HERMENÊUTICA E ENSINO DE LITERATURA Tiane Reusch de Quadros Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected] Resumo Desde a referência mitológica grega a linguagem está envolvida no processo de compreensão. Hermann (2002, p. 24) afirma que, ao inserir-se no mundo da linguagem, a hermenêutica renuncia à pretensão de verdade absoluta e reconhece que pertencemos às coisas ditas, aos discursos, abrindo uma infinidade de interpretações possíveis. Nesse sentido, as pretensões hermenêuticas ajudam-nos a encontrar possíveis sentidos também para a ação educativa. O diálogo vivido em sala de aula conduz-nos a um “educar-se” que, no perguntar e responder, no argumentar e contra-argumentar, possibilita a educadores e educandos o que para Gadamer coincide na idéia de que, à medida que se dá a conversação, ambos se submetem à verdade do assunto em questão, que os une numa nova comunidade. As reflexões presentes neste artigo integram uma tese de Doutorado em Literatura Brasileira ainda em fase de construção que busca destacar a importância do diálogo hermenêutico na interpretação de textos poéticos em sala de aula com estudantes de Ensino Médio. Introdução A história da formação da hermenêutica enquanto arte e técnica de interpretação correta de textos começa, segundo Schleiermacher (1999, P. 18), com o esforço dos gregos para preservar e compreender os seus poetas e desenvolve-se na tradição judaico-cristã de exegese das Sagradas Escrituras. Enquanto as ciências explicativas buscam determinar as condições causais de um fenômeno através da observação e da quantificação, as ciências compreensivas visam à apreensão das significações intencionais das atividades históricas concretas do homem (1999, p. 7 e 8). Bleicher (1980, p. 23 e 24) esclarece que “ao longo da história, a hermenêutica surgiu esporadicamente e progrediu, no seu desenvolvimento, como teoria da interpretação, sempre que houve necessidade de traduzir literatura autorizada em condições que não permitiam o acesso direto a ela, quer em virtude da distância no espaço e no tempo, quer de diferenças ao nível da linguagem”. Em ambos os casos, o sentido original de um texto era disputado ou então permanecia oculto, sendo necessária a explicação interpretativa a fim de torná-lo transparente. Palmer (1968, p. 24), em sua obra Hermenêutica, traz a origem do termo ligada ao verbo hermeneuein e ao substantivo hermeneia, que por sua vez remetem ao deusmensageiro Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram. Hermes está associado à ação de transformar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que a inteligência possa compreender. Os gregos atribuíam a Hermes a descoberta da linguagem e da escrita, que seriam as ferramentas que a compreensão humana utiliza para chegar ao significado das coisas e para transmiti-lo aos outros. Bleicher também relembra a origem mitológica da arte de interpretar: Hermes transmitia as mensagens dos deuses aos mortais, quer isto dizer que, não só as anunciava textualmente, mas agia também como “intérprete”, tornando as palavras inteligíveis e significativas, o que pode obrigar a uma clarificação, num aspecto ou noutro, ou a um comentário adicional. Conseqüentemente, a hermenêutica tem duas tarefas: uma, determinar o conteúdo do significado exato de uma palavra, frase, texto, etc.; outra, descobrir as instruções contidas em formas simbólicas. (BLEICHER, 1980, p. 23) Desde a referência mitológica grega a linguagem está envolvida no processo de compreensão. Hermann afirma que, ao inserir-se no mundo da linguagem, a hermenêutica renuncia à pretensão de verdade absoluta e reconhece que pertencemos às coisas ditas, aos discursos, abrindo uma infinidade de interpretações possíveis. A hermenêutica sugere, segundo o autor Raimundo José de Barros Cruz (2010, p. 104), “uma racionalidade que busque as respostas necessárias para os nossos anseios e questionamentos”. Nesse sentido, as pretensões hermenêuticas ajudam-nos a encontrar possíveis sentidos também para a ação educativa. Cruz salienta que o diálogo vivido em sala de aula conduz-nos a um “educar-se” que, no perguntar e responder, no argumentar e contra-argumentar, além de constituir a tarefa principal da hermenêutica, possibilita a educadores e educandos o que para Gadamer coincide na idéia de que, à medida que se dá a conversação, ambos se submetem à verdade do assunto em questão, que os une numa nova comunidade. A pretensão do diálogo hermenêutico seria, portanto, “a transformação das pessoas na e pela conversação”. Interpretar e compreender Bleicher (1980, p.170) considera que a compreensão não é uma idealização a partir de princípios, mas o desenvolvimento do conhecimento por nós adquirido a partir de um contexto mais vasto, que é determinado pela linguagem que usamos. O fato de os conceitos técnicos do intérprete terem de estabelecer a ligação entre aqueles que surgem no “objeto” e os dele próprio, criam-lhe a obrigação de sujeitá-los à reflexão constante. Hermann (2002), em sua obra Hermenêutica e educação, também faz referência às ideias de Gadamer, pois a definição de horizonte seria aplicada às possibilidades compreensivas do homem. A autora relaciona o conceito de horizonte com o pensamento humano, determinado pela sua finitude. Dependendo do horizonte, segundo a autora, podemos ter uma visão mais estreita, mais ampliada ou mais aberta: A situação hermenêutica requer a obtenção de um horizonte situado historicamente para nele inserir as questões que nos são colocadas pela tradição. A mobilidade histórica do ser humano impede a existência de horizontes totalmente fechados. Nosso horizonte está sempre em formação, na medida em que é necessário submeter à prova nossos preconceitos. Parte dessa prova consiste em se confrontar com o passado, com a tradição a que pertencemos. Assim, compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. (HERMANN, 2002, p. 149) Terry Eagleton (2006, P. 108) reitera o fato de que o significado de uma obra literária não se esgota nunca pelas intenções de seu autor, afirmando que, “quando a obra passa de um contexto histórico para outro, novos significados podem ser dela extraídos, e é provável que eles nunca tenham sido imaginados pelo seu autor ou pelo público contemporâneo dele”. Richard Palmer considera o ato de compreender como uma operação essencialmente referencial, pois segundo ele, compreendemos algo quando o comparamos com algo que já conhecemos. O autor retoma o conceito de círculo hermenêutico de Gadamer, salientando que aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sistemáticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo define a parte individual, e as partes dos conjuntos formam o círculo. Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreendemos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos na sua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido da frase como um todo está dependente do sentido das palavras individuais: Um conceito individual tira o seu significado de um contexto ou horizonte no qual se situa, mas o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais dá sentido. Por uma interação dialética entre o todo e a parte, cada um dá sentido ao outro; a compreensão é, portanto circular. E porque o sentido aparece dentro desse círculo, é chamado de círculo hermenêutico. (PALMER,1968, p. 94) Umberto Eco leva em conta o papel do leitor na leitura de um texto, visto que ele próprio, como autor, muitas vezes descobre sentidos novos nos textos em que ele mesmo escreveu. O funcionamento de um texto explica-se, na visão do autor, levando em consideração “o papel desempenhado pelo destinatário em sua compreensão, atualização e interpretação, bem como o modo com que o próprio texto prevê essa participação”. Eco afirma que quando um texto é produzido não para um único destinatário, mas para uma comunidade de leitores, o autor sabe que esse texto será interpretado não segundo suas intenções, mas segundo uma complexa estratégia de interações que envolvem também os leitores, juntamente com a competência destes em relação à língua como patrimônio social. (ECO, 2008, p.84) Para Hermann (2002, p. 101), conceitos fundamentais como o de “circulo hermenêutico” mostram que em todos os nossos procedimentos racionais projetamos pontos de vista, esquemas interpretativos, que irão se fundir com novos horizontes de sentidos, não mais horizontes particulares, mas parte de uma comunidade de compreensão, o que possibilita compartilhar simbolizações, lealdades e expectativas comuns. Com essa experiência, o sujeito percebe que está limitado por seus próprios preconceitos, e o “eu” passa a compartilhar um mundo comum de sentido. Na visão da autora, “a compreensão deve contar com a impossibilidade de fechar o horizonte de sentido sob o qual se movimenta o intérprete” (HERMANN, 2002, p. 61). Isso quer dizer que a interpretação de um texto não deve se limitar a uma só visão, tanto no que se refere às possíveis intenções do autor quanto à época na qual o texto foi escrito. Se as obras literárias, com o passar do tempo, vão adquirindo novos sentidos, assim ocorre também com suas leitores. Podemos pensar que, se um único leitor consegue dar uma nova interpretação a um texto a partir de suas vivências, o que será possível obter diante de um grupo de leitores que buscam compreender o sentido de uma obra? Relações entre hermenêutica e ensino de Literatura Alberto Mangel em sua obra “Uma história da leitura,” traz reflexões sobre a importância do ato de ler e sobre as diferentes relações que os leitores constroem com as leituras que fazem ao longo da vida. Segundo o autor, É o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legitimidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. (MANGEL, p.19 e 20) Na visão de Manguel (1997, p. 212), “um escritor pode construir um texto de várias formas, escolhendo no estoque comum das palavras aquelas que pareçam expressar melhor a mensagem. Mas o leitor que recebe esse texto não está confinado a nenhuma interpretação”. No momento em que a escola se envolve no processo de dar continuidade às práticas de leitura literária com os estudantes é que surge a questão das diferentes formas de abordagem de que o professor pode utilizarse, das diferentes formas de interpretação possíveis de um texto, das diferentes maneiras de dialogar sobre uma obra com os alunos. Ao pensarmos no diálogo necessário para a compreensão em sala de aula, levamos em conta os princípios da hermenêutica literária apresentados por Zilberman e cuja organização metodológica foi elaborada por Hans Robert Jauss: Supõe três etapas: a da compreensão do texto, decorrente da percepção estética e associada à experiência primeira de leitura; a de interpretação, quando o sentido do texto é reconstituído no horizonte de experiência do leitor; e a de aplicação, quando as interpretações prévias são trabalhadas e medida a história de seus efeitos. (ZILBERMAN, 2001, p. 113) A autora retoma as idéias de Jauss salientando que “cada leitor pode reagir individualmente a um texto, mas a recepção é um fato social – uma medida comum localizada entre essas reações particulares; este é o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo e que, sendo “transsubjetivo”, condiciona a ação do texto. Ângela Kleiman (1989, p. 20) afirma que, quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto maior a sua exposição a todo o tipo de texto, mais fácil será sua compreensão, pois o conhecimento de estruturas pessoais e de tipos de discurso determinará, em grande medida, suas expectativas em relação aos textos, expectativas estas que exercem um papel considerável na compreensão. Segundo a autora, compreender um texto é um processo que se caracteriza pela utilização do conhecimento prévio: o leitor emprega na leitura o que já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. A autora considera que é mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento do mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor usa justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer com segurança que, sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor, não haverá compreensão. O trabalho do professor de Literatura é de mediação entre a palavra escrita e a interpretação que os estudantes realizam dos textos em sala de aula. Nesse processo, é possível permitir que várias atribuições de sentido possam ser dadas numa leitura em conjunto. Porém, devemos considerar o limite da coerência abordado por Eco (2008, p, 15), que considera que a iniciativa do leitor consiste em fazer uma conjectura que deve ser aprovada pelo complexo do texto como um todo orgânico. Isso não significa que só se possa fazer sobre um texto uma e apenas uma conjetura interpretativa. Em princípio, podemos fazer uma infinitude delas. Mas, no fim, as conjeturas deverão ser testadas sobre a coerência do texto. Respeitar a coerência do texto não significa limitá-lo a uma única interpretação dita correta, mas perceber que, ao final de todas as possibilidades apontadas pelos leitores, levando em conta a época atual e as vivências de cada um que interferem no processo interpretativo, existe algum ponto em comum, uma ou mais mensagens em comum que possam ser sugeridas pelas metáforas e demais figuras de linguagem, características do texto poético. Bleicher (1980, p. 258) relembra o fato de que a compreensão hermenêutica não pode abordar um assunto sem qualquer preconceito; ela pertence, prévia e inevitavelmente, ao contexto em que o sujeito que compreende adquiriu inicialmente os seus esquemas interpretativos. Inevitavelmente, o leitor traz consigo suas experiências interpretativas e particularidades de sua formação na leitura de um poema. Mas o que favorece a interpretação em grupo é a flexibilidade de sentidos que esse gênero textual proporciona. Umberto Eco, mesmo chamando a atenção para a importância da coerência textual, considera o fato de que um dos traços mais relevantes do pensamento hermenêutico é exatamente a flexível agilidade com que aceita quaisquer critérios de semelhança, e a todos conjuntamente, embora se contradigam uns aos outros. Segundo Hermann (2002, p. 87), a valorização da metáfora na educação se deve às possibilidades interpretativas, pois abrir o sentido da educação pela metáfora é ampliar as possibilidades compreensivas, deixar o espaço para a pluralidade, ou seja, para as diferentes percepções sobre um mesmo texto. A autora enfatiza que a hermenêutica ressurge modernamente no contexto da luta contra a pretensão de haver um único caminho de acesso à verdade, o que nos leva a valorizar as múltiplas percepções no processo de interpretação textual. A hermenêutica possibilita, na visão da autora, que a formação opere com a estranheza e a familiaridade, necessárias à constituição do sentido. Pelo distanciamento e estranhamento, o sujeito pode reinterpretar e demover hábitos, e pela familiaridade o sujeito pode produzir, a partir de seu mundo, antecipações de sentido (HERMANN, 2002, p. 58). O diálogo é um aspecto fundamental no trabalho com os estudantes. Hermann afirma que aquele que compreende não adota uma atitude de superioridade, mas sente a necessidade de submeter a exame sua suposta verdade, põe em jogo seus próprios preconceitos. A autora vê o diálogo como aquilo que possibilita condições de reflexão sobre um entendimento ainda não disponível; ou seja, concede aos participantes a oportunidade de fazer uma reflexão sobre seus pontos de vista. Na interpretação de um texto em sala de aula, todos se encontram envolvidos pelo tema, e o objetivo não é enfraquecer a posição do outro, como uma mera disputa, mas penetrar no tema e mostrar sua força. O verdadeiro diálogo, portanto, “não tem por objetivo derrotar uma pessoa, mas deixar o tema vir à luz”. Dialogar pressupõe a atitude de perguntar e responder, que é um dos traços mais importantes da hermenêutica filosófica. O caráter libertador do fato literário, de acordo com Zilberman (2001, p. 91), explica a mutabilidade da história literária, porque a cada texto competirá para oferecer indagações novas e inquietantes aos públicos diferentes que aparecem. Assim como os consumidores não são fixos, nem estáticos, a obra literária não é inalterável. A flexibilidade de cada texto decorre de sua habilidade em responder de modo distinto a cada leitor ou aos segmentos variados de público; decorre igualmente da propriedade de o destinatário intervir na obra. Precisamos cativar os estudantes, incentivá-los ao estudo do texto literário por sua riqueza de interpretações, oferecendo-os a possibilidade de reconhecer na Literatura uma maneira de representar aspectos da vida do ser humano, como as ciências compreensivas objetivam priorizar. Referências BLEICHER, José. Hermenêutica contemporânea. Tradução de Maria Georgina Segurado. Rio de Janeiro: Edições 70, 1980. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 6. ed. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2008. HERMANN, Nadja. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. KLEIMAN,Angela.Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989. 2.ed. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermenêutica: arte interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes, 1999. e técnica da ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da Literatura. São Paulo: Ática, 2001.