PROCESSO CIVIL E CODIFICAÇÃO

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PROCESSO CIVIL BRASILEIRO E CODIFICAÇÃO
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira
Professor Titular de Processo Civil da Faculdade de Direito da UFRGS
Advogado e Parecerista em Porto Alegre RS
Palestra Proferida em Evento em Homenagem a Paolo Grossi, realizado na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
1.
No domínio processual, o Código de Processo Civil de 1973 na
sua versão originária, fruto direto do projeto elaborado por Alfredo Buzaid,
constitui sem dúvida alguma o último herdeiro brasileiro da tradição
codificadora.
Constata-se, aí, claramente, a ideia de sistema, na medida em
que se busca ordenar de maneira unitária o fenômeno processual. Todavia, na
quadra em que desenvolvia suas concepções jurídicas, o sistema do novo
Código se inseria em uma noção já ultrapassada, estreitamente vinculada a
uma visão positivista 1. Um sistema fechado com previsões normativas rígidas,
poucas cláusulas gerais, e inclusive preocupado em definir determinados
institutos jurídicos
2
.
Essa insistência em estabelecer conceitos e definir
institutos processuais está ligada aos velhos paradigmas pandetísticos da
autonomia do direito e do papel sistematizante da ciência jurídica. Quase uma
1
Emblemático, nesse sentido, o disposto no art. 126, 2ª parte, do CPC: “O juiz não se exime de
sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caberlhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos
princípios gerais do direito.” Como se vê, não há nenhuma abertura para a aplicação das
normas constitucionais, só as legais. Por outro lado, a equidade só poderá ser empregada nos
casos previstos em lei (CPC, art. 127).
22
Em conferência proferida na Universidade de Keyo, Linhas Fundamentais do Sistema do
Código de Processo Civil Brasileiro, in Estudos e Pareceres de Direito Processual Civil, com
notas de Ada Pellegrini Grinover e Flávio Luiz Yarschell, São Paulo, Revista dos Tribunais,
2002, p. 34, Buzaid obtempera que é “lícito ao legislador pôr de margem o conhecido adágio —
omnis definitio in iure civile periculosa est (D. 50.17.202) — e, sem qualquer receio, assumir a
responsabilidade de definir os institutos sempre que esse comportamento conduz a dissipar
dúvidas. O perigo não está em definir, mas em definir erroneamente”. E chega até a propugnar
que não se deve transferir “à doutrina e à jurisprudência a obrigação de suprir a lacuna; uma e
outra propõem soluções, ora aceitáveis, ora desconformes, que, adotadas pelos tribunais
geram dissídios na inteligência da lei.”
2
defesa contra o “bartolismo”
3
, típico da tradição luso-brasileira, que era
corrente na jurisprudência brasileira na época em que Buzaid elaborou o
projeto,
verificando-se
então
grande
abertura
para
a
doutrina
nos
pronunciamentos judiciais.
2.
O sistema assim concebido visava a regular relações puramente
individuais, ressaltar a autoridade do juiz, ordenar e sistematizar o sistema
recursal, estabelecer enfim as regras do jogo. Portanto, à base de tudo
encontrava-se uma visão liberal vinculada essencialmente ao valor da
segurança jurídica 4. Talvez o exemplo mais frisante esteja na total ausência
de referências a demandas de cunho social e coletivo, a se refletir na extensão
da legitimidade, da coisa julgada, nos poderes do juiz e de modo geral em toda
a conformação do próprio Código.
No entanto, não se pode deixar de levar em consideração o
contexto da época, visto que o Código Buzaid nasceu no âmbito de uma
ditadura militar, de um sistema político que tinha pretensões de estabelecer,
na esteira do ensinamento de Hobbes, a calculabilidade das ações 5, finalidade
também de interesse do capitalismo selvagem que então se instalou no Brasil,
3
Na acepção de Clóvis do Couto e Silva, a expressão “bartolismo” indica o fato de refletirem as
sentenças judiciais as opiniões de autores de diversos sistemas jurídicos, servindo-se os juízes
de autores nacionais e de outros países, como se existisse ainda um ´Direito Comum`
supranacional” (apud Judith Martins-Costa, A Boa-Fé no Direito Privado, São Paulo, Revista
dos Tribunais, 1999, p. 241).
4
Natalino Irti, L´étà della decodificazione, 4ª ed., Milano, Giuffrè, 1999, p. 22, sempre no marco
da codificação do direito privado, observa, com argúcia, que a segurança não concerne ao
atendimento do fim, mas às regras do jogo, ou seja, às condições pelas quais cada um pode
contar com a conduta de outrem ou esperar certo uso do poder coercitivo do Estado.
5
Hobbes, De Cive, VI, 9: “E as leis civis não são senão comandos de quem é investido do
poder supremo do Estado, em relação às ações futuras dos cidadãos” (apud Natalino Irti,
Códice civile e società política, Roma-Bari, Laterza, s/data, p. 23).
3
em que a previsibilidade contribui em larga medida para diminuir os riscos
econômicos 6.
Por isso, Buzaid empresta grande importância ao fator técnico,
colocando na sombra o plano axiológico. No seu entender, um Código de
Processo é uma instituição eminentemente técnica, não constituindo o
processo civil, como um complexo de normas, um produto claramente nacional,
que deva expressar os costumes do povo 7.
Na feição técnica, granjeou significativa influência a doutrina de
Liebman, com seus esquemas e conceitos dogmáticos, dos quais o mais
evidente foi o acolhimento legislativo das famosas três condições da ação
(interesse, legitimidade e possibilidade jurídica do pedido), conhecíveis de
ofício pelo juiz, cuja ausência conduz ao decreto de carência da ação e à
extinção do processo sem julgamento do mérito.
Outro aspecto relevante do Código de 1973 centra-se no
isolamento de três funções processuais distintas, a que correspondem três
processos distintos: a função de conhecimento, a função executiva e a função
cautelar. No processo de conhecimento, o juiz só conhece; no de execução, só
executa. Ao lado do processo de conhecimento e de execução, e com função
manifestamente auxiliar, o processo cautelar visava a assegurar o resultado útil
6
Não por acaso, a legislação extravagante da época atribuiu aos setores mais dinâmicos da
burguesia uma série de privilégios, instituindo procedimentos especialíssimos para a solução
acelerada das demandas que lhes dissessem respeito. Ver sobre o ponto Carlos Alberto Alvaro
de Oliveira, Procedimento e ideologia no direito brasileiro atual, Revista da Ajuris, 33(1985):7985.
7
Buzaid, Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil, Cap. III, I, n° 5,
Exposição de Motivos do Anteprojeto, Parte II, Cap. I, I, n° 13. Com inteiro acerto observa José
Carlos Barbosa Moreira, Os novos rumos do processo civil brasileiro, in Temas de Direito
Processual (Sexta Série), São Paulo, Saraiva, 1997, p. 65-66, que o inegável progresso que o
CPC brasileiro de 1973 representou, em relação ao ordenamento anterior, inscreveu-se
essencialmente no plano técnico, sem no entanto levar em conta os liames entre os problemas
processuais e as mil condicionantes políticas, sociais, econômicas, do contexto histórico em
que a atividade judicial é convocada a exercer-se.
4
das demais funções, prevenindo a ocorrência de danos jurídicos, enquanto o
processo de conhecimento ou de execução se desenvolvia rumo aos seus fins
8
. Para semelhante doutrina, o processo cautelar difere do processo de
conhecimento e do processo de execução não tanto pela atividade
desempenhada pelo juiz 9, mas pela estrutura de suas decisões – enquanto as
decisões do processo de conhecimento e do processo de execução são
definitivas, as cautelares são provisórias
10
.
Aliás, o caráter individualístico e liberal do estatuto processual de
1973, com grande destaque ao aspecto técnico, inspirado em modelos
legislativos e ensinamentos doutrinários da Europa continental
11
, já então se
encontrava em aberta contradição com as linhas mestras do sistema
constitucional e as tradições do direito brasileiro
4.
12
.
A acentuação do aspecto técnico não leva em conta, contudo, que
o processo não se encontra in res natura, mas é produto do homem e, assim,
inevitavelmente, da sua cultura, servindo a técnica como meio de realização do
valor. Em semelhante perspectiva, não se mostra correto compreendê-lo,
apesar do seu caráter formal, como mero ordenamento de atividades dotado de
8
Piero Calamandrei, Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari, Padova,
Cedam, 1936, p. 15.
9
Porque, desse ponto de vista, o processo cautelar encerra uma verdadeira unidade,
consoante lembra Enrico Tullio Liebman, “Unità del Procedimento Cautelare”, in Problemi del
Processo Civile, Napoli, Morano Editore, 1962, p. 104.
10
Tal é a clássica lição de Piero Calamandrei, Introduzione allo Studio Sistematico dei
Provvedimenti Cautelari, Padova, Cedam, 1936, p. 9-10.
11
Segundo Buzaid, Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil, Capítulo III,
I, n° 5, na elaboração do projeto serviu de modelo a legislação alemã, austríaca, italiana,
francesa e portuguesa. A essa enumeração deve ser acrescentado o Código de Processo Civil
do Estado da Cidade do Vaticano, que como bem demonstra José Carlos Barbosa Moreira, Il
Codice di Procedura Civile dello Stato della Città del Vaticano come fonte storica del diritto
brasiliano, Rivista di Diritto Processuale, 46(1991-1):166-177, constituiu também importante
fonte inspiradora da reforma.
12
Crítica que realizei já na 1ª ed. de Do Formalismo no Processo Civil (1997), ver Do
Formalismo no Processo Civil (Proposta de um formalismo-valorativo), 3ª ed., São Paulo,
Saraiva, 2009, n° 13, p. 124-126.
5
cunho exclusivamente técnico, comandado por regras externas, estabelecidas
pelo legislador de modo totalmente arbitrário. A estrutura mesma que lhe é
inerente depende dos valores adotados e, então, não se trata de simples
adaptação técnica do instrumento processual a um objetivo determinado, mas
especialmente de uma escolha de natureza política, escolha essa ligada às
formas e ao objetivo da própria administração judicial.
O direito processual vincula, portanto, a relação entre o Estado e
o cidadão a um especial e rico polo de interesse, do mais alto valor substancial,
e não a uma simples técnica alterável conforme o gosto e o humor do eventual
detentor do poder
13
. Por consequência, mesmo as normas aparentemente
reguladoras do modo de ser do procedimento não resultam apenas de
considerações de ordem prática, constituindo no fundamental expressão das
concepções sociais, éticas, econômicas, políticas, ideológicas e jurídicas,
subjacentes a determinada sociedade e a ela características, e inclusive de
utopias. Ademais, o seu emprego pode consistir em estratégias de poder,
direcionadas para tal ou qual finalidade governamental
14
.
Dessa forma, o processo não se esgota dentro dos quadros de
uma mera realização do direito material, constituindo, mais amplamente, a
13
Sobre tudo isso, cf. Werner Niese (com a colaboração de Horst Schröder), Lehrbuch des
Zivilprozessrecht, atualização da obra de Adolf Schönke, 8ª ed., Karlruhe, C. F. Muller, 1956,
§1, III, p. 15-16, ponderando ainda que de outro modo não seria compreensível a veemente
polêmica entre juristas e leigos sobre os princípios processuais de natureza político-jurídica,
presente em toda tentativa de reforma.
14
Daí a idéia substancialmente correta de que o direito processual é direito constitucional
aplicado. Cf. Hans F. Gaul, Zur Frage nach dem Zweck des Zivilprozesses, Archiv für die
Civilistische Praxis, 168(1968):27-62, esp. p. 32. No mesmo sentido, Rudolf Pollak, System des
österreichischen Zivilprozessrechtes, 2ª ed., Wien, Manz, 1932, p. III, para quem o direito
processual civil constitui, em muitos aspectos, uma das mais importantes partes do direito
constitucional. A respeito, ainda, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, O processo civil na
perspectiva dos direitos fundamentais, Revista Forense, 372(mar.abr./2004):77-86.
6
ferramenta de natureza pública indispensável para a realização de justiça e
pacificação social
15
.
As dissonâncias entre essa concepção e as determinantes
constitucionais, de envoltas com as nuanças culturais imperantes no Brasil,
foram superadas por três vertentes poderosíssimas, que se conjugaram para a
erosão direta do sistema, ajudadas ainda pela pressão das forças sociais, da
doutrina e da jurisprudência: a legislação extravagante e a criação de
microssistemas; a promulgação da Constituição de 1988 e uma nova visão dos
princípios e da lógica judiciária; e as inúmeras alterações introduzidas no
próprio Código de 1973 (as chamadas minireformas).
5.
As constituições federais brasileiras, com repercussão no plano
infraconstitucional, desde muito vêm investindo o juiz brasileiro de poder
suficiente para a prática de autênticos atos de império, por meio de ordens e
mandados dirigidos à autoridade pública e às pessoas e entes privados. Além
disso, foram concebidos remédios judiciais para a defesa de interesses
coletivos ou difusos, com coisa julgada erga omnes ou ultra partes da sentença
nas demandas de natureza social ou política, e ainda criadas tutelas sumárias
autônomas. Também se elasteceu em tais demandas coletivas a legitimidade
ativa 16.
15
Desenvolvemos amplamente esse tema em Do Formalismo no Processo Civil (Proposta de
um formalismo-valorativo), cit., p. 67-126.
16
Exemplos: artigo 18 da Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965 (eficácia erga omnes da coisa
julgada da sentença proferida na ação popular, salvo se julgada improcedente a ação por
deficiência de prova); artigo 16 da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, referente à ação civil
pública, eficácia erga omnes nas mesmas condições da coisa julgada da sentença proferida na
ação popular; Código de Defesa do Consumidor, artigo 103. A Lei n° 1.533, de 31 de dezembro
de 1951, regulou o Mandado de Segurança, writ típico do direito brasileiro, sem similar no
direito europeu-continental.
7
6.
A influência da Carta Política de 1988 e, principalmente, da
dimensão conquistada pelo direito constitucional em relação a todos os ramos
do direito e na própria hermenêutica jurídica (v.g., “a interpretação conforme à
Constituição”), mostra-se particularmente intensa no que diz respeito ao
processo. Tanto é assim que estabeleceu de modo expresso diretivas
completas para a formação e o desenvolvimento de um processo justo (juiz
imparcial, contraditório, ampla defesa, motivação das decisões judiciais etc.).
Não bastasse isso, já não se trata mais de apenas conformar o
processo às normas constitucionais, mas de empregá-las no próprio exercício
da função jurisdicional, com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é
decidido pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele conduzido.
Tudo isso é potencializado por dois fenômenos fundamentais de
nossa época: o afastamento do modelo lógico próprio do positivismo jurídico,
com a adoção de lógicas mais aderentes à realidade jurídica, como a dialética
e a tópica-retórica, uma hermenêutica de novo tipo, e a consequente
intensificação dos princípios, sejam eles decorrentes de texto legal ou
constitucional ou até não escrito, mas pressuposto.
No sistema jurídico brasileiro, essas ponderações ostentam
enorme alcance prático, porque a Constituição de 1988 positivou de forma
expressa os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração.
Além disso, o
§ 1º do art. 5º da
Constituição brasileira estatui de modo
expresso que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata”.
Por outro lado, já não se discute mais na doutrina do direito
constitucional o papel dos direitos fundamentais e das normas de princípio —
8
mesmo daquelas consideradas meramente programáticas — entendidas agora
como diretivas materiais permanentes, que assim vinculam positivamente todos
os órgãos concretizadores, inclusive aqueles encarregados da jurisdição,
devendo estes tomá-las em consideração em qualquer dos momentos da
atividade concretizadora
17
. Aliás, a mais importante fonte jurídica das normas
de princípio são exatamente os direitos fundamentais.
Essa nova concepção, de envoltas com a complexidade da vida
moderna, incrementa cada vez mais a adoção de normas jurídicas
indeterminadas que devem ser concretizadas pelo juiz em vista das
peculiaridades do caso. Daí o alargamento dos poderes do juiz, a possibilitar
uma maior adequação da regra às circunstâncias do caso concreto e, assim,
uma maior efetividade, o que gera ao mesmo tempo um campo propício à
insegurança e aumenta a responsabilidade do magistrado.
7.
A terceira vertente e talvez a mais importante para a
desestruturação do sistema do Código Buzaid decorre, indiscutivelmente, das
chamadas minireformas, que desde 1987 vêm modificando a regulação
processual em diversos pontos essenciais.
Como não poderia deixar de ser, essas alterações de rumo
atribuíram maiores poderes ao magistrado, dentro da linha própria do direito da
modernidade líquida, como acima ressaltado.
Assim, ao juiz brasileiro foram concedidos poderes, por exemplo,
para antecipar os efeitos da futura sentença de mérito (art. 273), suspender o
cumprimento da decisão sujeita a agravo de instrumento ou apelação até o
pronunciamento definitivo da turma ou câmara (art. 558 e parágrafo único),
17
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4a. ed., Coimbra, Almedina, 1987, p. 132.
9
atribuir efeito suspensivo à impugnação da execução de título judicial ou à ação
incidental de embargos à execução de título extrajudicial (art. 739-A, § 1°),
aplicar de ofício técnicas que permitam uma maior efetividade no cumprimento
de decisões judiciais (v.g., art. 461, § 4°; art. 461-A, § 3°), e até para
estabelecer prazo para oferta de rol de testemunhas (art. 407).
Por outro lado, as alterações pontuais introduzidas pelas
minireformas não se preocuparam em estabelecer exclusivamente as regras do
jogo, e sim em criar condições para que o processo se desenvolvesse mais
rapidamente e pudesse, por consequencia, chegar ao fim com resultados
apreciáveis.
Mudança de porte decorreu da nova regulação do agravo de
instrumento, que passou a ser interposto diretamente no órgão recursal ad
quem, simplificando-se a sua formação e afastando-se a necessidade de
impetração simultânea de mandado de segurança para obtenção de efeito
suspensivo.
Também o sistema colegiado, operante no segundo grau de
jurisdição e nas instâncias especial e extraordinária, foi revolucionado pela
possibilidade de o recurso ser decidido monocraticamente pelo relator.
A alteração do art. 461 equacionou a conveniência de realização
in natura das obrigações de fazer e não fazer. Significativa também a alteração
introduzida para a tutela das obrigações de entregar coisa, de que resultou o
art. 461-A. Outra modificação relevante foi a possibilidade de execução por
apresentação de simples memória de cálculo, dispensando-se o demorado e
formalizado procedimento de liquidação por cálculo do contador (art. 614, II).
10
Finalmente,
os
processos
de
conhecimento,
liquidação
e
execução foram unificados, com simplificações de caráter formal e mudança do
sistema recursal. Por via exegética, é possível também afastar a autonomia do
processo cautelar.
Em todas essas hipóteses, verificou-se significativo e elogiável
incremento da efetividade, um dos valores fundamentais do processo,
juntamente com o da segurança.
8.
Como se vê, a passagem do Código Buzaid (1973-1994) ao
Código Reformado implicou a reformulação estrutural do processo civil
brasileiro e a transformação de um modelo preocupado com a segurança para
um modelo, em regra, mais empenhado na efetiva tutela dos direitos.
Ao mesmo tempo, em alguns campos, a reforma gerou
indesejável insegurança. Por um lado, toda inovação necessita de algum tempo
para ser assimilada e aplicada na prática judiciária. Por outro, em alguns casos
a lei foi demasiadamente vaga, a exemplo da norma contida no art. 475-J, a
exigir um fazer produtivo muito maior do aplicador do direito.
Um outro exemplo negativo, esse de formalismo excessivo,
consiste
na
transferência
aos
procuradores
das
partes
da
integral
responsabilidade processual pela formação do agravo de instrumento (recurso
de grande importância para a justiça do processo). Além disso, perdeu-se o fio
sistemático condutor ao se qualificar como decisões certos pronunciamentos
judiciais que pelo seu conteúdo deveriam ser qualificados como sentença de
mérito, a exemplo daquele que julga o fundo da liquidação de sentença. No
entanto, nada obstante tratar-se de sentença de mérito, o art. 475-H
expressamente a denomina de decisão e estabelece que dela caberá agravo
11
de instrumento. Haverá possibilidade de embargos infringentes ou de ação
rescisória da decisão que apreciará o recurso no juízo ad quem? O advogado
poderá sustentar oralmente as suas razões no julgamento do recurso em
segundo grau de jurisdição? A perda de sistematização conduz a esses
questionamentos, cuja solução deverá ser encaminhada pela jurisprudência
dos tribunais, com os subsídios da doutrina.
Aliás, atualmente, por diversos fatores, principalmente pelo
excesso de trabalho, pela cobrança decorrente da civilização da pressa, as
decisões dos tribunais, e por consequencia os advogados, cada vez mais
emprestam maior autoridade aos precedentes jurisprudenciais e menos aos
avisos da doutrina. Contudo, não se pode deixar de levar em consideração,
que a própria insegurança do sistema passa a exigir um esforço maior da
doutrina, que assim realimenta o sistema, dá-lhe maior organicidade e,
portanto, maior segurança e previsibilidade.
9.
Neste momento de balanço do muito que foi feito é preciso atentar
em que o direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva (art. 5º,
incisos XXXV e LXXVIII, CRFB) deve necessariamente conviver com o direito
fundamental ao processo justo (art. 5º, inciso LIV, CRFB), que constitui
inafastável respaldo da segurança própria do Estado Constitucional e
Democrático de Direito.
Se o Código Buzaid respondia às exigências de segurança da
época, e as minireformas procuraram resolver, nem sempre com sucesso, a
necessidade de efetividade, hoje deve prevalecer a ponderação entre esses
12
dois valores, sem esquecer os demais valores expressos na Constituição, tal
como preconizado pelo formalismo-valorativo
18
.
Finalmente, não basta apenas alterar a lei processual, atacar
apenas os efeitos. Nos quadros de uma democracia participativa, é
indispensável incrementar a colaboração entre o órgão judicial e as partes, dar
maior atenção ao fator ético e qualificar e mudar a mentalidade dos operadores
do sistema.
Essas medidas não dispensam, no entanto, a introdução de
instrumentos que permitam a efetiva responsabilização do Poder Público (e de
seus agentes), o maior cliente da máquina judiciária, e a alteração radical do
sistema de pagamento da dívida pública, com eliminação dos precatórios.
Outra forma de estancar a pressão sobre o sistema judiciário consiste, sem
dúvida, na adoção de leis materiais mais justas, com regulação em termos
razoáveis e equitativos das relações jurídicas decorrentes da economia de
massa, a exemplo dos negócios jurídicos bancários. Penso que, dessa forma,
estaremos mais bem capacitados para atacar as causas do “overload” e assim
superiormente aparelhados para enfrentar os grandes desafios que se
oferecem à administração da Justiça brasileira no já conturbado Século XXI.
18
A respeito, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Do Formalismo no Processo Civil (Proposta de
um formalismo-valorativo), cit., passim.
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