínimas” e obrigados a
aceitar uma escola enfraquecida de conteúdos significativos.
No documento do Banco Mundial (2011) já mencionado, os laços entre a escola
e o mercado de trabalho são apresentados sem subterfúgios. Mantém aí uma escola de
conteúdos mínimos necessários ao trabalho e emprego, mas realça-se ainda mais a
noção de aprendizagem como aquisição de habilidades dissociadas do seu conteúdo e
significado pouco contribuindo para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e a
formação da personalidade. Define-se assim uma proposta de educação voltada para os
mais pobres visando atender suas necessidades mínimas, suficientes para empregos e
sobrevivência social.
Na Declaração de Dakar, que se seguiu à Conferência de Jontien, um dos
objetivos da Educação para Todos é “expandir e melhorar o cuidado da criança
pequena, especialmente para as crianças mais vulneráveis e em maior desvantagem”.
Entre as metas estão: promover políticas de Educação para Todos dentro de marco
setorial e sustentável, claramente articulado com a eliminação da pobreza e com
estratégias de desenvolvimento. É recomendado que os países desenvolvam planos
nacionais de ação os quais “devem ser integrados em um marco mais amplo de redução
da pobreza e desenvolvimento” (Declaração de Dakar, 2000). Nessa Declaração, a
educação para os pobres, baseada no princípio da satisfação de necessidades básicas de
aprendizagem, tem como meta a consecução de um padrão mínimo de qualidade.
Insiste-se que se trata de aprender “conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio,
aptidões e valores” definidos em níveis desejáveis de aquisição de conhecimentos
(competências) cujo desempenho deve ser avaliado. É notório que o padrão mínimo de
qualidade refere-se a um mínimo “básico” para um cidadão pobre para atender
necessidades imediatas ligadas principalmente ao trabalho, o que significa descartar o
conhecimento universal relacionado com a comunicação oral e escrita e às dimensões da
realidade física e social. No Documento de Dakar também fica explicito o conteúdo das
necessidades básicas da educação como saberes atitudinais no campo dos valores, das
competências, habilidades e relações pessoais (RABELO, MENDES SEGUNDO,
JIMENEZ, 2009, p. 10). Prioriza-se, assim, o desenvolvimento de competências em
detrimento dos conteúdos, com o argumento de que as competências cognitivas e
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sociais devem se sobrepor à mera informação, conteúdos subordinados às competências,
visando inclusão no mercado de trabalho. O básico se reduz ao conhecimento útil para o
mercado de trabalho2.
Os documentos das conferências internacionais acentuam, também, o papel
socializador e integrador da escola, visando à formação para a cidadania, especialmente,
para a solidariedade e diversidade social e cultural (SHIROMA, GARCIA E CAMPOS,
2011). Criticando esse modo economicista de encarar a diversidade, Falleiros escreve
que o papel da escola nessa perspectiva é formar para um tipo de cidadania, em que
“espírito de competitividade seja desenvolvido em paralelo ao espírito de
solidariedade”, levando a reduzir as diferenças e a miséria e amenizando a luta de
classes e as diferenças raciais, sociais, culturais entre tantas outras (2005, p.211).
O que se conclui, acompanhando Torres (2001, p. 40), é que se perdeu nessas
políticas o sentido “pedagógico” da escola, pois, as necessidades básicas de
aprendizagem transformaram-se num “pacote restrito e elementar de destrezas úteis para
a sobrevivência e para as necessidades imediatas e mais elementares das pessoas”. Ou
seja, os instrumentos essenciais de aprendizagem (domínio da leitura, da escrita, do
cálculo, das noções básicas de saúde, etc.) converteram-se em “destrezas” ou
habilidades para a sobrevivência social, bem próximas da ideia de que o papel da escola
é prover conhecimentos ligados à realidade imediata do aluno, utilizáveis na vida
prática, sem compromisso da escola com o desenvolvimento de formas superiores de
pensamento do aluno.
Em resumo, as políticas educacionais em curso sob auspícios dos organismos
internacionais carregam uma visão de escola em que há sobreposição da missão social
sobre a missão pedagógica. Currículo e escola são instrumentos para resolver problemas
sociais ou econômicos para minimizar os efeitos indesejáveis da pobreza em relação aos
interesses do mercado. Concebe-se escola como focada nas necessidades imediatas do
aluno, não no conhecimento e na aprendizagem, produzindo esvaziamento dos
conteúdos, já que predomina um currículo baseado em habilidades e competências
desprovidas de reflexividade. A valorização do discurso da diferença aparece como
estratégia de harmonização das relações sociais nos países pobres, como a esconder os
conflitos sociais e as desigualdades entre grupos e classes sociais. Condenados a
executar um currículo instrumental, os professores tem sua profissão banalizada e
desvalorizada.
As propostas de currículo escolar
As políticas para a escola, conforme vimos, apontam quatro orientações gerais:
ênfase na satisfação de necessidades básicas de aprendizagem, conteúdos de
aprendizagem e habilidades “mínimas” necessários à sobrevivência e ao trabalho,
avaliação do rendimento escolar pelos resultados de aprendizagem, papel socializador e
integrador da escola para a formação da cidadania e solidariedade. Vimos, também, que
tais traços identificam a escola de proteção aos pobres que visa a inserção deles no
sistema produtivo e, ao mesmo tempo, mantê-los num ambiente que favoreça a
Freitas cita, a esse respeito, um autor finlandês que, a propósito da definição de objetivos mínimos de ensino, comentou: “se você
definir objetivos mínimos para as escolas você sempre vai alcançar objetivos baixos, mínimos. É por isso que estabelecermos
objetivos elevados para todos...” (FREITAS, 2012, p. 389). O mesmo autor cita Saviani: “todos sabemos que a juventude mais
pobre depende fundamentalmente da escola para aprender; se for limitada suja passagem pela escola às habilidades básicas, nisso se
resumirá sua formação (p. 390).
2
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aprendizagem de valores e atitudes requeridos pela nova cidadania. Em princípio, o
modelo proposto realça dois papéis para a escola: transmitir um currículo instrumental e
imediatista e organizá-la como lugar de convivência e acolhimento social. Há razões
para se afirmar que este modelo consuma plenamente seus propósitos em projetos da
escola de tempo integral de vários Estados.
Nem sempre as duas características apontadas aparecem com clareza nas
propostas curriculares em andamento nos vários Estados brasileiros. Nos próprios
documentos oficiais elas não aparecem de forma sistematizada como apresentaremos
aqui, havendo, inclusive, diferenças entre recomendações do Banco Mundial e da
UNESCO. A despeito dessas dificuldades, no quadro das políticas neoliberais para a
escola, resultam ao menos duas concepções de currículo escolar, o currículo
instrumental, baseado numa pedagogia de resultados, e o currículo de proteção social,
que valoriza a adoção de formas de organização das relações humanas voltadas para a
convivência e integração social. Na implantação desses currículos no Brasil,
parecem existir três situações nos sistemas de ensino: a) os que conjugam esses dois
modelos; b) os que focam mais o currículo instrumental; c) os que focam o currículo de
proteção social. A escolha de uma dessas situações por parte dos sistemas escolares
estaduais e municipais varia conforme preferências ideológicas e políticas dos dirigentes
da educação.
O currículo instrumental tem um viés acentuadamente economicista, deve estar
ligado a necessidades imediatas dos alunos para o trabalho e emprego. São oferecidos
conteúdos mínimos definidos a partir de objetivos de competências mensuráveis,
avaliados por testes cujos resultados servirão para premiação das melhores escolas e
melhores professores. É fundamental o estabelecimento de metas quantitativas e
verificação de resultados, cujo verdadeiro objetivo é regular de cima o sistema de
ensino. O currículo de proteção social visa oferecer um ambiente de integração e
acolhimento social, com base interesses e experiências comuns dos alunos, opondo-se
ao currículo por disciplinas. Embora visto como forma de integração entre
conhecimento e experiência por meio de projetos, carece de conhecimentos sistemáticos
e ordenados. O primeiro tipo de currículo tem sido adotado em vários Estados
brasileiros, não sem resistência dos professores, enquanto que o segundo tem a
preferência das orientações do governo federal. Há indícios em sistemas estaduais de
aplicação dos dois modelos concomitantemente, já que nas orientações curriculares dos
organismos multilaterais não são considerados incompatíveis.
As análises que fizemos nos tópicos anteriores anteciparam as críticas a estes
dois modelos curriculares que vêm caracterizando as políticas educacionais no Brasil.
Partindo de críticas à pedagogia tradicional pelo seu caráter especulativo, o
conhecimento por si, obsolescência dos conhecimentos, caráter pouco prático, foi-se
para outro extremo, o treinamento de habilidades, seja em relação a questões práticas da
leitura, escrita e cálculo seja em relação a um currículo imediatista para a
empregabilidade. Este modelo, implantado em meio a múltiplas contradições entre
orientações impostas pelos sistemas de ensino e a cabeça do professorado, reduzem o
currículo e o planejamento escolar, a avaliação, a padrões técnicos e racionais, perdendo
a peculiaridade do ato educativo, a formação humana, que o desenvolvimento
intelectual, a capacidade reflexiva. Um currículo que se fixa apenas nas habilidades
dissociadas do seu conteúdo e significado pouco contribui para o desenvolvimento das
capacidades cognitivas. Seu principal problema é negar validade ao conhecimento
universal, é fazer pouco dos conteúdos ou ao limitar o papel da escola ao acolhimento
11
social, é negligenciado o desenvolvimento das capacidades e habilidades de
pensamento. O currículo por resultados restringe-se a oferecer aos alunos conhecimento
instrumental, de caráter imediatista e pragmático. O currículo de proteção social
restringe-se a práticas de convivência social, mantém-se atrelado à experiência corrente
dos alunos, ainda que deem importância a problemas sociais, respeito à diversidade
social e cultural (ingredientes humanamente atraentes). Em ambos se perde o sentido de
escola, o sentido do pedagógico, por onde se viabilizam as condições psicológicas e
pedagógico-didáticas para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos.
A busca da justiça social na escola pela proposta de uma formação cultural e cientifica
articulada à diversidade social e cultural
Em paralelo à trajetória das políticas oficiais de ensino sob influência de
organismos internacionais, há que se considerar o rumo que vêm tomando as pesquisas
em educação e as posições dos educadores progressistas sobre as políticas educacionais
e políticas para a escola e a sala de aula. Cumpre registrar, antes de tudo, que o campo
progressista de educadores indubitavelmente está alinhado em torno da luta pela escola
pública obrigatória e gratuita para toda a população, dentro de uma escola organizada
socialmente e pedagogicamente para acolher a diversidade em suas mais diversas
expressões: econômicas, sociais, culturais, étnico-raciais, de gênero e sexuais,
religiosas. No entanto, quando se trata de transformar esse posicionamento em formas
de organização e funcionamento da escola e em ações pedagógicas e didáticas, surgem
divergências e desacordos.
Há uma grande diversidade de propostas curriculares e pedagógicas no meio
acadêmico (LIBÂNEO, 2005). No entanto, dois posicionamentos se destacam
(LIBÂNEO, 2006). O primeiro defende um currículo de experiências educativas, isto é,
a formação por meio de experiências socioculturais vividas em situações educativas
(acolhimento da diversidade, práticas de compartilhamento de diferentes valores e de
solidariedade, atividades sobre problemas da vida cotidiana, etc.). O centro do currículo
são os conhecimentos locais, a vida cotidiana dos alunos, os saberes e experiências da
comunidade, etc., com forte empenho em promover a inclusão social e ampliar a
participação, posição que se aproxima tanto de concepções de Dewey (escola como
prolongamento simplificado e organizado das atividades sociais cotidianas) e Freire,
como das pedagogias do cotidiano e dos estudos culturais, entre outras. O segundo
posicionamento defende um currículo assentado na formação cultural e científica em
interconexão com as práticas socioculturais. Tendo como pressuposto que a escola é
uma das mais importantes instâncias de democratização da sociedade e promoção de
inclusão social, cabe-lhe propiciar os meios da apropriação dos saberes sistematizados
formados socialmente, como base para o desenvolvimento das capacidades cognitivas e
a formação da personalidade, por meio da atividade de aprendizagem socialmente
mediada. Além do mais, ensina-se a alunos concretos, razão pela qual se faz necessário
ligar os conteúdos às práticas socioculturais e institucionais (e suas múltiplas relações)
nas quais os alunos estão inseridos. Esta concepção é, geralmente, fundamentada em
autores da teoria histórico-cultural, para quem a formação das funções psicológicas
superiores decorre da atividade sócio-histórica e coletiva dos indivíduos expressa em
múltiplas formas de mediação cultural do processo do conhecimento, incluindo aí o
papel central do ensino na promoção do desenvolvimento mental.
As abordagens sociocríticas mencionadas efetivamente divergem em relação aos
objetivos da escola, à concepção de conhecimento e em como se articulam os processos
12
escolares e a diversidade social. O campo de disputas entre elas é demarcado por
tensões existentes entre a exigência social e democrática de escolarização formal a todas
as crianças e jovens e, ao mesmo tempo, a necessidade de as escolas se organizarem de
forma adequada para o acolhimento da diversidade social e cultural expressa pelas
diferenças individuais e sociais entre os alunos (LIBÂNEO, 2012). É provável que boa
parte das diferentes posições de educadores críticos em relação aos objetivos da escola
pública estejam pautadas por essa polarização. Com efeito, a redução do currículo a
vivências socioculturais dos grupos sociais atendidos poderia estar se distanciando dos
conhecimentos universais constituídos na experiência sociocultural da humanidade. A
outra posição, ao fazer prevalecer proposições universalizantes (o direito ao
conhecimento e à formação das capacidades intelectuais) poderia não dar o devido peso
às implicações da diversidade social nas situações pedagógicas. Muitos educadores
inseridos na prática escolar se perguntam sobre a possibilidade de uma solução
pedagógica de reunião dessas duas posições. Defender a imprescindibilidade dos
conteúdos como referência para o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos
alunos leva a rejeitar o papel das culturas particulares, das diferenças socioculturais?
Será possível conciliar a posição relativista, em que os valores e práticas são produtos
socioculturais, portanto, resultantes do modo de pensar e agir de grupos sociais
particulares, com a exigência "social" de prover a formação geral, acessível a todos,
independentemente de contextos particulares? Seria pedagogicamente viável prover os
alunos dos conteúdos científicos sem deslegitimar as práticas discursivas dos alunos a
partir de seus contextos de vida?
Advoga-se aqui a aposta num currículo baseado no conhecimento crítico que
incorpora as práticas socioculturais e introduz a diversidade social e cultural nos
conteúdos. A visão de escola centrada na formação cultural e científica realça a
universalidade da cultura escolar de modo que à escola cabe transmitir, a todos, os
saberes públicos que apresentam um valor, independentemente de circunstâncias e
interesses particulares, em razão do direito universal ao conhecimento. Por outro lado,
como a escola lida com sujeitos diferentes, cabe considerar no ensino a diversidade
cultural, a coexistência das diferenças, a interação entre indivíduos de diferentes
identidades culturais. Isso significa reconhecer que as práticas socioculturais que
crianças e jovens compartilham na família, na comunidade e nas várias instâncias da
vida cotidiana são, também, determinantes na apropriação do conhecimento e na
formação da identidade pessoal e cultural, sendo que elas aparecem na escola tanto
como contexto da aprendizagem quanto como conteúdo (HEDEGAARD e CHAIKIN,
2005, p.25). Isto quer dizer que o desenvolvimento do pensamento no processo de
apropriação dos conteúdos científicos, precisa estar articulado com as formas de
conhecimento cotidiano das quais o aluno participa na família, na escola ou na
comunidade local. Há, pois, uma relação entre o desempenho escolar e as práticas das
quais ela participa. Trata-se, assim, de uma didática crítica atravessada pela perspectiva
intercultural em que se articulam, num mesmo processo, o universal e o particular. A
unidade entre a formação cultural e científica e as práticas interculturais requer dos
professores não apenas uma atitude humanista aberta à diferença mas, principalmente, a
incorporação dessa relação no cerne tanto das práticas de organização e gestão da escola
e da sala de aula como na própria metodologia de ensino. Desse modo, essa pedagogia
propõe um processo de ensino-aprendizagem que ensina a pensar por meio dos
conteúdos atuando na formação de capacidades intelectuais dos alunos e que considera
os motivos dos alunos no trabalho com o conteúdo e as práticas socioculturais em que
os alunos participam na família, na comunidade, na escola...
13
Considerações finais
Para uma pauta de investigação de problemas e de propostas de ação para a
revalorização da escola pública brasileira são sugeridos os seguintes pontos:
1) Mobilizar nossa consciência social e política para responder a esta pergunta:
em se tratando dos interesses das camadas mais pobres da sociedade, para que serve a
escola? Quais são os propósitos específicos das escolas? Mas as respostas não podem
mais dadas por genéricas como “qualidade social da educação”, “atendimento à
diversidade social e cultural”, etc. É preciso saber o que é necessário fazer
pedagogicamente para efetivar essas intenções, considerando o mundo real das escolas e
salas de aula. O que confere qualidade ou não aos sistemas de ensino são as práticas
escolares, as práticas de ensino, ou seja, o que se ensina, o como se ensina e o que o
aluno faz com o que aprende.
2) Reiterar a importância do papel da educação e do ensino no desenvolvimento
mental e formação da personalidade dos alunos, por meio da formação e atuação com
conceitos científicos. A meu ver, um dos males principais das políticas internacionais
neoliberais é o esvaziamento dos conteúdos na escola, conforme foi demostrado neste
texto. Penso que o nuclear da escola não é o aluno, não é o acolhimento social, embora
tenhamos o dever de ensinar e acolher nossos alunos. O centro da escola é o
conhecimento, no sentido de processo mental do conhecimento, de meio de
desenvolvimento de capacidades intelectuais, em que os conteúdos são meios de
formação de conceitos e formação de processos mentais. Isto confere com a formulação
de Vigotski: pelos conceitos científicos ultrapassamos o nível do empírico. Dizendo isso
de outra maneira, a escola trata os objetos, a realidade, o mundo, como objetos de
pensamento, ela não pode ser apenas um lugar de propiciar experiências. A escola conta
com a experiência, mas tem que ir para alem da experiência cotidiana. Charlot
exemplifica esse tema: o ambiente de vida no Rio, a relação das crianças com o Rio
devem ser referência para ensinar geograficamente o Rio. Mas o Rio em que os alunos
vivem é um lugar de experiências. O relacionamento das crianças com o conceito cidade
do Rio transforma-se em “objeto de pensamento”, em conceito. Ai o Rio é pensado em
relação ao governo, ao comercio, às relações sociais, e não apenas em relação à
experiência vivida (CHARLOT, 2009).
3) A valorização da formação cultural e científica, vale dizer, dos conteúdos
(conhecimentos habilidades, valores), não pode ser feita em detrimento do acolhimento
da diversidade social e cultural. Nós professores temos sim que acolher a diferença,
propiciar o compartilhamento de diferentes culturas, diferentes valores, cultivar o
respeito à diversidade cultural, étnica, de gênero, sexuais, religiosas. No entanto, é
preciso uma resposta dos pedagogos para superar a tensão entre exigência democrática
de formação cultural e científica para todos e, ao mesmo tempo, do acolhimento à
diversidade social e cultural. Acredito no lema proposto por Sacristán: uma escolaridade
igual, para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum.
4) Proponho uma atuação decisiva dos governos (federal, estadual, municipal)
nas questões intraescolares, isto é, naqueles elementos dentro da escola que asseguram
um ensino-aprendizagem de qualidade. Refiro-me à gestão pedagógico-curricular, às
condições de ensino-aprendizagem, à assistência pedagógica direta ao professor na sala
de aula, à infraestrutura e material de estudo para o aluno. A desatenção aos fatores
intraescolares é outra estratégia maléfica das políticas educacionais internacionais.
Essas políticas postulam a responsabilização da escola e dos professores pelos
14
resultados de desempenho escolar dos alunos, deixando as condições físicas e materiais
de lado. Ou seja, o sistema de ensino estabelece as metas e as escolas que se virem para
cumpri-las. Mas com que meios concretos as escolas podem se virar? Onde estão os
salários e as condições de trabalho dos professores? Qual é o estado das instalações
físicas e equipamentos das escolas? O que tem sido feito em relação à efetiva assistência
pedagógica aos professores na sala de aula? É a isto que chegamos com a política
educacional de resultados!
5) Finalmente, é claro que tudo isto envolve a formação de professores, a
profissionalização dos professores, boas práticas de organização e gestão da escola, etc.
Em síntese, tratas-se de apostar numa pauta comum pela escola pública na qual
todos os educadores estejam envolvidos. Vamos lutar por políticas educacionais
democráticas e includentes, mas que deem atenção ao trabalho na escola e na sala de
aula. Vamos resgatar a bandeira que, no Brasil, paradoxalmente, vem sendo assumida
por setores do empresariado, no movimento chamado Todos pela Educação.
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