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Virtudes do Missionário
Textos escolhidos da Autobiografia de
Santo Antônio Maria Claret
É melhor o mel que o vinagre
Aut. Nº 33. Meu pai colocou-me em todos os tipos de trabalhos da fábrica de fios e tecidos.
Por uma longa temporada, meu pai colocou-me, juntamente com outro jovem, para dar a
última demão aos trabalhos que os demais faziam. Quando tínhamos de corrigir alguém,
dava-me muita pena; contudo, antes observava se havia no trabalho executado, alguma
coisa que estivesse bem-feita. Então eu começava por este detalhe e o elogiava, dizendo
que tal obra estava bem feita, só que tinha este e aquele defeito, mas que, uma vez
corrigidos esses senões, teríamos uma obra perfeita.
34. Eu agia assim sem saber o porquê. Com o tempo soube que era por uma especial graça
e bênção de amabilidade que o Senhor me concedera. Assim os trabalhadores sempre
recebiam com humildade a correção e se emendavam. O outro companheiro, mais velho,
mas que não possuía o mesmo espírito de amabilidade, quando tinha que corrigir,
incomodava-se, repreendia-os com aspereza, eles ficavam aborrecidos e às vezes nem
sabiam em que haviam de emendar-se. Ali aprendi o quanto convém tratar a todos com
amabilidade e agrado, mesmo os mais rudes! E como é verdade que se tira melhor
vantagem agindo com doçura do que com aspereza e mau humor.
Máquinas na cabeça
64. Porém, como são inescrutáveis os juízos de Deus! Mesmo estando tão entusiasmado
com a fabricação e, mesmo tendo feito muito progresso, não consegui decidir-me. Sentia
interiormente uma repugnância em fixar-me e fazer com que meu pai assumisse
compromissos. Disse-lhe que me parecia um tanto cedo para tal empenho, pois eu era muito
jovem. Além do mais, sendo de baixa estatura, os trabalhadores não me respeitariam.
Respondeu-me que não me preocupasse com isso, pois outro governaria os trabalhadores;
eu teria que ocupar-me somente da parte diretiva da fabricação... Também me escusei,
dizendo que depois veríamos, que no momento não me sentia inclinado. Na verdade isto foi
providencial. Francamente, eu nunca me opus aos desígnios de meu pai. Esta foi a primeira
vez em que eu não fiz a sua vontade; e foi porque a vontade de Deus queria outra coisa de
mim: queria que eu fosse sacerdote e não fabricante, ainda que nessa época não tivesse
idéia clara de tal chamado.
65. Nesse momento da minha vida cumpriu-se em mim aquela passagem do Evangelho na
qual os espinhos sufocaram o bom trigo. O contínuo pensar nas máquinas, nos teares e nas
composições me deixava tão absorto que não conseguia pensar em outra coisa. Ó meu
Deus, quanta paciência tivestes para comigo! Ó Virgem Maria, até mesmo de vós havia
momentos que me esquecia! Misericórdia, minha Mãe!
O chamado do Evangelho
67. Nos últimos tempos de Barcelona, tal era minha afeição à arte têxtil que, ao participar
da santa missa nos dias de festa e preceito, fazia um grande esforço para afastar os
pensamentos. Mesmo que sentisse prazer em pensar e falar sobre a fabricação, não queria
que isso acontecesse durante a missa e demais devoções. Procurava afastar os pensamentos
prometia a mim mesmo que depois me ocuparia disso e que no momento queria pensar na
oração. Meus esforços eram inúteis. Era como tentar parar de repente uma roda em alta
velocidade. Durante a missa, para meu maior tormento, surgiam idéias novas, descobertas,
etc. De tal modo que, durante a celebração, tinha mais máquinas na minha cabeça do que
santos no altar.
68. Em meio a esta barafunda de coisas, enquanto participava da santa missa lembrei-me de
ter lido quando pequeno aquelas palavras do Evangelho: Que servirá a um homem ganhar o
mundo inteiro, se vem a prejudicar a sua vida? Esta frase causou-me profunda impressão;
foi para mim uma seta que me feriu o coração. Eu pensava e refletia sobre o que haveria de
fazer, porém não acertava.
Gosto pela Bíblia
113. Passado o desejo de ser cartuxo, que Deus me tinha dado para arrancar-me do mundo,
pensei, não só em santificar minha alma, mas também meditava constantemente no que e
como faria para salvar as almas de meus próximos. Efetivamente, rogava a Jesus e a Maria
e me oferecia continuamente para ter êxito neste objetivo. As vidas dos santos que todos os
dias líamos durante as refeições, as leituras espirituais que eu fazia em particular, tudo me
ajudava para isto. No entanto, o que mais me movia e estimulava era a leitura da santa
Bíblia, à qual sempre fui muito afeiçoado.
114. Havia passagens que me causavam tão forte impressão, que me parecia ouvir uma voz
dizer a mim mesmo o que lia. Essas passagens eram muitas, principalmente as seguintes:
Tu que eu trouxe dos confins da terra e que fiz vir do fim do mundo, e a quem eu disse: Tu
és meu servo, eu te escolhi, e não te rejeitei (Is 41,9). Com estas palavras conhecia como o
Senhor me chamou sem mérito nenhum de parte de minha pátria, de meus pais e nem
minha. A ti eu disse: Tu és meu Servo, eu te escolhi e não te rejeitei.
115. Nada temas, porque estou contigo; não lances olhares desesperados, pois eu sou teu
Deus; eu te fortaleço e venho em teu socorro, eu te amparo com minha destra vitoriosa (v.
10). Aqui percebi como o Senhor me livrou maravilhosamente de todos os apuros aos quais
me referi na primeira parte, e dos meios que se valeu para isso.
O que aprendi na Companhia de Jesus
152. Ao conduzir-me para Roma o Senhor me fez um grande favor: colocou-me, ainda que
por pouco tempo, entre aqueles padres e irmãos tão virtuosos. Oxalá tivesse aproveitado!
Porém, se não houve proveito para mim, pelo menos muito me serviu para fazer o bem ao
próximo. Ali aprendi o modo de pregar os exercícios espirituais de Santo Inácio, o método
de pregar, catequizar e confessar com grande utilidade e proveito. Ali aprendi ainda outras
coisas que, com o passar do tempo, muito me serviram. Bendito sejais, Deus meu, que tão
bom e misericordioso haveis sido para comigo! Fazei que vos ame, que vos sirva com todo
o fervor e que vos faça amar e servir por todas as criaturas. Ó criaturas todas, amai a Deus,
servi a Deus! Provai e vede por experiência quão suave é amar e servir a Deus. Ó Deus
meu! Ó Deus meu!
A necessidade de “ser enviado”
195. Cheguei à conclusão de que o missionário jamais deve ser intrometido. Deve, sim,
estar à disposição do bispo e dizer: Ecce ego, mitte me: Aqui estou, envia-me; porém não
deve ir enquanto o bispo não o mandar, pois será um mandato do próprio Deus. Todos os
profetas do Antigo Testamento foram enviados por Deus. O próprio Jesus Cristo foi
enviado por Deus e Jesus enviou seus Apóstolos. Sicut misit me Pater et ego mitto vos:
Como o Pai me enviou, assim também eu envio a vós.
198. A necessidade de ser enviado, e que o próprio bispo me indicasse o lugar, foi o que
Deus me fez conhecer desde o princípio. Mesmo se nas povoações às quais me enviava
houvesse pessoas más e desmoralizadas, sempre se obtinham grandes frutos, pois era Deus
que me enviava; que dispunha e preparava os lugares. Entendam, portanto, os missionários
que sem obediência não devem ir a nenhuma parte, por melhor que seja; porém, com a
obediência não temam ir a qualquer povoação ou cidade, por pior que seja, ou pelas
perseguições que se levantem. Deus os enviou, ele cuidará.
Os motivos para missionar
200. Vós sabeis que os homens quase sempre agem por alguma destas três finalidades: 1)
por interesse ou dinheiro; 2) por prazer; 3) pela honra. Por nenhum desses três motivos
estou pregando missão nessa povoação. Não por dinheiro porque não quero um centavo de
ninguém, nem nada levarei. Nem por prazer: que prazer teria fatigando-me todo o dia,
desde a manhã, e muito de manhã, até a noite? Se alguém de vocês, pelo fato de estar
esperando sua vez ao confessionário, deve aguardar três ou quatro horas, se cansa; e eu que
fico todas as horas da manhã, todas da tarde e, de noite, em vez de descansar, tenho que
pregar, e isto não um dia só, mas dias e dias, semanas, meses e anos. Ah! Meus irmãos,
pensando bem!...
201. Será, talvez, por honrarias? Não. Tampouco por honrarias. Vós bem sabeis a quantas
calúnias se está exposto: haverá quem me elogie, ou quantos não proferirão contra mim
toda espécie de insultos, como faziam os judeus contra Jesus, falando mal de sua pessoa,
das suas palavras, das obras que fazia, até que, finalmente, o prenderam, açoitaram e lhe
tiraram a vida num doloroso e vergonhoso suplício. Digo, porém, com o apóstolo Paulo,
que não temo nenhuma destas coisas, nem aprecio mais minha vida do que minha alma,
contanto que termine a contento minha carreira e cumpra o ministério que recebi de Deus
nosso Senhor para pregar o santo Evangelho.
202. Não, vo-lo repito, não é por nenhum fim terreno, mas por um fim mais nobre. O fim a
que me proponho é que Deus seja conhecido, amado e servido por todos. Quem dera tivesse
todos os corações dos homens para com todos eles amar a Deus. Ó meu Deus! As pessoas
não vos conhecem! Se conhecessem vossa sabedoria, vossa onipotência, vossa bondade,
vossa formosura, todos vossos divinos atributos! Todos seriam serafins abrasados em vosso
divino amor. Isto é o que pretendo: Tornar Deus conhecido para que seja amado e servido
por todos.
Jesus, modelo de missionário
221. O que mais e mais me estimulava era contemplar a maneira como Jesus Cristo se
deslocava de uma povoação a outra, pregando em todas as partes, não só nas grandes
cidades, mas também nas aldeias, até para uma única mulher, como fez com a samaritana,
ainda que estivesse cansado da caminhada, abatido pela sede, numa hora inoportuna, tanto
para ele como para a mulher.
222. Desde o princípio fiquei empolgado com o estilo da pregação de Jesus. Que
comparações! Que parábolas! Eu me propus imitá-lo nas comparações, metáforas e estilo
simples. (Mas também) Quantas perseguições!…Foi sinal de contradição, perseguido por
causa de sua doutrina, de suas obras e de sua pessoa, até lhe tirarem a vida à força de
injúrias, de tormentos e de insultos, sofrendo a mais vergonhosa e dolorosa morte que se
pode padecer sobre a terra.
Os livros, meios de apostolado
310. A experiência me ensinou que um dos meios mais poderoso para a propagação do bem
é a imprensa, ao mesmo tempo que é a arma mais poderosa para se propagar o mal, quando
dela se abusa. Por meio da imprensa pode-se produzir muitos livros bons e folhetos para o
louvor de Deus. Nem todos querem ou podem ouvir a divina palavra, mas todos podem ler
ou ouvir a leitura de um bom livro. Nem todos podem ir à igreja ouvir a palavra divina,
porém o livro irá à sua casa. Nem sempre o pregador pode estar pregando, porém o livro
sempre estará repetindo a mensagem, sem nunca se cansar, sempre disposto a repetir a
mesma coisa, quer seja lido pouco ou muito, lido ou deixado uma ou mil vezes, não se
ofende por isso, permanece o mesmo, sempre se acomoda à vontade do leitor.
A frágua da humildade
342. Ao iniciar os meus estudos em Vic, sucedia-me algo parecido com o que se passa
numa forja, na qual o ferreiro coloca na fornalha uma barra de ferro e quando ela está em
brasa retira-a, coloca-a em cima de bigorna e começa a dar golpes com martelo. O ajudante
faz o mesmo e os dois vão alternando compassadamente marteladas e vão moldando o ferro
até que adquira a forma desejada pelo ferreiro. Vós, meu Senhor e meu mestre, pusestes
meu coração na forja dos exercícios espirituais e dos sacramentos, e assim, aquecendo meu
coração no fogo de vosso amor e no de Maria santíssima, começastes a dar golpes de
humilhações, alternando com meus próprios golpes desferidos através do exame particular
que eu fazia sobre tão necessária virtude.
A pobreza em um mundo que adora “o bezerro de ouro”
358. Vejo que estamos num século em que, não só se adora o bezerro de ouro, a exemplo
dos hebreus, mas se dedica um culto tão grande ao ouro, que as virtudes mais generosas
foram derrubadas dos seus pedestais sagrados. Todos somos imagens de Deus, filhos de
Deus, remidos com o sangue de Jesus Cristo e destinados para o céu, no entanto, vejo que
estamos em uma época em que o egoísmo faz os homens esquecerem os seus deveres mais
sagrados para com seus semelhantes e irmãos.
359. Considerei que para enfrentar este gigante que os mundanos chamam de onipotente,
tinha de fazer-lhe frente com a santa virtude da pobreza. Da forma como entendi também
coloquei em prática. Nada tinha, nada queria e tudo recusava. Estava contente com a roupa
que levava e a comida que me davam. Levava tudo num lenço. Minha bagagem consistia de
um breviário do todo ano, um vade-mécum em que levava os sermões, um par de meias e
uma camisa para trocar. E nada mais.
370. Observei que a santa virtude da pobreza servia, não só para a edificação de muitas
pessoas, como também para derrotar o ídolo de ouro, além de auxiliar-me muitíssimo no
progresso da humildade e avançar no caminho da perfeição. Além da experiência,
procurava fortalecer-me com esta comparação: as virtudes são como as cordas de uma
harpa ou de um instrumento de cordas. Entre elas a pobreza é a corda mais fina e mais
curta, pois, quanto mais curta, mais agudo é o som. Assim, quanto menores os interesses,
vantagens, riquezas da vida, tanto mais alta será a perfeição alcançada. Vemos o exemplo
de Cristo que ficou quarenta dias e quarenta noites no deserto sem comer nada. Quando
estava com os apóstolos comia pão de cevada e ainda assim às vezes faltava. Andavam tão
abnegados que, certa vez, por colherem e debulharem espigas, em dia de festa, para matar a
fome que os afligia, acabaram sendo repreendidos pelos fariseus.
O magnetismo da mansidão
372. Depois da humildade e pobreza, a virtude mais necessária a um missionário apostólico
é a mansidão. Por isso o próprio Jesus dizia a seus amados discípulos: Aprendei de mim que
sou manso e humilde de coração e assim achareis repouso para vossas almas. Se a
humildade é a raiz da árvore, a mansidão é seu fruto. Como dizia São Bernardo: “Com a
humildade se agrada a Deus e com a mansidão, ao próximo”. No sermão da montanha,
Jesus disse: Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra, não só a terra
prometida, a pátria dos vivos, que é o céu, mas também os corações dos homens.
373. Não há virtude que atraia tanto as pessoas como a mansidão. Um tanque cheio de
peixes dá-nos uma idéia desse poder. Se, por exemplo, jogarmos migalhas de pão no
tanque, os peixes afluirão de todos os lados até se aproximarem da margem e chegarem
perto de nossos pés. Se, porém, em vez de pão lhes atiramos uma pedra, todos eles fogem e
se escondem. O mesmo acontece com os homens: se os tratarmos com mansidão, acorrem
para ouvir a palavra de Deus e para se confessarem: se forem tratados com aspereza,
perturbam-se, não ouvem a palavra de Deus, além de ficarem em suas casas murmurando
contra o ministro do Senhor.
O discreto encanto da modéstia
387. Como se sabe, a modéstia é virtude que nos ensina a fazer todas as coisas do melhor
modo possível e, mais especificamente, tal como as fazia Jesus. Assim, em cada coisa me
perguntava e pergunto com fazia isso Jesus Cristo: com que cuidado, com que pureza e
retidão de intenção. Como pregava! Como comia! Como descansava! Como tratava com
todas as classes de pessoas! Como orava! E assim em tudo, de tal forma que, com a ajuda
do Senhor, me propunha imitá-lo em tudo, a fim de poder dizer sim, não só de palavra, mas
com obras, como o Apóstolo: Tornai-vos os meus imitadores, como eu o sou de Cristo.
O prazer de agradar a Deus em tudo
390. Conheci que não podia ser modesto sem a virtude da mortificação. Procurei, pois, com
todo empenho, ajudado pela graça de Deus, adquiri-la custasse o que custasse.
391. Assim, antes de mais nada, procurei privar-me de tudo que gostava, a fim de oferecêlo a Deus. Sem saber como, senti-me como que obrigado a cumprir o que era apenas um
propósito. Colocavam-se diante do entendimento as duas porções: a que se refere ao meu
gosto e a que se refere a Deus. Como, mediante o entendimento, percebia essa
incompreensível (incomparável) desigualdade, embora fosse coisa pequena, obrigava-me a
seguir o que era do agrado de Deus. Assim, com muito prazer, abstinha-me daquele gosto
para dá-lo a Deus. E isto acontece ainda hoje com todas as coisas: com a comida, bebida,
descanso, no falar, olhar, ouvir, ir a algum lugar, etc.
392. A graça de Deus muito me serviu para que alcançasse êxito na prática da mortificação,
tanto no serviço às almas como para bem rezar.
Precisas de amor
438. A virtude mais necessária é o amor. Sim, digo-o e o repetirei mil vezes: a virtude mais
necessária ao missionário apostólico é o amor. Deve amar a Deus, a Jesus Cristo, a Maria
santíssima e ao próximo. Sem esse amor, suas mais belas qualidades são inúteis, mas, se
acompanhadas de grande amor, tudo possui.
439. Para o que prega a divina palavra, o amor é como o fogo em um fuzil. Se um homem
atirar uma bala com a mão, pouco estrago faz, mas, se essa mesma bala for arremessada
com o fogo da pólvora, mata. Assim é a palavra de Deus. Se for dita naturalmente, sem
espírito sobrenatural, pouco bem faz, mas se for dita por um sacerdote cheio do fogo da
caridade, do amor a Deus e ao próximo, extirpará vícios, destruirá pecados, converterá
pecadores, operará prodígios. Vemos isto em São Pedro, ao sair do cenáculo, ardendo no
fogo do amor, que havia recebido do Espírito Santo, e o resultado foi a conversão de oito
mil pessoas em dois sermões: três mil no primeiro e cinco mil no segundo.
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