Tributação e desenvolvimento na China: transição e ajustes para

Propaganda
UniCeuB
From the SelectedWorks of Ivo Teixeira Gico Jr.
Summer April 10, 2012
Tributação e desenvolvimento na China: transição
e ajustes para um sistema compatível com os
signatários da OMC
Ivo T. Gico, Jr.
Marcos Aurélio P. Valadão
Wilson Almeida
Available at: http://works.bepress.com/ivo_teixeira_gico_junior/52/
Com Ciência - SBPC/Labjor
Página 1 de 4
REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Tributação e desenvolvimento na China: transição
e ajustes para um sistema compatível com os
signatários da OMC
Por Ivo Gico Jr.
Marcos Aurélio Pereira Valadão
Wilson Almeida
10/04/2012
Nos últimos 60 anos, o mundo testemunhou uma verdadeira revolução à medida que a
China, que corresponde a aproximadamente um quinto da população mundial, deu uma
guinada de uma economia comunista na direção de uma economia de mercado, embora
com forte controle e intervenção estatal, e, com isso, alcançou um desenvolvimento
inédito em sua longa história. A forma como a China tem lidado com a tributação de
sua economia tem um papel relevante nessa história.
Após o estabelecimento da República Popular da China, em 1949, por um longo
período, a população chinesa sofreu com políticas e medidas econômicas que se
mostraram incapazes de fornecer à população condições mínimas de sobrevivência. De
início, foi implantado um sistema econômico administrativo no estilo soviético, isto é,
em que o governo era o responsável por todas as decisões acerca do que, como e para
quem produzir, praticamente eliminando a iniciativa privada. Nesse sistema, todos os
ativos produtivos se tornaram propriedade do governo, que tinha o comando sobre os
recursos, incluindo terras, energia, e mesmo as pessoas tinham sua ação e mobilidade
limitada.
Obviamente, em um sistema em que o governo comanda os fatores produtivos, não é
necessário utilizar um mecanismo sofisticado de tributação, pois essa tecnologia jurídica
é, em larga medida, substituída pelo comando direto. De 1958 a 1978, a indústria e o
comércio eram praticados apenas por empresas públicas, que entregavam seus lucros
integralmente ao governo e uma tributação sobre o faturamento era utilizada apenas
para facilitar a transferência de fundos aos cofres públicos.
Com tamanho poder em mãos, em 1958, Mao Tse-tung lançou sua mais ambiciosa
política, o “Grande Salto Adiante”, um plano quinquenal cujo objetivo era transformar a
China rapidamente em um país industrializado. A estratégia era forçar a industrialização
e a coletivização das terras. O resultado: um dos maiores desastres da história da
humanidade, com dezenas de milhões de mortos e crise econômica.
Para sobreviver ao retumbante fracasso, Mao Tse-tung lançou uma campanha
ideológica para “varrer de vez os valores capitalistas”, a Revolução Cultural, que durou
até sua morte em 1976, quando reformistas gradualmente assumiram o poder. Durante
a Revolução, não havia regras jurídicas claras e o papel da tributação foi praticamente
desconsiderado.
Em 1978, Deng Xiaoping expressamente mudou o foco chinês de uma disputa política
ideológica para a busca do desenvolvimento econômico, quando disse que “não importa
se um gato é branco ou preto, desde que ele capture ratos.” Nesse contexto, foi
tomada a decisão política de, paulatinamente, voltar a permitir que o mercado alocasse
os recursos dentro da sociedade, o que requeria devolver autonomia e liberdade aos
cidadãos, ainda que limitada. Os pilares da mudança: abrir a China para investimentos
estrangeiros e reformar o sistema econômico doméstico, o que ainda está em
andamento.
Com o retorno ao sistema de mercado, foi necessário reestruturar o sistema tributário
chinês, não apenas para gerar receitas para que o governo pudesse se financiar e
implementar suas políticas, mas também como um mecanismo de intervenção e
regulação de atividades econômicas e sociais que seriam gradativamente devolvidas à
população.
A relação da política tributária chinesa com o seu histórico de desenvolvimento é, em
vários aspectos, única, pois a China, um país socialista comandado por um Partido
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=76&id=951&print=true
10/04/2012
Com Ciência - SBPC/Labjor
Página 2 de 4
Comunista, optou por uma mudança gradual e pragmática de uma economia
centralmente planejada para uma economia de mercado “socialista”, ao invés de dar
um choque de reformas econômicas. Essa mudança ainda está em andamento e sua
direção é incerta.
Uma das coisas que chama a atenção de estudiosos em relação ao sistema chinês é que
certamente ele é um exemplo de sucesso econômico. Todavia, o desenvolvimento
econômico não foi acompanhado de forma equânime pelo desenvolvimento social e,
muito menos, por um desenvolvimento de direitos (dentro da noção de Estado de
Direito). Obviamente essa constatação causa algum desconforto aos defensores dos
direitos e da democracia como pré-condições para o desenvolvimento.
O sistema tributário chinês é, em termos de estrutura de incidência, parecido com o
sistema brasileiro e os demais sistemas tributários do mundo, mesmo porque em várias
áreas, como a tributação da renda de investidores estrangeiros, a China importou seu
modelo. Hoje em dia, o sistema tributário chinês inclui imposto de renda (nosso IR),
imposto sobre o consumo não-cumulativo ou Imposto sobre Valor Agregado – IVA (que
tem certa semelhança com os brasileiros ICMS e PIS-COFINS na sua modalidade nãocumulativa, embora com incidência mais simplificada), tributação sobre propriedade
(semelhantes aos nossos IPTU e IPVA) e outros tipos de tributos sobre algumas
atividades comerciais (por exemplo, imposto sobre serviços bancários e seguros). O
IVA é o imposto que mais arrecada. Essa coexistência do IVA com outros tributos
comerciais é um problema do imposto sobre o consumo. O IVA é cobrado pelo governo
central, mas repartido com os governos locais. Veja-se que as reformas tributárias
iniciadas na China a partir do início da década de 1980 foram fundamentais para esse
alinhamento aos sistemas tributários ocidentais, e crucial para a aceitação da China na
Organização Mundial do Comércio (OMC). Por outro lado, essa aceitação foi o fator que
marcou a inserção da China no mercado internacional.
O estabelecimento de um sistema tributário moderno era considerado essencial pelo
governo chinês para o sucesso da transição, estruturada em um sistema de pista dupla:
haveria um sistema tributário ocidentalizado aplicável aos investidores estrangeiros e
um sistema tributário inteiramente chinês para seus cidadãos e empresas.
De um lado, o sistema tributário para estrangeiros começou a ser implementado em
1980, com o Imposto de Renda Individual (sobre estrangeiros), o Imposto de Renda
sobre Investimento em joint ventures e o Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas
Estrangeiras, do ano seguinte. Também foi revivida a tributação sobre faturamento com
o Imposto Consolidado sobre Indústria e Comércio, originalmente de 1958. Por outro
lado, o sistema doméstico foi implantado em 1983 e 1984, com a li gai shui, isto é,
substituição da entrega de lucro pelas empresas públicas por impostos, tributos
individualizados para novas empresas, impostos sobre o faturamento e vários outros
tributos sobre propriedades e transações.
Desde 1986, esse sistema de pista dupla vem evoluindo gradativamente, de acordo
com a evolução das condições de mercado na China. Na década de 1980, quando a
economia ainda estava se estruturando, regras mais rígidas foram usadas para
controlar o surgimento e a ação de empresas. Na década de 1990, a disparidade de
condições de concorrência entre empresas nacionais e estrangeiras levou à evolução do
sistema, com a reforma tributária de 1994, que caminhou no sentido de unificação dos
sistemas e de uma tributação mais neutra em relação à origem do investimento Assim
como no Brasil, em vários aspectos, a discriminação chinesa era em detrimento do
nacional em favor do estrangeiro para atrair investimentos. A reforma de 1994 também
resultou na introdução do IVA chinês, que permite a devolução do imposto acumulado
na cadeia produtiva, nas operações de exportação, permitindo maior competitividade
das exportações chinesas. Um indicador da agressividade da mudança chinesa em
direção aos mercados internacionais é a constatação de que em 1983 a China não tinha
sequer um tratado bilateral para evitar a dupla tributação, sendo que hoje tem mais de
90 desses tratados (inclusive com o Brasil).
Esse ímpeto reformista foi coroado com a aceitação da China na OMC em 2001, que a
obrigou a revogar milhares de regras e regulamentos, liberalizando ainda mais a sua
economia. O Imposto de Renda Uniforme para Empresas, de 2007, aparentemente,
marca o fim da discriminação tributária entre nacionais e estrangeiros na China em
questões tributárias.
A estrutura tributária chinesa é curiosa em vários aspectos. Mais de 60% das receitas
totais são oriundas de tributação indireta (o que inclui a tributação sobre o consumo),
que na perspectiva chinesa está associada ao faturamento (liu zhuan shui). Cerca de
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=76&id=951&print=true
10/04/2012
Com Ciência - SBPC/Labjor
Página 3 de 4
30% das receitas decorrem do Imposto de Renda, que tem crescido mais do que a
tributação sobre o consumo. Importante notar que até hoje o Imposto de Renda guarda
diferenças materiais para nacionais e estrangeiros, sendo bem mais detalhado e
limitante para os primeiros. Por fim, cerca de 8% das receitas advêm de impostos sobre
a propriedade.
É importante notar que até 2011 a China não impunha tributação sobre a propriedade
de residências, apenas sobre imóveis comerciais, o que é visto por vários especialistas
como parte da explicação do boom imobiliário que a China presenciou nos últimos anos.
Como manter uma casa não impunha custos adicionais aos proprietários, eles poderiam
facilmente investir em uma segunda ou terceira casa e ficar livres de impostos. A
especulação imobiliária e a preocupação com a inflação, todavia, levaram algumas
províncias como Xangai e Chongqing a experimentarem em 2011 a criação de impostos
sobre casas adicionais. A primeira casa, no entanto, continua isenta do imposto.
Por outro lado, como os governos locais contavam com os impostos sobre vendas de
imóveis para financiar suas grandes dívidas, a queda no número de vendas decorrente
da criação de um imposto sobre imóveis residenciais tem gerado muita preocupação.
Como se pode ver, quando se trata de sistema tributário, a questão nunca é simples e
faz lembrar o enigma que tem sido levar adiante a reforma tributária brasileira,
tamanho é o conflito de interesses envolvidos. O cobertor é sempre curto.
Nesse sentido, o país enfrenta um grave problema de distribuição tributária. Como a
China é um estado unitário, a tributação é competência do governo central, mas as
obrigações são, em larga medida, locais, ou seja, alguns tributos são administrados e
arrecadados localmente. Há tributos centrais, locais e os chamados impostos
partilhados (entre o governo central e os governos locais). Há uma forte
descentralização fiscal. De acordo com a Administração Fazendária Chinesa, em 2011, o
governo central apropriou-se de 51,1% de todas as receitas, enquanto os governos
locais ficaram com apenas 48,9%. Essa enorme disparidade é o resultado direto da
reforma tributária de 1994, pois, no ano anterior, a proporção era de 22% para 78% e,
desde então, tem se mantido no atual patamar de mais 50% para o governo central e o
restante para os locais.
Um problema semelhante, mas em um contexto de federalismo fiscal, é enfrentado pelo
Brasil, onde os estados e municípios têm alguma competência tributária, mas a forma
da repartição das competências na tributação do consumo e a falta de uma política
eficaz de desenvolvimento regional, têm levado à guerra fiscal e à desorganização pelo
excesso de sobreposição tributária nessa base de incidência (consumo). Fato é que a
administração fazendária unificada na China lhe proporciona enormes benefícios em
termos de planejamento, gestão e controle, mas a disparidade de distribuição já se
tornou um perigoso problema para a estabilidade e manutenção de seu ritmo de
crescimento.
Estabilidade e crescimento, inclusive, têm sido os mantras que conduzem as políticas
tributárias chinesas. Algumas perguntas são fundamentais para entender esse dilema.
Como manter o crescimento estrondoso dos últimos anos de forma sustentável? Como
minimizar a enorme disparidade na distribuição de renda que se tornou característica
da economia chinesa? Como imprimir mais competitividade às empresas públicas, ainda
importantes fontes de receitas públicas? Essas questões têm ocupado as mentes mais
brilhantes do governo chinês.
Como visto, historicamente, o governo chinês tem sido muito dependente das receitas
oriundas das empresas públicas. Todavia, com o crescimento da iniciativa privada e a
maior abertura da economia, essas empresas têm enfrentado dificuldades e sua
lucratividade tem caído ano a ano, enquanto a do setor privado vem crescendo a
passos largos. Essa mudança estrutural imporá ao governo chinês a necessidade de
alteração do sistema tributário em vigor, inclusive para melhorar a aplicação e cobrança
das normas.
De olho nessas questões, no final de 2011, a Conferência Central de Trabalhos
Econômicos, um dos principais encontros políticos sobre questões econômicas na China,
atribuiu grande peso a medidas tributárias e nomeou cinco principais objetivos para o
ano de 2012: (a) um programa piloto de um Imposto sobre Valor Agregado – IVA, em
Shangai, com objetivo de ampliar a base de incidência desse imposto, aproximando-o
mais do modelo europeu; (b) um ajuste no imposto sobre propriedade; (c) reestruturar
a tributação sobre o consumo; (d) aumentar a tributação sobre recursos naturais; e (e)
estudar a viabilidade da tributação sobre a emissão de carbono (um imposto
ambiental). Qualquer semelhança com a necessidade brasileira de reforma no setor não
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=76&id=951&print=true
10/04/2012
Com Ciência - SBPC/Labjor
Página 4 de 4
é mera coincidência.
Há uma grande preocupação em relação à sustentabilidade do crescimento chinês, que
atinge não só o governo da China, mas o restante do mundo. Uma boa notícia recente é
o aumento da tributação sobre recursos naturais. A partir de 2010, houve uma
mudança de tributação sobre as vendas de petróleo cru e gás, o que gera incentivos
para que as empresas se tornem mais eficientes e, portanto, produzam mais com
menos. Como essa tributação sobre vendas é local e, portanto, o tributo é arrecadado
pelos governos locais, essa receita extra pode reduzir problemas de coordenação entre
extratores de renda (quem vende) e pagadores de custos externos (população),
reduzindo externalidades e incentivando a exploração sustentável de recursos. Do
ponto de vista social, essa renda extra também poderá ajudar regiões pobres mas ricas
em recursos naturais, na parte ocidental da China, a reduzir o hiato que há, não apenas
entre a população rural e a urbana, mas também entre a China Oriental (rica) e a
Ocidental (pobre).
Parte desses esforços de reformulação do sistema tributário se orienta às pequenas e
médias empresas, responsáveis pela maior parte da atividade econômica, para que
possam crescer e se tornar mundialmente competitivas. Note-se que as mudanças
sugeridas – em geral – não são no sentido de se criar privilégios ou benefícios
temporários para este ou aquele setor favorecido pelo governo, mas de desenvolver e
refinar o sistema tributário, tornando-o mais racional e eficiente.
Além disso, com a crise mundial, iniciada nos Estados Unidos, em 2007-2008, e
atualmente com importantes consequências sobre a Europa, a China começou a prestar
mais atenção ao seu mercado interno, razão pela qual, já no início de 2012, houve
sinais das autoridades fiscais chinesas no sentido de que seria reduzido o Imposto de
Importação de mais de 700 categorias de bens, incluindo recursos energéticos e partes
e componentes de indústrias emergentes estratégicas que possam promover o
consumo. No mesmo sentido, a simplificação do sistema tributário e a redução de
tributos serão acompanhadas de aumento de renda das famílias de baixa renda e a
construção de uma classe média mais forte, bem como maiores investimentos em
saúde e educação.
Se o objetivo da China é construir uma sociedade xiaokang, na qual as pessoas em
geral não sejam ricas, mas tenham acesso adequado à comida, vestimenta e outras
necessidades materiais necessárias para uma vida decente e de forma sustentável,
então, mudanças terão de ser realizadas. Se a China será capaz de implementar essas
mudanças no ritmo e na profundidade necessários para sustentar o maior crescimento
econômico do mundo, mantendo ao mesmo tempo estabilidade política e social, bem
como reduzindo as desigualdades sociais e regionais e sem destruir o meio ambiente, é
uma pergunta que apenas o futuro pode responder. Mas a aparência de que eles
estejam se movimentando nesse sentido nos deixa com um amargo gosto de inveja na
boca: não deveríamos estar fazendo o mesmo?
Ivo Gico Jr. é professor de análise econômica do direito da Universidade Católica de
Brasília e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia.
Marcos Aurélio Pereira Valadão é conselheiro do Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais, membro do Comitê de Peritos em Cooperação Tributária da ONU e
professor da pós-graduação em direito da Universidade Católica de Brasília.
Wilson Almeida é diretor do curso de relações internacionais e professor da pósgraduação em direito da Universidade Católica de Brasília.
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=76&id=951&print=true
10/04/2012
Download