Homilias Dominicais do Padre José Amaral de Almeida Prado © Colégio Santa Cruz, 2010. Diretor Geral do Colégio Santa Cruz: Fábio Aidar Coordenação e organização editorial: Cláudio Rondello, Cristine Conforti, Paulo Mariano Edição das ilustrações: Paulo Mariano Texto de capa e prefácio: Cláudio Rondello Revisão: Ana Cláudia Smaira e Vera T. Francisco Ilustrações: Alunos do curso de catequese de 2010 Professoras de Catequese: Ana Sílvia Barreto, Elismara Motta, Fernanda de Oliveira, Maria Carolina Santos Desenhos da capa: Alunos do curso de catequese de 2010 Foto da capa: Manoel Costa Santos Editoração de texto: Nancy Stefanelli, Vanessa Baradel, Sofia Camargo Lima Digitação: professores do Colégio Santa Cruz Projeto gráfico e diagramação: Candida Bitencourt Haesbaert Impressão: Graphium Gráfica e Fotolito Produção: Colégio Santa Cruz Av. Arruda Botelho 255 – São Paulo Cep. 05466-000 – www.santacruz.g12.br Congregação de Santa Cruz Rua Egberto Ferreira de Arruda Camargo, 151 – Campinas, SP – Cep. 13092-621 www.congregacaodesantacruz.org.br Superior de Distrito: Pe. Laudenir Barbosa, csc Homilias Dominicais do Padre José Amaral de Almeida Prado 3 Agradecimentos À Direção Geral do Colégio Santa Cruz, que estimulou e apoiou esta publicação. À equipe da Pastoral do Colégio Santa Cruz, que avaliou a importância de tornar públicas estas homilias e concretizou sua editoração. Aos professores e funcionários do Colégio Santa Cruz que se dedicaram à digitação dos manuscritos. Aos educadores que revisaram o texto final e conferiram a editoração. Aos professores que planejaram com os alunos a produção dos desenhos. A todos os que se comprometeram na construção desse sonho cristão de compartilhar o saber sobre o sagrado. Índice Apresentação.............................................................11 Essas Homilias .........................................................17 Ano A 1o Domingo do Advento.................................... 23 Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor..... 75 2o Domingo do Advento.................................... 26 2o Domingo da Páscoa....................................... 79 3o Domingo do Advento.................................... 28 3o Domingo da Páscoa....................................... 83 4o Domingo do Advento.................................... 31 4o Domingo da Páscoa....................................... 87 Natal do Senhor (Noite)................................... 35 5o Domingo da Páscoa....................................... 91 Natal do Senhor (Missa do Dia)........................ 37 6o Domingo da Páscoa....................................... 95 Missa da Sagrada Família................................... 41 A Ascensão do Senhor...................................... 99 Santa Mãe de deus, Maria................................. 45 Domingo de Pentescostes................................. 103 Epifania do Senhor............................................ 49 Santíssima Trindade......................................... 107 Batismo do Senhor............................................ 53 Corpus Christi ou Festa do Corpo do Sangue e do Cristo............................ 111 1o Domingo da Quaresma.................................. 56 2o Domingo da Quaresma.................................. 59 3o Domingo da Quaresma.................................. 62 4o Domingo da Quaresma.................................. 65 2o Domingo do Tempo Comum.........................115 3o Domingo do Tempo Comum.........................117 4o Domingo do Tempo Comum......................... 121 8o Domingo do Tempo Comum........................ 124 Missa do Domingo de Ramos da Paixão do Senhor.......................................... 69 9o Domingo do Tempo Comum......................... 127 Missa da Ceia do Senhor................................... 71 10o Domingo do Tempo Comum...................... 130 11o Domingo do Tempo Pascal.......................... 133 23o Domingo do Tempo Comum...................... 170 12o Domingo do Tempo Comum...................... 137 25o Domingo do Tempo Comum...................... 173 Solenidade de São Pedro e São PauLo.............. 140 26o Domingo do Tempo Comum.......................176 14o Domingo do Tempo Comum...................... 143 27o Domingo do Tempo Comum.......................179 15o Domingo do Tempo Comum...................... 146 Nossa Senhora Aparecida..................................183 16 Domingo do Tempo Comum...................... 149 17 Domingo do Tempo Comum...................... 151 29o Domingo do Tempo Comum: Dia das Missões................................................ 186 18o Domingo do Tempo Comum...................... 154 30o Domingo do Tempo Comum.......................189 19o Domingo do Tempo Comum...................... 157 Celebração de Finados......................................193 Assunção de Nossa Senhora............................. 161 dedicação da Basílica do Latrão.........................196 21o Domingo do Tempo Comum...................... 164 33o Domingo do Tempo Comum.......................199 22o Domingo do Tempo Comum...................... 167 34o Domingo do Tempo Comum.......................201 o o Ano B 1o Domingo do Advento................................... 207 4o Domingo da Quaresma................................. 241 2o Domingo do Advento e Solenidade daImaculada Conceição.................. 210 5o Domingo da Quaresma................................. 244 3o Domingo do Advento................................... 212 Celebração da Paixão do Senhor....................... 249 4 Domingo do Advento................................... 215 Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor.... 251 Natal do Senhor (Noite).................................. 219 2o Domingo da Páscoa...................................... 254 Sagrada Família de Jesus, Maria e José.............. 223 3o Domingo da Páscoa...................................... 257 Epifania do Senhor........................................... 226 4o Domingo da Páscoa...................................... 260 Batismo do Senhor........................................... 229 5o Domingo da Páscoa...................................... 263 1o Domingo da Quaresma................................. 232 6o Domingo da Páscoa...................................... 266 2o Domingo da Quaresma................................. 235 Ascensão do Senhor......................................... 269 3 Domingo da Quaresma................................. 238 Domingo de Pentecostes.................................. 269 o o Domingo de Ramos da Paixão do Senhor.......... 246 Solenidade da Santíssima Trindade....................... 276 21o Domingo do Tempo Comum...................... 324 2o Domingo do Tempo Comum........................ 279 22o Domingo do Tempo Comum...................... 327 4o Domingo do Tempo Comum........................ 282 23o Domingo do Tempo Comum...................... 330 5o Domingo do Tempo Comum........................ 285 24o Domingo do Tempo Comum...................... 333 6o Domingo do Tempo Comum........................ 288 25o Domingo do Tempo Comum...................... 336 7o Domingo do Tempo Comum........................ 291 26o Domingo do Tempo Comum...................... 339 11o Domingo do Tempo Comum...................... 294 27o Domingo do Tempo Comum...................... 342 12o Domingo do Tempo Comum...................... 297 28o Domingo do Tempo Comum...................... 345 13o Domingo do Tempo Comum e Solenidade de São Pedro e São Paulo................ 300 29o Domingo do Tempo Comum...................... 348 14 Domingo do Tempo Comum...................... 303 o 30o Domingo do Tempo Comum...................... 351 31o Domingo do Tempo Comum e 15o Domingo do Tempo Comum...................... 306 Solenidade de Todos os Santos......................... 354 16 Domingo do Tempo Comum...................... 309 Celebração dos Mortos..................................... 357 17 Domingo do Tempo Comum...................... 312 32o Domingo do Tempo Comum...................... 359 18o Domingo do Tempo Comum...................... 315 33o Domingo do Tempo Comum...................... 362 19o Domingo do Tempo Comum...................... 318 34o Domingo do Tempo Comum e 20o Domingo do Tempo Comum e Solenidade da Assunção de Nossa Senhora....... 321 Solenidade de Cristo, Rei do Universo............. 365 o o Ano C 1o Domingo do Advento....................................... 371 Batismo do Senhor............................................... 395 2o Domingo do Advento....................................... 374 1o Domingo da Quaresma.................................... 399 3o Domingo do Advento....................................... 377 2o Domingo da Quaresma.................................... 402 4o Domingo do Advento....................................... 380 3o Domingo da Quaresma.................................... 405 Natal do senhor.................................................... 383 4o Domingo da Quaresma.................................... 408 Sagrada Família de Jesus, Maria e José................. 386 5o Domingo da Quaresma.................................... 411 Solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria............ 389 Domingo de Ramos da Paixão do Senhor............. 414 Epifania do Senhor............................................... 392 Quarta-feira Santa................................................ 417 Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor.... 419 15o Domingo do Tempo Comum......................... 478 2o Domingo da Páscoa.......................................... 422 16o Domingo do Tempo Comum......................... 481 3o Domingo da Páscoa.......................................... 424 17o Domingo do Tempo Comum......................... 484 4o Domingo da Páscoa.......................................... 427 18o Domingo do Tempo Comum......................... 487 5o Domingo da Páscoa.......................................... 430 19o Domingo do Tempo Comum......................... 490 6o Domingo do Senhor e Dia das Mães................ 433 20o Domingo do Tempo Comum......................... 493 Ascensão do Senhor............................................. 436 Domingo de Pentecostes...................................... 439 Solenidade da Santíssima Trindade....................... 442 Solenidade do Sagrado Coração de Jesus............. 445 2o Domingo do Tempo Comum........................... 448 3o Domingo do Tempo Comum........................... 451 4o Domingo do Tempo Comum........................... 454 5 Domingo do Tempo Comum.......................... 457 o 6 Domingo do Tempo Comum.......................... 460 21o Domingo do Tempo Comum......................... 496 22o Domingo do Tempo Comum......................... 499 23o Domingo do Tempo Comum......................... 502 24o Domingo do Tempo Comum......................... 505 25o Domingo do Tempo Comum......................... 508 26o Domingo do Tempo Comum......................... 511 27o Domingo do Tempo Comum......................... 514 28o Domingo do Tempo Comum......................... 517 29o Domingo do Tempo Comum......................... 520 o 10o Domingo do Tempo Comum......................... 463 30o Domingo do Tempo Comum e Solenidade de Todos os Santos e Santas............... 523 11o Domingo do Tempo Comum......................... 466 32o Domingo do Tempo Comum......................... 526 12o Domingo do Tempo Comum......................... 469 33o Domingo do Tempo Comum......................... 529 13o Domingo do Tempo Comum......................... 472 34o Domingo do Tempo Comum e Solenidade de Cristo, Rei do Universo................. 532 14o Domingo do Tempo Comum......................... 475 Anexos 50 Anos de Formatura dos Alunos Fundadores do Colégio Santa Cruz.......................537 Ciência e Fé.......................................................... 542 A Fé....................................................................... 544 Discernimento e Consciência Moral....................... 548 Entrega da Bíblia................................................... 551 O Deus de Jesus Cristo......................................... 553 Reflexão sobre a Catequese no Ano Catequético em 26/08/2009.................................557 Apresentação Em tempos distantes dos “Sermões do Padre Vieira” em que multidões de fiéis acorriam para ouvi-lo, esta publicação das Homilias do Padre José Amaral de Almeida Prado, da Congregação de Santa Cruz, pode parecer a muitos, no mínimo, estranha. Publicar homilias é inusitado porque, ao ouvi-las numa missa às vezes elas nos parecem longas e discursivas demais, até mesmo repetitivas. No entanto, a oportunidade de organizar e participar da edição das Homilias do Padre José mobilizou, com muito prazer e reverência, a Direção geral e os professores do Colégio Santa Cruz. Isto se deveu não só ao apreço, à amizade e admiração que todos nutrimos pelo amigo Padre José, que em 14 de novembro deste ano completou oitenta anos, mas também pelo reconhecimento e percepção de que estamos diante de uma excelente e importante contribuição pastoral e teológica para 11 a Igreja do Brasil. Essa amizade é construída diariamente pelos contatos que temos com o Padre José: anualmente os professores refletem sobre o tema da Campanha da Fraternidade; os professores de catequese partilham o estudo das diretrizes da catequese renovada e os demais professores que integram a Pastoral com ele dialogam nas frequentes reuniões de integração. Também os alunos de sétima série o acolhem com atenção na palestra de Ciência e Fé. Os de oitava série, nas palestras sobre Deus e sobre a Consciência Moral. Admiro nele a simplicidade em que vive, a espiritualidade que testemunha, a atenção que dá a todos que o procuram, a compaixão pelos que sofrem e a competência com que aborda com precisão temas religiosos da atualidade. Padre José não impõe,mas propõe e nos mostra um Deus exigente e, ao mesmo tempo, Pai misericordioso e cheio de amor que abraça e acolhe a todos. Padre José escreve à mão suas homilias, embora redija suas palestras e outros trabalhos em seu computador na Biblioteca do Colégio onde é visto todos os dias. As homilias são escritas com esmero, cuidado, profundidade e respeito por quem vai ouvi-las.Todas têm o tamanho de uma folha sulfite frente e verso, “redigidas não como um rigoroso exegeta, mas ao correr da pena”, como ele diz, visando sempre à realidade das duas comunidades onde preside as três missas dominicais: a do Colégio Santa Cruz e a da Vila São Francisco, na zona oeste da cidade de São Paulo. 12 Uma obra em mutirão No dia 16 de julho deste ano de 2010, recebi um bilhete do Padre José, que dizia: “Esses escritos ao lado são homilias do último ano litúrgico B (2008-2009) que alguém se dispôs a digitar. Acho que na sua sala estarão a salvo. Espero que no correr da semana que vem alguém virá buscá-los. Obrigado. Padre José” No final de julho, como as homilias ainda estavam na sala de Pastoral, propus a ele que os professores de catequese, ensino religioso e das demais áreas digitassem os manuscritos, até então guardados num saquinho de supermercado. Com emoção, ele aceitou a proposta e como a adesão dos professores foi imediata, foi organizado o mutirão que, durante agosto e setembro, possibilitou a digitação das 170 homilias dos anos litúrgicos A, B e C e a organização em quinze pastas de A a Z de mil e setecentos manuscritos de homilias diárias e dominicais a partir do ano de 2003. O projeto teve a participação decisiva dos três membros da direção geral do Colégio Santa Cruz que, a partir da etapa da digitação dos textos, ampliaram a proposta e organizaram com carinho esta edição que apresenta as homilias escritas nos períodos de novembro de 2007 a novembro de 2008 (Ano A); novembro de 2008 a novembro de 2009 (Ano B); e de novembro de 2009 a novembro de 2010 (Ano C). 13 Informações sobre os Anos Litúrgicos A, B e C A Igreja, através dos séculos, organizou lentamente o Ano Litúrgico, que, no início, tinha apenas a celebração dominical da Páscoa e, logo em seguida, a instituição de um domingo especial para a celebração da Páscoa. Foi escolhido o domingo seguinte à primeira lua cheia, no equinócio da primavera (no hemisfério norte), por ser este o ponto de equilíbrio de duração entre o dia e a noite e por representar o surgimento da vida nova da natureza na primavera. A celebração da Páscoa tinha um prolongamento de cinquenta dias até Pentecostes, que celebra a vinda do Espírito e o inicio da atividade dos apóstolos. Na primeira metade do século IV, foi organizada a Quaresma e, na segunda metade desse mesmo século, surgiu a festa de Natal, com o objetivo de afastar os fiéis das festas pagãs do “sol invicto” — no solstício do inverno do hemisfério norte — festa que celebrava a força e o ressurgimento do sol depois do rigoroso inverno. No Natal se celebra Jesus Cristo como verdadeiro sol e luz que pode iluminar a todos. No século V, foi organizado o tempo de preparação de quatro semanas chamado Advento e um prolongamento de duas semanas com as festas da Epifania e do Batismo de Jesus. No século V, a Igreja já tinha um calendário litúrgico como conhecemos hoje, com os ciclos de Natal e Páscoa e os domingos do Tempo Comum, composto pelas restantes 33 ou 34 semanas do ano. A cada uma dessas etapas do Ano Litúrgico corresponde uma cor: roxo para a Quaresma e Advento, branco para a Páscoa, vermelho para o Pentecostes e verde para o Tempo Comum. A cor branca é utilizada também em algumas grandes festas e solenidades e a vermelha nas celebrações dos mártires. 14 Em relação aos textos bíblicos, o rito litúrgico romano possui um conjunto de leituras que se repetem a cada três anos nos domingos e solenidades. A cada ano há uma sequência de leituras próprias divididas em anos A, B e C, que são proclamadas em todas as igrejas do mundo. Nas liturgias diárias há dois ciclos: um para os anos pares e outro para os anos ímpares. No ano A, são lidos os textos do evangelho de São Mateus; no ano B, os de São Marcos; e no C, os de São Lucas. Os textos do evangelho de São João são reservados para as grandes festas e solenidades. Dessa forma, de três em três anos, os cristãos que participam das liturgias dominicais leem os quatro evangelhos. Para descobrir o Ano litúrgico em que estamos, é só somar os algarismos do ano. O ano em que a soma dos algarismos for um número múltiplo de 3 é Ano litúrgico C. Por exemplo: 2010 é Ano litúrgico C, e 2011 será Ano A. No entanto, o Ano litúrgico não coincide com o ano civil. O Ano litúrgico inicia-se no primeiro Domingo do Advento, cerca de quatro semanas antes do Natal, e se encerra com a solenidade de Cristo Rei do Universo, no final do mês de novembro. Neste ano de 2010, o Ano litúrgico C terminou na sexta feira seguinte ao dia 21 de novembro; e no sábado, 27 de novembro, iniciou-se o Ano litúrgico A, que vai se estender até novembro de 2011. Padre José nos brindou com este presente, as homilias, em que ele se revela e propõe Jesus Cristo como caminho, verdade e vida. Que a sua leitura e meditação alimentem nossa espiritualidade, nos tornem mais compassivos com todos os seres humanos e comprometidos com a promoção da vida. Prof. Cláudio Antônio Rondello Coordenador da Pastoral do Colégio Santa Cruz 15 Essas Homilias... Essas homilias que hoje são publicadas pela iniciativa da Equipe de Catequese do Colégio Santa Cruz têm uma história relativamente longa que se iniciou no fim da década de setenta, quando tive a graça de iniciar um trabalho pastoral na Capela de Nossa Senhora de Fátima no bairro de Santa Mônica em Pirituba, São Paulo, paróquia Nossa Senhora Auxiliadora. Hoje Santa Mônica é uma paróquia. Era o tempo memorável da pastoral popular no Brasil e de modo particular em São Paulo. Era o tempo da controvertida, mas muito rica e fecunda Teologia da Libertação, que revitalizou pastoralmente as grandes periferias das grandes cidades brasileiras, inclusive as paulistanas. Estavam em evidência as Comunidades de Base e dentro delas os Grupos de Rua onde se praticavam as novenas de Natal, entre outras, caracterizadas pelo forte conteúdo bíblico. Essa leitura bíblica era inspirada no método criado e difundido em todo o Brasil pelo biblista e pastoralista Frei Carlos Mesters, frade carmelita. A ele tanto devemos nesse imenso Brasil. A leitura da Bíblia era comunitária e ela levava em conta não só a letra do texto, mas também o 17 contexto do texto, ao tempo da sua redação, e também o contexto da sua recepção atual e também o contexto do leitor, aqui e agora, de tal modo que o mesmo texto terá sempre a qualquer leitura um sabor muito particular. Ao mesmo tempo em que trabalhava em Santa Mônica, fui convidado pelas autoridades da Congregação a assumir a função de formador em nosso Postulantado em Jaguaré. Tratava-se de um grupo de seis ou sete jovens que desejavam entrar para a vida religiosa em Santa Cruz. Era um item importante no programa a Missa diária, que inclui, evidentemente, a liturgia da Palavra e a homilia. Ao invés de assumi-la pessoalmente, partilhava-a com os postulantes. Essa experiência confirmava a riqueza da leitura comunitária da Bíblia e era um pouco como um mergulho nas águas da Palavra, cujo frescor jamais nos abandona. Já havia alguns anos que eu celebrava uma vez por mês a missa dominical para a Comunidade de Base do Boaçava, bairro paulistano da zona oeste da cidade de São Paulo. No fim dos anos 80, ninguém registrou o ano exato, um velho amigo, exjucista dos anos 50, convida-me para fazer parte de um grupo de leitura bíblica. Mais precisamente, queriam fazer uma leitura mais aprofundada e comunitária dos evangelhos para, não só conhecê-los melhor, mas para melhor vivê-los. Começamos, como deve ser, pelo evangelho de Marcos. Líamos uma passagem, pela ordem dos capítulos, numa primeira etapa e, depois de uma breve reflexão pessoal, cada um verbalizava as suas reações e o padre, que já se havia preparado para a discussão, fazia a sua parte. Atravessamos os quatro evangelhos, já estamos terminando o evangelho de Mateus, o primeiro evangelho, que, na 18 nossa ordem de leitura em grupo, está sendo o quarto. Posso garantir que essa experiência foi a que mais me familiarizou com a Palavra de Deus e mais me ensinou. A substância das homilias desta publicação é tributária da experiência no Boaçava. O ano 2000 trouxe-me de volta ao Colégio Santa Cruz, onde me cabia celebrar a Missa duas ou três vezes por semana. Como é comum, fazia as homilias sem um texto previamente redigido. Algumas pessoas gostaram e me pediram para registrá-las de alguma maneira por escrito, pois poderiam servir para alguém no futuro. O mesmo pedido me foi feito na Capela de São Francisco da Vila São Francisco, hoje mais conhecida como Colinas de São Francisco, nas proximidades de Osasco, SP. Com o passar do tempo, passei a redigir todas as homilias, não como um rigoroso exegeta, mas ao correr da pena, as dominicais e as diárias. Alguém, com muito carinho, as guardava cuidadosamente, muito mais do que eu o poderia fazer... Elas estavam lá disponíveis e já se acumulavam; o prof. Cláudio Rondello teve a idéia de colocá-las em pastas. Uma vez devidamente dispostas, surgiu a possibilidade de publicá-las por ocasião dos meus oitenta anos... Aceitar ou recusar? Seja o que Deus quiser... Pe. José de Almeida Prado, csc 19 Lecionário Dominical Ano A 1º Domingo do Advento 1. Introdução O tempo do Advento marca o início do Ano Litúrgico e o Ano Litúrgico é uma parábola da vida cristã, que se inicia com o nascimento e se prolonga para além da nossa morte, na eternidade. Temos o mesmo destino de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nasceu em Belém de Judá, morreu em Jerusalém, mas, tendo ressuscitado, viverá eternamente na glória ao lado do Pai. Temos, pois, o Jesus terreno e o Jesus celeste. O tempo do Advento tem uma dimensão terrena e uma dimensão celeste. Nas duas primeiras semanas, contemplamos a sua dimensão celeste e nas duas últimas, a terrestre. Contemplar a dimensão terrena do mistério é recordar a primeira vinda do Senhor, o seu nascimento na gruta de Belém, a adoração dos reis magos, o massacre dos inocentes, a fuga ao Egito e o seu retorno a Nazaré. Contemplar a dimensão celeste do mistério é celebrar na esperança a vinda gloriosa do Senhor na Parusia ou no final dos tempos. A primeira vinda do Senhor, nós a celebramos recordando a sua história e embebendo-nos com seu Espírito. A segunda vinda do senhor, nós a celebramos na fé. Sabendo da fidelidade de Jesus, acreditamos firmemente que Ele não nos abandonará nunca, nem depois da nossa história terrena, nem depois do fim da História. 23 2. Livro do Profeta Isaías 2, 1-5 O profeta Isaías representa um dos pontos altos da revelação que Deus faz de si mesmo ao longo da Bíblia. Com Abraão, Deus, ao recusar o sacrifício de Isaac, revela-se como o Deus da vida e não o Deus da morte, como os ídolos pagãos, que exigiam para si sacrifícios humanos. Com Moisés, Javé surge como o maior de todos os deuses que vem em socorro dos homens e restaura a justiça ao libertar os hebreus da escravidão do Egito. Com Isaías, se dá a grande revolução teológica. Deus não é apenas o maior de todos os deuses, mas é o único Deus verdadeiro e não há outro: “Acontecerá nos últimos tempos, que o monte da casa do Senhor estará firmemente estabelecido no ponto mais alto das montanhas e dominará as colinas. A ele acorrerão todas as nações, para lá irão numerosos povos”. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 13, 11-14a Paulo faz hoje uma exortação aos cristãos das comunidades de Roma para que vivam segundo os preceitos evangélicos, porque a qualquer momento poderiam ser surpreendidos pelo fim, já que a expectativa era de que o retorno do Senhor seria para breve: a noite já vai avançada e o dia vai chegando! A experiência de Paulo vale para todos nós hoje, ainda que não esperemos para breve o fim da História, mas sobre o fim da nossa história pessoal não temos nenhum controle. A nossa morte é certa, a sua hora, porém, incerta. Tanto o Antigo como o Novo Testamento nos convidam à vigilância e o Advento, que é um tempo de expectativa, é um tempo propício para a nossa conversão, 24 que significa mudança de vida: “procedamos honestamente como em pleno dia”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 24, 37-44 Como os profetas de Israel e de modo particular como João Batista, Jesus também pregava a necessidade de estarmos preparados para a incerteza do futuro. Que não fôssemos surpreendidos como as vítimas do dilúvio! Lucas, ao redigir este evangelho, estava traumatizado pela destruição de Jerusalém e do Templo onde não ficou pedra sobre pedra. Tal destruição pareceu a Isaías como uma parábola do fim do mundo. Uma boa ocasião para chamar a atenção de todos para não serem surpreendidos na irresponsabilidade. Porque na hora em que menos pensais o Filho do Homem virá! 25 2º Domingo do Advento 1. Introdução O messianismo é um tema importantíssimo no AT e também na liturgia do Advento; como se sabe, o termo messianismo prende-se à palavra Messias, ou ungido, em hebraico, que, por sua vez, se traduz em grego, por . Após os reinos gloriosos de Davi e Salomão, o Reino de Israel, tanto o do Norte quanto o do Sul, entraram em rápida decadência: foram invadidos, expulsos e as antigas tribos foram dispersas, exceto as poucas tribos de Judá. Apesar das sucessivas derrotas, um pequeno grupo de servos de Javé guardava a esperança de que, um dia, Javé enviaria do alto o seu Messias, o seu ungido. Esta esperança jamais se perderia, até hoje os judeus tradicionalistas a conservam. Os discípulos de Jesus viram no próprio Jesus o Messias prometido. A liturgia do Advento, do Tempo que está para chegar, aproveita esse tempo preparatório para o Natal de Jesus para, em quatro semanas, reviver a história sagrada desde os seus inícios até o nascimento de Jesus. 2. Livro do Profeta Isaías 11, 1-10 Isaías, um homem do VIII século antes de Cristo, foi talvez o maior profeta, aquele que foi escolhido, desde o ventre da sua mãe, para falar em nome de Javé e anunciar em plena escuridão o broto de Jessé, o Espírito do Senhor. Isaías profetizou de maneira tão clara a respeito do enviado de Javé: “Ele não julgará pelas aparências que vê nem decidirá somente por ouvir dizer, mas mostrará justiça para os humildes e uma ordem justa para homens pacíficos”. Os contemporâneos de Jesus, ao ouvirem a 26 sua pregação, logo perceberam que Ele era aquele que tinha sido profetizado pelo profeta Isaías. Jesus veio para renovar o mundo e trazer a alegria para os homens. Em que pesem as dificuldades da vida e os limites terrenos da existência, jamais perderemos a proteção do Pai. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 15, 4-9 São Paulo, ao mesmo tempo judeu e apóstolo dos gentios, leva hoje aos cristãos de Roma, judeus ou gentios, uma mensagem ecumênica sem nenhuma restrição. Assim como Paulo soube superar as graves restrições que fazia ao mundo pagão, também nós devemos abrir os nossos corações para encontrarmos no amor todos os nossos irmãos, ainda que sejam diferentes de nós. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 3, 1-12 João Batista é uma das figuras mais importantes do Advento. João Batista era portador de uma figura austera sem meias medidas. João Batista, como não era incomum no seu tempo, aguardava para breve o fim do mundo. Era um pregador popular e mantinha fiel a si um grupo de discípulos. Sabemos pelas narrativas dos evangelhos que João e Jesus se conheceram e mesmo conviveram por um tempo no mesmo grupo. Do temperamento de João, podemos guardar a sua radicalidade. De nada serve adiar a solução dos nossos problemas, das nossas pequenas ou grandes fraquezas. O Advento também é um tempo de conversão. A espiritualidade do Natal nos coloca num patamar tão alto que vale a pena esforçar-nos para por a nossa vida em dia. Às vezes o chamado “espírito natalino” nos parece tão mercadológico que vale a pena lembrar-nos de João Batista! 27 3º Domingo do Advento 1. Introdução Nesses dois primeiros domingos do Advento, fixamos a nossa atenção na segunda vinda do Senhor e com isso podemos tomar consciência da nossa vocação histórica e do nosso destino eterno; neste terceiro domingo, inicia-se a segunda fase do Advento, um tempo de preparação próxima para celebrar a memória da natividade do Senhor, do Menino Deus. A liturgia de hoje inicia-se com um grito de alegria: “Alegrai-vos, irmãos, no Senhor. Sem cessar eu repito, alegrai-vos; veja o mundo a vossa bondade. Perto está o Senhor, em verdade.” Por um domingo, a liturgia depõe o roxo penitencial dos paramentos litúrgicos e enverga o rosa alegre que festeja a vida que em breve vai nascer! Pois, como canta o intróito, perto está o Senhor, em verdade. 2. Livro do Profeta Isaías 35, 1-6a.10 À época do profeta Isaías, parece que o povo de Deus estava no fundo do poço, o povo ainda estava no exílio, o Templo estava destruído, já não havia mais nem sacerdotes, nem profetas. Mas Isaías e os seus companheiros sentiram que a cólera de Deus estava chegando ao fim e que dias melhores viriam. “Alegre-se a terra que era deserta e intransitável, exulte a solidão e floresça como lírio... Foi lhe dada a glória do Líbano, o esplendor do Carmelo e do Saron.” A esperança de Isaías durou 28 séculos. Paralelamente às dificuldades que acompanham a vida de todos os povos, as gerações fiéis continuavam alimentando a esperança da grande volta por cima. “O coxo haveria de saltar como o cervo e se desataria a língua do mudo”. Assim também em breve se desatará a língua de Jesus Infante! 3. Carta de São Tiago 5, 7-10 Conforme acontecia com as comunidades primitivas, dentro delas esperava-se para breve o retorno do Senhor e isso causava apreensão devido à incerteza que gerava entre os fiéis. Tiago tentava, ao mesmo tempo, mantê-los vigilantes e tranquilos, como faziam os antigos profetas. Os conselhos de Tiago têm algum valor ainda para nós? Poderão ser-nos úteis na medida em que nos colocam diante da vida, dando-lhe a devida importância. Nesta quadra do Advento, por exemplo, tomar consciência de que o nascimento de Jesus é o acontecimento mais revolucionário de toda a História da humanidade, nada maior já aconteceu e jamais acontecerá. Tudo o que nos possa acontecer assume o seu significado a partir do nascimento de Jesus. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 11, 2-11 Por que teria João Batista enviado alguns discípulos seus para interrogar Jesus sobre o seu ministério? Estaria duvidando de Jesus, ele que o apresentara como Cordeiro de Deus que tirava o pecado do mundo? Talvez João Batista estranhasse o pouco impacto político do ministério de Jesus, nenhuma mudança 29 substancial se via no horizonte! Deveriam esperar por um outro Messias? Em resposta a João, Jesus cita a profecia de Isaías: “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados.” Jesus não veio para ser servido, Jesus veio para servir. O reino de Jesus não é um reino de poder, mas um reino de Amor. É essa a grande novidade do Evangelho. A primeira lição será o nascimento de Jesus na gruta de Belém. 30 4º Domingo do Advento 1. Introdução O tempo do Advento, a quadra de preparação para o Natal, está chegando ao seu termo e é mais do que hora de dar-nos conta de que está chegando a hora de lembrar o nascimento de Jesus, o Filho de Deus e de Maria; não se trata apenas de uma grande data e de um grande acontecimento, trata-se do evento maior da História da humanidade, viveremos dentro de dois dias a memória da entrada do Filho de Deus na História da humanidade. Podemos dizer com razão que todo o universo foi criado, toda a vida nele se desenvolveu para que um dia na gruta de Belém nascesse Jesus Rei do Universo e Salvador de todos os homens. Ainda que o mundo se enfeite todo para celebrar o Natal e deixe soar toda a música do Universo, não celebraremos nunca à altura o Natal do Senhor: Glória aos céus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade! 2. Livro do Profeta Isaías 7, 10-14 No texto de hoje, Isaías dirige-se em nome de Javé, a Acaz, rei de Judá, da descendência de Davi, para dar-lhe esperança quando se achava ameaçado pelo rei de Damasco. Apesar da sua inferioridade militar, a sua dinastia não haveria de tombar por terra. Isaías prevê que uma virgem, no caso uma mulher jovem, conhecerá e dará à luz um filho e lhe dará o nome de Emanuel. Não seria, pois, o fim de Judá; a di31 nastia davídica haveria de continuar. Com o passar do tempo, os discípulos de Jesus releram a história do nascimento de Emanuel, descendente de Acaz, filho de uma mulher jovem, e viram nele uma antecipação, uma profecia sobre Maria e o nascimento de Jesus. Mateus, o primeiro evangelista, evocará a cena ao dizer sobre Maria e Jesus: “Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel que significa Deus conosco”. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 1, 1-7 Esses poucos versículos da segunda leitura de hoje foram tirados da primeira carta de Paulo aos romanos. Paulo apresentase aos cristãos de Roma, a capital de todo o império romano, como apóstolo de Jesus Cristo, segundo a carne, descendente de Davi, mas segundo o Espírito, constituído Filho de Deus com poder, desde a ressurreição dos mortos. Nestes tempos de Natal, quando meditamos o mistério da Encarnação do Senhor, não devemos esquecer a dupla natureza de Jesus, a humana, como filho de Maria, e a divina, como filho de Deus. Não poderemos jamais entender esse mistério, mas podemos, com a graça de Deus, vivê-lo na fé que nos faz experimentar, pelo menos um pouco, a infinitude do amor de Deus por nós. 32 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 1, 18-24 Antes que termine o Advento, a liturgia nos traz à meditação a figura, ao mesmo tempo grandiosa e modesta de São José. Submetido a uma dura prova de confiança diante da gravidez de Maria, José, não querendo denunciá-la publicamente, pensou em despedi-la secretamente, como se não ousasse julgá-la. Na verdade, José não a julgou, mas suspendeu seu julgamento, em outras palavras, entregou-a nas mãos de Deus. E com isso José nos dá uma grande lição de vida. Com que direito nos erigimos como juízes dos nossos irmãos? Oxalá pudéssemos imitar a José em nossa vida, na família, no trabalho e na sociedade. Aquela paz que tanto desejamos no Natal estaria, com certeza, muito mais perto de nós. Quando acordou, José fez como o anjo tinha mandado e acolheu a sua esposa. 33 Natal do Senhor Noite 1. Introdução: Ver introdução da noite 2. Livro do Profeta Isaías 9, 1-6 Esta primeira leitura tirada do profeta Isaías é uma das profecias messiânicas mais evidentes. Isaías, quando proferiu esse oráculo, pensava para um futuro próximo a vinda de um Messias, ou seja, um rei para restaurar, não só a Dinastia de Davi, mas a Glória do Reino de Judá e Israel, cujas tribos tinham sido dispersas. Isso jamais aconteceu, mas os seguidores de Jesus e com eles a Igreja de todos os séculos viram em Jesus o Messias prometido. Não se tratava de um rei guerreiro, nem poderoso “porque nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: conselheiro admirável, Deus forte, pai dos tempos futuros, príncipe da Paz. 3. Carta de São Paulo a Tito 2, 11-14 A alegria do Natal é uma graça transformadora. Não passamos por ela sem que os nossos corações mudem de orientação, ou seja, convertam-se. Diz Paulo ao seu discípulo Tito: “Ela nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas 35 e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade.” Abre também os nossos olhos para novos horizontes, lembra-nos que o horizonte visual é apenas uma ilusão, para além dele estendese ainda uma paisagem ilimitada que podemos enxergar com os olhos da fé. Tudo isso nos revelou Jesus e começou a fazê-lo desde os primeiros instantes da sua vida, através dos seus vagidos na gruta de Belém. Eram sons inarticulados, mas cheios de significado porque provinham dos lábios de um Deus que se fazia o irmão menor de todos nós, homens e mulheres de todas as gerações. 36 Natal do Senhor Missa do dia 1. Introdução: Noite e manhã Estamos celebrando, nesta vigília de Natal, a grande festa do nascimento de Jesus. No nosso mundo de hoje, o Natal apresenta uma dupla dimensão, ambas importantes, mas de valor desigual. A mais evidente é o lado mundano, festivo, mas também social, já que as pessoas se sentem prontas para ajudar os pobres, principalmente as crianças. A nossa comunidade sente-se fortemente engajada nessa campanha. Há também a dimensão de fé que também devemos cultivar nestes dias fes- 37 tivos. Estamos celebrando, nesta data, a encarnação de Jesus, filho de Deus e de Maria. Nesta data, há um pouco mais de 2000 anos, cumpriu-se o desígnio de Deus, alimentado desde toda a eternidade. Podemos pensar que Deus criou o céu e a terra, o homem e a mulher e tudo o que nela existe para que pudessem viver a experiência humana em Jesus Cristo e assim partilhar com todos os humanos o seu infinito amor. Da gruta de Belém, nos vem a luz que ilumina toda a História dos Homens, filhos amados de Deus, e por isso podemos clamar: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados.” 2. Livro do Profeta Isaías 52, 7-10 (manhã) O profeta Isaías, o profeta messiânico por excelência, conclama Jerusalém em ruínas, para alegrar-se no Senhor. A temporada de humilhação um dia haveria de chegar a seu termo: “Alegrai-vos e exultai ao mesmo tempo, ó ruínas de Jerusalém, o Senhor consolou o seu povo e resgatou Jerusalém.” Jesus foi reconhecido pelos seus discípulos e por toda a tradição da Igreja como o mensageiro cujos pés anunciaram a paz, o bem e a salvação. Esse mesmo Jesus que anunciou a paz durante o seu ministério terreno continua a anunciá-la a cada geração. Esta é a nossa fé que nós proclamamos com especial ênfase nesta noite de Natal. Estas palavras que empolgaram os contemporâneos de Isaías e também o fizeram aos discípulos de Jesus, suscitam em nós, hoje, as mesmas esperanças. 38 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 1, 1-6 (manhã) O autor desta carta que estamos a ler hoje tenta mostrar aos seus destinatários, cristãos vindos do judaísmo e conhecedores da mensagem do profeta Isaías, tenta mostrar-lhes que era, na verdade, o Messias que o profeta anunciava que haveria de vir: “Ele é o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta o universo com o poder da sua palavra.” No dia em que conseguirmos conciliar a grandeza do Messias, tal como descrita pelo autor da Carta aos Hebreus e a pequenez do Menino Jesus na gruta de Belém, estaremos a compreender um pouco da graça, da beleza e do mistério insondável do Natal. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2, 1-14 (noite e manhã) A descrição mais bela do nascimento de Jesus, nós a encontramos em Lucas. É ele que nos fala da viagem de José e Maria para se recensearem em Belém, é ele que nos fala da gruta de Belém e do nascimento de Jesus e do seu repouso entre faixas na manjedoura. Conta-nos como os anjos convocaram os pastores e como foi o cântico dos anjos. Essas imagens que deliciaram a nossa imaginação e alimentaram a nossa fé num Deus de rosto humano devem continuar a alimentar as nossas mentes e os nossos corações e principalmente os nossos filhos e filhas. Eles não podem ser privados desse tesouro. 39 Missa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José 1. Introdução Iniciaremos hoje a nossa reflexão, meditando sobre a Sagrada Familia: Jesus, Maria e José, como reflexo da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo e, em segundo lugar, meditaremos sobre a nossa família, pai, mãe e filhos, como reflexo da Sagrada Família. José, com o seu semblante sereno, como condutor da sua família nos momentos mais difíceis, a viagem a Jerusalém para o recenseamento, a assistência a Maria na gruta de Belém, a defesa do menino Jesus perante os seus perseguidores, a fuga para o Egito e o retorno a Nazaré, a sua criatividade como artesão, refletem a imagem da primeira pessoa da Santíssima Trindade, o Pai, criador do céu e da terra que em Jesus expressou o seu rosto humano. Maria, cheia de graça e sabedoria, é um reflexo suave do Espírito Santo, que nos transmite com a sua luz e calor a ternura do Pai. Jesus não é apenas o reflexo do Filho, mas é o próprio Filho Encarnado, caminho, verdade e vida, o pão descido do céu, luz da luz e salvação nossa. Por outro lado, ao olhar para as nossas famílias, nós vemos que, embora sem termo de comparação, elas podem com humildade refletir em seus lares as imagens de Jesus, Maria e José. As nossas famílias vivem hoje uma grande crise e não poderia ser 41 diferente diante do ritmo vertiginoso em que tenta viver a nossa sociedade de hoje. O pai de hoje em nossos lares deve mirar-se no exemplo de José. Ele era o chefe da Sagrada Família, mas exercia a sua função de chefe como um humilde servidor. Mas a sua humildade em nada diminuía a sua criatividade e a sua autoridade, ao contrário, as tornava mais eficazes. A esposa e mãe, que é a rainha do lar, é a Maria das nossas famílias, aquela que evidencia moral e espiritualmente a presença de Deus em nossos lares. Como Maria trouxe para o lar de José a figura do seu filho Jesus, a mãe de família deve tornar Jesus de alguma maneira presente em nossos lares. 2. Livro do Eclesiástico 3, 3-7.14-17a Embora esta primeira leitura tenha sido escrita há bem mais de 2000 anos, pois ela recolhe a sabedoria de vários milênios, ela parece dirigida às famílias de hoje. Ela pede aos filhos que honrem os seus pais e lhes promete com isso uma vida longa. Não é verdade que hoje vivemos em nossos lares uma crise de autoridade? Não é verdade que caducou o autoritarismo e que a verdadeira autoridade deve ser restabelecida? Não vem a calhar o versículo 14? “Meu filho, ampara o seu pai na velhice e não lhes cause desgosto enquanto ele vive.” 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 12-21 Contento-me também com apenas um versículo desta carta de Paulo aos colossenses: “Como o senhor nos perdoou, assim perdoai-vos também.” Não existe viabilidade nenhuma para nenhuma família se não houver perdão dentro dela. Como todos 42 somos pecadores, não existe possibilidade de convivência se não houver entre nós capacidade de perdoar-nos uns aos outros. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 2, 13-15.19-23 “José levantou-se de noite, pegou o menino e a sua mãe e partiu para o Egito.” Após algum tempo, de novo o Anjo acorda José: “levanta-te, pega o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel.” José, homem simples, modesto carpinteiro, não era um pai para si, mas exclusivamente para sua esposa e seu filho. 43 Santa Mãe de Deus, Maria 1. Introdução A devoção a Maria iniciou-se logo após a ressurreição do Senhor e, como prova desse fato, temos em Mateus e Lucas os evangelhos da infância de Jesus. Não muito mais tarde, iniciouse o culto a Maria. Entre os vários títulos que se atribuíam a Maria, surgiu com força o de Maria, Mãe de Deus, mas foi logo objeto de discussão: seria razoável atribuir-se a Maria o título de Mãe de Deus? Como poderia ser Ela chamada de Mãe de Deus, o criador do céu e da terra e de tudo o que nela existe, inclusive dela mesma? Já no século V, o Concílio de Éfeso consagra o direito de Maria a ser invocada como Mãe de Deus. Se Maria é Mãe de Jesus, Deus e Homem, mas uma só pessoa, um só eu, e se ela pode ser chamada de Mãe de Jesus Homem poderá também ser chamada Mãe de Jesus, Deus. Essa devoção foi transformada em festa litúrgica de preceito como a celebrao mos hoje nesta vigília do Ano Bom. O dia 1 de janeiro, com a sua vigília, também é festivo no Calendário Civil que tem também uma conotação religiosa para os homens e mulheres de fé. Aproveitamos esta missa para desejar-nos a todos um Feliz Ano Novo perante Deus e perante os homens. 45 2. Livro dos Números 6,22-27 As palavras que Abraão sugere a Aarão, quando abençoasse o seu povo, merecem ser lidas com atenção. Abraão diz a Aarão, que era sacerdote, diga que Deus te abençõe e não eu, Aarão, te abençoo. Isso quer dizer que é Deus que abençoa e não o sacerdote. O padre é apenas um intermediário que lembra aos fiéis que Deus está sempre a abençoar-nos, mesmo quando não nos lembramos de pedir-Lhe que nos abençoe. E o que é a benção, senão um olhar carinhoso e eficaz de Deus sobre nós e sobre a nossa vida? Se nós nos esmeramos em recebê-la com devoção, ela nos converte e, convertendo-nos, nos transforma. 3. Carta de São Paulo aos Gálatas 4, 4-7 É na carta aos Gálatas que Paulo faz, nos seus escritos, a única referência a Maria. Ele o faz, na condição de mãe de Jesus, Filho de Deus. Como irmãos de Jesus, passamos também à condição de filhos de Deus. Já não somos mais servos, mas filhos. É por isso que o Espírito suscita em nossos corações o doce clamor. Abba: Pai. Deus já não é mais visto como um princípio de força, mas como um Pai carinhoso, inclinando à misericórdia e ao perdão. É nesse contexto que nos acompanha a presença de Maria, Mãe de Deus. 46 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2, 16-21 A festa da Mãe de Deus, antes de ser a festa do dia 1o de janeiro, é a festa da oitava do Natal. Entre os judeus, o oitavo dia do nascimento era o dia em que os filhos homens eram circuncidados conforme exigia a Lei. A circuncisão, mais do que uma pequena cirurgia, como diríamos hoje, era uma cerimônia religiosa de consagração a Javé, pela qual o recém-nascido se tornava membro do povo eleito. É como o batismo, uma espécie de segundo nascimento. E nesse dia recebia-se o nome que em Israel era sempre uma referência religiosa a orientar toda a vida. É assim que o filho de Maria e José recebeu o nome de Jesus, isto é, Salvador que, como diz o anjo a José: “Maria dará à luz um filho, a quem tu chamarás Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados”. 47 Epifania do Senhor 1. Introdução Epifania do Senhor, ou seja, Manifestação do Senhor, é o nome litúrgico oficial do que popularmente se chama o Dia de Reis. Na verdade, os que chamamos de Reis nas línguas latinas são chamados de magos nos evangelhos, ou seja, são sábios astrólogos que vieram do Oriente para adorar o Senhor, alertados que foram pelo brilho de uma estrela que lhes serviu de guia. A tradição popular confundiu esses magos com os reis de todas as partes que Isaías, no seu oráculo que veremos na primeira leitura da Litúrgia de hoje, anteviu que acorreriam a Jerusalém para, ao clarão de uma grande luz, adorar Javé, o verdadeiro Deus, não só de Israel, mas de todos os povos, mesmo o das ilhas mais distantes. O essencial do significado teológico da festa de hoje é que Jesus, filho de Deus e de Maria, veio para salvar não apenas o povo de Israel, mas todos os povos do mundo, de todas as raças, religiões e culturas e de todas as gerações até o fim dos tempos. 2. Livro do Profeta Isaías 60, 1-6 Este trecho do 2o Isaías é um dos textos mais importantes do AT no que se refere à autorrevelação de Deus aos homens e à consequente experiência de Deus por parte dos que nele acreditam. Pode ser colocado ao lado da passagem do não sacrifício de Isaac, filho de Abraão, em que Deus se revela como o Deus 49 da vida que rejeita sacrifícios humanos; pode ser colocado ao lado do episódio da sarça ardente, em que Deus se revela como Aquele que ouve o clamor dos pobres e desvalidos e não como Deus dos poderosos. Neste trecho do 2° Isaías, Deus se revela como o Deus de todos os povos e nações e não só de Israel, o povo eleito. Essa mudança na compreensão não é apenas quantitativa, mas qualitativa. Por mais distinta que seja a sorte do indivíduo humano, a sua cultura, a sua cor ou a sua fortuna, ele é igualmente amado por Deus. Quando alguém incorpora essa convicção interior, ele já não será mais o mesmo em relação ao seu próximo e em relação a si mesmo. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 3, 2-3.5-6 Embora Paulo, com certeza, tivesse lido o capítulo 60 do 2o Isaias, ele não se deu conta de que Javé era o Deus de todos e não apenas de Israel. O fariseu Paulo, da estrita observância, antes da sua conversão, era um judeu estreito, incapaz de igualarse a um gentio ou pagão. O que já tinha sido revelado a Isaías não fora compreendido por ele; era para ele um mistério que ele agora, convertido ao Deus revelado em e por Jesus, compreendera. Agora Paulo ardia de vontade de revelar aos gentios esse mistério: esse mistério... acaba de ser revelado agora pelo Espírito: os pagãos são co-herdeiros conosco (que somos judeus), são membros do mesmo corpo e participantes à em mesma promessa Jesus Cristo, por meio do evangelho. 50 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 2, 1-12 Os pormenores da narrativa de Mateus a respeito da visitação dos magos a Jesus não são necessariamente históricos. Trata-se de uma alegoria que aponta para uma verdade histórica inegável. A verdade histórica de fundo é que o povo de Israel na sua maioria rejeitou o Messias – vejam a atitude dos sumos sacerdotes e fariseus, todos legítimos representantes do seu povo, e vejam por outro lado os pagãos representados pelos reis magos. Segundo a tradição, Melquior, Gaspar e Baltasar acolheram Jesus, como homem, oferecendo-lhe mirra, e como Deus, oferecendo-lhe incenso, e correram risco de vida pela visita que fizeram a Jesus. Mas, caros irmãos, à maneira dos reis magos que abriram generosamente os seus cofres, abramos os nossos corações para adorar a Jesus que se manifesta a nós nesta Epifania ao lado de todos os nossos irmãos sem nenhuma exceção. 51 52 Batismo do Senhor 1. Introdução É de alto significado teológico a liturgia do Batismo do Senhor, como se pode verificar pela riqueza das leituras de hoje. No Ano Litúrgico, o domingo de hoje encerra o tempo do Natal e se inicia a 1ª parte do Tempo Comum que só se interromperá com a Quaresma. Num certo momento da sua vida, Jesus tomou a decisão de deixar Nazaré, na Galileia, para fazer-se discípulo de João Batista, no deserto da Judeia, em quem ele via um emissário de Javé, um precursor do anúncio do Reino de Deus. João pregava o arrependimento dos pecados e a conversão através da prática da justiça. Não bastavam a prática cultual e o pagamento dos impostos do Templo, importava sim a prática da justiça que vale muito mais do que a pertença ao povo de Deus, pois até das pedras Deus poderia suscitar filhos de Abraão. 2. Livro do Profeta Isaías 42, 1-4.6-7 O servo do Senhor, também identificado como Servo Sofredor, é uma das figuras mais reveladoras do A.T. Não há como não ver nele uma antecipação de Jesus de Nazaré. Uns exegetas o veem nele uma personificação do 1 Isaías ou de Jeremias, ou mesmo de todo o povo de Israel que, apesar de todas as suas infidelidades, conservou a chama messiânica da salvação. De qualquer maneira, numa visão retrospectiva, não há como não ver no Servo Sofredor uma prefiguração de Jesus de Nazaré. 53 Basta reler atentamente alguns versículos para identificá-los com Jesus de Nazaré! “Ele não chama nem levanta a voz – não quebra uma cama rachada nem apaga um pavio que ainda fumega; mas promoverá o julgamento para obter a verdade. Eu, o Senhor, o chamei para a justiça e te tomei pela mão e... te constituí para ser luz das nações e para abrir os olhos dos cegos e para tirar os cativos da prisão...” 3. Atos dos Apóstolos 10, 34-38 A certa altura do seu ministério, após a ressurreição do Senhor, o apóstolo Pedro, líder maior dos seguidores de Jesus, foi convidado a visitar a casa do pagão Cornélio, mas seguidor de Jesus, e com ele tomar refeição. Pedro aceita o convite e aproveita-se dessa oportunidade para quebrar um tabu segundo o qual “era proibido a qualquer judeu juntar-se a pessoas de outras raças ou visitá-las”. Esse tabu, não há como disfarçá-lo com outro nome, Pedro quebrou. Como Jesus, que frequentava e comia com pecadores, os seguidores de Jesus dali para frente deveriam agir da mesma maneira: De fato, diz Pedro: “estou compreendendo que Deus não faz distinção de pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença”. 54 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 3, 13-17 Vindo de Nazaré até o deserto da Judeia para unir-se ao Batista, Jesus o faz guiado pelo Espírito. Ele se inseria na linhagem dos profetas para se revelar como o Profeta definitivo; através de sua boca, todas as verdades e toda a verdade. Resta-nos ouvilo: Então o céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo pousar sobre ele. E do céu veio uma voz que dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus meu agrado”. A partir de amanhã, inicia-se o Tempo Comum do Ano B, em que se privilegia a leitura do Evangelho de Marcos, o primeiro a ser redigido nos anos 70 depois de Cristo e que serviu de base para Mateus e Lucas. Marcos, sem negar a divindade de Jesus, ao contrário sublinhando-a desde o início, nos torna familiar o rosto humano de Jesus, Filho de Deus. 55 1º Domingo da Quaresma 1. Introdução O Ano Litúrgico em cada uma das suas fases, de alguma maneira, reflete as modulações do psiquismo humano. Assim, o Advento reflete os momentos da Esperança; a Páscoa, de júbilo; o Natal, de alegria e a Quaresma, que estamos iniciando neste domingo, os momentos de retomada em que tentamos reconstruir o que foi destruído, recomeçar o que foi abandonado. O homem e a mulher são limitados moral, espiritual e fisicamente, por isso mesmo, de quando em quando, têm que parar um pouco e... recomeçar. Todos nós somos gananciosos, precisamos limitar a nossa ganância; todos nós nos deixamos seduzir pelo prazer, precisamos coibir essa sede; todos nós queremos o poder, precisamos aprender a servir. A Quaresma nos sugere o antídoto para esses males. Para corrigir essa ganância, a Quaresma nos sugere a esmola; para corrigir a sede de prazeres, sugere-nos o jejum; para corrigir o apetite pelo poder, sugerenos a oração. 2. Livro do Gênesis 2, 7-9; 3,1-7 O mito da queda de nossos pais, na sua aparente ingenuidade, é extremamente revelador da natureza humana de um lado e também da natureza divina de outro. Deus criador, generoso e permissivo no bom sentido da palavra, deu ao homem e à mulher plena liberdade de escolha para construírem as suas vi56 das. O homem e a mulher aparecem de corpo inteiro e nós nos reconhecemos neles. Em primeiro lugar, notamos neles o que os gregos chamam de hybris, o desejo de ir muito além dos seus limites, ou seja, o desejo de ser como Deus, o desejo de viver num mundo sem barreiras; notamos a labilidade do homem, que é muito nossa, de não resistir à beleza do fruto proibido; notamos mais do que tudo a nossa incapacidade, demasiadamente humana, para assumir a nossa responsabilidade perante os nossos atos. 3. Carta aos Romanos 5, 12-19 Enquanto na primeira leitura temos em Adão a criação do homem, em Cristo, o verdadeiro Adão, temos a recriação definitiva do homem novo. O homem, criado livre desde o início, teve um largo tempo para aprender a ser homem e mulher e educar a sua liberdade. O Antigo Testamento nos mostra como se deu essa educação, como diz São Paulo, para a verdadeira liberdade com que Cristo nos libertou “ Como, pela obediência de um só homem, a humanidade toda foi estabelecida numa situação de pecado, assim também pela obediência de um só, toda a humanidade passou para uma situação de justiça”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 4, 1-11 Mais do que uma narrativa realista de fatos históricos, as tentações de Jesus pelo diabo no deserto são uma dramatização simbólica que antecipa as tentações sofridas por Jesus durante os anos de seu ministério, tentações sofridas diretamente, não exercidas pelo diabo, mas pelos sumos sacerdotes, doutores da 57 lei, fariseus, quando não pelos seus próprios discípulos. Nós nos lembramos da cena em que Pedro tentou dissuadir Jesus de subir a Jerusalém para evitar a sua morte na cruz. Jesus, diante da atitude de Pedro, voltou-se contra ele e disse: “Vade retro satanás, vai-te embora satanás”. A tentação do pão lembra o episódio em que a multidão queria fazer Jesus Rei para que ele pudesse indefinidamente multiplicar pães, mas para Jesus nem só de pão vive o homem. Ao longo de todo o seu ministério, Jesus teve de afirmar-se não como um Messias, rei poderoso, mas como um rei, sim, diferente, que veio para servir e não ser servido. 58 2º Domingo da Quaresma 1. Introdução A liturgia de hoje, através das leituras, a vocação de Abraão, a vocação de Timóteo e a Transfiguração do Senhor, mostranos que, como cristãos seguidores de Jesus, temos também um papel ativo dentro do plano de Deus para a instauração do seu Reino neste mundo. O nosso batismo não é uma senha que nos permite frequentar um clube de privilegiados, mas é uma vocação, um chamado para construir o Reino, ao nosso lado, em nossa área de atuação. O nosso próximo não é senão o irmão que está do nosso lado e que podemos ajudar. Podemos também ser chamados para abrir uma nova frente. Por isso, temos que estar atentos para ouvir o chamado de Deus. Isso é importante para todos nós, mas de modo particular para os mais jovens que têm ainda um longo futuro à vista. O evangelho de hoje mostra-nos que a transfiguração é possível. A transfiguração era a garantia de que o rosto desfigurado do Cristo poderia transfigurar-se. Alimenta também a esperança de que o mundo desfigurado dos homens pode transfigurar-se no Reino de Deus. 2. Livro do Gênesis 12, 1-4a O chamado de Deus a Abraão para que saísse da sua terra, a cidade de Ur, na Caldeia, para fundar uma nova e numerosa nação, mostra como o que parecia apenas uma aventura pessoal revelou-se como um gesto que revolucionou a História e 59 a revoluciona até hoje. Hoje, mulçumanos, judeus e cristãos são bilhões de homens e mulheres, todos filhos e filhas de Abraão. Javé cumpriu o que prometera: “Farei de ti um grande povo”. É importante que hoje mulçumanos, judeus e cristãos, em que pesem as nossas diferenças, façamos valer a herança que temos em comum. Abraão deixou a sua cidade de Ur, marcada pela injustiça, para fundar uma nova nação, ungida pela justiça e pela paz. Que seja também esse o sonho dos filhos de Abraão, inclusive o nosso. 3. Segunda Carta de São Paulo a Timóteo 1, 8b-10 Paulo e o seu discípulo Timóteo foram dignos filhos de Abraão. Como Abraão, responderam afirmativamente ao chamado de Deus, para fundarem uma nova nação, ambos interpelados por Jesus ressuscitado, Paulo diretamente e Timóteo pela mediação de Paulo. Ambos tiveram de romper com um passado para construir um futuro novo. Isso está implícito no que Paulo diz a Timóteo: “caríssimo, sofre comigo pelo evangelho, fortificado pelo poder de Deus”. Paulo não iludiu o seu jovem discípulo, escondendo-lhe o sofrimento inerente à sua nova tarefa, mas ao tempo receitava-lhe o remédio curador: “Deus não nos chamou em virtude das nossas obras, mas em virtude do seu desígnio e da sua graça”. 60 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 17, 1-9 No evangelho das tentações de Jesus pelo diabo no deserto, Jesus recusa-se a qualquer exibicionismo e não faz nenhuma ostentação de grandeza. Por que então sobe ao topo do Tabor e lá deixa-se transfigurar? Jesus... sobe uma alta montanha... foi transfigurado... seu rosto brilhava como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. A resposta mais curta a essa pergunta talvez seja: antes de tudo, Jesus levou consigo apenas os seus três discípulos mais chegados: Pedro, Tiago e João. Por quê? Eles eram o núcleo duro dos seus amigos. Era preciso que eles pudessem ver em filigrana no rosto desfigurado de Jesus no alto da cruz o rosto transfigurado de Jesus ressuscitado. Que nós possamos ver no rosto desfigurado dos nossos irmãos e irmãs caídos à beira da estrada o rosto transfigurado de Jesus ressuscitado. 61 3º Domingo da Quaresma 1. Introdução As leituras de hoje nos falam da água e do Espírito. A água material é a fonte da vida material, nós o sabemos pelas ciências naturais. A água batismal é a fonte da vida sobrenatural, que é ungida pelo Espírito Santo. O Espírito Santo é Aquele que renova a face da terra. Desde o primeiro capítulo do Gênesis, versículo 2, sabemos que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Antes que os seres vivos fossem criados, o Espírito já lhes era oferecido com um dom antecipado pelo Pai. E será sempre assim, porque o amor de Deus é preveniente, ele nunca chega tarde, mas sempre se antecipa, porque ele é um dom gratuito. Em nossa Capela, quase todos os domingos, celebramos um, dois ou três batismos. A nossa comunidade está sempre a renovar as suas promessas batismais. 2. Livro do Êxodo 17, 3-7 Era longo e árduo o caminho a ser percorrido entre Egito e a Terra Prometida pelos hebreus sob a conduta de Moisés. Essa aventura inaudita sempre foi vista como uma parábola da caminhada dos humanos desde seu nascimento até sua morte. Nós sabemos como a nossa vida pode ser exigente e difícil. As leituras de hoje mostram-nos como diante das piores dificuldades sempre encontramos guarida à sombra de Deus nosso Pai, apesar de todo o nosso desânimo ou mesmo revolta, pois o Amor de Deus não é só preveniente, ele é também reparador. Não vem só 62 antes, ele vem depois também. São Paulo, ao referir-se à pedra da qual Moisés fez, ao toque da sua vara, jorrar água, dizia que essa pedra era o Cristo, o manancial da água viva que jorra para a vida eterna. Jesus é o verdadeiro Moisés que livrou o homem de todas as escravidões e não apenas da escravidão do Egito. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 5, 1-2.5-8 Assim como Javé matou a sede de um povo indócil, fazendo com que a água viva jorrasse da pedra bruta, também o Pai mandou o seu Filho Único para salvar-nos a todos nós quando éramos ainda pecadores. “Com efeito quando éramos ainda fracos, Cristo morreu pelos ímpios no tempo marcado”. Estamos no tempo da Quaresma, um tempo de esmola, de jejum e de oração. Mais do que um tempo de penitência, a Quaresma é também um tempo de esperança que não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 4, 5-42 Cada palavra ou gesto de Jesus no seu diálogo com a Samaritana são importantes em sua mensagem, no seu evangelho. Ser mulher e samaritana eram duas caracterizações negativas perante o cidadão judeu. Em Israel, povo eleito, ser mulher era ser menos que um homem, ser samaritano era ser menos que um judeu. Israel desprezava o samaritano porque na Samaria de depois do exílio houve miscigenação e os descendentes, por causa disso, perderam o status de judeus e já não podiam adorar o verdadeiro Deus no Templo de Jerusalém. Jesus viola esses 63 tabus e de propósito dirige-se a ela e pede-lhe de beber. Jesus considerava-a irmã e não estrangeira. Jesus prevê o tempo em que em qualquer Templo ou lugar se poderá adorar em espírito e em verdade o verdadeiro Deus que não faz acepção de pessoa. Na realidade, Jesus não queria um pouco d’água para matar a sua sede, mas sim oferecer-lhe a água viva que jorra para a vida eterna, ou seja, o Espírito e a vida, Aquele que no início do mundo já pairava sobre as águas, à espera dos filhos de Deus. 64 4º Domingo da Quaresma 1. Introdução As leituras deste 4° domingo da Quaresma são como um jato de luz em meio às trevas. A palavra de Deus nos revela, na pessoa do jovem Davi, que o que é fraqueza aos nossos olhos míopes, pode ser força aos olhos da fé. Falando diretamente aos efésios e indiretamente à nossa comunidade aqui reunida, S. Paulo nos diz que não somos filhos das trevas, mas filhos da luz. No evangelho de João, que narra a cura de cego de nascença, Jesus ao curá-lo, mostra como os olhos da fé podem ver o que os olhos da carne, aparentemente tão instruídos e penetrantes, não podem ver. Estamos ainda na quaresma, por isso pedimos mais luz, mas nas sombras já vemos brilhar, no fim do túnel, a luz da fé que vai eclodir na Páscoa da Ressurreição. Vai lavar-te na piscina de Siloé! Esse mesmo convite que Jesus fez ao cego de nascença, Jesus o faz a cada um de nós neste fim da quadra quaresmal. 2. Primeiro Livro de Samuel 16, 1b.6-7.10-13a A unção real de Davi por Samuel se faz, não através da oposição luz e trevas, mas da oposição entre aparência e realidade. Davi, aos olhos da família, parecia frágil: era ruivo, de belos olhos e de formosa aparência, não tinha nada do que esperavam do sucessor de Saul que, apesar da estatura avantajada, malograva no campo de batalha. E, no entanto, Davi foi o rei por exce65 lência entre os reis de Israel, tão importante que o rei messiânico previsto pelos profetas de Israel seria da sua dinastia, Jesus, filho de Davi! A sabedoria popular garante que as aparências enganam e a experiência de vida o confirma. No plano físico, falamos de força muscular; no plano moral e religioso, falamos da virtude da fortaleza como a que o jovem Davi exibiu no seu confronto com o gigante Golias. A vitória de Davi não foi fruto da força, mas da coragem e da confiança em Javé. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 5, 8-14 A conversão de Paulo se fez sob o signo da luz. Estando – Paulo – em viagem, já perto de Damasco, de repente, uma luz celeste o ofuscou. Caiu por terra e ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo porque me persegues. Em quase todas as suas cartas, Paulo refere-se a Cristo como a luz que ilumina as trevas. O que antes Paulo não conseguia nem perceber, depois da experiência de Damasco, pôde ver com clareza. Cada um de nós também, fascinados pelos bens deste mundo, o poder, o dinheiro e o prazer, temos dificuldade em perceber os valores do evangelho. Ainda nos restam duas semanas de Quaresma para nos preparar para as luzes da Páscoa. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 9, 1-41 O roteiro da cura do cego de nascença por Jesus dispõe tão bem as diferenças das cenas que se sucedem que qualquer leitor atento pode apreender com facilidade não só a sucessão dos fatos, mas também o seu alcance moral e espiritual. Qualquer um 66 percebe que o mais importante não foi a cura material da visão, mas a cura espiritual da fé. A cegueira material do cego de nascença é a nossa cegueira espiritual, a nossa incapacidade de perceber os valores luminosos da fé, da esperança e da caridade. Como os fariseus, que eram israelitas observantes da lei, também nós somos católicos praticantes, mas erramos o alvo. Não somos adoradores de Deus em espírito e verdade, apegamo-nos ao secundário e deixamos de lado o principal: apressar a chegada do Reino de Deus, um mundo justo de paz e amor! 67 Missa do Domingo de Ramos da Paixão do Senhor Ao longo do Ano Litúrgico e do Ministério de Jesus, segundo os evangelhos, de muitos modos e maneiras, Jesus é proclamado Rei do verdadeiro Israel. Já no seu nascimento, o Pai convoca os seus anjos para anunciarem ao mundo inteiro glória a Deus e Paz na terra, pois nascera o Salvador; na festa da Epifania, os magos do Oriente deslocam-se até Belém na Judeia para adorarem o Messias, o novo Rei dos judeus e lhe oferecem mirra porque homem, ouro porque rei e incenso porque Deus; durante o seu ministério, após multiplicar pães e peixes, os seus seguidores, embora equivocadamente, queriam proclamá-lo rei; o cego Bartimeu, em Jericó, antes que Jesus subisse a Jerusalém e ele mesmo fosse curado, clamando, chamava-o Filho de Davi, o mais querido Rei de Israel. Se em todas essas circunstâncias Jesus reage mais do que discretamente, no Domingo de Ramos, Jesus deixa-se proclamar rei: “As multidões que iam na frente de Jesus e os que o seguiam gritavam: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana do mais alto céu”. O dia de hoje, Domingo de Ramos, é o momento de perguntar-nos por que Jesus deixa-se proclamar Rei e Messias, tão abertamente, quando antes, durante o seu ministério, impedia os seus discípulos e até os seus miraculados de fazê-lo? Ao tempo de Jesus, antes que a sua pregação deixasse claro e a sua história pessoal esclarecesse, não havia unanimidade entre os judeus sobre o Messias esperado. Estaria na linha de Davi, o grande Rei de Israel, como o seu filho 69 Salomão, que herdara a sua sabedoria e o seu poder? Seria a verdadeira missão do Messias restaurar para sempre a dinastia davídica? Ou seria, muito ao contrário, a encarnação do Servo de Javé de quem nos fala o profeta Isaias: “O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás. Ofereci as minhas costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba; não desviei o rosto dos bofetões e cusparadas”. Jesus, desde que João Batista, seu mestre por algum tempo, foi preso na Judeia, (Jesus) tomou a decisão de anunciar, a partir da Galileia, o Reino de Deus: Convertei-vos e crede no evangelho, porque o Reino de Deus está próximo. Jesus pregava o Reino de Deus e não a restauração da dinastia davídica. No Reino de Deus, os grandes serão os pequenos; os últimos serão os primeiros; Ele não veio para ser servido, mas para servir. Para Ele a misericórdia valia mais do que os holocaustos e os sacrifícios. Para Ele, os que ferem com a espada, com a espada serão feridos. Para deixar bem claro para todos que tipo de Rei Ele seria, Jesus deixou-se entrar em Jerusalém aclamado, sem sombra de dúvida como Filho de Davi. Mas o fez montado num jumento, a tradicional montaria dos reis de Israel, e não montado num soberbo corcel, como o faziam os faraós do Egito. Essa postura firme, mas humilde de Jesus, que agora se afirmava como um Messias não esperado, nem bem-vindo pelos grandes, essa postura foi muito bem interpretada pelos sumos sacerdotes, pelos fariseus e doutores da Lei, pelo rei Herodes e por Pilatos. Os seus adversários perceberam que era agora ou nunca, não havia mais tempo a perder. E começaram a agir. Jesus ainda teria tempo para celebrar pela última vez a Páscoa com os seus discípulos, Judas teria tempo para traí-lo... mas a sorte de Jesus já estava lançada... para muitos, Ele não era o Messias esperado. 70 Missa da Ceia do Senhor 1. Introdução Estamos iniciando hoje, dentro desta Semana Santa, o tríduo pascal, em que se celebram a Ceia do Senhor e o lava-pés, a crucificação, a morte e a sepultura do Senhor, a vigília pascal na noite de sábado e a gloriosa ressurreição na manhã de domingo. Nesta homilia, conforme orientação da Igreja, vamos refletir sobre três temas ligados à liturgia de hoje: primeiro tendo como pano de fundo o lava-pés, vamos refletir sobre o mandamento do amor; segundo tendo como pano de fundo a última ceia, vamos refletir sobre a sagrada Eucaristia e também sobre o sacerdócio católico. 71 a) Mandamento do Senhor: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Podemos, como discípulos de Jesus, sem sombra de dúvidas, defender a tese de que o Pai enviou seu Filho Único ao mundo para revelar a todos os seus filhos e filhas, neste mundo, que o amor ao próximo é o valor mais alto, o único que pode saciar a sede de felicidade que lateja no fundo do coração de todos os homens. Estamos falando de amor ao próximo e não de amor a si. Jesus, para fazer valer sem sombra de dúvidas esse ensinamento, sendo ele Mestre e Senhor, levantou-se da mesa, cingiu-se com uma toalha e, ajoelhando-se, lavou os pés dos seus discípulos, invertendo a lógica do mundo em que os pequenos é que lavam os pés dos grandes e não vice-versa. Jesus sabia que o seu fim estava próximo. Pouco antes de levantar-se e cingir-se, Judas abandonara a ceia e saíra do cenáculo com o propósito de entregá-Lo aos sumos sacerdotes por trinta moedas de prata. Ele, Jesus, sentiu a necessidade de com um gesto eloquente resumir a essência do que ensinara durante os três anos de ministério: no Reino de Deus, grande e verdadeiramente feliz é aquele que serve e não o contrário. b) Instituição da Sagrada Eucaristia: o ano litúrgico celebra a a Eucaristia em Corpus Christi e na 5 feira santa. No dia de Corpus Christi, sublinha o aspecto sacramental, ou seja, a presença real do Senhor sob as espécies do pão e do vinho. Encerrado no Sacrário iluminado, Jesus lá nos espera para responder aos nossos anseios, expressos em oração e adoração. Na quinta-feira santa, a liturgia sublinha a Eucaristia como a memória do sacrifício na cruz e da ressurreição do Senhor. O Senhor se ofereceu de uma vez por todas ao Pai e o Pai, aceitando o seu sacrifício, o 72 ressuscitou na manhã do terceiro dia. À luz da Palavra de Deus e sentados à mesma mesa, partilhando do mesmo pão e do mesmo vinho transfigurados, nós fazemos memória da Paixão, da Morte e da Ressurreição do Senhor. É com esse sentimento no coração que devemos deslocar-nos de casa para a Missa dominical nesta nossa querida Capela de São Francisco de Assis. c) Instituição do Sacerdócio católico: a Igreja vê no convite de Jesus aos discípulos “Fazei isto em memória de mim”, durante a última ceia, a instituição do ministério sacerdotal, já que a celebração eucarística e a pregação da palavra de Deus são o essencial do ministério sacerdotal. O padre tem como obrigação primeira distribuir o pão eucarístico e o pão da palavra e, fazendo isso, reunir o povo de Deus em comunidade. Mais importante para o sacerdote do que cumprir uma tarefa é como cumpri-la. Jesus mostrou através do lava-pés como se deve cumprir o ministério sacerdotal. O ministério sacerdotal não é um poder que se exerce, mas é um serviço que se presta: “Vós me chamais mestre e Senhor... e dizeis bem... se eu, o Senhor e mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz”. 73 Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor 1. Introdução Estamos chegando ao fim e ao topo do tríduo pascal, iniciado na quinta-feira, cujo ícone é o lava-pés, continuado na Sexta-feira Santa quando celebramos a Paixão, a Morte e o Sepultamento do Senhor. Este tríduo encerra-se hoje nesta manhã em que nos alegramos definitivamente com a Ressurreição do Senhor. Sim, o Senhor ressuscitou e está no meio de nós e jamais nos abandonará. A Ressurreição do Senhor é a promessa inviolável de que também ressuscitaremos. Lavando os pés aos discípulos, Jesus garantia que ele não veio ao mundo para ser servido, mas para servir; morrendo na cruz, Jesus provava definitivamente que o seu amor por nós era maior do que a morte; na manhã deste domingo, Jesus concluiu a sua tarefa na terra e a consolida para sempre no céu e na terra. Ele está no meio de nós e para sempre estará conosco. 2. Atos dos Apóstolos 10, 34.37-43 A primeira leitura de hoje reproduz o primeiro discurso de Pedro ao povo de Jerusalém. Outros discursos virão ao longo dos domingos do tempo pascal. Pedro recorda aos judeus os atos e as palavras de Jesus de Nazaré, ungido pelo Espírito Santo. Jesus passou sua vida fazendo o bem, curando enfermidades e 75 expulsando os demônios e, no entanto, ao invés de ser louvado e agradecido, eles, os poderosos da religião e da política, incitando o povo, o mataram. Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido, a nós que comemos e bebemos com Jesus. Terminado o tempo do ministério terreno de Jesus, iniciam-se os tempos apostólicos que continuam até hoje. Esse discurso primeiro de Pedro, ainda não perdeu a sua força, ele é endereçado a nós hoje. Conforme nos diz hoje: todo aquele que crê em Jesus recebe, em seu nome, o perdão dos pecados. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 1-4 O zelo apostólico indomável de Paulo teve origem no seu encontro com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Antes dessa experiência inaudita, Paulo acreditava na morte de Jesus e blasfemava a sua ressurreição. Após a sua conversão, Paulo tomou consciência de quão mesquinho era o seu horizonte e quão terrenos os seus interesses. Estava em busca da preservação do passado em prejuízo da abertura para o futuro. Na sua própria linguagem, Paulo buscava as coisas terrestres e não as celestes. Depois da sua conversão, Paulo estimulava os cristãos da comunidade de Colossos a buscarem as coisas celestes e não as terrestres. Terrestre é o ego, a tradição pela tradição, a letra da lei. Celeste é o outro, a novidade do evangelho, o espírito da lei e não a letra. “Quando Cristo, nossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também como Ele, revestido de glória.” 76 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 1-9 Segundo o evangelho de hoje, estamos na manhã do primeiro dia da semana, o domingo. Jesus morreu e fora sepultado na sexta-feira anterior. Tanto Maria Madalena, que era tão bem sintonizada com Jesus, como os discípulos, que por três anos conviveram com o Mestre, estavam todos angustiados. Esperavam por alguma coisa, mas não sabiam bem o quê: “Eles não tinham ainda compreendido a Escritura, segundo a qual Ele – Jesus – devia ressuscitar dos mortos.” O primeiro a ver claro, a crer, foi o apóstolo João, aquele discípulo a quem Jesus amava e que na última ceia reclinara-se sobre o ombro de Jesus e recebera-lhe a confidência de que o traidor seria Judas Iscariotes. João ao penetrar no sepulcro “viu e acreditou”. João viu com os olhos da fé. A fé é um dom de Deus. Diria mais, é o dom de Deus, mãe de todos os outros dons. O que podemos fazer é estarmos mais ou menos abertos a ele. O carinho de Madalena, a amizade de João e o arrependimento de Pedro levaram-nos à fé. 77 2º Domingo da Páscoa 1. Introdução Este segundo domingo da Páscoa era o dia em que, na Igreja dos primeiros séculos da nossa era, celebrava-se o batismo dos catecúmenos que tinham terminado a sua formação catequética durante a Quaresma. Até então, os catecúmenos assistiam apenas à liturgia da palavra. No segundo domingo da Páscoa, recebiam ao mesmo tempo os sacramentos da iniciação cristã, ou seja, o Batismo, a Eucaristia e a Confirmação. Eram todos adultos e desde esse dia, permaneciam na Igreja até que terminasse a liturgia eucarística. Hoje os usos e costumes são diferentes, mas nada impede que tiremos proveito do dia de hoje para refletir sobre a nossa condição de adultos batizados, confirmados e participantes da mesa eucarística. Pelo batismo, renascemos de novo pela água sacramental para a vida sobrenatural e tornamo-nos parte da comunidade cristã; pela participação na mesa eucarística, formamos com nossos irmãos uma só comunidade e uma só família; pela confirmação ou crisma, assumimos como adultos a nossa missão de cristãos. 2. Atos dos Apóstolos, 2, 42-47 Esse trecho dos Atos dos Apóstolos em que Lucas apresenta um resumo da vida comunitária das primeiras comunidades cristãs de Jerusalém tem tudo a ver com o que falamos sobre os três sacramentos da iniciação cristã. Lucas nos diz que os primeiros cristãos abraçavam a fé, ou seja, pelo batismo já não 79 eram mais os mesmos, renasceram para uma vida nova. São Lucas nos diz que todos frequentavam o templo e partiam o pão em suas casas, ou seja, celebravam na intimidade, à maneira da época, a Eucaristia, ao mesmo tempo em que ouviam a palavra, como fazemos hoje em nossa capela ao participarmos da missa dominical. Quanto à confirmação, nós a deduzimos pela mudança de vida tão drástica que os levou a venderem todas as suas propriedades e a colocarem todos os seus bens em comum, a ponto de Lucas dizer em outra parte que não havia necessitados entre eles. Até hoje essas comunidades primitivas são um modelo para as nossas de hoje que devem encontrar uma maneira consentânea com a cultura de hoje para imitá-las. Acredito que a nossa comunidade faz algo nesse sentido. 3. Primeira Carta de São Pedro 1, 3-9 Nesta abertura da sua primeira carta, Pedro dirige-se não a uma Igreja específica como fazia Paulo, mas de modo mais amplo a todas as Igrejas em cujas mãos a sua carta pudesse chegar. Mas ele tinha um alvo particular, eram os cristãos mais humildes, escravos e desterrados, dispersos por todo o império. Aqueles que como o ouro tinham que passar pelo cadinho, ou seja, pelo fogo, para serem purificados. Amparados pela fé pura, já que jamais viram com os olhos a figura de Jesus, como ele, Pedro, vira, seriam amplamente recompensados. 80 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 19-31 O evangelho de hoje também tem tudo a ver com os três sacramentos da iniciação cristã e de modo mais particular com a eucaristia e com a confirmação. Com a eucaristia, porque os discípulos estavam reunidos, apoiando-se uns aos outros como acontece quando a comunidade se reúne para a Eucaristia. Com o batismo e com a confirmação, porque por duas vezes recebem o espírito da paz: Recebei o Espírito Santo. Junto com o Espírito Santo, receberam o poder de perdoar os pecados, ou seja, semear a paz no mundo. Confirmados na fé, punham-se a serviço do reino. Tomé, que não participara da primeira aparição, também não recebeu o Espírito Santo, por isso não acreditou. Retornando ao convívio dos irmãos, à escuta da palavra e à partilha do pão, acreditou e resumiu toda a fé cristã ao dizer a Jesus: “Meu senhor e meu Deus!”. 81 3º Domingo da Páscoa 1. Introdução Na liturgia de hoje, bate-se na mesma tecla que vem sendo batida desde o domingo da Ressurreição do Senhor; volta a o discurso de Pedro às multidões em Jerusalém, volta a 1 carta de Pedro dirigida aos cristãos dispersos nas mais diferentes províncias no Império, em sua maioria sob o peso da opressão, quando não da perseguição; volta pela terceira vez o evangelho dos discípulos de Emaús. Essa insistência não é sem motivos, trata-se de insistir em que a fé na ressurreição não se esgota no fato de acreditar de modo pontual que Jesus ressuscitou. Tratase de mostrar que a ressurreição mudou a História do mundo e de cada um dos homens, ao longo de todos as gerações. Ressuscitando Jesus, o seu Filho, o Pai deixou claro que sempre esteve ao lado de Jesus e que o seu ensinamento era verdadeiro e que não há outro caminho para encontrar a salvação. Salvação não somente na outra vida, mas salvação desde já. 2. Atos dos Apóstolos 2, 14-22-33 Nem todos os ensinamentos de Jesus eram óbvios e fáceis de entender, nem tanto pelo povo mais simples, mas pelos poderosos, tanto da política, como da religião. A sua visão do Reino de Deus, do matrimônio indissolúvel, da ressurreição dos mortos, da relatividade do sábado e da pureza legal, do amor aos inimigos encontrava forte oposição. Segundo o discurso 83 de Pedro, esta oposição ferrenha a Jesus estava prevista nos desígnios de Deus, não para que seu filho sofresse, mas para que a sua ressurreição deixasse claro que o seu ensinamento correspondia à verdade divina. “Ele, Jesus, não foi abandonado na região da morte e a sua carne não conheceu a corrupção.” Essa foi a maneira pela qual Pedro, dentro da cultura da época, encontrou para dizer que embora morto e sepultado, Jesus vive no meio de nós, portanto ressuscitou para confirmar como verdadeiro, pela mediação do Espírito Santo, tudo que ensinara na terra. 3. Primeira Carta de São Pedro 1,17-21 Pedro, através da sua carta, queria mostrar aos sofridos cristãos da sua época que, depois de Jesus, o mundo já não era mais o de antes. “Sabeis que fostes resgatados de uma vida fútil herdada de vossos pais não por meio de coisas perecíveis como a prata e o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de seu cordeiro sem nem defeito.” Vertendo o seu sangue precioso sem usar a força como represália, mas absolvendo os seus inimigos, Jesus indicou o único caminho salvífico para os homens. Por isso, o Pai o ressuscitou para mostrar a todos os homens que o perdão é o único remédio que cura todas as feridas da humanidade. 84 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 24,13-35 A maior dificuldade que Jesus enfrentou para desenvolver a sua missão de Messias, a de anunciar o Reino de Deus, era a pluralidade de expectativas que havia no povo judaico da época a respeito do Messias. Essa pluralidade de expectativas, por mais plural que fosse, tinha um aspecto comum: Todos esperavam um vencedor, ainda que com características diferentes. Jesus, antes que tudo terminasse numa aparente tragédia, apesar da sua mansidão e das previsões de grande sofrimento, deixava a impressão de que sairia como vencedor. É isso que os discípulos de Emaús deixam entender quando lamentam: “Nós esperávamos que ele fosse libertar Israel, mas apesar de tudo já faz três dias que tudo isso aconteceu”. Ou seja, Jesus foi preso, torturado, crucificado, morto e sepultado. Um malogro total! Só na partilha do pão é que os discípulos perceberam que Jesus não viera para vencer, mas para servir e para perdoar. 85 4º Domingo da Páscoa 1. Introdução Jesus é invocado sob vários títulos ou nomes, por exemplo, Jesus – Salvador, Cristo ou Messias, Redentor, Filho de Deus, Filho do Homem, etc. Cada um desses nomes aponta para um aspecto diferente da missão de Jesus. Este quarto domingo do Tempo Pascal lembra-nos Jesus como o Bom Pastor, figura emblemática do mundo bíblico. E não podia ser diferente na Palestina onde corria o mel, mas também o leite das ovelhas e das cabras que, guardadas e protegidas pelos pastores, alimentavam o povo juntamente com o trigo. Era difícil e exigente a tarefa dos pastores sempre em busca de novas pastagens que, na medida em que avançava o verão, deviam buscar o alimento para o pequeno rebanho mais longe e mais alto. Tinham também de defender, até com a sua vida, o rebanho contra os lobos e assaltantes. É importante lembrar que os pastores da Palestina estavam entre os trabalhadores mais pobres e rústicos do país e por isso mesmo foram os primeiros convidados para adorarem o Menino Jesus na gruta de Belém. 2. Atos dos Apóstolos 2, 14a.36-41 O tempo de Jesus era tempo de expectativa por parte do povo em Israel. Embora sem um consenso sobre o Messias esperado, muitos esperavam o Messias. Foram poucos que reconheceram em Jesus o Messias esperado, principalmente depois 87 do aparente malogro da cruz. Davam-no, a Jesus, como morto e enterrado. Para desfazer esse tremendo equívoco, os apóstolos, diante da multidão em praça pública, interpelavam-na sob a liderança e pela boca de Pedro: “Que todo o povo de Israel reconheça com toda a certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus que vós crucificastes”. “Pois a promessa é para nós e nossos filhos e para todos aqueles que estão longe”. Entre esses que estão longe incluímo-nos a nós também, que estamos aqui reunidos para ouvir a palavra de Deus e partir o pão. 3. Carta de São Pedro 2, 20b-25 Pedro nesta carta dirige-se, como já dissemos nestes últimos domingos, aos cristãos dispersos por todo o Império, muitos deles migrantes e escravos. Gente marcada pelo sofrimento e pela pobreza, tudo isso agravado pela perseguição religiosa. Diante dessa realidade, Pedro lembra a essa gente quão semelhantes eles eram a Jesus, pobre como eles, sofrido como eles, perseguido como eles. A última frase desta segunda leitura nos remete ao tema do Bom Pastor: “Andastes como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao Pastor e guarda de nossas vidas”. Que o sofrimento não nos abata, mas nos faça refugiar-nos no Senhor. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 10, 1-10 Na medida em que a sociedade de massa aperta os seus tentáculos, nós nos sentimos cada vez mais um número, um RG, um CPF e menos uma pessoa, um eu à procura de um tu, um interlocutor ou, mais do que isso, um amigo, um ombro amigo. 88 Há muitas lições a tirar do evangelho de hoje, mas vamos nos concentrar num só versículo: “Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz...”. Na verdade, todas as vezes que olhamos para o céu, para o alto, é porque estamos respondendo ao chamado que o divino Pastor nos faz pelo nosso nome de batismo: José, Maria, Pedro, Isabel ou que nome seja, mas pelo nosso nome que ele jamais esquece. Deus tem o nosso nome, se Ele nos permite dizer, na ponta da língua e jamais o esquece por mais numerosos que sejamos. 89 5º Domingo da Páscoa 1. Introdução O versículo 6 do evangelho de João, lido nesta liturgia, “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, palavras de Jesus, permitenos encontrar o ponto central da mensagem da missa de hoje, ou seja, os tempos mudam, as condições sociais e culturais evoluem, novas necessidades são criadas, há avanços e recursos em áreas diferentes, mas em quaisquer circunstâncias Jesus é o caminho seguro para o Pai, para a verdade e para a vida. Nunca como em nossa geração os costumes e a cultura de modo geral sofreram tantos impactos e transformações. Nunca como hoje fomos chamados a discernir os caminhos do Senhor; nunca como hoje fomos chamados a manter os nossos olhos fixos naquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida. 2. Atos dos Apóstolos 6, 1-7 Homens e mulheres experientes que somos, não nos deveríamos escandalizar com as desavenças e ciumeiras que havia na comunidade primitiva de Jerusalém. Era já ela desde o início uma comunidade complexa porque pluralista. Era composta de seguidores do Caminho, como eram chamados os discípulos de Jesus. Uns eram judeus de cultura e língua hebraica, outros eram judeus, mas de língua e cultura gregas; outros eram cristãos originalmente pagãos. A maioria era provavelmente constituída de judeus de língua hebraica, ou aramaica, para ser mais preciso. Daí a tendência demasiadamente huma91 na de se lhes dar preferência. Com razão, as viúvas de origem grega reclamaram. Para resolver o impasse, foram criados os diáconos. Para assegurar o mandamento da caridade, foi criado o diaconato que, transformado, ainda existe hoje. O diaconato, o presbiterato (os padres) e o episcopado são graus diferentes do sacerdócio católico hoje. 3. Primeira Carta de São Pedro 2, 4-9 A grande e bela metáfora desenvolvida por Pedro nessa parte de sua 1a carta é a metáfora da comunidade cristã como um edifício vivo em construção com pedras também vivas. Esta bela capela de São Francisco é uma metáfora da nossa comunidade que se ergue dia a dia pelas nossas mãos. Cada um de nós é uma pequena pedra. Embora pequena e, por isso mesmo, importa que ela seja viva. Jesus não é só o caminho, é também a vida e, como vimos no domingo do Bom Pastor, Ele é o Bom Pastor que veio até nós para que tenhamos vida e vida em abundância. Pedro nos diz hoje que desse edifício vivo Jesus é a pedra angular. É Ele que mantém de pé todo o edifício. Jesus não é apenas o Caminho, a Verdade e a Vida, é também a pedra angular. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 14, 1-12 O evangelho de hoje inicia-se com palavras de profunda sabedoria sem a qual nem a melhor comunidade pode sobreviver: “... disse Jesus... não se perturbe o nosso coração. Tende fé em Deus, tende fé em mim também. Na casa de meu Pai há muitas moradas.” Jesus afirma, pois, enfaticamente, que a casa do Pai 92 não é uma casa estreita e uniforme. Há nela espaço para mais de um morador, ela acolhe muitos moradores e todos a título igual. Nela não há lugar para privilégios, nem para as viúvas dos gregos, nem para as viúvas dos judeus. Ao lado dessa mensagem de cunho moral, há uma outra de cunho teológico sem a qual a nossa fé vacilará: “Acreditai-me, eu estou no Pai e o Pai está em mim.” As palavras de Jesus não são palavras ao vento, são palavras do Pai que jamais voltará atrás, elas são Espírito e Vida. “Quem vê o Filho, vê o Pai”. 93 6º Domingo da Páscoa 1. Introdução Das três virtudes teologais, a fé, a esperança e a caridade, fala-se muito da fé e mais ainda da caridade, mas fala-se pouco da esperança e, no entanto, São Pedro, na sua primeira carta que estamos a ler nos domingos desta quadra pascal exorta os seus leitores: “Caríssimos, santificai em vossos corações o Senhor Jesus Cristo e estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pedir”. No mundo materialista em que vivemos, praticamente ateu e voltado apenas para o dinheiro e para os prazeres, realmente não é fácil dar razão da nossa esperança. Acreditar na fidelidade de Deus nesta e na outra vida e dar testemunho dessa nossa esperança é a nossa missão de cristãos num mundo desesperado. Foi o que fez, com mão de mestre, o nosso querido Papa Bento XVl ao escrever a sua carta encíclica Spe salvi, salvos pela esperança, há pouco tempo. Ele nos diz com convicção que Deus existe e que Ele é bom e misericordioso, que a vida tem sentido e não é um absurdo e que, após a nossa morte inevitável, fora do tempo e do espaço, viveremos felizes eternamente no seio de Deus e ao lado dos nossos irmãos. 2. Atos dos Apóstolos 8, 5-8.14-17 Contrariamente aos judeus da sua geração, Jesus tinha um carinho especial pelos samaritanos, endemicamente desconsiderados e proibidos de frequentar o Templo de Jerusalém, por 95 serem hereges e se terem mesclado com pagãos. No entanto, os samaritanos foram as primícias da missão. Filipe, não o apóstolo, mas um daqueles sete diáconos, instituídos para servir à mesa os pobres da comunidade cristã de Jerusalém, foi expulso de Jerusalém e, forçado, dirigiu-se à vizinha Samaria e lá fez o que Jesus fizera antes de sua morte: falava às multidões anunciando o reino de Deus, expulsando demônios, curando enfermos e formando comunidades. Os samaritanos convertidos provavam que o Reino de Deus estava a implantar-se na Samaria, pois os samaritanos, considerados os últimos, eram já os primeiros. Pedro e João impuseram as mãos e eles receberam o Espírito Santo. 3. Primeira Carta de São Pedro 3, 15-18 Os destinatários desta primeira carta de Pedro, nós já dissemos nas homilias precedentes, eram gente humilde, migrantes ou escravos, dispersos pelo Império Romano. Além de migrantes e escravos, eram vítimas das perseguições religiosas impingidas pelos imperadores romanos e seus asseclas. As palavras de orientação e consolo proferidas por Pedro iam no sentido de mostrar-lhes que estavam reproduzindo em suas histórias pessoais a história de Jesus, que, como eles, também foi perseguido e mais ainda foi crucificado, morto e sepultado. A constância na tribulação mostrava aos seus perseguidores que a esperança na ressurreição que eles proclamavam não era vã, mas autêntica. O que aconteceu com Jesus também aconteceria com eles: “(Jesus) sofreu a morte na sua existência humana, mas recebeu nova vida pelo Espírito.” 96 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 14,15-21 O evangelho de hoje é um trecho do último discurso de Jesus pronunciado para consolo dos seus discípulos na Ceia de despedida. Nesse discurso, Jesus garantiu que, embora ele devesse abandoná-los porque a sua missão terrena terminava, eles não ficariam sós. Ele rogaria ao Pai e o Pai lhes daria um novo defensor que permaneceria sempre com eles. A presença do Espírito junto aos discípulos faria com que ao mesmo tempo em que Jesus subia aos céus, os céus, na pessoa do Espírito Santo, desceriam sobre a terra. A presença do Espírito não é uma experiência vazia, mas transformadora: “Naquele dia sabereis – não teoricamente, mas por experiência própria – que eu estou no Pai e o Pai está em mim e eu em vós.” O que Jesus dizia aos seus discípulos na última ceia está valendo ainda para nós hoje e, vivendo-o no dia a dia na nossa família, na nossa comunidade, no nosso trabalho, na nossa profissão, estaremos dando as razões da nossa esperança, como pedia Pedro aos leitores da sua carta. 97 A Ascensão do Senhor 1. Introdução Assumindo a natureza humana, o Filho de Deus estabeleceu para si mesmo um limite no tempo para a sua permanência na terra. Terminado esse prazo, Jesus, homem e Deus, cederia o seu lugar aos seus discípulos com quem convivera ao longo do seu ministério. O seu ministério terreno estava terminado e se iniciava o ministério da Igreja, que, quando da sua ascensão, consistia apenas nos seus onze apóstolos, as santas mulheres que o acompanharam desde a Galileia e algumas dezenas de discípulos. Era esse o pequeno rebanho sob cujas costas pesava a responsabilidade de continuar a obra de Jesus. Nós sabemos pelo livro dos Atos dos Apóstolos que esse pequeno núcleo logo cresceria em número e em menos de uma geração estendia-se para muito além da Palestina. Nesta celebração da Ascensão, a nossa querida comunidade da capela São Francisco deve estar consciente de que, dentro do nosso contexto, somos nós, que aqui nos assentamos à mesma mesa e partimos o mesmo pão, que somos os apóstolos e os discípulos que devemos tomar o lugar de Jesus como evangelizadores do Reino de Deus. 2. Atos dos Apóstolos 1, 1-11 A primeira leitura de hoje são os 11 versículos introdutórios do livro dos Atos dos Apóstolos, escrito pelo evangelista Lucas, no qual ele narra a vida e a caminhada das primeiras comunidades por toda a bacia do Mediterrâneo. Como não poderia 99 deixar de ser, a primeira página dos Atos dos Apóstolos é a narrativa da Ascensão de Jesus, ou seja, o término da sua missão terrena e o envio por parte de Jesus dos seus discípulos em missão: “Homens da Galileia, por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” Não se tratava mais de ficar inoperantes, olhando para o alto, mas sim tratava-se de olhar para frente e construir o Reino de Deus até que no fim dos tempos o Senhor voltasse para colher os frutos do seu Reinado. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 1,17-23 Neste pequeno trecho da carta aos efésios, Paulo lhes sugere que façam a Deus três pedidos para estarem à altura da vocação a que tinham sido chamados: 1) que pedissem ao Pai conhecimento, não fruto da ciência humana, mas de um dom do Espírito, porque só Ele pode nos revelar o mistério do amor de Deus revelado em Cristo; 2) que pedissem ao Pai que desde já pudéssemos perceber o valor dos bens que esperamos mas ainda não temos, para não sermos tentados a trocar os bens presentes pelos bens futuros; 3) que pedissem ao Pai a percepção pelo Espírito Santo do mistério de Cristo que renovou a face da terra e o destino dos homens, submetendo tudo aos seus pés. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 28, 16-20 Nós sabemos pelos evangelhos que Jesus, ainda na Judeia, ao saber que João Batista tinha sido preso, resolveu voltar para a Galileia, como previsto pelos profetas, para desde aí anunciar 100 o Reino de Deus. Depois da sua morte, aparecendo às santas mulheres, Jesus lhes pede que digam aos discípulos que voltassem para a Galileia e que Ele queria reencontrá-los lá. É esse encontro que vemos narrado no evangelho de hoje. Assim como o mestre iniciou a sua missão na Galileia das nações, queria também que os seus discípulos iniciassem a pregação do Reino de Deus no mesmo cenário tendo como roteiro as suas pegadas, mas que de lá se expandissem por todo o mundo: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos... eis que eu estarei convosco todos os dias até o fim dos séculos! 101 Domingo de Pentescostes 1. Introdução Neste sétimo domingo do Tempo Pascal, completou-se o ciclo de graça iniciado com o nascimento de Jesus na gruta de Belém. Jesus cumpriu seu ministério terreno, retornou ao Pai, mas não nos deixou órfãos. Do mais alto dos céus, nos mandou o seu Espírito que nos cumulou com os seus dons e nos gratificou com os seus frutos. Esse mesmo Espírito que já nos primórdios da criação pairava sobre as águas, como nos diz o livro do Gênesis, cap. 1, vers. 2. Esse Espírito Santo que, em Pentecostes, se derramou abundantemente sobre os filhos de Deus já estava prefigurado desde o início quando, como nos dizem as Escrituras – “O Senhor Deus modelou o homem da argila do solo, soprou o Espírito de vida sobre ele e o homem se tornou um ser vivo.” De modo ainda mais claro as Escrituras nos falam d’Ele ao referir-se ao futuro Messias: “Mas do trono de Jessé, o pai de Davi, brotará um rebento sobre o qual pousará o Espírito do Senhor, espírito de sabedoria e inteligência, espírito de fortaleza e de prudência, espírito de ciência e de temor de Deus.” 2. Atos dos Apóstolos 2, 1-11 A descida do Espírito Santo sobre os discípulos e sobre todo o povo de Jerusalém, judeus e prosélitos, foi um acontecimento interior, uma experiência silenciosa, não episódica, mas permanente. Basta que estejamos abertos a Ele para que Ele nos invada e habite, hoje, ontem e sempre. Lucas dramatiza essa experiência, por isso devemos interpretar suas palavras. Em primeiro 103 lugar, os discípulos estavam reunidos, possivelmente ouvindo a palavra e repartindo o pão. Estavam, pois, prontos e o Espírito vem até eles com a força de um furacão, ou seja, generosamente, abundantemente, como o Senhor havia-lhes prometido na Última Ceia. O Espírito incide sob a forma de língua de fogo sobre os discípulos de Jesus porque eles deveriam daí em diante anunciar pela palavra o evangelho do Reino nos quatro cantos do mundo. O fato de todos entenderem falantes de outros idiomas, como se estivessem falando a sua própria língua, significa que o Espírito Santo cria concórdia e semeia a paz, exatamente o contrário do que aconteceu em Babel, quando os homens não mais conseguiam se comunicar entre si porque as línguas se haviam embaralhado. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 3b-7.12-13 Esse trecho luminoso da primeira Carta de Paulo aos Coríntios é a base de toda reflexão teológica sobre o Espírito Santo. É difícil falar do Espírito Santo senão por imagens, e Paulo fala na Igreja, esse conjunto de comunidades vivas, tal a nossa, (Paulo fala) na Igreja como um corpo, cuja cabeça é Cristo e cuja alma ou cujo coração é o Espírito Santo. O coração é a sede da ternura, da sensibilidade e dos afetos. No Coração do Corpo de Cristo, que é a Igreja, o Divino Espírito Santo suscita os dons e os carismas. É através do Espírito que recebemos o Shalom divino, a Paz que é a síntese de todos os dons. 104 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, 20, 19-23 Nós já lemos este evangelho de João na oitava da Páscoa, quando recordávamos as aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos para confirmá-los na fé. Jesus não vem só, mas acompanhado do mensageiro da paz, o Divino Espírito Santo, a expressão mais cabal da misericórdia e do perdão: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos.” Assim como os discípulos, nós também estamos aqui reunidos para a escuta da Palavra e para a partilha do pão. Por causa disso, o Espírito está no meio de nós e nos abençoa. 105 Solenidade da Santíssima Trindade 1. Introdução Depois de termos contemplado a ressurreição do Senhor nos domingos do Tempo Pascal, depois de termos vivido em Pentecostes a experiência da infusão do Espírito Santo, chega o momento de contemplarmos, olhando, ao mesmo tempo para o outro e para o mais íntimo de nosso coração, o mistério da Santíssima Trindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Não é através da nossa inteligência que poderemos entender o mistério da Santíssima Trindade que está, sendo divina, acima de nossa compreensão. Mas ela está ao alcance do nosso coração porque Deus, uno e trino, nos habita: “eis que estou à porta e bato. Se me ouvires entraremos e cearemos juntos.” O Deus altíssimo está ao alcance do nosso coração, à mesma distância que estão nossos pais, as nossas mães, os nossos filhos, netos e amigos que mais amamos. Podemos até dizer mais: ninguém está mais próximo de nós que o Deus uno e trino que se revelou em Jesus. 2. Livro do Êxodo 34, 4b-6.8-9 Neste belo encontro de Moisés com Javé, o Deus de Israel, Moisés não tenta formular nenhuma definição filosófica ou teológica de Deus, mas a Ele se dirige como a um amigo e com- 107 panheiro. Companheiro é uma palavra que, etimologicamente, significa aquelas pessoas que, numa longa caminhada, repartem o mesmo pão. Moisés vê em Javé um companheiro e o convida para o caminho: “Senhor, se é verdade que gozo do teu favor, peço-te caminhar conosco, embora este seja um povo de cabeça dura.” Ao longo de toda a peregrinação pelo deserto, desde o Mar Vermelho até a Terra Prometida, Javé foi companheiro e quando necessário se fez Maná para alimentar os seus amigos. No próximo dia 22, Corpus Christi, celebraremos a festa eucarística, o sacramento de Jesus feito pão para o nosso sustento. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 13, 11-13 O mesmo Deus, companheiro de Moisés, nós o encontramos na experiência de Paulo e em suas palavras aos coríntios. Como os israelitas, os coríntios estavam também a percorrer um longo caminho. Vinham de longe e tinham que alcançar a terra prometida por Jesus, o reino de Deus, o evangelho. Necessitavam cultivar a verdadeira alegria e a concórdia, a paz. O Deus de Paulo era o mesmo Deus de Moisés, mas Paulo viveu depois de Cristo. Já sabia nomeá-lo com mais precisão: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.” 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 3, 16-18 João escreveu todo o seu evangelho para que ficasse bem claro que Deus é amor e só isso. Para revelar isso aos homens e para que não pairasse mais nenhuma dúvida, Deus mandou seu Filho Único, Jesus Cristo, também filho de Maria. Quem 108 acreditasse nisso estaria salvo, quem não acreditasse estaria condenado! Como entender essa palavra tão radical? Para compreendê-la, é preciso saber que, para João, acreditar não era um ato meramente intelectual, mas uma experiência concreta de vida. Quem crê em Jesus, ou seja, quem vive no amor, está salvo porque só o amor salva e fora do amor não há salvação para ninguém. A condenação não é uma sentença pronunciada por Deus, mas fruto de uma opção de alguém que não escolheu o amor de Deus e do irmão, mas escolheu o amor de si mesmo com a exclusão do outro. 109 Corpus Christi ou Festa do Corpo e do Sangue de Cristo 1. Introdução Como se sabe, por duas vezes, no Ano Litúrgico, celebrase a Eucaristia. Na quinta-feira Santa, nós a celebramos como memorial da vida, da paixão, da morte e da Ressurreição do Senhor, ou seja, o Sacrifício da missa que a Igreja realiza todos os dias e de modo mais solene a cada domingo, o dia do Senhor. Na festa de Corpus Christi, quinta-feira após a Festa da Santíssima Trindade, no caso hoje, celebramos a Eucaristia como Sacramento em que adoramos, sob as espécies do pão e do vinho, a presença real do Senhor, do seu corpo, sangue, alma e divindade como reza a tradição. Não nos cabe explicar o mistério, mas sim acreditar ou ter a certeza de que o sacramento da eucaristia foi a maneira que a criatividade de Jesus encontrou de permanecer sempre conosco, como nosso companheiro de caminhada. Assim como Javé se fez maná para alimentar e renovar a vida do seu povo durante a travessia do deserto, Jesus se faz pão e vinho na Eucaristia para chegarmos sãos e salvos ao cabo da nossa caminhada. O trigo moído e a uva esmagada com que se fazem o pão e o vinho nos lembram a morte e a Ressurreição do Senhor. 111 2. Livro do Deuteronômio 8, 2-3, 14-16 Neste texto de hoje, Moisés, antes de chegar à Terra Prometida, convoca o povo e tenta mostrar-lhe o significado da aventura da longa travessia, 40 anos, de deserto. Foi com certeza um tempo de graça, mas ao mesmo tempo de provação. E não poderia deixar de ser assim, já que o homem, dono de seu destino, em função da sua liberdade, tem de construir o seu futuro e isso implica em tomar decisões difíceis e, não raro, sofridas. Por outro lado, Moisés lembra o povo que ele não caminhou sozinho, foi sempre conduzido pelo Senhor. Quando teve fome, o Senhor lhe deu o maná; quando estava sem rumo, o Senhor lhe deu os mandamentos; quando estava com sede, o Senhor, através de seu servo Moisés, fez jorrar da rocha uma torrente de água viva. Já dissemos, muitas vezes, que a travessia do deserto é uma parábola perfeita das nossas vidas. O Senhor continua a caminhar conosco e a alimentar-nos não com o maná, mas com o pão da vida e o vinho da salvação que é Jesus. Não há razão para desfalecer-nos no caminho. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 10, 16-17 Essa breve leitura da 1a Carta aos Coríntios talvez seja o testemunho mais antigo da celebração eucarística em que se reconhece no cálice da benção e no pão partido o sangue e o corpo de Cristo. São Paulo, vindo de Atenas, chegou pela primeira vez a Corinto, um pouco antes do ano 50 d.C., portanto não fazia ainda 20 anos da ressurreição do Senhor. É uma grande graça que essa preciosa tradição se tenha preservado por 112 mais de 20 séculos e tenha chegado até nós. São este pão e este vinho divinos que nos alimentam todos os domingos e que nos convocam para a nossa reunião semanal, pois como nos diz São Paulo: “Porque há um só pão, nós todos somos um só corpo, pois todos participamos deste único pão.” 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo São João 6, 51-58 O evangelho de hoje é o núcleo central do discurso desafiador que Jesus pronunciou em Cafarnaum para os fariseus, seus adversários ferrenhos. Jesus em sua fala antecipava a Última Ceia em que instituiria a Eucaristia na qual, sob as espécies do pão e do vinho, seria o nosso alimento espiritual. Jesus tinha, como pano de fundo, o maná que no deserto alimentara o povo faminto. Em palavras fortes, Jesus anunciava que Ele seria o novo maná a saciar a fome de todos os homens até o fim dos séculos. Embora fossem bons conhecedores das Sagradas Escrituras, os fariseus teimavam em interpretar ao pé da letra as palavras de Jesus e isso lhes servia de pretexto para rejeitarem a sua mensagem: “Como é que pode dar a sua carne a comer?” Meus caros irmãos, a presença de Jesus na Eucaristia é misteriosa, mas real, e isso nos basta. Unamo-nos a todos os fiéis que hoje participam das procissões e adoremos o santíssimo e diviníssimo Sacramento! 113 2º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Entre a festa do Batismo do Senhor, celebrada domingo passado, e a Quaresma, temos alguns domingos que fazem parte do Tempo Comum, ou seja, daqueles domingos que estão fora do ciclo do Natal ou da Páscoa. O domingo de hoje é o segundo domingo e gira em torno da figura de São João Batista e ainda da figura impressionante do Servo Sofredor, imaginado pelo profeta Isaías, que antecipa um Messias sofredor, o qual serviu de modelo a Jesus ao anunciar o Reino de Deus, cujo fulcro era a evangelização dos pobres, dos enfermos e dos pecadores. 2. Livro do Profeta Isaías 49, 3-5-6 O texto de hoje volta ao Servo Sofredor cuja missão não é apenas a de reunificar as doze tribos de Israel, dispersas pelas invasões ninivitas e pela separação entre o Reino do Norte, Israel, e Judá, o Reino do Sul. A missão do Servo de Javé é ser luz das nações para que a salvação de Javé chegue até os confins da terra. Essa vocação universalista do povo eleito, já antecipada por Isaías, só irá realizar-se com o novo Israel, ou seja, o povo cristão, a Igreja, cuja semente foi plantada por Jesus Cristo ao constituir os 12 apóstolos, enviados ao mundo inteiro a pregar o evangelho da Salvação. O Israel terreno que se prolonga até hoje no povo judeu espera ainda pelo dia da sua conversão. 115 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 1,1-3 Temos nesta segunda leitura a introdução à primeira carta de Paulo à Igreja de Corinto. Sabemos que a comunidade de Corinto, enorme cidade portuária e cosmopolita da Grécia, foi fundada por Paulo, a quem dirigiu duas longas e importantes epístolas. Vale a pena sublinhar uma observação de Paulo que diz aos cristãos de Corinto que todos serão chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer lugar, invocam o nome do Senhor. A vocação à santidade atinge a todos os batizados, portanto a cada um de nós aqui presentes, quer sejamos religiosos, jovens ou adultos, casados ou solteiros, padres ou não. Evidentemente cada um à sua maneira e segundo o perfil do seu estado de vida. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 1, 29-34 O evangelho de hoje trata do encontro de João Batista e Jesus, as duas personalidades mais importantes da época. Ambos não são personagens de ficção, mas figuras historicamente documentadas. A missão de João era a de precursor de Jesus e a de Jesus era a de completar o trabalho de João. João apontou Jesus como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Ao designar a Jesus como Cordeiro de Deus, João já antecipava de que tipo de morte Jesus haveria de morrer; ele seria como um cordeiro levado ao matadouro. O batismo de João foi um batismo com a água da purificação dos pecados; o batismo de Jesus o foi com o Espírito da plenitude interior e não apenas do perdão do pecado. João Batista, bem antes da ressurreição de Jesus, já se dava conta de que, se Jesus era um verdadeiro homem, não o era como os demais: “Eu vi e dou testemunho: Este é o filho de Deus.” 116 3º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Enquanto os ciclos litúrgicos do Natal e da Páscoa aprofundam os mistérios da Encarnação de Jesus e da Redenção de todos os filhos de Deus, o Tempo comum ajuda-nos a acompanhar Jesus no seu ministério iniciado na Galileia e concluído em Jerusalém com a sua morte e ressurreição. A tônica do ministério de Jesus, acompanhado pelos seus discípulos, foi a pregação do Reino de Deus, já anunciado oito séculos antes pelo profeta Isaías. Mas o que é o Reino de Deus? Em poucas palavras, podemos dizer que o Reino ou Reinado de Deus é o mundo que o Pai deseja para todos os seus filhos, um mundo de paz, de justiça, de amor, ou seja, aquele mundo que os profetas messiânicos anunciavam e que Jesus se esforçava por implementar, isto é, um mundo em que os cegos veriam, os mudos falariam, os coxos andariam etc. Essa missão, antes de subir aos céus, Jesus a transmitiu aos seus discípulos e ela continua sendo a missão da Igreja até hoje e a sua única razão de ser. A Igreja não existe para si, mas para o Reino. 2. Livro do Proveta Isaías 8, 23b-9, 3 Se excetuarmos os tempos gloriosos do Rei Davi e um pouco menos o do seu filho Salomão, a História do povo eleito foi uma sucessão dolorosa de derrotas, divisões e exílios. Essa história afetou mais o Reino do Norte, cujo ícone é a Galileia, do que Judá, o Reino do sul. 117 As tribos da Galileia, Zabulon e Neftalí, foram dispersas e o seu território se encheu de estrangeiros, a ponto de a Galileia ser chamada por Mateus de Galileia dos pagãos. Na primeira leitura, o profeta Isaías, ao mesmo tempo em que aponta para o infortúnio histórico dessa região, anuncia-lhe um futuro glorioso: para os que habitavam na sombra da morte, uma luz resplandeceu. Mais tarde, depois de Jesus, os seus discípulos, ao relerem o texto de Isaías, oito séculos mais tarde, viram nele uma profecia, uma antecipação do ministério de Jesus na Galileia. Jesus foi a grande luz que resplandeceu na Galileia. Jesus começou o anúncio do Reino de Deus na Galileia porque nela havia mais cegos, coxos e mudos do que em Jerusalém. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 1,10-13.17 Podemos classificar Corinto como uma metrópole cosmopolita e portuária culturalmente heterogênea, portanto propícia a conflitos de todo o tipo. Foi Paulo que fundou a comunidade cristã de Corinto, mas não foi o único a evangelizá-la. Foi substituído por outros evangelizadores, enquanto prosseguia nas suas viagens missionárias. Essa diversidade gerava facções rivais que em nada ajudavam o progresso das comunidades. Paulo chama a atenção para a centralidade da cruz de Cristo e a relatividade das opiniões dos missionários. Entre Paulo e Apolo, deve-se ficar com Cristo. 118 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 4, 12-23 Ao perceber a hostilidade das autoridades de Jerusalém que prenderam o Batista, Jesus tomou a decisão de iniciar sua pregação pela Galileia dos pagãos, atualizando a profecia de Isaías: “O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz”. Mateus, como judeu, preferia poupar uma referência direta ao nome de Deus e por isso preferia referir-se ao Reino de Deus como Reino dos céus. O significado de ambas as expressões é absolutamente o mesmo. No evangelho de hoje notamos que, desde o início, Jesus não quis anunciar o Reino de Deus sozinho, mas buscou a ajuda dos discípulos, cuja comunidade acabou dando origem à Igreja, cuja missão continua sendo a mesma de Jesus e dos discípulos. 119 4º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Desde sempre, tanto o filósofo como o homem mais comum buscaram a chave para abrir a porta da felicidade. Quase sempre a buscam no poder, no dinheiro ou no prazer. Os mais diferenciados a buscam na verdade através da ciência ou no bem-estar através da tecnologia. A liturgia de hoje, via evangelho de Mateus, nos dá a chave de Jesus que nos leva ao coração da felicidade, ainda que paradoxalmente. Seria de esperar que Jesus considerasse felizes os ricos, os poderosos, os vencedores, mas para Jesus os felizes são os pobres, os aflitos, os mansos, os pacíficos. Jesus inverte os valores mundanos e aí está o seu segredo. Os valores que afagam o ego são deixados de lado e os valores do outro são exaltados. A minha felicidade é a felicidade do outro. Esse é o segredo de Jesus e essa foi a sua experiência. Em vida, Jesus buscava curar e não ser curado, salvar e não ser salvo, dar e não receber. 2. Livro do Profeta Sofonias 2, 3; 12-13 Sofonias, sob o reinado de Josias, vive em tempos contraditórios. Segundo a mentalidade da época, Javé recompensava com riquezas e vitórias a fidelidade do povo e dos seus reis. No entanto, sob Josias, que foi um rei fiel, Israel acabou massacrado pelo inimigo e o rei, morto. Ao invés de se desesperar e de questionar Javé, Sofonias descobriu que não é pela revolta e pela força que se chega à verdadeira vitória. O caminho é outro. É buscar ser um povo humilde, que não comete iniqüidades, nem fala mentiras. Ou seja, é preciso coerência, ser bom por dentro e por fora, pensar menos em si e mais no outro. 121 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 1.26-31 São Paulo era uma pessoa fora do comum pela sua inteligência e pela sua retórica. Numa cidade diversificada e grande como Corinto, poderia ter escolhido como alvo da sua evangelização as classes mais ricas e influentes, no entanto buscou as mais pobres e as menos cultas. Nisso Paulo, embora não tenha convivido com o Senhor, agiu como Ele: escolheu o que o mundo considera fraco (e infeliz) para assim confundir o que é forte (e feliz). Podemos talvez dizer que a nossa comunidade da Capela de São Francisco, contrariamente à de Corinto, é constituída de pessoas bem situadas na sociedade. Isso não é mau, ao contrário, é um bem, na medida em que nos colocamos a serviço dos nossos irmãos mais fracos. 122 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 5, 1-12a Jesus não era um teólogo, era um evangelizador, ou seja, o portador de uma boa notícia, de uma notícia tão boa que ele não poderia deixar de anunciar a todos os homens o quanto antes. Essa notícia é a resposta à pergunta que todos os homens fazem: Como alcançar a felicidade? A felicidade não está nas riquezas como muitos pensam, mas no bom uso que eu dela fizer; a felicidade não está no bem-estar, mas na ajuda mútua; a felicidade não está na violência, mas na colaboração; não está na ganância, mas na partilha. Todas as páginas dos evangelhos foram escritas para serem vividas, mas nenhuma delas talvez mais do que as de hoje. Que o bem aventurado Francisco de Assis nos ajude a vivê-la! 123 8º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução No domingo passado, festa da Santíssima Trindade, tivemos a oportunidade de refletir sobre esse mistério tão alto e ao mesmo tempo tão próximo de nós. No domingo que estamos vivendo hoje, somos chamados a alargar e mesmo aprofundar a mesma reflexão. O profeta Isaías nos leva a um Deus cujo coração ele compara a um coração de mãe. Na 1a carta aos Coríntios, Paulo nos fala de Deus como uma luz que nos ilumina por dentro e desvela os caminhos que devemos percorrer durante a nossa existência terrena. O evangelho de Mateus fala-nos de um Deus providência que vela pelo nosso futuro para que nada de essencial nos falte. Nada mais distante daquele Deus que muitas vezes criamos com as nossas mãos humanas à nossa imagem e semelhança, um Deus infinitamente distante e severo, um juiz inflexível e ameaçador! 2. Livro do Profeta Isaías 49, 14-15 A figura do profeta Isaías e toda tradição que a ele se prende têm uma importância muito grande na história da Revelação, inscrita na Bíblia. Antes dele, Israel já acreditava em Javé, o Deus dos Patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, que se revelou a Moisés no Monte Sinai. Acreditavam em Javé como um Deus ao lado de outros deuses ou deusas. Isaías deu um salto qualitativo e percebeu que Javé era o único verdadeiro Deus, soberano sobre todos os povos. A soberania de Javé sobre todos 124 os povos não era a de um tirano vencedor de todas as batalhas contra todos os exércitos. Ao contrário, para Isaías, Deus é terno e compassivo, mais terno e compassivo do que um coração de mãe. Essa tradição iniciada pelo profeta Isaías vai se consolidando ao longo dos séculos para completar-se em Jesus com quem aprendemos que Deus é AMOR! 3. Carta de São Paulo aos Coríntios 4, 1-5 Este trecho da carta de Paulo, na missa de hoje, reflete as dissensões que havia na comunidade de Paulo, uma comunidade jovem e heterogênea, formada por pagãos recentemente convertidos ou judeus mais ou menos tradicionalistas. Paulo respeitava essas diferenças, mas nem por isso deixava de ensinar a doutrina que lhe parecia correta; não o fazia para consolidar o prestígio, mas para obedecer à sua consciência. Não se julgava a si mesmo, nem lhe interessava o julgamento dos homens, só lhe interessava o julgamento de Deus. O Deus de Paulo não era um Deus distante, mas um Deus com quem ele convivia e dialogava no recesso mais íntimo da sua consciência. Santo Agostinho, um grande escritor e teólogo, mas também um grande místico, dizia-se mais próximo de Deus do que de si mesmo. Como São Paulo. 125 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 6, 24-34 Existem nas Sagradas Escrituras duas vertentes, a profética e a sapiencial. Na vertente profética, o profeta fala alto e forte ao povo infiel, em nome de Deus, para defender os direitos de Deus e os direitos dos pobres, que são vistos como um só direito. Na vertente sapiencial, o sábio tenta mostrar aos homens, ou o sentido da vida, ou a arte de dar sentido à vida. Jesus encarnou essas duas vertentes, foi profeta, viveu perigosamente e morreu como os profetas morreram. Foi também sábio, como podemos ver pelo evangelho de hoje: 1. ninguém pode servir a dois senhores; 2. não se deve viver na ansiedade, mas na certeza de que Deus não nos abandonará; 3. a vida em si vale mais do que os bens deste mundo; 4. importa reconhecer os nossos limites naturais; 5. o olhar de Deus é preveniente, é previdente e providente. 6. Procurai o reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado como acréscimo. 126 9º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Um traço marcante da religiosidade bíblica do Antigo Testamento e, mais ainda, do Novo Testamento, é a coerência que se exige entre o amor a Deus e o amor ao próximo ou, em outras palavras, entre a prática religiosa e a prática da justiça, entendida como a observância dos mandamentos, de todos os dez mandamentos que se resumem, como diz Jesus, no amor a Deus e ao próximo. O fato de Jesus defender até o fim essa verdade perante os doutores da lei, os fariseus e os sumos sacerdotes, foi determinante em relação ao seu destino trágico. Enquanto os adversários de Jesus faziam da prática cultual ou das práticas tradicionais ligadas ao jejum, às orações e às esmolas uma fonte de lucro e de prestígio, Jesus, por seu lado, deixava claro como tudo isso, sem a prática concreta do amor ao próximo, não passava de hipocrisia. As leituras de hoje devem fazer-nos pensar como vivemos nós a nossa prática religiosa. 2. Livro do Deuteronômio 11, 18.26-28.32 As palavras de Moisés ao povo de Israel antes de adentrar a Terra Prometida nos interpelam a nós que somos homens e mulheres livres, portanto imputáveis, ou seja, eticamente responsáveis pelos nossos atos. Naquele momento, após as grandes provações da travessia pelo deserto, o povo libertado estava pronto para fazer o que a moderna teologia moral chama de opção fundamental. O povo todo de Israel, portanto cada 127 um dos seus homens e mulheres, eram todos chamados a optar de modo radical pelos mandamentos inscritos por Javé nas pedras da lei e entregues a Moisés no Monte Sinai. Paralelamente quando cada um de nós chega à maturidade intelectual e moral, somos instados pelo Espírito a fazer uma opção fundamental pelos valores evangélicos expressos nas bem-aventuranças e, também, na versão do Hino de São Francisco que nos é tão familiar. “Gravai estas minhas palavras em vosso coração e em vossa alma, prendei-as como sinal às vossas mãos e sejam elas como faixas entre vossos olhos”. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 3, 21-25a.28 Enquanto na primeira leitura Moisés promete a salvação pela obediência aos mandamentos, Paulo em sua carta aos romanos a faz depender da fé em Jesus Cristo para todos os que creem, independentemente das suas origens pagã ou judia. Para entender essa aparente contradição, devemos lembrar que os atos humanos não são atos puramente mecânicos, mas são dotados de uma motivação moral e afetiva. Nós entendemos facilmente que, para Deus, como também para nós, a motivação moral e afetiva é mais importante do que o ato em si. O que vale num presente é o seu valor afetivo e não o seu valor pecuniário. Para Paulo, a fé em Jesus Cristo, a fé que salva, não é um ato meramente intelectual, mas um ato que mobiliza todo o nosso ser e qualifica todas as nossas obras, ou seja, tudo aquilo que fazemos. É essa fé que transfigura os nossos atos que nos salva. 128 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 7, 21-27 O evangelho de hoje não foge ao tema das duas primeiras leituras e se dirige de maneira particular àqueles, como nós, que praticamos a religião; somos, como se diz, católicos praticantes. Escutemos, com os dois ouvidos, as palavras do Senhor: “Nem todo aquele que diz ‘Senhor, Senhor!’ entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus”. E nós sabemos qual é a vontade do nosso Pai que está nos céus: que amemos a Deus e aos irmãos como Jesus nos amou, isto é, não só em palavras, mas em atos e palavras. A essas palavras tão diretas de Jesus o evangelista acrescenta a parábola das casas construídas uma sobre a rocha e a outra, desastradamente, sobre a areia. Qual o sentido dessa parábola? A rocha, o rochedo, a pedra são símbolos bíblicos de Javé. Jesus, nos Atos dos Apóstolos e na 1ª carta de Pedro, é comparado à pedra que as autoridades judias rejeitaram e que acabou se transformando na pedra angular. 129 10º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Antes de comentar cada uma das leituras da liturgia de hoje, ajuda-nos, para entendê-las melhor, chamar a atenção para um traço comum das suas três personagens principais envolvidas, cada uma, numa das leituras. São elas: o profeta Oseias, o patriarca Abraão e o apóstolo Mateus. Todos eles eram dotados de uma virtude comum que podemos chamar de prontidão, ou seja, a capacidade de atender sem tardança a um chamado para cumprir uma missão importante, embora arriscada. O dado básico da nossa fé, comprovado nas Escrituras, é que Deus intervém na História e, para isso, comunica-se com o homem, tomando a iniciativa do diálogo. Cabe ao homem responder à intervenção de Deus. Quanto mais pronta for a resposta, mais fecundo será o diálogo. Oseias era um simples camponês de Judá que foi interpelado por Javé para profetizar em Israel. Israel era o reino do norte, rival de Judá. Israel passava por um período de grande prosperidade material, mas desviava-se do culto de Javé em proveito dos Baals, deuses e deusas pagãs e, além disso, os pobres eram oprimidos. A tarefa de Oseias era não só difícil, mas perigosa, porém o humilde agricultor aceita prontamente a sua missão. Na segunda leitura, temos a figura grandiosa do patriarca Abraão. Ele era um homem de prol na cidade de Ur na Caldeia. Tinha tudo para prosperar na nação mais rica do Oriente Médio. No entanto, aceita prontamente o convite d’Aquele que, a um dos seus descendentes, se daria o 130 nome de Javé, e faria um convite para fundar uma nova nação, onde imperariam o direito e a justiça. No Evangelho, deparamos com o coletor de impostos Mateus que, sem mais delongas, abandona a sua banca e acode ao chamado de Jesus: “Segueme”. E ele levantou e seguiu. Meus caros irmãos e irmãs, essas três convocações que pertencem à grande História se repetem corriqueiramente em nossas pequenas histórias todos os dias. Estamos atentos? Estamos prontos? 2. Livro do Profeta Oseias 6, 3-6 Como todo profeta, Oseias não tentava ganhar o seu público através de elogios fáceis, mas colocava o dedo na ferida, dizialhes: o amor que eles tinham por Javé era como uma nuvem passageira, como o orvalho que, aos primeiros raios de sol, já se desfaz. Esse amor não era apenas passageiro, mas maquiado através de grandiosos sacrifícios e holocaustos de touros, carneiros e bodes e Javé não se interessava nem por sacrifícios, nem por holocaustos, mas pelo amor e pelo conhecimento do verdadeiro Deus. Era essa a mensagem de Oseias. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 4, 18-25 A prontidão de Abraão, segundo Paulo, não era apenas imediata, mas cheia de fé e confiança. Nem a sua idade, nem a de Sara, sua esposa, o faziam duvidar da fidelidade de Deus à sua promessa: “(Abraão), sai de tua terra natal, da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. Farei de ti um grande povo, te abençoarei, tornarei famoso o teu nome que servirá de benção”. 131 4. Evangelho de Jesus Cristo s egundo Mateus 9, 9-13 Várias vezes, ao longo da Bíblia, nos dois testamentos, encontramos a afirmação de que Deus não faz acepção de pessoas. Isso fica claro no episódio de hoje, em que Jesus chama para segui-lo a Mateus, cobrador de impostos, publicano, tido pelos fariseus como pecador com quem não se podia sentar à mesa. “De fato, diz Jesus, eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores”. 132 11º Domingo do Tempo Pascal 1. Introdução A fonte única da religiosidade em ambos os Testamentos é a fé, segundo a qual Deus ama radicalmente as suas criaturas sem exceção, mas de modo particular, os seus filhos humanos e lhes atribui, como seres livres e racionais, uma tarefa de coresponsabilidade no seu projeto de salvação, já que a aventura humana não se encerra com a morte, mas abre-se para a eternidade. A salvação do homem todo e de todo o homem é fruto da solidariedade, em que um homem se coloca a serviço de outro homem; uma família, a serviço de outra família; uma classe, a serviço de outra classe; um povo, a serviço de outro povo; uma Igreja, a serviço de outra Igreja. Embora haja diversidade de dons no mundo criado por Deus, não deve haver privilégios, mas serviço mútuo, em vista da construção de uma sociedade justa, harmoniosa e fraterna. 2. Livro do Êxodo 19, 2-6a Na primeira leitura de hoje, vemos que o povo de Israel já havia deixado o Egito, cruzado a pé enxuto o Mar Vermelho e chegado aos pés do Monte Sinai. O povo já estava pronto para cruzar o deserto e, assim, chegar à Terra Prometida. Podemos nos perguntar por que Javé dedicou tanta atenção a esse povo mais do que a outros. A essa pergunta só podemos responder depois de Jesus. Israel, mais do que um povo privilegiado, foi 133 chamado a ser um povo testemunho. Num mundo ainda imaturo Israel foi chamado a dar testemunho de um Deus único e unicamente voltado para o bem. Para dar esse testemunho, Israel teria que caminhar muito, errar muito e pedir perdão muitas vezes, pedido a Deus jamais por Ele negado. A vocação de Israel é também a nossa vocação. A nossa caminhada é tão árdua e pedregosa como foi a caminhada de Israel pelo deserto. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 5, 6-11 Olhando para trás na longa História do mundo e do seu povo, Paulo fixa os seus olhos em Jesus, o Cristo, o Messias. Jesus ocupa o lugar central da História porque nele, através da sua morte por amor, revelou-se o Amor de Deus para todos os homens, justos e pecadores. Nós, batizados em Cristo, somos portadores para os nossos irmãos desse segredo inaudito. 134 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 9, 36-10, 8 Assim como Javé se comoveu diante do sofrimento dos hebreus, escravizados pelo Faraó do Egito, “Jesus, vendo as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor.” Vale a pena ler no original grego esse versículo porque então veremos que Jesus não só se compadeceu, mas se deixou comover até o mais fundo de suas entranhas diante da dor e do abandono das multidões. Diante desse quadro doloroso, Jesus percebe que deve credenciar os seus amigos e companheiros para que junto com Ele cerrassem fileiras para socorrer multidões abandonadas, primeiro as ovelhas perdidas da casa de Israel, para que elas pudessem, em seguida, atingir as ovelhas perdidas nos quatro cantos do mundo. A tarefa era e é urgente. Tratava-se então e trata-se ainda hoje de: “curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos, expulsar os demônios.” Sabemos interpretar essas palavras no contexto de hoje? 135 12º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje, principalmente a de Jeremias e o evangelho de Mateus, nos falam do medo que pode atormentar a todos nós em muitos momentos da nossa necessariamente atribulada existência. Todos somos frágeis de várias fragilidades. As doenças somáticas ou psíquicas nos ameaçam, a violência criminosa ou do trânsito nos ameaçam, os transtornos da economia ou do trabalho nos ameaçam, a morte nos ameaça. Para muitos, o próprio Deus, que eles criaram, é a maior ameaça. Diante disso, no evangelho de Lucas diz Jesus: “não temais pequeno rebanho.” Os medos e temores aqui lembrados entre outros são sinais dos limites próprios da nossa condição de criaturas, mas nós sabemos, pela graça de Deus, que nós somos mais do que meras criaturas terrenas e que a morte, a mãe de todos os medos, é apenas o portal da vida eterna onde não haverá sombra nenhuma do medo. Como cristãos, somos portadores dessa esperança. É preciso que essa esperança seja tão grande que derrube o desespero dos nossos irmãos que se sentem ameaçados. 2. Livro do Profeta Jeremias 20, 10-13 Jeremias foi um dos profetas mais importantes do Antigo Testamento. A tradição bíblica nos faz saber que ele foi chamado a profetizar ainda no seio de sua mãe. No exercício do seu múnus de profeta a defender os direitos de Deus e dos 137 pobres, ele foi ameaçado por todos os lados e, diz a tradição, condenado à morte violenta, serrado ao meio. No tempo de Jesus, alguns imaginavam-no como uma espécie de Jeremias redivivo. Ainda que sozinho e abandonado, Jeremias tinha força suficiente para exclamar: “O Senhor está ao meu lado como um forte guerreiro, por isso os que me perseguem cairão vencidos”. O nosso destino muito provavelmente não será o mesmo de Jeremias, mas é quase certo que também nós, em alguns momentos de nossas vidas, viveremos momentos dramáticos. Então lembremo-nos que o Deus de Jesus está ao nosso lado. A quem então temeremos? 3. Carta de São Paulo aos Romanos, 5, 12-15 São Paulo nos diz que, através do pecado de Adão, entrou a morte no mundo e que, através da morte de Cristo, oferecida aos homens por amor, entrou de novo a vida no mundo. Os homens, como todas as criaturas terrenas, sempre foram mortais. Paulo, falando de morte, refere-se à morte da alma, entendida como fonte de positividade, de amor e de esperança. A essa morte se contrapõe a graça que Cristo nos trouxe e que nos faz experimentar o amor infinito de Deus que nos devolve a esperança e nos livra do medo. Quando refletimos sobre o medo é importante refletir também sobre a esperança, cujo fundamento é o Deus de Jesus. Em outras palavras, nós temos, sem dúvida em quem esperar. 138 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 10, 26-33 Jesus, quando dizia aos apóstolos “Não tenhais medo dos homens” tinha consciência de que a sua mensagem, embora totalmente positiva para os homens, era paradoxalmente perigosa. A sua mensagem, e isso estava nos desígnios de Deus desde todo o sempre, um dia seria publicada sobre os tetos, mas não o seria sem a oposição de muitos. A sorte dos discípulos não seria diferente da sorte do mestre. Esse é o preço da insensatez humana. O homem tem muita dificuldade em sacrificar as suas pequenas alegrias pela perfeita alegria. Jesus tenta convencer os seus discípulos de que eles não devem temer a insensatez humana, mas devem enfrentá-la ainda que com o risco de morte. Ao mesmo tempo em que Jesus estimulava os seus discípulos a continuarem a sua missão de anunciar o Reino de Deus, animava-os com a esperança de que, assim como eles não O negariam diante dos homens, Ele também não os negaria diante do seu Pai que está nos céus. 139 Solenidade de São Pedro e São Paulo 1. Introdução Segundo a tradição popular, o dia 24 de junho é a festa de São Pedro mas, de acordo com o calendário litúrgico, trata-se do dia de São Pedro e São Paulo, apóstolos, e a ele se dá tanta importância que substitui a liturgia das celebrações dominicais. Ao lado de Pedro celebra-se também o Apóstolo Paulo porque, mais juntos do que separados, nos permitem uma visão global da Igreja. Se Pedro é a rocha sobre a qual se assenta o corpo da Igreja institucional, Paulo lhe representa a alma e o carisma através dos quais o evangelho levantou voo, atravessou mares e fronteiras e ganhou força e vida para transformar o mundo, as línguas, as culturas e se perpetuou através dos séculos. Pedro acompanhou o Mestre desde o início, Paulo de início tergiversou, mas depois seguiu-o até o fim e ambos foram apóstolos do mesmo mestre. Segundo a tradição, Pedro morreu como o seu mestre na cruz, embora invertido e Paulo morreu pela espada. 2. Atos dos Apóstolos 12, 1-11 A semente que Jesus lançava em terra não cessava de brotar, florir, amadurecer e dar frutos. A pouca de fermento que deitara na massa não cessava de fazê-la crescer. Os seguidores do evangelho se reuniam para ouvir a palavra e repartir o pão e as comunidades não cessavam de crescer. E isso não agradava, 140 nem a Herodes, homem forte do poder romano, nem aos sumos sacerdotes, donos e senhores da religião tradicional. Herodes, ao perceber que se saíra bem perante os judeus ao matar Tiago, irmão do apóstolo e evangelista João, pensou em prender Pedro para depois, com alguma publicidade, matá-lo também. Paulo, numa das suas epístolas, dirá mais tarde que a palavra de Deus não podia ser acorrentada. Foi o que Herodes tentou fazer acorrentando Pedro, mas o anjo do Senhor o libertou. Na sua história pessoal, Paulo também será preso e o anjo do Senhor virá para libertá-lo. Que esses milagres sejam verdades históricas ou apenas narrativas simbólicas importa pouco. O importante é que Pedro e Paulo lutaram até o fim e, só quando aprouve a Deus, chegaram ao martírio. 3. Carta de São Paulo a Timóteo 4, 6-8, 17-18 Ao escrever ao seu querido discípulo Timóteo, a quem gerara na fé, Paulo faz o seu testamento e se declara pronto para, como ele mesmo diz, ser derramado em sacrifício, ou seja, entregar a sua alma a Deus. Fica claro para nós, leitores, que Paulo não era apenas um homem incansável, como demonstrou em suas incontáveis viagens, mas era um homem de fé profunda que vivia em plena comunhão com Deus, na certeza de que lhe estava reservada a coroa de justiça. Paulo, ex-fariseu da estrita observância, renunciou a tudo para anunciar o evangelho que tanto combatera, mas agora, no fim da sua vida, tinha a certeza de que o Senhor esteve ao seu lado e lhe deu forças para que a mensagem fosse anunciada integralmente e ouvida por todas as nações. 141 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16, 13-19 A parada de Jesus em Cesareia de Filipe, aos pés do monte Hermon, onde nasce aos borbotões o Rio Jordão, é um momento crucial no ministério de Jesus. Jesus já iniciara a sua caminhada final para Jerusalém, onde iria anunciar sobre os tetos e abertamente o seu evangelho que entrava em flagrante conflito com a prática religiosa vigente. Jesus sabia que a sorte dos seus discípulos estava atrelada à sua. Era preciso que os seus discípulos soubessem exatamente quem Ele era e não se equivocassem a seu respeito. Depois de saber o que alguns pensavam sobre Ele, pergunta diretamente aos seus discípulos: E vós quem dizeis que eu sou? Ao que, Pedro responde: “Tu és o messias, o Filho do Deus vivo.” Essa resposta o credencia a ser indicado como a pedra sobre a qual seria edificada a Igreja de Cristo. Meus caros irmãos, hoje agradeçamos a Deus o dom da Igreja que há mais de dois mil anos nos protege e nos guarda de todo o mal. 142 14º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Assim como outras espécies animais, nós, os humanos, somos seres gregários, ou seja, somos chamados a viver em comunidades, daí as colmeias, os formigueiros, as matilhas, as varas, os rebanhos e também as famílias, os clãs, as tribos e as nações. As espécies animais são guiadas pelos instintos. Os humanos também, mas só em parte; no que lhe é próprio, são guiados pela razão, ou seja, são seres moralmente autônomos e como tais imputáveis, ou seja, têm que responder pelos seus atos. Os humanos são, pois, seres em relação e essas relações são frutos de uma escolha pessoal. Essas relações podem ser de três tipos: com os nossos semelhantes, conosco mesmos e, para os que têm fé, com Deus. A primeira leitura, tirada do profeta Zacarias, nos levará a refletir sobre as nossas relações com os nossos semelhantes. A segunda, da carta do apóstolo Paulo, sobre as nossas relações conosco mesmos, e a terceira, tirada do evangelho de Mateus, sobre as nossas relações com Deus. 2. Livro do Profeta Zacarias 9, 9-10 A simples leitura deste texto do profeta Zacarias nos remete imediatamente ao cenário da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém no domingo que antecedeu a sexta-feira em que ele foi crucificado. Nesse dia,Jesus aceitou ser aclamado rei e ser chamado filho do rei Davi, título que, em outra oportu143 nidade ele quase rejeitara. Mas, ao mesmo tempo em que ele aceitava um papel de liderança, não podia confundir-se com qualquer liderança. Sim, ele era rei, mas um rei diferente que não veio para dominar, mas para servir. Essa era a novidade e a qualidade mais específica do Reino de Deus que ele viera anunciar e inaugurar. É nisso que as nossas relações com os nossos semelhantes devem se pautar. Que as nossas relações inevitáveis ou de livre escolha não sejam nunca relações de dominação, mas sempre de serviço. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 9.11-13 O ser humano, desde cedo, no limiar da idade da razão, percebe-se como um ser dividido, como alguém que deve lutar contra si mesmo, que deve controlar o seu desejo, que deve relacionar-se bem consigo mesmo, pois depende dele e só dele o bom uso da sua liberdade. Diante desse drama, São Paulo, dentro da tradição bíblica, vê o homem como uma pessoa às voltas com as contradições da “carne” contra o “espírito” e do “espírito” contra a “carne”. A carne o leva a buscar prazeres do sentido, as benesses do dinheiro e o prestígio do poder. O espírito ao contrário o leva a buscar as alegrias de uma consciência reta, a satisfação interior do dever cumprido, a preferência pelo bem do irmão sobre o bem de si mesmo. Paulo, como homem de fé, vê nisso que ele chama de “espírito”, não apenas um dinamismo psicológico, mas a presença do próprio Espírito Santo, o mesmo que ressuscitou Jesus e que também nos ressuscitará. 144 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 11, 25-30 Essa oração de louvor de Jesus ao seu Pai celeste, Senhor do céu e da terra, é um dos pontos mais altos do seu ministério. A missão de Jesus, mais do que tudo, era a de dizer a última palavra sobre esse Deus que criou o céu e a terra, o homem e a mulher e que enviou o seu Filho único para nos salvar. E Jesus, nessa sua oração, deixa bem claro para nós, tão frágeis, tão vulneráveis, que o seu Pai é um Deus de algum modo tão frágil e tão vulnerável como nós. Ele não se impõe, ele se oferece. Ele não é complicado e impenetrável. Ele é um amigo solícito, disposto a aliviar-nos dos pesados fardos e não a sobrecarregar-nos de outros fardos ainda mais pesados. Pois o seu jugo é suave e o seu fardo é leve. É assim o Deus com quem nos relacionamos? 145 15º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A primeira leitura de hoje do profeta Isaías e o evangelho de Mateus levam-nos a refletir sobre aquele Deus que não se fechava no silêncio, mas se comunicou com as suas criaturas humanas como um Pai ou uma Mãe se comunicam com os seus filhos. Os grandes filósofos do passado conseguiram transpor a barreira do criado e chegaram até o criador, identificado como a causa primeira ou a causa de todas as causas ou o motor que tudo move, mas não é movido por nada ou por ninguém. É o primeiro motor imóvel. As leituras de hoje mostram-nos que esse primeiro motor não é imóvel. Ele mobiliza-se e verga-se para nos falar e converter. Ele é como a chuva e a neve que caem do céu e fertilizam a terra. Ele é como a semente que cai em terra boa e faz a planta germinar, crescer, florescer e dar frutos. 2. Livro do Profeta Isaías 55, 10-11 Os profetas do Antigo Testamento ironizam os deuses pagãos, meras estátuas que tinham ouvidos, mas não ouviam, tinham olhos, mas não viam, tinham boca, mas não falavam. Ao contrário disso, o Deus da Bíblia era um Deus que se inclinava para o homem, definia-se como Alguém que era para o ser humano como um Pai é para o seu filho, ou mesmo, como é a mãe para os seus filhos. Como tal, ele não só se comunica com o homem, mas provoca a sua resposta: “assim a palavra que sai da minha boca, não voltará para mim vazia, antes, realizará tudo 146 que for da minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao enviá-la”. Meus caros irmãos e irmãs, ter fé é, no fundo, acreditar que Deus se comunica conosco, não porque Ele precisa de nós, mas porque ele nos quer bem, ou seja, quer o nosso bem gratuitamente, por isso ele se faz palavra. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 18-23 Neste trecho da carta de Paulo aos Romanos, um tanto complexo, antes de falar sobre a complexidade da aventura humana, talvez para nos encorajar, Paulo começa dizendo que “os sofrimentos do tempo presente nem merecem ser comparados com a glória que deve ser revelada em nós”. Paulo constata que durante esta vida vivemos na insegurança, não só por nossa culpa, mas também por culpa de toda a humanidade que se deixa enganar pela própria maldade e pelas insídias daquele que a sujeitou, o príncipe deste mundo. Em que pese essa carga negativa que temos de carregar, guardamos dentro de nós a esperança, ou seja, a certeza de que seremos libertados e recebidos pelo Pai como filhos queridos. Se fomos adotados como filhos, como filhos seremos tratados. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 13, 1-23 O evangelho de hoje dispensa claramente uma explicação porque ele é praticamente autoexplicativo como se vê na parte final em que, à parte, Jesus explica aos seus discípulos como interpretar a parábola da semente que cai à beira do caminho, da que cai num terreno pedregoso, da que cai no meio dos espinhos e da que cai em terra boa. Diante disso, vamos fazer uma 147 consideração de ordem mais geral. Assim como a produtividade da semente depende em boa parte da qualidade do terreno e do seu manejo, assim também o fruto das palavras que Deus nos dirige a nós pessoalmente depende das nossas disposições interiores. Eu chamo a atenção de todos para a importância da palavra de Deus que nos é dirigida através das leituras da Missa dominical. Santo Agostinho ao referir-se à Missa como celebração da Palavra e como celebração eucarística, colocava ambas as celebrações no mesmo nível de importância, já que o Jesus que recebemos na Eucaristia é Ele mesmo Palavra de Deus. 148 16º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As religiões abraâmicas, ou seja, o judeu-cristianismo e o islamismo, são chamadas também de religiões do livro, ou seja, da Bíblia para nós e do Alcorão para os muçulmanos. Essa coincidência não é nem fortuita nem superficial, ao contrário, ela aponta para algo de essencial nas duas tradições religiosas. O nosso Deus não é um Deus solitário, mas um Deus que se comunica com os seus filhos num esforço constante para educar-nos, ou seja, para que façamos bom uso da nossa liberdade e assim consigamos chegar à felicidade nesta e na outra vida. Essa educação se faz através da sabedoria, ou seja, o conhecimento obtido através da experiência e conservado como acervo precioso no seio da família. Essa educação se faz também através da oração que desperta o espírito de Deus em nossos corações. Faz-se também essa educação através dos ensinamentos de Jesus e, de modo particular, através das suas parábolas. 2. Livro da Sabedoria 12, 13.16-19 A sabedoria bíblica nos mostra que os nossos critérios de justiça não devemos buscá-los em outra parte senão no próprio Deus, que não é somente justo, mas é a própria justiça. Uma justiça que não é dura nem inflexível, mas é para todos indulgente. É indulgente, mas não é permissiva, porque não é complacente com o mal. Esse mesmo tipo de comportamento que Deus mantém para conosco, devemos também mantê-lo dentro de nossa família que é o caldo de cultura da verdadeira sabedoria e também dentro do nosso ambiente de trabalho e da nossa vizinhança: “Assim procedendo, ó Deus, ensinaste ao teu povo que o justo deve ser humano; e a teus filhos deste a confortadora esperança de que concedes o perdão aos pecadores.” 149 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 26-27 Esta segunda leitura da liturgia tem apenas dois versículos, mas eles são fundamentais porque nos ensinam a rezar, ou seja, eles nos afirmam que rezar não é repetir orações já feitas, frases decoradas, mas sim deixar que o próprio Espírito Santo nos fale dentro de nós. Na oração, o mais importante é ouvir o que o Espírito tem a dizer-nos, mesmo porque, como nos diz Jesus em outra passagem, o Pai sabe muito melhor do que nós o de que carecemos. Ter fé é acreditar que Deus se comunica conosco quando nos dirigimos a Ele e nos empenhamos em ouvi-lo. “Irmãos, diz-nos Paulo, o Espírito vem em socorro da nossa fraqueza”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 13, 24-43 Uma das características da pregação de Jesus era o uso de parábolas, ou seja, o uso de comparações, mais ou menos complexas, para instigar a curiosidade dos ouvintes e, ao mesmo tempo, testar o interesse deles. A maioria das parábolas diz respeito ao Reino de Deus, cuja proximidade Jesus anunciava. Reino de Deus era o novo nome que Jesus dava ao que os profetas chamavam de tempos messiânicos a ser inaugurado com a vinda do Messias. Como esses tempos messiânicos eram interpretados de várias maneiras, Jesus tentava, através de parábolas, explicá-lo segundo o seu ponto de vista. Pela parábola do joio e do trigo, fica claro que o Reino de Deus não consistirá numa transformação radical e fulminante do mundo, mas será fruto de um trabalho diuturno e paciente de purificação em que o bem prevalecerá contra o mal. “Então os justos brilharão como o sol no reino do Pai. Quem tem ouvidos, ouça!” 150 17º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Ao lado do tema da “esperança cristã”, que o apóstolo Paulo o propõe à nossa reflexão e oração, a 1a leitura tirada do 1 livro dos Reis e o evangelho de Mateus sugerem-nos respectivamente os temas do discernimento moral e da natureza do Reino de Deus em oposição à natureza do Reino dos homens. Esses três temas têm um denominador comum que é o de chamar-nos à responsabilidade pessoal nos planos pessoal, social e religioso, já que, como diz São Paulo em outra parte, Rm 14,12: “Cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio.” A nossa sorte eterna e também a terrena se jogam no fundo da nossa consciência moral muito mais do que nas nossas ações e gestos exteriores sempre passíveis de falhas ainda que involuntárias. 2. Primeiro Livro dos Reis 3, 5.7-12 A frase deste pequeno trecho do 1o livro dos Reis está no versículo 9: “Dá, pois, ao teu servo um coração compreensivo, capaz de governar o seu povo e de discernir entre o bem e o mal.” Como seres livres, portanto submetidos a um código moral, gravado em nossa consciência e não apenas nas tábuas da lei, devemos antes de tudo saber formar a nossa consciência para distinguir corretamente entre o bem e o mal. No nosso mundo de hoje, somos chamados a tomar posição em face de muitos problemas morais, como por exemplo o aborto, a eutanásia e outros. Calha bem ouvirmos de novo o que o Concílio Vaticano II tem a 151 dizer-nos a respeito: “No fundo da própria consciência o homem descobre a presença de uma lei, que ele não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer. Essa voz que o está chamando a fazer o bem e evitar o mal soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. De fato, o homem tem no seu coração uma lei escrita pelo próprio Deus, a sua dignidade está em obedecer-lhe e é por ela que será julgado.” 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 28-30 Não é preciso viver muitos anos para o ser humano tomar consciência de que a aventura humana é um empreendimento cheio de surpresas, algumas felizes e outras infelizes. Ninguém atravessa a vida em brancas nuvens, mas o apóstolo Paulo e com ele a experiência de vida de muitas pessoas nos garantem “que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus.” A sabedoria como dom do Espírito, não consiste apenas em distinguir o bem do mal, mas também em distinguir o provisório do definitivo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 13, 44-52 Entre o reinado de Davi e o nascimento de Jesus decorreram aproximadamente mil anos. Embora os reinados de Davi e de seu filho Salomão tenham representado o ponto mais alto na História do povo escolhido, já no século VIII a.C., ele apresentava sinais de profunda decadência. E Javé mandava profetas ao seu povo anunciando tempos melhores, inclusive a restauração da dinastia davídica através do Messias, um rei ungido pelo próprio Deus. Jesus assumiu o papel de Messias, mas teve o cuidado, principalmente através de suas parábolas, de anunciar que o reino de Deus 152 que ia instaurar não guardava nenhuma semelhança com os reinos humanos. Era de outra natureza: era como uma pérola preciosa muito mais bela que as outras pérolas, como uma rede lançada ao mar que acolhia todos os peixes, valiosos ou não. O destino deles dependia de cada um, das suas respectivas escolhas morais. 153 18º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje, cada uma a seu modo, mostram-nos como Deus nos chama para uma felicidade sem retorno, mas não para a facilidade, contrariamente ao que nos promete o consumismo do nosso mundo de hoje. A sede de facilidades dos nossos contemporâneos pode afastá-los da verdadeira felicidade, porque são levados a acreditar que os valores evangélicos são negativos quando não masoquistas. As leituras de hoje fazem-nos ver com clareza que a verdadeira alegria se consegue com a perseverança, a coragem, a partilha e não o contrário. Elas nos garantem também a certeza de que um dia seremos premiados, não apenas nós, individualmente, mas como família, como comunidade, como povo que se fez família, comunidade e povo através do amor solidário, que repartiu entre si o vinho, o leite e o pão. 2. Livro do Profeta Isaías 55, 1-8 A longa travessia, desde o Egito, através do deserto, durante quarenta anos, não foi apenas um episódio na História de Israel, mas uma parábola dessa História e de todas as histórias não só nacionais, como também pessoais. Deus também promete a cada um de nós e às nossas famílias uma terra onde corre o leite e o mel: “Ó vós todos que estais com sede, vinde às águas; vós que não tendes dinheiro, apressai-vos, vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite sem nenhuma paga.” Chama atenção nas promessas de Javé a insistência na gratuidade “vinde comprar sem dinheiro”. Enquanto os ídolos exigem para abrirem as mãos sacrifícios até humanos, o dom de Javé é 154 um dom puramente gratuito. A gratuidade no dom deve ser a marca do nosso comportamento em relação a todos os nossos irmãos. De graça o recebeste, dai-o de graça. Mt 10,8 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 35.37-39 São Paulo, o grande apóstolo dos gentios, não foi o defensor de uma doutrina, de uma nova religião, Paulo foi um seguidor apaixonado de alguém, de uma pessoa em particular, de Jesus Cristo, filho de Deus e de Maria. Isso porque ele não via em Jesus um pregador, mas o próprio Filho de Deus que se entregou a nós para a nossa salvação. Ele se tornara, após a sua iluminação no caminho de Damasco, um amigo pessoal de Jesus, de quem nada nem ninguém poderia separá-lo. O seu amor por Jesus não tinha limites. O Cântico dos Cânticos, grande poema do amor conjugal, dizia que o amor entre os amantes era tão forte quanto a morte. Paulo na segunda leitura de hoje, prova que o verdadeiro amor é mais forte do que a morte. Foi o que o Divino mestre lhe ensinara, no alto da cruz. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 14, 13-12 Jesus, como haviam previsto os profetas do Antigo Testamento, operou muitos milagres, não para exibir poder, mas para ensinar. E o que aprendemos com a multiplicação dos pães? Primeiro de tudo que Jesus era o Messias, o verdadeiro Moisés que não libertaria apenas o povo escolhido da escravidão do Egito, mas todos os povos de todas as escravidões. Se Moisés conseguira para o seu povo faminto o maná de cada dia, Jesus se faria, sob as espécies do pão e do vinho, o alimento de cada um de nós. 155 Jesus se oferece na celebração eucarística como pão vivo descido do céu, que nos sustenta com a sua graça. A mesa do pão eucarístico deve estar em continuidade com a mesa do pão nosso de cada dia, não só com a nossa mesa familiar, mas também com a mesa dos pobres a que a nossa comunidade se propôs a servir. 156 19º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O primeiro livro dos Reis e o evangelho de Mateus falamnos respectivamente de Javé e de Jesus, filho de Deus e de Maria. É uma oportunidade imperdível para uma reflexão profunda sobre o mistério de Deus. O grande teólogo uruguaiano Juan Luis Segundo costumava dizer que o ateísmo não era um problema para a América Latina, já que a quase totalidade dos nossos irmãos acreditava em Deus. O problema nosso estava em saber quem é o Deus que adoramos. Sob o mesmo nome de Deus escondem-se muitos deuses, semideuses, ídolos, fantasias que reciprocamente se negam, quando não estão em guerra uns com os outros. Deus, em quem reconhecemos hoje o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, é o grande protagonista da História da salvação narrada no Antigo e no Novo Testamento. Todos os domingos, tentamos aprofundá-la para fazer nossa a experiência que ela nos transmite. 2. Primeiro Livro dos Reis 19, 9 a.11-13a Os grandes profetas do A.T., além de profetas que falavam ao povo em nome de Deus, eram também grandes pregadores e grandes místicos, ou seja, homens que tinham uma grande experiência de Deus, isto é, gozavam da intimidade de Deus e por isso sabiam falar de Deus, com palavras ou com a vida. Elias, o profeta por excelência, fala-nos de Deus no episódio de hoje, 157 com grande profundidade. Nós sabemos pelo primeiro livro dos Reis que o profeta Elias teve uma vida agitada. Desafiou reis e rainhas, combateu com armas na mão os profetas de Baal, foi ameaçado de morte e fugiu para o deserto, passou fome e cansaço até pedir a Javé que o deixasse morrer em paz. Elias chegou a pensar que Deus era uma força tão poderosa como o vento impetuoso que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos. Chegou mesmo a pensar que era tão temível como um terremoto ou tão ardente e incinerador como o fogo, mas no entardecer da sua vida percebeu que Deus não era nada disso, ao contrário, o verdadeiro Deus se revelava no murmúrio de uma leve brisa. Nós sabemos que o Horeb, o outro nome do Sinai, onde estava Elias, foi onde Javé se revelou a Moisés na sarça ardente como AQUELE QUE É, não para si, mas para as suas criaturas e, de modo particular, para os seus filhos humanos. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 14, 22-33 O que o evangelho de hoje nos ensina sobre o nosso Deus? Nós sabemos que os discípulos de Jesus foram recrutados entre os pescadores do Mar da Galileia. A travessia do mar era, pois, a rotina desses humildes pescadores; era a vida deles. As ondas agitadas simbolizam os desafios que nós, os humanos, somos chamados a enfrentar ao longo da nossa existência. De um lado, estamos sós e cabe a nós conduzir nosso barco com competência. De outro lado, não estamos sós, porque podemos contar com a solidariedade do nosso Deus que não nos abandona. Isso não significa que seremos preservados da morte, significa, sim, que 158 a morte não é definitiva, mas será seguida de uma vida eterna. O Deus de Jesus Cristo, que nos acompanha em nossa travessia terrestre, está fora do tempo e do espaço e jamais nos abandonará, porque seu amor é mais forte do que a morte. A barca de Pedro é tradicionalmente vista como uma imagem da Igreja. Pode também ser vista como a nossa comunidade eclesial, que se reúne aos domingos para ouvir a Palavra e partir o Pão. Pode também ser vista como a nossa família, a nossa pequena Igreja doméstica. Assim como Jesus não abandonou a barca dos seus discípulos, também não abandonará a nossa. Verdadeiramente nosso Deus é assim! Por que haveríamos de ser fracos na fé e duvidar? Meus caros irmãos e irmãs, o nosso Deus não é uma ideia, é Alguém que está no nosso barco e nos protege dos ventos e das tempestades. Se nos perguntarem quem é o nosso Deus, podemos responder: o nosso Deus é como Jesus! 159 Assunção de Nossa Senhora 1. Introdução Estamos celebrando, neste domingo, o mais próximo do dia 15 deste mês, a festa da Assunção de Maria aos céus, em corpo e alma. As sagradas escrituras e mesmo os evangelhos canônicos nada falam sobre tal acontecimento, mas a nossa Igreja, escutando as tradições mais antigas, fez da Assunção de Maria um dogma de fé, ou seja, a Igreja acredita que Maria, a mãe de Jesus, ao despedir-se da vida terrena, foi assumida pelo Pai e levada aos céus onde estará para sempre ao lado do Seu Filho Jesus. Em nossa condição terrena não podemos explicar ou imaginar como, fora do tempo e do espaço, possa subsistir um corpo material, mas a declaração oficial e formal da Igreja nos dá a certeza de que a mesma Maria que concebeu em seu seio a Jesus e o acompanhou até Sua morte na cruz estará ao Seu lado para toda a eternidade. 2. Livro do Apocalipse de São João 11, 19a; 12.1.3-6a O belo cenário desta primeira leitura se desdobra aos nossos olhos dentro de um contexto apocalíptico, ou seja, um contexto de julgamento em que se defrontam o bem e o mal. O bem é representado por uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas. O mal é representado por um grande dragão cor de fogo. Esse dragão representa o demônio e os seus sequazes. A mulher vestida de sol 161 é muitas vezes comparada à Igreja, mãe dos homens, e também, obviamente, a Maria, aquela que deu à luz o Filho do Homem que veio para governar o céu e a terra. No dia da sua assunção ao céu, é natural que vejamos Maria na mulher vestida de sol. Nos céus, ambos presentes em Corpo e Alma diante do Pai, Jesus e Maria são as primícias do gênero humano, os primeiros humanos, de uma fila infindável, a gozarem a felicidade eterna. “Agora realizou-se a salvação, a força e a realeza de nosso Deus e o poder do Seu Cristo”. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 15, 20-27a A fé católica na assunção de Maria tem como fundamento a ressurreição de Jesus. Aquela seria impossível sem essa. É por isso que Paulo insiste que Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram e, poderíamos acrescentar, dos que hão de morrer até o fim dos tempos. A importância da assunção de Maria vem do fato de que ela materializa a nossa esperança fundamental de que a nossa aventura humana não é uma aventura medíocre, mas se completará na felicidade plena e eterna. Essa mesma esperança na vitória final, dada como certa, desde já, nos faz felizes. A certeza da vitória final ameniza o amargor das pequenas derrotas parciais que não raro atropelam nosso dia a dia. “Como Adão, todos morreram, assim também em Cristo todos reviverão.” 162 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 39-51 Ao comentarmos o evangelho da missa de hoje sobre a visitação de Maria à sua prima Santa Isabel, devemos perguntarnos: qual é o nexo entre a festa da Assunção de Maria e a sua visitação a Isabel? Nós nos lembramos de que por ocasião da Anunciação do Anjo a Maria de que ela fora escolhida para ser a mãe de Jesus, Maria acaba por responder: eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a Vossa Palavra! Essa serva do Senhor, Maria, deslocara-se da Galileia para a Judeia para ajudar a sua prima, já entrada em anos, nos trabalhos do parto. Agora, subindo aos céus, não estaria Maria em busca de um lugar mais adequado, aos pés do Senhor, para ajudar a cada um de nós? De fato, Maria assunta aos céus é a nossa grande intercessora junto ao Pai, já que o Pai nada lhe nega, como a própria Maria, em outras palavras, diz no seu canto: “A minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade da Sua serva.” 163 21º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução É fácil perceber o paralelismo entre a primeira leitura, tirada do profeta Isaías, e o evangelho de Mateus. Na primeira leitura, trata-se da eventual destituição de Sobna, administrador do Templo, mas administrador relapso, e no evangelho vemos a antecipação do primado de Pedro sobre a comunidade dos discípulos de Jesus, que é a Igreja. Tanto Sobna, como Pedro lembram-nos um filme famoso de meados do século passado chamado “Deus precisa dos homens”. De fato nós, os humanos, não somos fantoches nas mãos de Deus, mas como diz São Paulo em alguma parte, somos seus colaboradores e seus embaixadores. Deus conta conosco e de alguma maneira coloca-se em nossas mãos. Jesus confiou no seu discípulo Judas Iscariotes e foi traído por ele com um beijo no rosto. Jesus confiou em Pedro que, depois de tergiversar, defendeu-o até a morte. Trata-se para cada um de nós hoje de darmos conta da nossa missão para a instauração do Reino de Deus no nosso entorno. Em que é que Deus está precisando de nós? 2. Livro do Profeta Isaías 22, 19-23 A história real de Sobna, o administrador do Palácio e do seu substituto Elacim, não é fácil de esclarecer, mas o alcance profético das palavras de Isaías parece claro. Eliacim prefigura o Messias que haveria de restaurar um passado de ruínas: “Eu 164 o farei levar aos ombros a chave da casa de Davi, ele abrirá e ninguém poderá fechar, ele fechará e ninguém poderá abrir.” O poder das chaves, Deus o entregará nos tempos messiânicos ao seu ungido, o Messias. Mas nós sabemos que a História dos homens não terminou com a vinda do Messias. Ele deu um salto qualitativo enorme, mas não acabou. Ao contrário, com Jesus começou uma nova fase da História, a fase da construção definitiva do Reino de Deus. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16, 13-20 A entrada de Jesus com os seus discípulos em Cesareia de Filipe marcou uma virada na vida apostólica de Jesus. Foi nessas alturas que Jesus percebeu com clareza a hostilidade dos sumos sacerdotes, dos fariseus e dos poderosos contra si. Diante disso, Jesus quis prevenir os seus discípulos sobre os riscos que também eles corriam. Será que os discípulos sabiam bem quem era Ele? Jesus se sente encorajado com a resposta de Pedro e lhe promete as chaves do Reino de Deus como Javé outrora havia prometido a Eliacim as chaves da casa de Davi: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra, será desligado nos céus.” Essa promessa de Jesus, feita a Pedro, vale até hoje para os seus sucessores, sobre cujos ombros pende a continuidade da Igreja. Mais uma vez, Deus precisa dos homens. 165 4. Carta de São Paulo aos Romanos 11, 33-36 Hoje estamos diante de um Paulo com o qual não estamos acostumados. Habituamo-nos a vê-lo no Areópago de Atenas, nas praças de Éfeso ou Corinto, anunciando Jesus Cristo ressuscitado; rebatendo os seus detratores, discutindo com Pedro em Antioquia, singrando os mares, surrado e batido pelos seus inimigos. Hoje estamos diante de um Paulo místico em profunda oração, tentando descobrir, ainda que apenas um pouco, o grande e inescrutável mistério de Deus. Quem é Ele? “Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos. De fato quem conheceu o pensamento do Senhor?” Por mais que Paulo indague, jamais encontrará uma resposta cabal porque o Amor de Deus é infinito e Ele nos surpreende a cada dia com a abundância infinita dos seus dons. O Deus com quem encontramos hoje será sempre maior do que encontramos ontem! 166 22º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução É próprio da condição humana viver em comunidade desde a familiar até a internacional, passando pelas intermediárias, como a urbana e a comunidade nacional. Essas comunidades, para funcionar, exigem lideranças que se exercem como exercício de poder ou como prestação de serviço. Certa vez, Jesus, quando fazia a sua viagem histórica da Galileia para a Judeia, perguntou aos discípulos o que é que eles estavam discutindo no caminho. Eles responderam dizendo que discutiam sobre quem deles seria o maior. Jesus os repreendeu dizendo que, contrariamente ao que acontece entre as nações, onde os seus chefes se valem do seu poder para oprimirem os pequenos, no Reino de Deus quem quiser ser o maior que seja o menor de todos. 2. Livro do Profeta Jeremias 20, 7-9 Jeremias, como profeta, um dos maiores de Israel, foi vocacionado por Deus para falar ao povo em Seu nome. E ele falou não só ao povo, mas também aos seus chefes, os governantes. E o que ele disse, em nome de Deus, não agradou nem ao povo, nem aos governantes, porque se desviavam do culto ao verdadeiro Deus e oprimiam os pobres e os pequeninos. Jeremias sentiu na pele tanto a tortura física como a prisão. A tradição nos diz que Jeremias foi, ao morrer, serrado ao meio. A leitura de hoje nos revela Jeremias no auge da desolação e do abando167 no: “Tornei-me alvo da irrisão o dia inteiro, todos zombam de mim!” Como não lembrar, diante do lamento de Jeremias, o grito de Jesus no alto da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Abandonados no tempo da provação, não seriam tragados por ela pela ajuda da mão de Deus. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16, 21-27 O evangelho de hoje é a continuação do evangelho de domingo passado, que incluía a entusiástica declaração de fé de Pedro sobre a divindade de Jesus. “Tu és o Messias, o filho do Deus vivo”. Apenas alguns versículos depois, aquele mesmo que prometera a Pedro as chaves do Reino dos céus, afasta-o de si, dizendo: “Vai para longe de mim Satanás!” Pedro, em vez de estimular Jesus a cumprir a sua missão de fazer chegar o Reino de Deus, procurava demovê-lo disso. De uma pregação que poderia soar como perigosa aos ouvidos dos sumos sacerdotes, de Pilatos e dos fariseus, Pedro aconselhava Jesus a se omitir! Pedro queria preservar a sua vida a qualquer preço, por isso estava destinado a perdê-la, porque, como diz Jesus: “Pois quem quiser salvar a própria vida vai perdê-la e quem perder a sua vida por causa de mim vai salvá-la.” Esse paradoxo não parece difícil de ser entendido dentro da lógica de Jesus. 168 4. Carta de São Paulo aos Romanos 12, 1-2 Os dois versículos desta segunda leitura nos ajudam a entender o significado da nossa vida, que não é apenas o desempenho dos nossos orgãos, mas é um dom de Deus que a Ele devemos devolver. Para fazê-lo devemos colocar-nos em sintonia com o projeto que Deus tem para nós. Para isso, Paulo nos sugere: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar para que possais distinguir o que é da vontade de Deus.” Todas as leituras de hoje chamam-nos ao aprofundamento do sentido da nossa vida. Isaías nos ensina a confiar em Deus apesar do nosso desespero; Mateus nos sugere o seguimento de Jesus e Paulo nos sugere distinguir o que é do que não é a vontade de Deus. 169 23º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Em outras homilias, já mencionei como Santo Agostinho iniciou o seu grande livro A cidade de Deus, ao escrever com suas palavras, que dois amores construíram duas cidades. O amor de si construiu a cidade dos homens em que impera o egoísmo e o amor ao próximo construiu a cidade de Deus em que impera a solidariedade. Todas as leituras de hoje abordam o mesmo tema. Jesus, que tinha como alvo principal de sua pregação a chegada do Reino de Deus, não fazia outra coisa. Em meio ao caos político, social e econômico em que vivia o Seu tempo e os desvios religiosos na Palestina, Jesus pregava um mundo novo em que a solidariedade prevalecesse sobre o egoísmo e a correção fraterna sobre a condenação do irmão. 2. Livro do Profeta Ezequiel 33, 7-9 O profetismo era uma tradição religiosa de todo o Oriente Médio nos templos bíblicos, mas ele alcançou um padrão de excelência na tradição de Israel. Cabia ao profeta falar e agir em nome de Deus para despertar o povo de seu sono e para construir a paz e não a guerra. O profeta era como a sentinela ou o vigia do povo em nome de Deus para resguardá-lo ou dos inimigos ou de si mesmo. Era próprio do profeta advertir o povo a respeito da sua irregular conduta e cabia ao povo atender às advertências dos 170 profetas. Essa dupla responsabilidade, a do profeta, de anunciar, e do advertido, de mudar de conduta, continua válida até hoje em nossas comunidades e nos diz respeito a cada um de nós que ora somos chamados a escutar atentamente as suas advertência e pô-las em prática. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 13, 8-10 São Paulo, nessas poucas linhas da sua carta aos romanos, nos permitem fazer uma síntese luminosa do Antigo e do Novo Testamento. O ícone do A.T. é o decálogo ou os dez mandamentos da lei de Deus, que resumiam as obrigações que todo o israelita devia cumprir desde a sua juventude até sua morte. Paulo acolhia os dez mandamentos e nem podia deixar de fazê-lo, porque todos eles são vitais para qualquer sociedade que acredita em Deus, mas propunha uma outra maneira de vivê-los. Não mais como uma série de obrigações de fazer ou não fazer tais ou quais coisas, mas como um modo de vivê-los todos como uma expressão do amor de Deus e ao próximo: “Irmãos não fiqueis devendo nada a ninguém, a não ser o amor” mútuo, porque quem ama o próximo está cumprindo as leis. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 18, 15-20 Nós sabemos hoje que os evangelistas escreveram os seus evangelhos aplicando os ensinamentos de Jesus aos cristãos das suas comunidades. A comunidade de Mateus, como todas as comunidades, não era perfeita e ele a ensinava a lidar com seus 171 problemas. Numa primeira instância, os irmãos deviam ser advertidos pessoalmente. Numa segunda instância o seriam por duas testemunhas. Numa terceira instância, seriam julgados por um tribunal e excluídos da comunidade enquanto permanecessem no erro. Qual é a relevância para nós hoje dessas normas disciplinares? Poderíamos dizer que até hoje a correção fraterna ainda é um dever para todos nós. Não podemos ser como Caim, que se julgava desobrigado a cuidar do seu irmão: “O Senhor disse a Caim: Onde está o seu irmão Abel? Ele respondeu: Não sei. Sou eu o guarda do meu irmão?” 172 25º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O versículo oitavo do capítulo 55 do livro do Profeta Isaías, que lemos na primeira leitura da liturgia de hoje, serve de porta de entrada para a nossa homilia de hoje. É este o versículo: “Os meus pensamentos (os de Deus) não são como os vossos pensamentos (os dos homens) e os meus caminhos não são os vossos caminhos.” Ao contemplarmos os atos de Deus ao longo da nossa vida, os atos de Deus ao longo da História da Salvação e os de Jesus ao longo da sua vida, percebemos que eles se fundam numa lógica diferente da lógica dos homens. Enquanto nos atos humanos a lógica que os motiva é quase sempre consciente ou inconscientemente egoísta e não raro mesquinha, a lógica de Deus é ampla e generosa. Como diz Mateus no seu evangelho, Deus, porque é bom, faz chover e deixa o sol brilhar sobre justos e pecadores. 2. Livro do Profeta Isaías 55, 6-9 O profeta Isaías, como sempre, dirige-se ao povo de Deus que se encontra na aflição, longe da sua terra, no exílio da Babilônia. Foi seguindo os seus julgamentos mesquinhos que o povo, escolhido para dar testemunho do verdadeiro Deus, preferiu cultivar os ídolos, e chamado para viver no direito e na justiça, oprimiu o pobre e a viúva. Seguindo a lógica dos homens, deixaram-se enganar pelos seus desejos egoístas e enredar-se nos seus próprios passos. Os tempos do profeta Isaías não são muito 173 diferentes dos tempos de hoje chamados de pós-modernos. A principal característica da lógica da pós-modernidade é o desprezo pelo permanente e a adoração do provisório. A principal consequência disso é o caos que se instala nas famílias, que só podem subsistir quando as oscilações do momento não se sobrepõem aos valores permanentes. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 20, 1-16 O evangelho de hoje é surpreendente, muitas vezes não chega a ser entendido e pode até provocar escândalo: então não é uma injustiça pagar o mesmo salário para quem trabalhou de sol a sol e para quem trabalhou apenas uma hora e quando o sol já declinava e perdia o seu ardor? Com certeza, se nos basearmos apenas na lógica dos homens, o patrão que saiu a contratar operários para a vinha foi injusto. Mas a lógica do Senhor vai mais longe que a aritmética das horas. Mateus aplicou o ensinamento de Jesus à sua comunidade, onde conviviam cristãos vindos do judaísmo e cristãos vindos do paganismo. Nessa comunidade, havia brigas entre esses dois grupos. Os que vinham do judaísmo se julgavam melhores e mais dignos de atenção do que os que vinham do paganismo, já que tinham chegado muito antes e eram filhos de Abraão. Eles não tinham ainda aprendido que no Reino de Deus os últimos são os primeiros. 174 4. Carta de São Paulo aos Filipenses 1, 20c-24.27a Paulo, aos escrever à sua comunidade de Filipos, não estava mais dividido entre a lógica dos homens e a lógica de Deus. Já renunciara, desde a sua fulgurante conversão, à lógica dos homens. Encontrava-se agora diante de um novo dilema: estar já com Deus, por quem tanto ansiava, ou continuar na terra por mais tempo, enquanto a Deus prouvesse, a evangelizar as suas queridas comunidades? Paulo optou por continuar na terra, porque para o discípulo de Jesus é sempre mais importante servir do que ser servido! 175 26º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Em decorrência da própria natureza de nosso Deus e criador, que é amor, conforme revelação do Seu filho Jesus, e da nossa condição de seres gregários, de vocação comunitária, somos chamados a conviver no amor. Um amor na linha vertical, que eleva cada um de nós a Deus e um amor na linha horizontal, que nos une aos nossos irmãos. Essas linhas se cruzam e formam simbolicamente uma cruz, símbolo de verdade, de perdão, de dom de si mesmo, o amor autenticamente evangélico. Esse amor para ser verdadeiro tem que passar por uma prova de fogo, como o ouro para ser puro tem que passar pelo crisol. As leituras de hoje, cada uma à sua maneira, nos ensinarão como devemos viver o nosso amor comunitário. 2. Livro do Profeta Ezequiel 18, 25-28 Eis um trecho clássico do profeta Ezequiel sobre o perdão, sem o qual nenhuma comunidade ou família humana pode viver no amor e na harmonia. A razão é simples. O pecado instalou no fundo do nosso coração uma condição: queremos ser felizes em nossas famílias e em nossas comunidades mais amplas, mas, ao mesmo tempo, muitas vezes, postergamos os nossos irmãos em nosso proveito pessoal e comprometemos a felicidade do grupo. Ora somos nós os protagonistas do erro, ora são os nossos irmãos ou companheiros. Se não houver perdão recíproco, nunca haverá lugar para a paz. Por outro lado, se não houver 176 arrependimento por parte do culposo, não poderá haver perdão por parte do ofendido. Lembremo-nos sempre, porém, que o Deus da misericórdia é a fonte de todo perdão e de todo arrependimento. 3. Carta de São Paulo aos Filipenses 2, 1-11 Paulo, neste parágrafo da sua epístola à comunidade de Filipos, dirige-se à comunidade como um todo, estimulando-a à vida fraterna, como a expressão mais alta da comunhão no Espírito. Vemos pela densidade teológica da exortação de Paulo que ele não falava como um psicólogo social que pretendesse resolver alguns problemas superficiais, mas falava como um apóstolo do evangelho do amor: sem o amor mútuo, a vida cristã seria vã. Trata-se de alimentar na comunidade os mesmos sentimentos de Jesus. “Nada façais por competição ou vanglória, mas com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro” 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 21, 28-32 Jesus no evangelho de hoje dirige-se aos sacerdotes e aos anciãos do povo, ou seja, aos principais líderes religiosos que mais lhe faziam oposição. O que caracterizava esses líderes em suas pregações não era a verdadeira coerência entre a fé e a vida, mas as vantagens de prestígio social que dela retiravam. Eles apenas falavam, mas não faziam; não seguiram nem ao Batista nem a Jesus, não porque fossem falsos profetas, mas porque a eles não interessavam. A eles, Jesus os condena, porque falavam e não 177 faziam. Em contrapartida, Jesus elogia os cobradores de impostos, tão odiados, e as prostitutas, tão desprezadas, porque eles e elas não falavam, mas faziam. Retomando o início da nossa homilia, podemos concluir dizendo que comunidade nenhuma prospera se falar muito e fizer pouco. 178 27º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Israel era um povo de pastores e de agricultores e habitava uma terra em que manava o leite e o mel. As duas grandes culturas eram o trigo e a vinha e esses dois produtos assumiram a condição de símbolos da terra. Israel desde muitos séculos antes de Jesus já era chamado de vinha do Senhor. Foi assim que o profeta Isaías cantou o seu país, como um grande poeta canta o seu país, ou como um grande amante canta a sua amada. Esse frêmito poético de Isaías não era gratuito, ele exprimia a qualidade religiosa da sua experiência interior: “vou cantar para o meu amado o cântico da vinha que um amigo meu plantou.” Oito séculos mais tarde, Jesus, batendo na mesma tecla, dizia: “Eu sou a verdadeira vinha e vós os meus ramos”. 2. Livro do Profeta Isaías 5, 1-7 Chegados do Egito à Terra Prometida, após uma árdua peregrinação de quarenta anos através de um áspero deserto, os filhos de Israel adentraram a terra onde corria o leite e o mel. Durante duzentos anos, sob o cuidado dos juízes, cultivaram essa terra e transformaram as suas colinas em vinhedos, os seus vales em trigais e as suas planícies em pastagem. Era como se estivessem reconstruindo o Paraíso perdido, de onde foram expulsos os nossos pais. Após o século dourado de Davi e Salomão, Judá no sul e Israel no norte, se cansaram de guardar a sua vinha e deixaram de podar as suas videiras. As uvas, que eram 179 doces, se fizeram azedas. Essa vinha era a casa de Israel que, distraída da sua verdadeira vocação de povo testemunho, foi arrombada sucessivamente por assírios, sírios, babilônios, persas, gregos e romanos. Não custa perguntar-nos: e a nossa vinha – de que nos coube cuidar a nossa família, a nossa comunidade, a nossa cidade, o nosso país –, está produzindo uvas doces e saborosas, ou apenas labruscas? 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 21, 33-43 A parábola dos maus vinhateiros é transparente e quase não carece de explicação. O dono da vinha é o Pai Celeste que a construiu com todo o carinho; os maus vinhateiros são o povo de Israel; os emissários enviados para receberem os frutos eram os profetas e o filho do proprietário que fora enviado, em último caso, é o próprio Jesus. O evangelista Marcos, ao contar a mesma parábola, acrescenta que os sumos sacerdotes e os anciãos do povo entenderam perfeitamente o alcance da parábola e vestiram a carapuça, mas ao invés de se converterem, queriam prender Jesus, mas não o faziam por medo do povo. Importante para a comunidade de Mateus, que era constituída de cristãos vindos do judaísmo e do paganismo, era o fato de que perante Deus o que vale é a fidelidade e não os privilégios. 180 4. Carta de São Paulo aos Filipenses 4, 6-9 O que Paulo diz aos filipenses vale perfeitamente para todos nós hoje. Como os filipenses, que se inquietavam em virtude das vicissitudes da vida, problemas econômicos ou profissionais, problemas de harmonia conjugal, enfermidades ou qualquer outro tipo de problemas também todos nós nos inquietamos com os mesmos problemas. Isso é parte da vida e não há como evitá-lo, mas Deus não nos abandona, ao contrário, mantém-se ao nosso lado se nós nos mantivermos ao seu lado, através da oração e da ação de graças: “apresentai as vossas necessidades a Deus em orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças. Assim o Deus da paz estará convosco.” 181 Nossa Senhora Aparecida 1. Introdução O dia do Senhor, domingo, é um dia muito apropriado para celebrar a festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do nosso país, nesta data que é também o Dia da Criança. Motivos de sobra para dar graças a Deus, que olha com benignidade para todos nós. Maria, a mãe de Jesus, apareceu entre nós como uma imagem de barro, já enegrecida pela lama, pela água e pelo tempo. Ela foi içada do fundo do rio pelas mãos de modestos pescadores em tudo semelhantes aos discípulos de Jesus que pescavam no mar da Galileia. Como a amada do Cântco dos Cânticos, a nossa padroeira poderia dizer “Nigra sum sed formosa”, (Sou negra, mas formosa). Maria, aparecida entre nós, quis identificar-se com as mulheres mais humildes de nosso país e por isso se fez negra. Devemos ver neste detalhe um ato de amor de Maria e um estímulo para o congraçamento de todas as raças no nosso país. 2. Livro de Ester 5, 1b-2; 7, 2b-3 O livro de Ester é uma narrativa de ficção, que se passa no Reino da Pérsia, onde viviam muitos judeus forçados a deixarem o seu país pelos reveses das guerras em que foram perdedores. Essa minoria de imigrantes, como costuma acontecer, não era só explorada pelos dominadores, mas também ameaçada de genocídio. Diante dessa situação ameaçadora, Ester é convocada pelo seu povo a usar o seu poder de sedução para demover o rei 183 dos seus projetos cruéis. Esta, correndo todos os riscos, aceita a tarefa de comparecer perante o rei. A história bíblica está cheia de grandes mulheres, como Débora, Ana, Judite e outras que se destacaram pelo seu heroísmo e que, de alguma maneira, anteciparam Maria, a mãe do Senhor, que seguiu o seu filho Jesus até o Calvário, acompanhada pelo apóstolo João e as santas mulheres. 3. Livro do Apocalipse de São João 12, 1-5, 13a, 15-16 Como na festa de Assunção de Nossa Senhora aos céus, no último dia 15 de agosto, lemos hoje a cena apocalíptica em que “Apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas.” Podemos associar, por contraste, essa luminosa aparição dessa mulher vestida de sol com a modesta aparição de Nossa Senhora nas redes dos pescadores do Rio Paraíba. A camada de lama que recobria a imagem de Nossa Senhora era como um véu de humildade que assemelhava a Virgem Gloriosa às mulheres mais simples do país em que ela aparecia. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 2, 1-11 O evangelista João, ao terminar a narrativa das bodas de Caná, diz que ela “foi o início dos sinais de Jesus”, ou seja, o primeiro dos seus milagres. Mas, podemos dizer, mais do que um milagre, as bodas de Caná, com a transformação da água em vinho, foi uma parábola da transformação da Antiga na Nova 184 Aliança contraída com Deus em Jesus Cristo. O decálogo, o Código da Aliança de Javé com Israel, deformado pela ideologia farisaica em mais de 600 prescrições, foi transformado em um só mandamento, nas palavras de Jesus: “Amai a Deus e ao próximo como eu vos amei.” Moisés, o libertador de Israel da escravidão do Egito, foi subsituído pelo verdadeiro Moisés, libertador de todos os povos de todas as ecravidões. Maria, ao dizer aos que estavam servindo: “Fazei o que ele, Jesus, vos disser”, antecipava o seu papel na Igreja: levar-nos ao seu filho Jesus. È o que Maria continua a dizer-nos do alto do Santuário de Aparecida: “Fazei o que Ele vos disser.” 185 29º Domingo do Tempo Comum: Dia das Missões 1. Introdução Sendo hoje o dia das Missões, vamos refletir sobre a nossa vocação missionária. Ela tem início no dia da Ascensão do Senhor, quando Jesus, antes de subir aos céus, dizia aos seus discípulos: “Ide fazer discípulos entre todos os povos, batizai-os, consagrandoos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.” A missão de Jesus já estava cumprida. Iniciava-se, então, a missão da Igreja, dos discípulos de Jesus, isto é, a nossa missão. Evangelizar, proclamar a chegada do Reino de Deus é a tarefa dos discípulos de Jesus, que se renova a cada geração em seus respectivos contextos sociais. O nosso contexto é o nosso bairro, a nossa paróquia, no nosso caso, as colinas de São Francisco e as suas áreas de influência. Nós devemos a essa comunidade a mensagem sempre nova do evangelho de Jesus Cristo: “o Reino de Deus está próximo, convertei-vos e crede no evangelho”. 2. Livro do Profeta Isaías 45,1.4-6 No dia das missões, é sugestivo notar que, pela primeira vez, nas Escrituras, Javé considera seu ungido, como se fora um rei da dinastia davídica, a um rei pagão, no caso, Ciro - rei da Pérsia, então potencia hegemônica no Oriente Médio. Isso 186 significa que o amor de Deus é mais amplo que os limites geográficos de um país e que os limites doutrinários de uma religião. Essa constatação é o princípio básico de qualquer ação missionária. Esta baseia-se no diálogo que, conforme nos ensina o Concílio Vaticano II, já é, em si mesmo, evangelização, porque o verdadeiro diálogo sempre nos aproxima mais da verdade; Jesus, como nos diz o evangelista João, além de caminho e vida é, também, verdade. 3. Primeira Carta de São Paulo aos alassonicenses 1, 1-5b Ao lermos a segunda parte da liturgia de hoje, é bom lembrar que estamos, hoje, diante do primeiro texto do Novo Testamento, redigido por Paulo em 51 d.C., menos de vinte anos depois da ressurreição do Senhor. Nesse curto espaço de tempo o missionário de Paulo já havia cruzado o Mediterrâneo e, mais do que isso, vencido as barreiras culturais do mundo grego e pagão. A comunidade de Tessalônica já era uma comunidade madura e merecia os elogios de Paulo: “Diante de Deus nosso Pai, recordamos sem cessar a atuação de vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo.” Em outras palavras e, com detalhes, Paulo está exaltando a ação missionária da comunidade Tessalônica. Mais do que tudo, a força dessa comunidade residia mais no Espírito do que nas palavras. 187 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 22, 15-21 Quando se deu o episódio de hoje, narrado por Mateus, Jesus já estava no fim da ação evangelizadora, já havia, inclusive, expulso os vendilhões do Templo e, dentro de poucos dias, seria preso, julgado, flagelado, crucificado, morto e sepultado. Por tudo isso, era apenas aparente a cordialidade com que foi abordado por fariseus e herodianos. Tudo não passava de uma estratégia para melhor comprometer Jesus aos olhos do poder romano e do poder sacerdotal e farisaico: não pagar imposto a César era comprometer-se contra o poder imperial; pagar imposto a César era comprometer-se contra o Templo e os poderosos que viviam à sua sombra e, por outro lado, também contra o povo, sangrado pelos impostos imperiais. À astúcia dos adversários, Jesus responde também com astúcia: valendo-se da efígie do Imperador nas moedas do tributo, Jesus sugere, não que se pague ao Imperador o tributo, mas que se lhe devolva o que era dele, e a Deus, se dê o que é de Deus. 188 30º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje nos dão uma oportunidade única para refletirmos juntos sobre a natureza da religiosidade bíblica, desde o Antigo Testamento e, em seguida, confirmada por Jesus na sua pregação do reino de Deus. O Deus da Bíblia, criador do céu e da terra e de todos os seres que a habitavam, inclusive e principalmente do homem e da mulher não é apenas o Ser Transcendente, mas, muito mais do que isso, é um Ser amorosamente solidário como um artista que se enche de alegria ao contemplar sua obra e como um Pai, ao cuidar carinhosamente dos seus filhos e, se for o caso, dar-lhes a vida. Em outras palavras, o nosso Deus não é um Deus distante, mas está sempre ao nosso lado e tem tudo a ver conosco. 2. Livro do Êxodo 22, 20-26 Na História de Israel, entre os mais envolvidos estavam os estrangeiros, os órfãos e as viúvas. Em outras listas acrescentam-se as crianças. Os estrangeiros, porque tendiam ser discriminados, exatamente como foram no Egito os filhos de Israel. Os órfãos, por razões óbvias, já que eram considerados órfãos não todos os que perderam os seus pais, mas os que, tendo perdido os seus pais, não herdaram nada. Entre os mais desvalidos, estavam também os endividados que, segundo os costumes, estavam à mercê dos credores. As crianças entravam no rol dos infelizes, porque estavam sujeitas ao pátrio poder que estava acima da 189 vida e da morte. Esses infelizes eram a pupila dos olhos de Javé, que a ninguém considerava como seu, se estivesse contra eles. “Se o estrangeiro, a viúva, o endividado, a criança clamarem contra mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso”. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 22, 34-40 Ao armarem mais uma cilada contra Jesus, pedindo-lhe que resolvesse, de repente, uma questão debatidíssima àquele tempo, os seus inimigos deram a oportunidade a Jesus de resumir em poucas palavras toda a Lei e os Profetas, ou seja, todas as Escrituras. Entre fariseus, saduceus e doutores da lei, discutiase muito qual era o maior e o mais importante entre os mandamentos. Os mandamentos, que eram dez, transformaram-se em 613 preceitos, ou seja, 365 proibições e 248 mandamentos, dentro da tradição dos antigos. Essa exuberância de regras já demonstrava que os doutores da lei, no templo de Jesus, haviam perdido o rumo. Jesus, pelo conhecimento que tinha não só da Lei, mas também dos profetas, e pela sua experiência de vida entre os pobres, os enfermos, as crianças, em perene diálogo com o Pai pelo Espírito, sabia que o mais importante era em primeiro lugar amar a Deus e que o segundo mandamento era igual ao primeiro: amar ao próximo como a si mesmo. No evangelho de João, o segundo mandamento aparece um pouco diferente: amai ao próximo como eu (Jesus) vos amei. 190 4. Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, 1, 5c-10 Continuamos hoje a introdução à carta de Paulo à comunidade de Tessalônica, iniciada domingo passado. Tratava-se de uma comunidade de cristãos vindos diretamente do paganismo, portanto vieram de longe e assim mesmo, conduzidos pelo Espírito, deram um salto qualitativo enorme e já eram modelos para outras comunidades. O que pode ser importante para nós é que a comunidade de Tessalônica era exemplar e, por isso, missionária, como comunidade. 191 Celebração de Finados 1. Introdução É um costume muito antigo rezar aos mortos e pelos mortos. Data dos tempos bíblicos, à época dos Macabeus, III séc. a.C., quando se recomendava a oração pelos mortos, um sinal de que já se acreditava na sobrevida ou ressurreição dos mortos. O foco da Liturgia de hoje é rezar pelos fiéis defuntos que aguardam a sua purificação final para entrarem na glória celeste. O foco, porém, da piedade popular é rezar pelos falecidos em geral e, de modo particular, pelos mortos mais queridos, familiares, amigos e conhecidos. Essa oração é acompanhada da assistência à Missa e muitas vezes uma visita ao cemitério que neste dia se enche de gente e de flores. Faz bem à alma e aos corações rezar pelos avós ou mesmo pelos pais e irmãos falecidos, pois foi com eles que aprendemos a falar, a sorrir e a chorar. Eles nos habitam no fundo dos nossos corações. 2. Livro de Jó 1-23-27 Todos nós conhecemos a história de Jó. Um homem que, além de justo, perante Deus e os homens, era muito rico e feliz, isso consigo mesmo e em meio aos seus numerosos filhos e filhas. Javé, na sua sabedoria, resolveu provar-lhe a fidelidade e submeteu-o a grandes provações: perdeu as suas propriedades e as dos filhos, foi ferido por doença e abandonado por todos, só lhe restando um cão vagabundo que lhe lambia as feridas. Apesar de todas essas terríveis provações, Jó não se 193 desesperou e jamais renegou ao seu Deus. A sua fé na ressurreição lhe garantia que podia confiar no seu Redentor, a vida não terminaria com a sua morte inevitável e dizia: “Eu sei que o meu Redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó e, depois que tiverem destruído essa minha pele, na minha carne verei Deus.” Também nós que já passamos ou passaremos por momentos difíceis, devemos guardar sempre a fé de que o nosso Redentor está sempre vivo. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 5, 5-11 Assim como Jó confiava na fidelidade de seu Redentor, nome sob o qual se referia a Javé, Paulo punha a sua confiança em Jesus, filho de Deus e de Maria. Se Jesus se entregou à morte cruel e humilhante na cruz para nos salvar a nós, justos ou pecadores, Ele o fez para garantir a nossa salvação não só nesta vida, mas para sempre. “Quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com Ele pela morte do Seu Filho, quanto mais agora, estando reconciliados, seremos salvos por sua vida.” O mundo moderno tem cada vez mais dificuldades em acreditar na vida depois da morte. Pode até ter saudades dos seus mortos queridos, mas não ousam rezar por eles, porque os julgam mortos para sempre! Oxalá possamos neste dia dos mortos transmitir-lhes a fé na ressurreição. Nós choramos os nossos mortos, mas as nossas lágrimas são lágrimas de esperança. 194 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 6, 37-40 As palavras de Jesus, que estamos lendo na liturgia de hoje, Jesus as dirigiu às multidões que, após a multiplicação dos pães, vieram encontrá-lo em busca de mais pão! E Jesus tenta dizer às multidões que o que Ele veio trazer é muito mais que alguns pães de cevada e alguns peixes. Ele veio trazer-lhes a vida imorredoura, a vida eterna: “É esta a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas o ressuscite no último dia.” Por mais importantes que sejam o pão e os bens materiais, eles não são jamais comparáveis aos bens eternos. Por mais felizes que queiramos ser aqui na terra, na outra vida, junto com os nossos mortos queridos, é que seremos verdadeiramente felizes. 195 Dedicação da Basílica do Latrão 1. Introdução O evangelista João, no prólogo ao seu evangelho, cap. 1, vers. 14, nos diz o que, fiéis ao texto original, poderíamos traduzir: “o Verbo se fez carne e armou a sua tenda entre nós”, ou seja, se fez condômino do nosso condomínio, habitou entre nós. São Paulo nos diz a mesma coisa ao lembrar-nos que somos o Templo de Deus. Nós podemos dizer por associação que essa bela capela de São Francisco é um símbolo da nossa comunidade e que Deus a habita como habita na intimidade dos nossos corações. A Basílica do Latrão, cuja dedicação ao Senhor estamos celebrando hoje, é o símbolo de todas as Igrejas desde as mais humildes às mais famosas, porque são todas a casa que o Senhor ergueu entre os Seus filhos humanos. Se a Basílica de Latrão é o símbolo de todas as igrejas, cada Igreja ou Capela são símbolos das comunidades que as habitam. Igreja é uma palavra portuguesa derivada do latim ecclesia, que em grego queria dizer assembleia. Portanto, ao celebrar a dedicação da Basílica de Latrão, não estamos celebrando um edifício, mas todo o povo de Deus junto a quem o Senhor armou a sua tenda. 2. Livro do Profeta Ezequiel 47, 1-2-8-9-12 Para entender bem esta profecia de Ezequiel, devemos lembrar-nos de que ele fala num país semiárido, onde a água 196 é escassa. Não se trata de uma inundação, mas de uma torrente benfazeja, que vem revitalizar o que agonizava. O paraíso terrestre que se desertificava retornaria ao viço perdido. Imagens sedutoras dos tempos messiânicos. Os rios do paraíso que se secaram voltariam a fluir. Jesus, na pregação do Reino de Deus, usou imagens da água para se fazer entender pela multidão sequiosa: “Aquele que beber esta água voltará a ter sede (a água do poço de Jacó); quem beber a água que eu lhe darei se transformará dentro dele num manancial que brota dando vida eterna”. 3. Carta de São Paulo aos Coríntios 3, 9-11-16-17 Falando aos coríntios que, por vezes, se deixavam levar por maus construtores, Paulo chamava a atenção para o fato de que, se eles eram uma construção de Deus, deviam lembrar-se de que o único alicerce possível já fora colocado e era Jesus Cristo. E insistia: “acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” No início desta homilia, dizíamos que, segundo Jõao, o Verbo de Deus armou a sua tenda entre nós; agora, com Paulo, podemos radicalizar e dizer que Deus armou a sua tenda dentro de nós, em nossos corações. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João, 2, 13-22 Causa espécie a cena da expulsão a chicotadas dos vendilhões do Templo por parte de Jesus. Muitos exegetas duvidam da historicidade desta cena e lhe atribuem um caráter metafórico. De qualquer maneira, o ensinamento desse episódio narrado pelos quatro evangelistas é claro: “Não é admissível profanar a 197 casa do Senhor!” Lembremo-nos, porém, que a casa do Senhor não é apenas o Templo de Jerusalém, onde traficavam os mercadores; não é apenas a Basílica de Latrão; não é apenas a Capela de São Francisco. O Templo de Deus são também, como diz o Levítico, os estrangeiros, os pobres, as viúvas, os pequeninos, pois como diz o Senhor, “tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos, a mim – Jesus – o fareis.” As três leituras de hoje nos lembram que o mundo que habitamos não é um mundo banal, trivial, corriqueiro, é um mundo sagrado! 198 33º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje não apresentam uma unidade temática, como acontece em boa parte dos domingos, mas cada uma delas aborda um assunto próprio. Assim, a primeira leitura tirada do livro dos Provérbios, livro de caráter sapiencial, aborda o tema da mulher ideal como era vista na cultura da época. A segunda leitura, tirada da 1a Carta de Paulo, trata da Parusia, ou da 2a vinda do Senhor, tema candente à época de Paulo. O evangelho de Mateus apresenta a parábola dos talentos que, aparentemente óbvia, tem de ser lida e interpretada com cuidado. 2. Livro dos Provérbios 31, 10-13.19-20.30-31 O retrato da mulher de valor, tal como ela é descrita na leitura de hoje, como não poderia deixar de ser, reflete a cultura da época, muito diversa da cultura corrente em nossos dias. A leitura de hoje exalta a presença da mulher dentro do lar. Ela aí semeia a alegria, desincumbe-se das tarefas domésticas, ou seja, lava passa, costura e cozinha. E o que mais chama a atenção é o cuidado que ela tem com os pobres: “abre a sua mão ao necessitado e a estende aos pobres”. Por outro lado, desencoraja-se a vaidade feminina: “o encanto é enganador e a beleza, passageira”. Esse desenho da mulher de valor com certeza não convencerá a mulher moderna que assumiu um papel muito mais complexo na sociedade de hoje. Isso significa que esta leitura deve ser relida, tendo-se em vista a cultura moderna que se impõe como uma segunda natureza às mulheres de hoje. 199 3. Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5, 1-6 As primeiras comunidades cristãs viviam sob a expectativa de uma parúsia próxima, ou seja, o Senhor viria uma segunda vez para julgar os vivos e os mortos e encerrar a História na terra e recomeçar uma nova aventura fora do tempo e do espaço. Em tudo isso acreditamos até hoje, menos na sua proximidade. O tempo da segunda vinda é um segredo do Pai. Mas nem por isso devemos andar desprevenidos. Antes da grande e final parúsia, cada uma das gerações que se sucedem e cada um de nós pessoalmente seremos chamados a dar contas da nossa administração. “Mas vós irmãos não sois das trevas, de modo que esse dia nos surpreenda como um ladrão. Vós todos sois filhos da luz e filhos do dia. Portanto não durmamos como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 25, 14-30 Da parábola do Filho Pródigo e do Pai Misericordioso se diz que, se todas as páginas do Evangelho se perdessem, menos a página do Filho Pródigo, a essência da mensagem de Jesus aos homens estaria preservada: Deus é um Pai Misericordioso que perdoa generosamente a todos os seus filhos que a Ele retornam com o coração arrependido. Será que poderíamos dizer a mesma coisa a respeito da parábola dos talentos que estamos lendo hoje? Parece que não. Ela nos fala de um Deus exigente e severo que colhe onde não plantou e ajunta onde não semeou. Se levarmos em conta tudo o que Jesus nos ensinou sobre o Pai, a parábola dos talentos só poderá ser entendida se cotejada com outras parábolas, como as do Filho Pródigo, já mencionada, a do Bom Pastor, que dá a vida pelas suas ovelhas, e a da dracma perdida! Deus é justo e severo, mas é mais do que isso. Ele é infinitamente bom e misericordioso. 200 34º Domingo do Tempo Comum e Cristo Rei do Universo 1. Introdução Falar de Deus é uma empresa difícil, porque a realidade divina não cabe em nossas palavras. Elas ficam sempre aquém da realidade divina. O mesmo acontece com Jesus que, sendo filho de Maria, também é Deus, que armou a sua tenda no meio de nós. Por isso também é difícil falar de Jesus! É por isso que a tradição foi, ao longo do tempo, multiplicando os títulos de Jesus: salvador, mestre, pastor etc. Através de cada título, podese descobrir um aspecto novo da pessoa de Jesus. Hoje estamos festejando um dos primeiros títulos de Jesus, outorgado por Pilatos, que, no dia da crucificação do Senhor, mandou gravar no alto da cruz, em latim, grego e hebraico a inscrição: “Jesus Nazareno, rei dos judeus”. Os que assistiram à cena crucial para a nossa salvação perceberam logo que não se tratava de um rei qualquer, mas, ao contrário, tratava-se de um rei totalmente diferente dos reis até então conhecidos. Quem assistiu à cena da crucificação de Jesus ou nela medita não precisa nem de homilia para saber que tipo de rei é Jesus. 2. Livro do Profeta Ezequiel 34, 11-12.15-17 Era natural que, num país pastoril como a Palestina, o pastoreio, o pastor e o rebanho, no caso de ovelhas, ocupassem o imaginário dos profetas de Israel. Os governantes, como os pas201 tores e o povo, como o rebanho. Mas, acima dos governantes, o grande pastor é o próprio Javé que diz: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas.” É importante notar que a guarda carinhosa do Supremo Pastor atinge todas as ovelhas. De modo especial, a cansada, a perdida, a de perna quebrada, mas também as ovelhas gordas e fortes. Todas serão tratadas com justiça. A mesma atitude compassiva nós flagramos em Jesus no seu ministério. Antes da multiplicação dos pães, depois de uma longa caminhada, Jesus olhou a multidão, que há dias o acompanhava pelo deserto, e dela teve compaixão, a ponto de comover-se até o fundo das suas entranhas como diz o evangelista. O rei Jesus governa o seu povo, como o bom pastor, as suas ovelhas. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios15, 20-26, 28 Para o apóstolo Paulo, a História com H é uma fornalha onde se forja a vitória dos ressuscitados. Vitória, primeiro de Cristo, as primícias, e depois de seus seguidores, até que todos os seus inimigos sejam vencidos, inclusive a morte, o último deles. O rei Jesus conduz a História até o seu fim, mas ela continuará, fora do tempo e do espaço, para sempre sob a sua guarda. 202 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 25, 31-46 A parábola do juízo final é uma das mais importantes das que constam dos quatro evangelhos, porque ela tem um alcance ecumênico e, mais do que isso, universal. Universal, porque ela se dirige a todos os tempos e a todos os povos: “Todos os povos serão reunidos diante dele”, diz o texto de Mateus. Uma outra razão é porque a parábola toca no ponto essencial,que qualifica o homem como bom ou como mal, qualquer que seja a sua opção religiosa: a bondade do ser humano não está senão na sua capacidade de socorrer o seu irmão necessitado; tudo o mais é secundário aos olhos do Juiz Supremo! Até mesmo a prática religiosa mais estrita e escrupulosa. Por outro lado, devemos lembrar-nos de que se trata de uma parábola e não de uma descrição de como será o juízo final. Como se dará o juízo final, só Deus sabe. 203 Lecionário Dominical Ano B 1º Domingo do Advento 1. Introdução O advento é um tempo de espera, portanto um tempo em que vivemos intensamente a História. Trata-se, pois, de um tempo propício para viver e lembrar as grandes etapas da História da salvação. Ela se iniciou quando Deus criou o céu, a terra e todos os seres que a habitam e entre eles, de modo particular, o homem e a mulher, para que zelassem pelo mundo e, fazendo-se os dois uma só carne, crescessem e se multiplicassem. Criou-os e não os abandonou, mas contraiu com eles uma aliança renovada com Noé. Em,seguida convocou Abraão para uma grande nação e com ele e com os seus descendentes contraiu uma nova Aliança. Os descendentes de Abraão e os filhos de Jacó foram escravizados no Egito e Deus suscitou Moisés para libertá-los e levá-los de volta à Terra Prometida no Monte Sinai, renovou a sua aliança com os hebreus que sob os reis Davi e Salomão, construíram um grande país. A arca da Aliança foi intronizada no tempo de Jerusalém. Depois dessa fase de ouro, o povo de Deus passou por momentos difíceis e Javé lhe mandava profetas para consolá-lo e corrigi-lo. Isaías, o grande profeta, com outros, anunciou que num futuro glorioso viria o Messias para restaurar as doze tribos dispersas de Israel. No tempo determinado, nasceu o Messias, Jesus, na gruta de Belém. Sua mãe chamava-se Maria e o seu pai adotivo José. No advento, principalmente nas duas últimas semanas, preparamo-nos para 207 celebrar e comemorar o nascimento de Jesus. Mas a história não acaba com a morte e ressurreição do senhor. A história continua e continuará, mas não para sempre. Um dia o sol se apagará, mas a aventura humana continuará para sempre sob o reinado de Jesus, filho de Deus e de Maria. Nas duas primeiras semanas do advento vamos nos preparar para esse desfecho final, que para nós será no dia da nossa morte. 2. Livro do Profeta Isaías 63,16b-17.19b; 64, 2b-7 O homem, apesar de sua pretensão ou vaidade, perante Deus, faz a figura de um caniço agitado pelo vento. Isso já era assim no tempo do profeta Isaías. Ao mesmo tempo que o profeta lembrava ao povo os seus pecados – “todas as nossas boas obras são como um pano sujo, murchamos todos como folhas e nossas maldades empurram-nos como o vento” –, também vê o outro lado: “Senhor, tu és nosso Pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra das tuas mãos”. 3. Carta de São Paulo aos Coríntios 1, 3-9 Paulo, após a sua conversão, dedicou toda a sua vida à evangelização, ou seja, ao anúncio da boa nova. E qual era essa boa nova senão a de que o tempo da espera já estava terminado, o que tinha de acontecer já acontecera. Jesus, o Messias, já cumprira a sua missão e estava sempre conosco até o fim. “É ele também que vós dará perseverança até o fim, até o dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”. 208 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 13, 33-37 Nós homens e mulheres, somos seres históricos. Conhecemos muito bem o nosso passado, que nos deixou lembranças boas e más; conhecemos um pouco menos o nosso presente, quase sempre ambíguo e desconhecemos o nosso fuleiro. É por isso que o evangelho de hoje nos aconselha a vigilância. O que nos consola é que, vigilantes ou não, o Senhor, quando vier, será sempre bem-vindo, porque Ele é sempre graça. 209 2º Domingo do Advento e Solenidade da imaculada Conceição 1. Introdução Estamos em pleno Advento, preparando-nos ao mesmo tempo para a segunda vinda do Senhor e para relembrar o Seu nascimento na gruta de Belém. Como o profeta Isaías, o grande profeta dos tempos messiânicos, João Batista, o precursor do Senhor, e mais ainda, Maria, a Imaculada, uma das estrelas do Advento, preparamo-nos para reviver e não apenas lembrar o nascimento de Jesus em Belém de Judá. Festejar a Imaculada Conceição de Maria é alegrar-nos pelo fato de Maria ter sido concebida no seio de sua mãe, Ana, sem a mancha do pecado original, ou seja, com o seu coração e a sua vontade toda voltada para o Senhor sem que a sua liberdade sofresse qualquer arranhão, como deixa clara a sua decisão de acatar a vontade do Senhor: “Faça-se em mim a sua vontade”! 2. Livro do Gênesis 3, 9-15.20 O relato do Gênesis da liturgia de hoje fala-nos de Maria de maneira profética, como aquela mulher que vencerá a serpente tentadora, embora ela lhe fira o calcanhar. Esse pormenor da narrativa anuncia a espada que o velho Simeão, por ocasião da apresentação do Senhor no Templo, predizia que haveria de 210 transpassar o coração de Maria. A fragilidade de Eva e mais ainda a de Adão, que se escuda em Eva, se contrapõem à força de Maria, que não se deixa enganar pela astúcia da serpente. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 1, 3-6.11-12 Paulo, em sua carta aos efésios, insiste sobre a centralidade de Cristo, inserido no mistério da Santíssima Trindade, na História da Salvação: “Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele nos abençoou com toda a benção do Seu Espírito em virtude da nossa união com Cristo no céu”. Paulo nada nos diz de Maria diretamente, mas podemos prolongar o seu pensamento e dizer: se o Pai, em Cristo, nos escolheu antes da fundação do mundo para que sejamos santos e irrepreensíveis, quanto mais o fez em relação a Maria predestinada a ser a Mãe de Jesus, o Messias. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 26-30 A Imaculada Conceição de Maria nada tem a ver diretamente com o nascimento de Jesus mencionado no evangelho de hoje: “Não temas Maria... O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”. Os pais biológicos de Maria, segundo a tradição, foram Ana e Joaquim. Esses dois mistérios, muitas vezes confundidos entre si, ganham, se adequadamente entendidos. A Imaculada Conceição de Maria é totalmente assumida pelo Pai e Maria a Ele livremente se entrega para sempre ao longo da sua vida. Pelo nascimento virginal de Jesus, sabemos que Ele, sendo homem como nós, também é o Filho de Deus. 211 3º Domingo do Advento 1. Introdução O caráter reflexivo do Advento não impede que neste terceiro domingo, dia em que o roxo dos paramentos é substituído pelo rosa, explodam as alegrias pela proximidade do Senhor na festa do Natal e também pelo seu retorno no final da História. Por isso, na antífona de entrada, Paulo nos diz: “Alegrai-vos no Senhor. De novo eu vos digo, alegrai-vos, o Senhor está perto.” Fil 4,4. E Maria no seu Magnificat nos diz: “A minha alma engrandece o Senhor e se alegrou o meu espírito em Deus meu salvador”. A alegria não figura na lista dos dons do Espírito Santo, mas nós podemos vê-la como fruto da paz, do shalom, que é a síntese de todos os dons do Espírito Santo. Como não alegrarnos se o Senhor vem até nós?! 2. Livro do Profeta Isaías 61, 1-2.10-11 Esta leitura do profeta Isaías é o trecho que Jesus, ao retornar a Nazaré da Galileia, após a prisão do Batista na Judeia, releu na sinagoga, perante os seus conterrâneos, e fez dela a plataforma da Sua pregação do Reino de Deus, dizendo para o que veio: “O Senhor... enviou-me para dar a boa nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção aos cativos e a liberdade para os que estão presos; para proclamar o tempo da graça do Senhor.” Esses versículos deveriam estar sempre ressoando aos nossos ouvidos, porque resumem em poucas palavras a missão de Jesus que, desde a Sua Ascensão, passou a ser a missão da Igreja, ou seja, a nossa missão. 212 3. Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5, 16-24 A experiência humana de Paulo mudou tanto com a sua experiência que ele quase não cabia mais em si mesmo. O mesmo aconteceria com alguém que tendo vivido nas trevas visse, de repente, o despertar de uma manhã radiosa jamais suspeitada. Em vista disso, podemos entender os apelos de Paulo aos Tessalonicenses que ele havia convertido ao evangelho de Jesus, fossem eles do paganismo ou do judaísmo. Dizia-lhes com convicção: “Irmãos, estai sempre alegres. Rezai sem cessar. Dai graças às circunstâncias, porque é a vosso respeito a vontade de Deus em Jesus Cristo”. Se nós ainda não nos damos conta da grandeza da nossa vocação cristã, aproveitemos as graças do Advento, esse tempo favorável, para despertá-la em nós. Avancemos para águas mais profundas, porque é nas profundezas de nossos corações que Deus habita. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 1,6-8.19-28 João Batista foi, antes de Jesus, o último e o maior dos profetas. Ele era um dissidente, não frequentava o Templo e dele marcava distância, abrigando-se no deserto. Do ermo distante, convocava a todos para um batismo de conversão dos pecados em vista da proximidade do Juízo de Deus. Incomodados com o profeta do deserto, o Templo enviara-lhe sacerdotes e levitas para perguntarem a João: “Quem és tu?” Se declaradamente não era profeta ou não se considerava tal, se não era Elias que 213 outrora subira aos céus num carro de fogo, mas deveria voltar um dia; se não era o Messias, quem era ele então e por que batizava? João era um precursor e não o enviado; era um discípulo e não o mestre; batizava com água e não no Espírito; era o penúltimo e não o último! 214 4º Domingo do Advento 1. Introdução Estamos ainda no Advento, mas a liturgia de hoje só fala de Jesus porque Ele está para chegar nos próximos dias. Aquele mistério inimaginável que ficou escondido durante séculos está prestes a revelar-se de novo, como acontece todos os anos no tempo de Natal. É preciso que os Natais que se sucedem a cada ano não sirvam apenas para refrescar a nossa memória com uma notícia velha e já sabida. É preciso que o Natal nos faça viver de novo a alegria de sermos salvos. Aquele que os profetas anunciaram, Aquele que todos esperavam, “veio, vem e virá sempre”, como repete mais de uma vez o livro do Apocalipse. É preciso que o bom velhinho, as luzes, as ceias e os presentes de Natal, sempre bem-vindos, não escondam o rosto do nosso Salvador! 2. Segundo Livro de Samuel 7,1-5.8b-12-14a.16 Esta primeira leitura fala-nos de um rei Davi, o maior de todos os reis de Israel, quando, já vencidos os seus inimigos, estava consolidado como rei soberano e vencedor, mas, com certo sentimento de culpa, compara o seu palácio real, construção sólida de cedro, com a tenda onde estava, no deserto, a Arca da Aliança, símbolo da presença de Javé. O mesmo profeta Natam que viria um dia reprová-lo pelo seu pecado, vem agora para orientá-lo. Javé não anseia por um palácio de cedro, ao contrário, sente-se bem onde está, mais à vontade para acompanhar o seu povo. Em vez de Davi construir um templo para Javé, Javé 215 consolidaria a Casa de Davi e a sua dinastia. Diz Javé pela boca de Natam: “Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, então eu suscitarei, depois de ti, um filho teu e confirmarei a tua realeza. Eu serei para ele um Pai e ele será para mim um filho. Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre”. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 16, 25-27 Embora o apóstolo Paulo não diga uma só palavra sobre o Natal de Jesus como fizeram os evangelistas Mateus e Lucas, podemos considerá-lo como um inspirador do que há de essencial na piedade natalina: o espanto diante do mistério do Natal, de um Filho de Deus que se faz homem para nos aproximar do Pai e nos trazer a salvação. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 20-38 O Deus de Israel não era um Deus voltado para si mesmo, mas um Deus voltado para o outro. Por isso mesmo, no início dos tempos, criou o céu e a terra e nela semeou a vida e criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança. Fez muito mais do que criá-los, construiu com eles uma Aliança. Não uma aliança qualquer, mas uma aliança cujo modelo era a aliança conjugal fundada num amor indissolúvel sob o signo da fidelidade. Um amor tão forte como a morte ou, no limite, mais forte do que a morte. A narrativa bíblica é a narrativa dessa aliança, das rupturas provocadas pelo povo e das retomadas pelas iniciativas de Javé. Elas ocorreram com Adão e Eva após o pecado; com Noé, após o Dilúvio; com Abraão e com Moisés. Esses desencontros e encontros chegaram até que “o anjo Gabriel foi enviado por 216 Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem prometida em casamento a José.” O nome da Virgem era Maria… A quem o anjo disse: “Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus”. Essa aliança foi definitiva. 217 Natal do Senhor Noite 1. Introdução A liturgia de hoje inicia-se com uma significativa antífona de entrada: “Alegremo-nos todos no Senhor, hoje nasceu o Salvador do mundo, desceu do céu a verdadeira paz!”. A alegria do Natal é o fruto da esperança que Jesus nos traz, a esperança de que não seremos vencidos pela morte, de que os percalços da vida são passageiros, de que não retornaremos ao nada de onde viemos. Os vagidos do recém-nascido, a sua fragilidade, a ternura que ele desperta em nossos corações nos revelam um rosto de Deus desprovido de qualquer truculência, mas feito de amor, sem nenhuma mistura de outro sentimento que não seja o amor. Em dois momentos, o primeiro e o último da sua vida terrena, Deus se revela a nós como puro amor: ao nascer na gruta de Belém e ao morrer no alto da cruz. 2. Livro do Profeta Isaías 9, 1-9 Em meio a um grande desastre na História de Israel, quando reinava a negra escravidão, quando um pesado jugo vergava o povo de Deus, quando os injustos impostos oprimiam o povo que amargava uma grande derrota, os filhos de Israel veriam uma grande luz. Essa luz benfazeja refletia o nascimento de um rei, que devolveria ao povo oprimido a paz e a alegria de viver. O profeta pensava no curto prazo, ele imaginava que esse rei salvador 219 fosse o descendente imediato do rei derrotado, mas os desígnios de Deus eram outros. Seria necessário que o povo de Deus continuasse vivendo e aprendendo muito mais para que fosse capaz de acolher o Rei Salvador. A semente de esperança lançada pelo profeta Isaías brotou e rebrotou durante oito séculos antes de dar o seu verdadeiro fruto. A mesma paciência histórica vivida pelo povo de Deus entre a profecia de Isaías e a sua realização no dia de Natal deve ser vivida por nós até hoje, até que o Senhor volte no fim dos tempos. 3. Carta de Sõ Paulo a Tito 2,11-14 São Paulo nesta carta ao seu discípulo Tito não diz uma palavra a respeito do nascimento de Jesus e a razão é simples: Paulo não conheceu a Jesus em vida, nem as narrativas de Mateus e Lucas a respeito do nascimento de Jesus. Estas foram tornadas públicas nos respectivos evangelhos após a morte de Paulo e circulavam apenas na Palestina, onde Paulo esteve por pouco tempo após a sua conversão. Por outro lado, a figura de Jesus, o Filho de Deus encarnado, era tudo para Paulo, conforme ele mesmo dizia: “Quem nos afastará do amor de Cristo: tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?”. Meus caros irmãos, uma coisa é a magia do Natal, como se costuma dizer, e outra coisa e muito mais importante é a graça do Natal, o Filho de Deus, como Emanuel, Deus conosco! 220 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2, 1-14 O nosso relacionamento com Deus nosso Pai não seria o mesmo se desde criança não nos tivéssemos familiarizado com este evangelho natalino cheio ao mesmo tempo de História concreta e de poesia. O nascimento de Jesus é o centro da História com H. Jesus nasceu, quando César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento em toda terra, ao tempo em que Quirino era governador da Síria. Jesus, Filho de Deus, é também um dos nossos. Aos pastores, foi dito pelos anjos que não deveriam encontrar o recém-nascido num berço de ouro, digno de um Deus, mas sim envolvido em panos e deitado numa manjedoura. Tratado nenhum da mais profunda teologia poderia ensinar mais a respeito de Deus nosso Pai. É um Deus singelo, amoroso, indefeso, cheio de ternura, como um recém-nascido. 221 Sagrada Família de Jesus, Maria e José 1. Introdução Não é preciso ter vivido muitos anos para perceber como a instituição familiar tem evoluído dramática e perigosamente. Mediando o indivíduo e a sociedade, a família afeta a ambos para o bem ou para o mal. O ideal da família cristã, união de um amor fecundo e indissolúvel, ou seja, até a morte de um dos cônjuges, torna-se cada vez mais raro. O papel social da mulher moderna que trabalha fora e se tornou mais independente altera o relacionamento entre os cônjuges e cria uma nova dinâmica relacional. Por outro lado, se nem tudo na família tradicional era perfeito, nem tudo na moderna é mau. A família católica e os seus protagonistas, marido, esposa e filhos/as, devem refletir sobre os seus papéis de cristãos e cristãs a partir da realidade de hoje e não sonhar com o passado que já passou e não volta mais. 2. Livro do Eclesiástico 3, 3-7.14-17a Nos tempos bíblicos de estrutura tribal e patriarcal, a importância da família para a sobrevivência física das pessoas era fundamental. As enfermidades, as pestes e os acidentes naturais ameaçavam a sobrevivência dos filhos que garantiam, quando jovens e adultos, o bem-estar da família. Daí a importância da coesão familiar: “Quem respeita a sua mãe é como quem ajunta um tesouro. Quem honra o seu pai e a sua mãe terá alegria com 223 seus próprios filhos e no dia em que honrar será atendido.” A ameaça de uma morte precoce fazia com que uma vida longa fosse vista como uma bênção divina. Assim também os filhos numerosos. Enquanto no passado tudo levava à coesão familiar, hoje parece que se dá o contrário, tudo leva à sua dissolução. Hoje, no mundo consumista e descrente em que vivemos, só um grande amor indissolúvel entre os esposos e entre pais e filhos pode garantir a felicidade familiar. Não há outro caminho. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 12-21 Paulo escreve num primeiro momento a todos os membros da comunidade e a ela sugere para que viva em harmonia uma série de virtudes como: sincera misericórdia, bondade, humildade e paciência. Ninguém poderia negar a pertinência de todas essas virtudes para uma comunidade cristã como um todo. Mas Paulo guarda conselhos específicos para as famílias, o coração onde pulsa a vida da comunidade. Diz Paulo: “Esposas, sede solícitas com vossos maridos como convém no Senhor. Maridos, amai vossas esposas, não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor.” Esses conselhos de Paulo são transculturais porque valem para todas as culturas e esse elenco de virtudes pode guiar as famílias de hoje num exame de consciência e num processo de conversa duradoura. 224 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2, 22-40 O evangelho de hoje celebra a apresentação de Jesus no Templo, ou seja, o mistério contemplado no Rosário de Nossa Senhora. Conforme o costume, Maria e seu esposo José levam o seu filho primogênito Jesus ao Templo para apresentá-lo ao Senhor. “Aquilo que de graça recebeste, de graça ofereças”, está dito em outra parte no evangelho. E aqui vai uma palavra aos nossos queridos pais: vós recebestes de graça os vossos filhos, é de graça e de todo coração que os ofereceis, de volta, ao vosso Pai que está nos céus? Essa oferenda de volta dos filhos pelos pais é menos um gesto ritual, como nos tempos antigos, e mais um esforço contínuo de educação do filho voltada para Deus e para o próximo. Educar os filhos para si mesmos, como se eles fossem pequenos deuses, é uma tendência e uma tentação nas famílias de hoje. As figuras do velho Simeão e da velha profetisa Ana lembram os avós, que quase sempre estão presentes nos batizados dos seus netos. Quanto carinho e quanta experiência, quanta sabedoria, como avós, não podem levar aos seus filhos e netos! 225 Epifania do Senhor 1. Introdução Estamos celebrando hoje a Epifania do Senhor, popularmente conhecida como o Dia de Reis, ou seja, dos reis magos que vieram do Oriente guiados por uma estrela para adorar o Menino Jesus e oferecer-lhe os seus mais ricos presentes. Ricos mais pelo significado do que pelo valor, embora fossem muito preciosos, tanto o ouro, como a mirra e o incenso. O significado mais profundo da Festa de Reis é mostrar como a realeza e o senhorio de Jesus não se limita à Judeia, ou mesmo à Palestina, mas se estende ao mundo inteiro e não deixa ao desabrigo nenhum povo da terra, nem um só filho de Deus. E se estende e se estenderá por todas as gerações. É por isso que na Igreja do Oriente tem primazia a Epifania sobre a festa do Natal. Isso nos ajuda a valorizar a Epifania sem em nada diminuir a importância litúrgica do Natal. 2. Livro do Profeta Isaías 60, 1-6 Isaías é o profeta da esperança contra o derrotismo que a História concreta parecia indicar. É o profeta da luz, em que pesasse o manto de trevas que recobria a História do povo eleito. Jerusalém, em vez de uma cidade humilhada e subjugada, será um polo iluminado que atrairá os povos e os reis da terra. “Levanta os olhos ao redor e vê, todos se reuniram e vieram a ti; os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão da tua aurora”. A procissão desses reis afetou tanto a imaginação dos povos cristãos, que os “sábios” 226 ou “magos”, que vieram do Oriente para adorar o Senhor, foram transformados em “reis”. Daí o nome popular da Epifania do Senhor, Dia de Reis. Se a profecia de Isaías já se realizou mediante o ministério de Jesus e da Igreja, ela ainda não se completou, pois ainda há povos que não viram a luz e há outros que a apagaram. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 3, 2-3, 5-6 Paulo fez o caminho inverso ao dos Reis Magos. Enquanto esses vêm de longe e para o centro, Paulo sai do centro e vai para longe. Vai para longe revelar aos que estavam longe o plano do Senhor, que até então estivera escondido: “Deus... acaba de... revelar aos seus santos apóstolos e profetas (que) os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo por meio do seu evangelho”. A universalidade da salvação não é apenas uma questão aritmética ou demográfica; é uma questão de qualidade: ela define que o Deus de Jesus Cristo é um Deus que não faz acepção de pessoas e que nós, homens e mulheres, somos iguais uns aos outros e como tais nos devemos considerar. Se assim não fosse, o nosso Deus não seria um Deus, mas um ídolo desprezível. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 2, 1-12 Mais do que uma narrativa histórica, devemos ler o evangelho de hoje como uma exortação a nos ajoelharmos diante do Senhor Menino, vindo de onde viemos e ao lado de Maria e José, a abrir os nossos corações para oferecer-lhe o ouro da 227 nossa obediência à sua realeza, o incenso da nossa adoração e a mirra da nossa solidariedade. É preciso que não cheguemos sós aonde a estrela nos guiou, mas cheguemos acompanhados da nossa família, dos nossos amigos e de nossos companheiros de trabalho. Os reis magos não eram apenas um, mas três, o número bíblico para indicar a perfeição. É preciso que estejamos atentos aos sinais dos tempos para que, quando a estrela brilhar, possamos segui-la para onde ela nos quiser levar. Os reis magos vêm de lugares distantes, mas caminham para um mesmo lugar numa caminhada ecumênica. Que a nossa também o seja! 228 Batismo do Senhor 1. Introdução Algum tempo depois de ser eleito papa da Igreja Católica, Sua Santidade o Papa Bento XVI publicou, não como papa, mas como simples teólogo, um livro sobre Jesus, desde o batismo até a sua ressurreição. Isso porque a missão terrena do Senhor iniciase com o batismo por João nas águas do Jordão e termina com Sua morte, sepultamento e ressurreição. O batismo implica um movimento duplo, a imersão ou o mergulho, no caso de Jesus, nas águas do Jordão, e a emersão, ou seja, a sua afloração na superfície das águas. Impossível não pensar na morte, sepultamento e ressurreição do Senhor. O batismo de Jesus não marca apenas o início do ministério, mas lhe dá o significado, consubstanciado no mistério da cruz, que é perdão, morte e ressurreição. 2. Livro do Profeta Isaías 42, 1-4-4.6-7 A primeira leitura de hoje nos remete à figura magistral do Servo Sofredor, criação esplêndida do profeta Isaías. Não se trata de uma figura histórica, mas de uma invenção profética de Isaías. Iluminado pelo Espírito, imaginou como seria o Messias que viria para restabelecer de modo definitivo a Aliança de Javé com o seu povo. Impossível ler atentamente essa passagem do profeta sem reconhecer nela os traços de Jesus: “o Espírito descerá sobre ele; ele não clama nem levanta a voz; não quebra a cana rachada nem apaga o pavio que ainda fumega; não esmorecerá nem se deixará abater 229 enquanto não restabelecer a justiça sobre a terra”. No tempo de Jesus, esperavam-se muitos Messias: alguém que retiraria do esquecimento a dinastia de Davi; um revolucionário que libertaria os pobres da escravidão e derrotaria o Imperador de Roma. Jesus, porém, após o batismo e as tentações do deserto, escolheria como modelo messiânico o Servo Sofredor do profeta Isaías e seria fiel a ele até o fim! 3. Livros dos Atos dos Apóstolos 10, 14-38 Essa segunda leitura de hoje é um dos vários discursos de Pedro dirigidos ao povo de Jerusalém depois dos acontecimentos dolorosos da paixão do Senhor e do espanto da ressurreição do Senhor. Pedro lembra à multidão que tudo começou “com o que aconteceu em toda a Judeia, a começar na Galileia, depois do batismo pregado por João: como Jesus de Nazaré foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder.” A ação benéfica e curadora de Jesus continua através da Igreja mediante os seus filhos, que somos nós, que também fomos batizados, não só na água, mas na água e no Espírito Santo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 7-10 O Evangelho de Marcos inicia-se com a pregação de João Batista. A importância desse evento fica clara pelo fato de que ele é narrado com ênfase pelos quatro evangelistas. O cenário apocalíptico que envolve todo o episódio significa que estamos diante de um acontecimento crucial da revelação de Deus sobre 230 a missão de Seu Filho Jesus: “E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado, em ti ponho todo o meu bem-querer”. E antes que o Pai falasse, o Espírito como uma pomba, desceu sobre Ele. Trata-se de um ato de Deus e não do homem. Uma nova era abria-se para o mundo. Um ato de Deus ou um ato do homem, já que foi João Batista, filho de Zacarias e Isabel, quem batizou? Mais uma vez fica claro que o Deus da Bíblia, que o Deus de Jesus não é um Deus autoritário e intervencionista. Ele se valeu do Seu servo João Batista, a quem Ele atribuíra essa missão! 231 1º Domingo da Quaresma 1. Introdução Os quarenta dias que medeiam a quarta-feira de cinzas e a manhã da Ressurreição, três dias depois da morte do Senhor, constituem o tempo da Quaresma, “Quadragesima” em latim, a qual está relacionada com os quarenta anos de travessia no deserto desde o Sinai até a Terra Prometida e também com os quarenta dias de jejum no deserto, aonde Jesus foi conduzido, como diz o evangelho de hoje, para ser tentado pelo diabo. Esses dois eventos, a peregrinação no deserto e o jejum de 40 dias, ajudam-nos a entender o sentido espiritual da Quaresma. A nossa existência na terra, com todas as suas peripécias, assemelha-se à travessia do deserto pelo povo de Israel. Cheia de altos e baixos, nela percebemos tanto a presença do Senhor, como a nossa ausência perante Ele; como Jesus no deserto, também ouvimos o canto das sereias que nos querem seduzir ao longo da nossa vida. A Quaresma é, em resumo, um tempo forte de reflexão, da oração, de jejum e de esmola. 2. Livro do Gênesis 9, 8-15 O tema da Aliança, ou seja, o pacto de amor e fidelidade entre Javé e Noé, é o que há de mais fundamental na tradição bíblica. O que há entre Deus e o homem nessa tradição não é uma relação de dependência regida pelo temor, mas uma relação de amor e fidelidade. Essa relação, muitas vezes quebrada pela fragilidade do homem, é sempre recuperada pela miseri232 córdia de Deus. Durante a quadra quaresmal, somos chamados a refletir sobre a aliança que, guiados pelas mãos de nossos pais e padrinhos, no dia do nosso batismo, contraímos com Deus nosso Pai. É o momento para cada um de nós, sem exceção, de colocar a mão em nossa consciência e retomar o caminho da reconciliação e da paz. Como a pomba da arca que retornou com um ramo de oliveira e como Javé que retorna aos seus filhos nas cores do arco-íris, retornemos também nós aos nossos irmãos com um ramo de oliveira nas mãos e o arco-íris nos olhos. 3. Primeira Carta de São Pedro 3, 18-21 Pedro, nesta sua primeira carta, nos fala de Jesus como nosso redentor, ou seja, alguém que nos salvou, resgatando os nossos pecados. Teria o Pai exigido do seu Filho a morte na cruz como preço a pagar pelos pecados dos homens? Se nós, que somos maus, não pediríamos a ninguém a morte como preço de qualquer resgate, muito menos o faria o Pai de toda a misericórdia. Jesus nos salvou porque nos tirou qualquer dúvida a respeito da misericórdia infinita de Deus. Seduzidos pelo amor infinito de Deus por nós, revelado em Jesus, recusamo-nos a odiar os nossos irmãos e somos salvos pelo amor. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 12-15 Entendamos o evangelho de hoje como uma alegoria apenas esboçada no evangelho de Marcos e mais desenvolvida em Lucas e Mateus. A prisão de João Batista, de quem Jesus foi discípulo por um tempo, leva Jesus a pensar na sua missão, 233 já que o impedimento de João Batista não era razão suficiente para se abandonar o anúncio do Reino de Deus, pois: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”. Mas de que Reino de Deus se tratava? A restauração da dinastia davídica? Uma revolução social, como queriam alguns? Uma potência mundial capaz de vencer os donos do mundo ou um projeto de justiça e paz? Eram essas as tentações às quais Jesus foi submetido no deserto. 234 2º Domingo da Quaresma 1. Introdução Na Antiguidade, o pátrio poder exercido pelo “Pater familias” sobre os seus dependentes, ainda que descendentes, era absoluto, ou seja, tratava-se de um direito de vida ou de morte. Não admira, pois, que a religião, fortemente enraizada na cultura, acolhesse no seu culto a Deus sacrifícios humanos. Deus era cultuado como “Pater famílias” supremo, senhor da vida e da morte de todos os humanos. A experiência de Deus na tradição bíblica distancia-se radicalmente das outras tradições. Enquanto os ídolos ou os deuses pagãos aceitavam sacrifícios humanos, o Deus de Israel, Javé, “aquele que é para o homem” os rejeita radicalmente. “Não estendas a mão sobre teu filho e não lhe faças mal algum”. Um padre da Igreja dos primeiros séculos disse uma frase que desde então continua a ser citada: “A glória de Deus é o homem vivo!” 2. Livro do Gênesis 22, 1-2.9, 10-13, 15-16 A tradição bíblica, toda vez que narra um fato de grande relevância, que marque um salto qualitativo na História da salvação, coloca-o sempre no alto de um monte. Assim foi que Moisés e Elias encontraram a Deus no Monte Sinai, Moisés na sarça ardente e Elias na brisa suave; foi no monte Calvário que o Filho de Deus foi sacrificado; foi no Tabor que Jesus se transfigurou; foi na montanha que Jesus pronunciou o seu grande sermão e multiplicou os pães. Foi também no monte que Javé indicou a 235 Abraão, que Isaac não foi imolado, mas poupado para cumprir sua missão. Desde o dia em que Isaac foi poupado, começa a desenhar-se aos nossos olhos o rosto humano de Deus, que vai assumir os traços do rosto de Jesus, que ele exibiu na gruta de Belém, no Templo de Jerusalém junto aos doutores da lei, no Batismo de João, nas aldeias da Galileia, pregando e curando, no Calvário e na glória da Ressurreição. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 31b-34 “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” Em vista da fragilidade da condição humana e da nossa condição pessoal, sentimo-nos muitas vezes inseguros, como se sentiu Isaac ao ser conduzido por Abraão ao monte que Javé lhe indicara: “Pai, ... temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” Também nós nos perguntamos, o que será de nós? Sabemos pela própria experiência que a vida não será fácil e vai exigir de nós muita luta e muita coragem, mas sabemos também pela fé que, se Cristo está conosco, ninguém estará contra nós! 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 9, 2-10 A transfiguração do Senhor, pelo seu caráter extraordinário, deve ter um significado muito especial. E qual seria esse significado? Há toda uma tradição exegética que defende a tese de que a transfiguração do Senhor foi uma ajuda para a fé dos discípulos, que seria drasticamente provada no momento da crucifixão do Senhor. Seriam os discípulos capazes de reconhecer no rosto 236 desfigurado de Jesus Cristo crucificado o rosto de Jesus, filho de Deus e de Maria? Sobre Pedro sabemos que, mesmo antes da crucifixão, já havia renegado o Mestre e mesmo depois de chorar amargamente não foi até a cruz para reconciliar-se com Ele. João, porém, um dos que vira o Senhor transfigurado, lá estava, ao pé da cruz, com as santas mulheres. Com certeza João, ao mirar o rosto do crucificado, pôde ver em filigrana o rosto transfigurado do Senhor que havia contemplado no Tabor! 237 3º Domingo da Quaresma 1. Introdução O tema subjacente às três leituras de hoje, embora aparentemente distantes entre si, é um só, é o mistério do Deus transcendente, que desde o despertar da consciência humana vem tentando revelar-se aos homens. Dizem os antropólogos que o primeiro sinal de consciência religiosa do homem primitivo foi quando ele começou a enterrar solenemente os seus mortos e a honrá-los com cerimônias funerárias, sinal evidente de uma fé numa sobrevivência após a morte, portanto de um Ente Divino que paira sobre os vivos e os mortos. No universo das diferentes culturas, umas mais do que as outras chegaram a um conceito mais elaborado de Deus. A filosofia grega chegou a um conceito refinado de Deus, causa de todas as causas, motor imóvel. A cultura bíblica a um Deus único, criador do céu e da terra, que estabeleceu com o homem criado à sua imagem e semelhança um pacto de amizade, de tal sorte que é impossível honrar a Deus sem honrar o homem e é impossível desonrar o homem sem desonrar a Deus. 2. Livro do Êxodo 20, 1-17 Esse trecho do livro do Êxodo que estamos lendo reflete o tempo em que Israel tentava aprofundar a sua fé no Deus único, colocada em cheque pelos inúmeros deuses dos povos pagãos que o rodeavam. O Deus de Israel não era um Deus entre muitos deuses, mas era o único Deus. Os outros eram apenas ídolos 238 que, como diriam as Escrituras, tinham olhos mas não viam, tinham ouvidos mas não ouviam, tinham boca mas não falavam. Daí, a proibição de imagens esculpidas ou quaisquer figuras. Daí, também a importância do sábado, o dia dedicado a Deus, criador do céu e da terra, que não poderia de modo algum ser esquecido. Sendo esse Deus único, solidário com o homem, o sábado, além de ser o dia do Senhor, era também o dia do homem e até dos animais: “Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu gado, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades”. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 1, 22-25 O Deus que se revelou em Jesus foi uma surpresa tanto para os gregos, como para os judeus. Enquanto os gregos buscavam a Deus na filosofia, que Paulo chama de sabedoria, e os judeus em milagres assombrosos, sinais nos céus e poder na terra, Jesus se manifesta na fraqueza e, mais do que isso, na cruz, escândalo para gregos e judeus. O Deus de Jesus, em vez de se apresentar como um Deus todo-poderoso, apresenta-se como um Deus todo misericordioso, não um Deus para si, mas um Deus para o outro. 4. João 2, 13-15 O fato de Jesus expulsar a chicotadas os vendilhões do templo, num gesto inusitado para o seu comportamento, carece de uma explicação. O Templo de Jerusalém, ao tempo de Jesus, em plena dominação romana e na ausência do poder real era, ao 239 mesmo tempo, o centro do poder religioso, do poder político e do poder financeiro em Israel. Podemos dizer, em síntese, que os sumos sacerdotes, os doutores da lei e os fariseus se serviam do Templo para o exercício do poder em benefício próprio. Os vendilhões eram o seu braço direito. Foram essa distorções que levaram João Batista, filho de Zacarias, sacerdote do Templo, a abandonar o Templo e a retirar-se no deserto, para pregar um batismo de penitência e de conversão. A expulsão dos vendilhões do Templo foi um protesto de Jesus contra a mundanização do Templo! 240 4º Domingo da Quaresma 1. Introdução A excepcionalidade da cor rosa dos paramentos litúrgicos, hoje, leva-nos a refletir sobre o significado das cores litúrgicas, ou seja, o branco, o vermelho, o roxo e o cor-de-rosa. O branco, a cor das vestes do Senhor transfigurado no Monte Tabor, é também a cor da Páscoa da ressurreição e de todo o tempo pascal, bem como das festas das virgens e dos santos confessores. A luminosidade do branco reflete a glória de Deus! O vermelho, a cor do sangue, é a cor da Sexta-feira Santa, em que correu até a última gota o sangue do Senhor, da Festa de Cristo Rei, rei dos judeus, tal como gravado em hebraico, grego e latim no alto da Cruz do Senhor. O roxo que, dentro da tradição, tem um sabor penitencial, é a cor do Advento e da Quaresma, tempos em que nos empenhamos em esquecer os nossos interesses mesquinhos e nos voltamos mais para Deus e nosso próximo. Dentro do Advento e da Quaresma, no entanto, há um domingo cor-de-rosa, como acontece hoje. O rosa substitui o roxo para lembrar-nos que o definitivo é a alegria da Páscoa e não a tristeza da Paixão. Por isso, conforme reza o intróito da missa de hoje “Alegra-te, Jerusalém”, podemos muito bem dizer: “Alegra-te, comunidade da Capela de São Francisco!”. 2. Segundo Livro das Crônicas 36, 14-16. 19-23 Essa leitura de hoje é uma rápida releitura teológica da História de Israel desde os tempos gloriosos de Davi até o retorno à 241 Palestina com a ajuda de Ciro, Rei da Pérsia, passando pelo exílio na Babilônia. Essa História de Israel, cheia de altos e baixos, é uma parábola de todas as histórias, inclusive das nossas histórias pessoais. O tempo da Quaresma é um tempo propício tanto para olharmos para trás, bater no peito e pedir perdão, quanto para olharmos para frente com os olhos fixos no Senhor, sempre pronto a acolher de volta o Seu filho, ainda que pródigo. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 2, 4-10 Nesta leitura de hoje, Paulo nos comunica a sua grande descoberta ao cair do cavalo no caminho de Damasco. Até então, Paulo era um judeu voluntarista, que acreditava mais nas suas obras, cumpridas no mais estrito figurino farisaico, do que na misericórdia de Deus. Paulo acreditava que ele era o salvador de si mesmo. A iluminação no caminho de Damasco consistiu no fato de que Paulo percebeu com clareza que não são as obras que salvam, mas é o amor de Deus que, seduzindo os nossos corações, nos transforma de maus em bons. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 3, 14-21 O evangelista João se vale da lenda da serpente de bronze que, erigida no deserto, salvava da morte todos aqueles que, tendo sofrido picadas por verdadeiras serpentes venenosas, para ela mirassem. Assim, os homens, pecadores de todos os tempos, que olharem para Jesus no alto da cruz e perceberem o significado dela, se deixarão seduzir pelo amor de Deus e se 242 converterão dos seus pecados. Pois, de fato, “Deus não enviou o Seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”. Crer em Jesus significa crer que Ele veio ao mundo para salvar o mundo, deixando claro, através da sua morte de cruz, que Ele é capaz de tudo para salvar-nos, só não pode substituir-se por nós. 243 5º Domingo da Quaresma 1. Introdução Depois de narrar a discussão do adolescente Jesus com os doutores da lei no Templo de Jerusalém, Lucas diz de Jesus, quando de Seu retorno à Nazaré, que “Ele progredia em sabedoria, em estatura e no favor de Deus e dos homens”. Se o crescimento físico no homem se extingue no limiar da idade adulta, o crescimento interior, moral e espiritual continua e pode até acelerar-se se houver empenho da nossa parte. Aliás, dizem os autores espirituais que, na vida interior, alimentada pelo espírito, “quem não avança, recua”. Na primeira leitura de hoje, Jeremias diz que uma nova Aliança será feita, porém não mais como fora feita no passado; o autor da Carta aos hebreus diz que Jesus, mesmo sendo Filho (de Deus) aprendeu o que significa a “obediência a Deus”. No evangelho de João, Jesus diz aos seus discípulos que não fiquem parados, mas “se alguém me quer seguir, siga-me”. 2. Livro do Profeta Jeremias 31, 31-34 Desde Moisés até Jeremias, a caminhada de Israel foi difícil, cheia de idas e voltas, vitórias e derrotas, mas com um saldo positivo nos tempos de Jeremias. E em que consistiu esse saldo positivo? Enquanto a Aliança com os pais estava gravada na pedra, a nova Aliança agora prometida, diz Javé, será impressa nas entranhas e, mais do que isso, inscrita no coração do povo. O decálogo será assumido, não como uma norma fria e externa, mas se transformará num compromisso pessoal de amor a Deus 244 e ao próximo. À medida em que formos crescendo em idade e sabedoria, como o Menino Jesus, também devemos interiorizar cada vez mais a vivência do mandamento do amor. 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 5, 7-9 Jesus, sendo ao mesmo tempo Deus e homem, viveu necessariamente a contradição dessas duas situações opostas. Enquanto Deus, Ele podia tudo; enquanto homem, Ele não podia deixar de sofrer os limites da natureza humana. E conforme diz São Paulo, Ele não julgou que devesse reivindicar a sua condição divina, mas aceitou os limites da sua humanidade e se fez servo de todos. Por isso, “dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas àquele que podia salvá-lo da morte”. Ele foi atendido em sua oração, não porque não morreu, mas porque transformou a sua morte em Vida para nós. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 12, 20-33 O evangelho de hoje é um evangelho tipicamente de João, ou seja, menos narrativo e mais espiritual, menos descritivo e mais metafórico e mesmo surpreendente. Em vez de dizer que Jesus será crucificado, ele diz que Jesus será glorificado, porque é através da morte na Cruz que n’Ele brilhará o infinito Amor de Deus. Assim, também, é que a morte do trigo o fará ressuscitar nos seus frutos. “Não preserva a vida aquele que a retém para si, mas quem faz pouca conta da sua vida neste mundo a conservará para a vida eterna”. Assim como Jesus na adolescência cresceu em sabedoria, estatura e idade, ao longo da vida viveu-a num amplo processo de autosuperação até a sua glorificação no alto da Cruz. 245 Domingo de Ramos da Paixão do Senhor 1. Introdução Nesta introdução à festa de hoje, vamos tentar capturar o significado dela. O que Jesus quis dizer-nos ao adentrar solenemente a cidade santa e ao aceitar sem restrições as aclamações do povo que o recebia como o Messias prometido, filho de Davi, o verdadeiro Deus de Israel? Ele, que durante todo o seu ministério fora tão reticente ao ser chamado de Messias e ao proibir os discípulos e os miraculados de divulgarem os seus milagres e exorcismos? Com certeza Jesus sabia, pela pressão de que era vítima, que o Seu fim estava próximo e sabia também que o Seu fim seria, do ponto de vista humano, um desastre. Seria esquartejado como Jeremias, seria lapidado como um blasfemo, seria crucificado como um escravo e como um malfeitor? Qualquer que fosse o seu destino, Jesus queria que ficasse claro em toda cidade santa que ele era o Messias prometido, o filho de Davi, o Rei de Israel. 2. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 11, 1-10 Para o leitor despreparado, que não está familiarizado com a História e a cultura bíblicas, pode parecer estranha a importância que se dá ao jumentinho no relato da entrada triunfante de Je- 246 sus em Jerusalém e na sua preparação. Esse animal é importante porque a montaria típica dos reis de Israel era o “jumento”, em clara oposição aos fogosos corcéis dos faraós do Egito e dos seus carros de guerra que tentaram, em vão, barrar a passagem de Israel pelo Mar Vermelho a pés enxutos. Enquanto os faraós do Egito usavam da sua força para oprimir e explorar os pobres do seu país e escravizar os israelitas, os reis de Israel, montando humildes jumentos, saíam ao encontro dos filhos de Israel para socorrê-los em suas dificuldades e jamais para oprimi-los. Conforme os vaticínios dos antigos profetas, um dia, no futuro, Javé enviaria o seu ungido, um filho de Davi, o Messias, o Cristo para restaurar a grandeza perdida de Israel e resgatar as suas tribos dispersas. Essas profecias se realizaram no dia em que Jesus entrou triunfalmente na cidade Santa, mas montando um simples jumento para estar mais ao nível dos pequeninos e melhor servi-los. Na celebração de hoje, nós lembramos o povo de Jerusalém a receber Jesus não empunhando e agitando armas na mão, mas folhas de palmas e de oliveira, aquelas a indicar vitória e estas, a paz! Meus caros irmãos e irmãs, qual é o significado desta celebração, o domingo de Ramos, para nós, hoje? A cidade de São Paulo é uma cidade imensa, ao mesmo tempo fascinante e terrível. Assim como Jesus entrou solenemente em Jerusalém montado num jumento para melhor servi-la, pela fé nós sabemos que Jesus continua a visitar a nossa cidade e a servi-la pelas mãos dos Seus discípulos, ou seja, daqueles que se curvam para os pequeninos para melhor servi-los. 247 Celebração da Paixão do Senhor Nesta tarde da sexta-feira, que, com muita razão, chamamos de Santa com s, somos chamados a contemplar o grande mistério da Paixão e da Morte do Senhor para tentar entendêlo cada vez mais, na certeza, todavia, de que jamais o esgotaremos porque o Amor de Deus, de onde ele flui é infinito. Em primeiro lugar, para entender a Paixão e a Morte do Senhor, é preciso afastar a ideia bastante difundida de que a crucifixão e morte do Seu Filho, feito homem, foi o preço exigido pelo Pai para apagar o pecado de Adão e dos seus descendentes. A imagem do Pai que Jesus nos deixou através da belíssima parábola do filho pródigo desmente totalmente uma imagem justiceira de Deus Pai. Ao contrário, nós vemos na figura do velho pai um coração extremamente misericordioso que saía todos os dias de casa e subia a colina para melhor avistar o filho de volta à casa paterna. Ao invés de exigir um resgate, cobriu-o de beijos, vestiu-o com as melhores vestes, ornou-lhe as mãos com um anel, calçou-lhe sandálias novas, ofereceu-lhe um novilho gordo e recebeu-o com festa e música. Se a cruz de Jesus não é um resgate, também não é a apologia do sofrimento pelo sofrimento. Isso fica claro também quando Jesus, no Horto das Oliveiras, orava ao Pai: “Pai, se queres, afasta de mim esse cálice. Mas não se faça a minha vontade e, sim, a tua. Apareceu-lhe um anjo do céu que lhe deu forças”. Esse texto nos deixa claro que Jesus não queria sofrer por sofrer, mas que Jesus poderia até sofrer 249 se o sofrimento fosse necessário para cumprir a sua missão. Em vista disso, só poderemos descobrir o sentido da Paixão e da Morte do Senhor se entendermos qual era a missão da qual Jesus foi investido por seu Pai. A missão de Jesus já estava inscrita no seu próprio nome. Jesus em hebraico significa Salvador. Jesus veio para salvar o homem, primeiro de si mesmo e, em seguida, do outro homem. E como o homem poderia salvar-se a si mesmo e ao próximo? Sabendo-se que o homem deixado a si mesmo é um lobo para o outro homem, homo homini lupus, como dizia o filósofo, só há uma maneira de salvar o homem: ensiná-lo a não ser lobo, mas cordeiro, capaz de perdoar-se a si mesmo, em primeiro lugar, para em seguida perdoar o irmão e construir a paz, o shalom bíblico. Por aí, podemos compreender porque Jesus teve de passar pela cruz. Porque do alto da cruz Ele pôde perdoar os seus algozes: “Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem!” Perdoando os seus algozes, Jesus nos ensinou que o perdão, o único recurso para reconstruir uma paz sem retorno, não tem preço, nem limite. O perdão sem limites só cabe no coração de Deus, mas nós, homens limitados, podemos aprender a perdoar cada vez mais. Se nos lembrarmos de que, nos nossos embates de cada dia com nossos irmãos, nós nos revezamos como ofensores e ofendidos, será fácil perceber que sem o perdão nunca haverá paz entre nós. No momento em que sentirmos o apelo para perdoar o irmão, se nos parecer difícil fazê-lo, olhemos para Jesus no alto da cruz a perdoar os seus algozes. 250 Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor 1. Introdução Antes de comentar as leituras da missa de hoje, gostaria de tentar responder à pergunta: o que significa para cada um de nós acreditar que Jesus, o filho de Deus e de Maria, depois de ter sido crucificado, morto e sepultado, ressuscitou no terceiro dia e subiu aos céus, onde está, como se diz, à direita do Pai? Meus caros irmãos e irmãs, acreditar que Jesus ressuscitou significa acreditar que esse mesmo Jesus que ressuscitou e que ainda responde pelo mesmo nome continua vivo, presente espiritualmente entre nós, participa conosco da mesma Eucaristia como fez com os discípulos no Cenáculo. Como diz São Paulo, a respeito do destino do nosso corpo, Jesus despiu o seu corpo carnal e se revestiu de um corpo espiritual, cuja natureza escapa à nossa capacidade de descrever, mas que, nem por isso, perde a sua substância. Nessa Eucaristia, Jesus está entre nós. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 10, 34a.37-43 Trata-se nesta primeira leitura de um discurso de Pedro ao povo de Jerusalém, a respeito de Jesus. Pedro era discípulo de Jesus, que o constituiu chefe dos demais discípulos, também chamados apóstolos, em torno dos quais se estruturou a comunidade cristã primitiva de Jerusalém, célula mãe de todas as Igrejas. Em nome dessa Igreja, Pedro dá testemunho 251 de Jesus, o Messias prometido e abençoado por Deus com o Espírito Santo e com poder, a toda Jerusalém. Note-se a clareza da linguagem de Pedro a respeito de Jesus, da Sua história e da Sua missão e leve-se em conta o clima hostil que reinava entre os poderosos de então. Pedro robustecido pela experiência profunda da ressurreição do Senhor não era mais o mesmo que renegara o seu mestre. A maior graça da Ressurreição do Senhor é a fortaleza na fé. É também ela que leva até o martírio não só a Pedro, mas a todos os apóstolos, com exceção talvez de João. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 1-4 Com certeza, essa exortação de Paulo aos colossenses está baseada na sua experiência da ressurreição do Senhor. Paulo deixou-se converter por Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Paulo será eternamente grato ao Senhor, embora tivesse perseguido a Igreja do caminho, por ter sido agraciado com a aparição do Ressuscitado como o foram os outros discípulos que seguiram a Jesus desde os primeiros dias na Galileia. A fé de Paulo no ressuscitado, já nesta vida, antes da sua efetivação depois da morte, já ressuscita ou levanta o seu coração e o faz dizer: “Irmãos, se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos para alcançar as coisas do alto, onde está Cristo sentado à direita de Deus”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 1-9 A narrativa de hoje é vivida por três personagens intimamente ligadas a Jesus: Maria Madalena, que acompanhava Jesus desde a Galileia até a Judeia e que muito o amava; Simão Bar 252 Jonas, a quem Jesus dera o nome de Cefas, pedra, e sobre o qual construíra a sua Igreja; e João, o discípulo amado. Os três estavam somente à beira dos tempos novos, pois, até então, “não tinham compreendido a Escritura segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos”. Estavam à beira dos tempos novos, mas estavam aquém ainda. Maria Madalena, tão solícita ao depararse com o túmulo vazio, pensou que o corpo tinha sido removido para um lugar ignorado. Pedro, ao ver as faixas enroladas fora do lugar, apenas surpreende-se. João é o primeiro a transpor o limiar da dúvida: “Ele viu e acreditou”. E abriu para os amigos o sentido das Escrituras. Como João, vejamos e acreditemos. 253 2º Domingo da Páscoa 1. Introdução Este II Domingo da Páscoa, também chamado “Domingo da Misericórdia”, era muito importante nas comunidades cristãs dos primeiros séculos, pois pela primeira vez os catecúmenos, ou seja, os irmãos que se preparavam para o Batismo na Vigília da Páscoa, podiam participar da Liturgia Eucarística e não apenas da Liturgia da Palavra. Já batizados, podiam participar da celebração dominical completa, ou seja, não só da mesa da palavra, mas também da mesa do pão e do vinho consagrados. Vale a pena lembrar esse costume antigo porque ele nos sugere ou nos faz lembrar que a nossa reunião dominical tem dois momentos importantes intimamente relacionados, o da escuta da Palavra e o da comunhão eucarística. A Palavra nos prepara para a Comunhão e a Comunhão consolida a Palavra em nossos corações. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 4, 32-35 Iluminados pela Palavra e fortalecidos pelo pão e pelo vinho eucarísticos, os primeiros cristãos viviam em alto nível os valores do evangelho de Jesus tal como Ele os havia ensinado. A Palavra não era para eles um som vazio como a badalada do bronze que toca; o Pão e Vinho consagrados não eram apenas um alimento material, mas os transformavam. Não havia entre eles nem pobres, nem necessitados, porque todo o bem material que possuíam eles o distribuíam entre si. E davam aos não 254 cristãos o bom exemplo da caridade fraterna e por eles eram admirados. Embora vivamos hoje uma situação sócio-econômica muito diferente e dificilmente pudéssemos imitar ao pé da letra a comunidade primitiva, o certo é que algo devemos fazer e a nossa comunidade parece disso ter consciência, pois tenta com generosidade contribuir com algo. 3. Primeira Carta de São João 5, 1-6 João tenta em poucas palavras passar dois ensinamentos essenciais nesses modestos seis versículos da liturgia de hoje. O primeiro é o de que, em virtude da nossa condição humana, só podemos saber se amamos a Deus, se na verdade estivermos amando concretamente e não só em palavras, nossos irmãos. O segundo ensinamento é o de que Jesus Cristo é o único Salvador, enviado pelo Pai e iluminado pelo Espírito. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 19-31 Na cena de hoje, Jesus ressuscitado, já despido de seu corpo material e revestido de seu corpo espiritual, irrompe, as portas estando fechadas, nas salas onde os discípulos se encontravam por medo dos judeus. O propósito de Jesus, já na primeira hora do dia da Sua ressurreição, é levar-lhes a Paz, o Shalon bíblico, que não é apenas a ausência de guerra, mas a plenitude dos dons do Espírito Santo. “A paz esteja convosco”. Com a paz, entrega-lhes também a missão de propagar o evangelho: “Como 255 o Pai me enviou, assim também eu os envio”. Deu-lhes também o Espírito do perdão sem o qual não poderia haver a Paz: “A quem perdoardes os pecados, eles serão perdoados.” Essa cena se repete a cada vez que nos reunimos para ouvir a palavra e repartir o pão. 256 3º Domingo da Páscoa 1. Introdução As duas primeiras leituras de hoje falam-nos do “pecado”, por isso vale a pena, nesta introdução, refletir, ainda que rapidamente, sobre o “pecado”. Nós homens, assim como muitos animais, somos seres gregários, que só sobrevivem vivendo em comunidade. Enquanto os animais vivem guiados pelo instinto, nós, os humanos, somos guiados pela razão e, em virtude da liberdade, que é o nosso dom maior e nos define como humanos, somos responsáveis pelos nossos atos e por eles respondemos perante a nossa consciência, perante a sociedade e perante Deus, se Nele acreditamos. Pecar é agir contra a nossa consciência moral. Em virtude dos nossos limites, de toda ordem, também falhamos na ordem moral, portanto, pecamos. Podemos dizer com razão que errar é humano e que Deus sabe disso. Não só sabe, mas, sem violar nossa liberdade, está sempre pronto a socorrer-nos com o Seu perdão e a Sua misericórdia. Foi essa grande e consoladora verdade que Jesus veio nos revelar: que Deus, o seu Pai, sendo Amor, diante do Seu ofensor, o ser humano, só pode ser Perdão. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 3, 13-15.17-19 Mais uma vez Pedro, dirigindo-se ao povo com clareza meridiana, diz com todas as letras que ele pecou gravemente desencorajando Pilatos a soltar Jesus. Com isso, acabara sendo 257 responsável pela morte do Justo por excelência. O Pai, ao ressuscitar seu Filho Jesus, selou com o Seu gesto os ensinamentos de Jesus, com o selo da Verdade. Pedro reprova a covardia do povo perante as autoridades, mas não o condena definitivamente, porque podem arrepender-se, pois agiram por ignorância. O que Pedro dizia ao povo, poderia repetir a cada um de nós: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados.” 3. Primeira Carta de São João 2, 1-5a João nos diz duas coisas fundamentais nas poucas linhas que estamos lendo nesta sua primeira carta. Primeiro, que somos pecadores porque, sendo homens, somos seres limitados, mas, por isso mesmo, podemos contar com um defensor junto de Deus, que é Jesus Cristo, que não hesitou em perdoar os Seus ofensores. A segunda coisa que nos ensina é a respeito do conhecimento do verdadeiro Deus. Nós só chegaremos ao conhecimento do verdadeiro Deus se amarmos os nossos irmãos, ou seja, se cumprirmos o Seu mandamento que não é outro senão o amor ao irmão. Deus está longe de ser uma verdade abstrata que se conhece através de cálculos. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 24, 35-48 O evangelho de hoje não é muito diferente de outras narrativas que já lemos nesses últimos dois domingos de Páscoa, mas ele tem uma característica bem marcante: é de um realismo 258 que chama a atenção. Jesus aparece de repente e interrompe a conversa dos discípulos; deseja-lhes a Paz, ou seja, deseja-lhes tudo de bom; acalma-lhes o medo e o espanto; tira-lhes as dúvidas; Ele não é um fantasma; deixa-se tocar; mostra-lhes a chaga das mãos e dos pés; tira-lhes todas as dúvidas, se ainda houvesse algumas, pede-lhes para comer e, mais do que isso, serve-se e come! Devemos perguntar, por que tudo isso? Com certeza, para consolidar sem nenhuma dúvida a fé dos discípulos na Sua ressurreição, porque a ressurreição era o aval do Pai a tudo que Ele, Jesus, vivera e ensinara. Não havia dúvida, o evangelho de Jesus era o evangelho do Pai: poderiam ensiná-lo, vivê-lo e morrer por ele. 259 4º Domingo da Páscoa 1. Introdução Jesus tem muitos títulos ou nomes, cada um deles abre uma janela sobre o mistério de Jesus, o Cristo, filho de Deus e de Maria; entre outros títulos, podemos lembrar, “filho do Homem”, como Jesus se autodenominava; “Messias”, o nome hebraico para Cristo, o ungido de Deus, Salvador ou Jesus; filho de Davi, conforme foi aclamado ao entrar triunfamente em Jerusalém. Hoje, Jesus é celebrado como o Bom Pastor, aquele que dá a vida pelas Suas ovelhas; não é de estranhar que Jesus se tenha atribuído o título de Bom Pastor, um ícone perfeito num país de pastores. Nós sabemos que na sua origem Israel era uma tribo de beduínos, que nomadizava, descendo e subindo montanhas, em busca de pasto para os seus rebanhos de cabras e ovelhas. Jesus, o Bom Pastor, será o objeto da nossa reflexão ao meditarmos sobre o evangelho de hoje. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 4, 8-12 Pouco antes de pronunciar perante o povo e os anciãos o discurso que hoje estamos recordando na primeira leitura, Pedro e o apóstolo João, ao entrarem no Templo, foram surpreendidos por um paralítico de nascença, que mendigava à porta do Templo. Este pediu-lhe esmola e Pedro respondeu-lhe: “Não tenho nem ouro nem prata, mas o que tenho te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, põe-te a andar.” Por causa desse milagre, os apóstolos foram chamados à ordem e punidos pelas autori260 dades, mas antes que isso acontecesse, Pedro, diante de uma multidão espantada com os saltos do ex-paralítico, proclama claramente: “É pelo nome de Jesus Cristo de Nazaré – aquele que vós crucificastes e que ressuscitou dos mortos – que este homem está curado diante de vós.” Esse Pedro, transfigurado pela fé no Ressuscitado, não tinha mais nada daquele Pedro acovardado que renegara o seu mestre por três vezes antes que o galo cantasse. 3. Primeira Carta de São João 3, 1-2 A ideia chave do pequeno trecho desta primeira carta de João é a de que somos filhos de Deus. O sentido da palavra “filho” no Novo Testamento tem uma conotação especial além do significado óbvio da palavra. No Novo Testamento, a palavra “filho” opõe-se a “servo” ou “escravo”, ou seja, “filho” é alguém que é “livre” e pode escolher o seu destino e, além disso, é herdeiro do pai de família. Diante de Deus, somos livres para assumi-lo como Pai e amá-Lo na certeza de que Ele não nos abandonará. E essa amizade com o Pai será sempre crescente, a ponto de não podermos sequer imaginar como seremos ao fim e ao cabo da nossa caminhada terrena e, mais ainda, na outra vida, quando tivermos a grande revelação ao vermos como Ele, o Pai, é. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 10,11-18 Jesus é o Bom Pastor e não um mercenário, ou seja, o Bom Pastor visa ao bem das ovelhas e o mercenário visa ao próprio bem. Santo Agostinho define o bom pastor como aquele que apascenta as ovelhas, principalmente as enfermas e as desgar261 radas, e mercenário é aquele que apascenta a si mesmo. Outra característica do Bom Pastor é a de que ele conhece as suas ovelhas não genericamente, mas cada uma pelo seu nome. A recíproca também é verdadeira, ou seja, cada boa ovelha em particular também conhece o Pastor pelo nome. O Bom Pastor tem um coração ecumênico e quer que todas as ovelhas livremente se reúnam num único redil. Desde o seu retorno ao Pai, o Bom Pastor entregou o pastoreio à Igreja, ou seja, a nós que somos ora ovelhas, ora pastores, conforme a situação que estivermos vivendo, e o nosso modelo será sempre Jesus, o Bom Pastor. 262 5º Domingo da Páscoa 1. Introdução Domingo passado, tentamos entender a autodenominação de Jesus: “Eu sou o bom pastor” e hoje temos diante de nós outra frase de Jesus a respeito de si mesmo: “Eu sou a verdadeira vida e meu pai é o agricultor”. O evangelista João nos garante que Jesus estava falando aos Seus discípulos e por causa deles Jesus logo acrescenta: “Eu sou a videira e vós os ramos”. Qualquer que seja o significado espiritual da videira, ele é fundamental para os discípulos. Eles não poderão jamais cortar-se daquele tronco que é Jesus, pois é dele que recebem a sua seiva, a sua vida. “Quem não permanecer em mim, e eu nele, será lançado fora como um ramo e secará”. Se “permanecer” fosse traduzido ao pé da letra, seria mais forte ainda que quem não for a mim, quem não estiver em mim... secará. O que era verdade para os discípulos de Jesus que o escutavam há pouco mais de dois mil anos vale ainda hoje para nós. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 9, 26-31 Paulo, o grande arauto do evangelho de Jesus no mundo pagão de língua grega, teve duas fases como missionário: a primeira, na própria Palestina, logo após a sua conversão em Damasco, e a segunda, na Ásia Menor e toda a Bacia do Mediterrâneo. A leitura de hoje focaliza a primeira fase em que Paulo teve de demonstrar muita sabedoria para fazer-se aceitar, devido ao seu passado de perseguidor da Igreja de Cristo. A leitura de hoje 263 nos diz que Paulo “conversava e discutia com os judeus de língua grega que tentavam eliminá-lo”. Em outras palavras, Paulo era um homem que sabia dialogar, trocar ideias e não impô-las. Paulo era um evangelizador e, como nos diz o Concílio Vaticano Segundo, a evangelização começa com o diálogo inter-religioso e não existe sem ele. Podemos afirmar que o diálogo com o irmão em matéria de fé e de verdade é um ato de amor. 3. Primeira Carta de São João 3,18-24 Vamos tentar identificar alguns versículos, chave da primeira carta de João, que nos parecem fundamentais: Filhinhos, não comamos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade. A afirmação de Jesus, em outra parte, confirma o conselho de João: “não são aqueles que dizem Senhor! Senhor! que entrarão no Reino dos Céus, mas aqueles que fazem a vontade do Pai.”; Deus é maior que o nosso coração e conhece todas as coisas: em outras palavras, Deus, embora seja, não é apenas o Senhor dos Senhores, Ele é antes de tudo um grande coração que nos ama com grande coração de Pai e, mais do que ninguém, inclusive nós mesmos, conhece os nossos limites e por isso está sempre inclinado não só à misericórdia, mas ao perdão misericordioso. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 15, 1-8 A parábola da videira verdadeira finca as suas raízes na cultura agrária da Palestina e, mais do que isso, no livro do profeta Isaías, de quem Jesus deve ter sido um grande leitor, como prova a Sua identificação com o Servo Sofredor, conforme vimos em todo o tempo quaresmal e, mais ainda, na sexta-feira da 264 Paixão do Senhor. Isaías compara o povo de Israel, o povo escolhido como testemunha do verdadeiro Deus, com uma vinha que o Senhor plantou com todo o carinho, regou, escolheu as melhores sementes para que produzissem uvas doces e saborosas, mas que infelizmente apenas produziram uvas azedas. Diante do malogro da primeira vinha, Jesus se apresenta como a verdadeira vinha, Ele como tronco e os Seus seguidores como os ramos. Como são os nossos frutos? 265 6º Domingo da Páscoa do Senhor 1. Introdução Estamos celebrando hoje o domingo da Ascensão do Senhor, dia em que Jesus, o filho de Deus, ao encerrar a Sua missão terrena, despede-se dos discípulos. As leituras de hoje, as três, representam uma espécie de Testamento aos Seus seguidores de todos os tempos. Em síntese, as leituras nos revelam o essencial para a nossa fé, ou seja, que Deus é Amor, mas como a palavra Amor é em muitos casos ambígua, as leituras de hoje, cada uma a seu modo, nos passam uma ideia qualificada sobre como devemos entender a natureza do Amor que nós chamamos de Deus. Como o Amor de Deus é infinito, jamais chegaremos a entendê-lo plenamente por um lado, mas, por outro, também é verdade que O iremos conhecendo cada vez mais sem que o seu Mistério jamais se esgote. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 10, 25-26.34, 35-44.48 Ao lermos atentamente as Sagradas Escrituras, vamos percebendo como Deus foi se revelando aos poucos ao povo escolhido para dar testemunho Dele perante os outros povos. Em primeiro lugar, revelou-se a Abraão como um Deus desejoso de 266 fundar uma grande nação baseada no direito e na justiça. Abraão viu em Javé um Deus diferente e pôs nele sua confiança. Moisés descobre na sarça ardente um Deus desejoso de libertar o Seu povo. Um Deus que não reivindicava os Seus direitos, mas sim os direitos do Seu povo, escravizado pelo faraó do Egito. Os grandes profetas do VIII século antes de Cristo viram em Javé não o maior Deus entre os deuses, mas o único Deus a quem todos os povos do mundo viriam a adorar no alto do Monte Sião. Séculos depois, em casa do pagão Cornélio, Pedro, discípulo de Jesus, o Messias prometido, percebe que o Deus da Tradição bíblica não faz nenhuma acepção de pessoas, mas envia o seu Espírito de amor a gentios e pagãos igualmente. 3. Primeira Carta de São João 4, 7-10 Deus, sendo Amor, toda a Sua criação e, de modo particular, o homem e a mulher estão banhados de amor. O amor é como a luz que tudo ilumina, o mundo e o homem, o passado, o presente e o futuro. Fora dele, somos cegos, surdos e mudos e nada terá sentido. Se Deus fosse a verdade, só os filósofos e os cientistas poderiam decifrá-Lo. Se Deus fosse a beleza, só os artistas e os poetas poderiam conhecê-lo. Mas como Deus é amor, para conhecê-Lo basta saber amar. Qualquer amor de qualquer natureza, contanto que seja amor verdadeiro, leva a Deus. Ainda que não o saibamos. 267 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 15, 9-17 “Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: como meu Pai me amou, assim eu vos amei. Permanecei no meu amor”. Essas palavras de Jesus são ao mesmo tempo uma revelação e um convite. Elas nos revelam que não estamos sós e abandonados no mundo, como às vezes nos parece, mas estamos enlaçados pelo amor do Pai e do Filho no Espírito Santo. Queremos permanecer nessa companhia? Esse convite não está condicionado aos nossos méritos e essa é a sua marca registrada: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais frutos e o vosso fruto permaneça”. A gratuidade é o outro nome do amor e também o outro nome de Deus. Deus é graça e está sempre ao nosso alcance onde quer que estejamos! 268 Ascensão do Senhor 1. Introdução Celebramos hoje a missa da Ascensão do Senhor. Tentemos antes entender o fato em si e, depois, o seu significado. No dia da concepção de Jesus no seio da Virgem Maria, o Filho de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, entra na História dos homens e passa a viver a sucessividade do tempo e a ocupar o espaço que envolve toda criatura. Depois da sua morte, conforme Ele próprio anunciara em vida, volta para o Pai, de onde viera, e de lá fora do tempo e do espaço, envia, também conforme prometera, o Espírito Santo, segundo se celebra em Pentecostes, para iluminar e conduzir os homens ao longo da História de todas as gerações em todos os recantos da Terra. Com a sua ascensão aos céus, Jesus, o Filho de Deus e de Maria, encerra a Sua missão terrena e sob a guarda do Espírito Santo envia os Seus discípulos a proclamarem o evangelho até os confins da Terra. Não é, pois, a festa litúrgica da Ascensão apenas um ato festivo, mas um envio solene para a missão de todos os discípulos de Jesus Cristo até que Ele volte no fim da História. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 1, 1-11 A primeira leitura de hoje são os 11 primeiros versículos do livro dos Atos, escrito pelo evangelista Lucas, autor do terceiro evangelho. No seu evangelho, Lucas narra os ditos e os feitos de Jesus, desde a concepção até a morte e ressurreição, seguida das aparições aos discípulos. Nos Atos dos Apóstolos, Lucas narra o 269 retorno de Jesus ao Pai, a Sua ascensão e o envio dos discípulos à missão, como celebramos hoje. A primeira leitura de hoje se encerra com uma pergunta contundente para os discípulos, que continua valendo para todos nós até hoje: “Homens da Galileia, por que ficais aqui parados a olhar para o céu?” É como se os dois homens de branco dissessem: não se trata mais de ficar olhando para o alto, mas para frente ao anunciar o evangelho para todas as gentes até o dia em que Ele voltar. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 1, 17-23 Paulo, o grande discípulo de Jesus Cristo, ao dirigir-se aos efésios, estimulando-os a anunciarem aos seus irmãos pagãos o nome de Jesus, chamava-lhes a atenção para a pessoa extraordinária de Jesus, em quem o Pai manifestou a Sua força, ressuscitando-o dos mortos, fazendo-o sentar-se à Sua direita nos céus bem acima de toda a autoridade, poder, potência, sabedoria ou qualquer título que se possa nomear, não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro. Essas palavras contundentes de Paulo nos estimulam a não banalizarmos a nossa fé, porque os nossos irmãos de hoje, tão tentados pela incredulidade, merecem de nós testemunho à altura do nome de Cristo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 16, 15-20 Alguns versículos do evangelho de hoje podem parecer datados e nos causam alguma estranheza se nós não os comentarmos, mas vamos nos deter na mensagem central que guarda toda a sua força e contundência: “Ide pelo mundo inteiro e 270 anunciai o evangelho a toda a criatura.” Meus caros irmãos e irmãs, é claro que não podemos anunciar o evangelho a todas as criaturas, mas podemos anunciar a todas que pudermos. Não é possível que, por nossa culpa, as pessoas, quaisquer que elas sejam, ignorem o dom que lhes foi dado pelo Pai em Jesus Cristo e em tudo o que Ele nos revelou. Não é possível que alguém por nossa culpa morra sem saber que foi salvo pelo amor infinito de Deus. Todos saberão disso depois da morte, mas por que não dizer-lhes em vida? 271 Domingo de Pentecostes 1. Introdução Pentecostes, quinquagésimo em grego, no caso, o quinquagésimo dia da ressurreição do Senhor, foi a data escolhida por Lucas para solenizar a descida do Divino Espírito Santo sobre os discípulos reunidos no mesmo lugar sob a forma de língua de fogo, o evangelista João nos diz que já no Domingo da Ressurreição pela mediação de Jesus e sob o nome da Paz, Shalom, os discípulos receberam o Espírito Santo. Essa contradição é apenas aparente porque, percorrendo as Sagradas Escrituras, sabemos que, já no segundo versículo do primeiro capítulo do Gênesis, o Espírito de Deus pairava sobre as águas quando elas cobriam todo o planeta antes que o seu refluxo formasse os continentes. No livro do profeta, nós sabemos que em Isaías pousou o Espírito do Senhor, espírito de sabedoria e inteligência, espírito de fortaleza e inteligência, espírito de conhecimento e temor de Deus. Não se trata, pois, de uma contradição, mas de uma consoladora verdade: todo dia é dia do Espírito Santo, pois foi assim que Jesus nos prometeu antes de subir ao Pai. Nós não estaríamos jamais sós, porque o Espírito Santo estaria sempre conosco. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 2, 1-11 Para entendermos melhor a alegoria de Lucas a respeito da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e em seguida sobre todo o povo que vinha de todas as partes e falava muitas línguas, devemos lembrar-nos da história da Torre de Babel, narrada no 273 livro do Gênesis. Um povo cheio de orgulho queria construir uma grande torre que subisse até os céus para medir forças com Javé. Para curá-lo de tanta soberba, Javé misturou-lhe as línguas e eles já não conseguiam mais se entender e, assim, não conseguiram construir a grande torre. No dia de Pentecostes em Jerusalém, onde moravam cidadãos de todas as partes e falavam cada um a sua língua, todos passaram a entender a pregação dos apóstolos como se eles falassem em seu próprio idioma. Enriquecidos com o dom da sabedoria, inteligência, conhecimento e os demais dons, todos se entendiam maravilhosamente e podiam viver em Paz, ou seja, a síntese de todos os dons. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 3b-7.12.13 Tentemos entender o primeiro versículo desta segunda leitura da liturgia de hoje: Irmãos, ninguém pode dizer: “Jesus é o Senhor”, a não ser no Espírito Santo. É claro que podemos articular com a boca esta frase, mas não podemos pronunciá-la com o coração. “Jesus em hebraico quer dizer salvador”, mas se não soubermos do que nos salva Jesus será em vão chamá-lo pelo nome. Se não soubermos qual a natureza do senhorio de Jesus, poderemos até blasfemar chamando-o de Senhor. Jesus é Salvador, não porque nos salva do perigo e da morte. Jesus é Salvador porque nos salva de nós mesmos, ou seja, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e nos liberta para o verdadeiro amor. Jesus é Senhor, mas o senhorio não é dominação, mas serviço e amor. “Eu não vim para ser servido, mas para servir”, diz Jesus. Por 274 isso tem razão Paulo ao afirmar: “Ninguém pode dizer Jesus é o Senhor, senão no Espírito Santo”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 19-23 Jesus não espera muito tempo para visitar Seus amigos e infundir-lhes o Espírito prometido. Ele os visita no primeiro dia da semana, ou seja, no Domingo, no dia mesmo de Sua ressurreição e não deixou para o dia seguinte. Jesus começa por desejar-lhes a paz, o shalom bíblico, a síntese de todos os dons do Espiríto Santo. Não podia desejar-lhes nem mais, nem melhor. Não só os dons do Espírito Santo, mas o próprio: “recebei o Espírito Santo” diz Jesus aos seus amigos. E dá-lhes o dom de perdoar. E como há reciprocidade entre eles, dá-lhes também o dom de serem perdoados. E assim como o Pai o enviara, Ele também envia os seus discípulos. 275 Solenidade da Santíssima Trindade 1. Introdução Neste domingo da Santíssima Trindade, é como se tivéssemos chegado ao pico de um alto monte que começamos a escalar no primeiro Domingo do Advento; acompanhamos o Senhor Jesus, filho de Maria e filho de Deus, desde o seu nascimento até a sua ressurreição, passando pela sua paixão e morte; em Pentecostes, no domingo passado, fomos inundados pelo Espírito Santo que, conforme nos diz Paulo, nos faz clamar “Abba, Pai!” Hoje somos chamados a contemplar o mais alto mistério e, ao mesmo tempo, o mais próximo, o mistério da Santíssima Trindade; o mais próximo, porque Ele fez de nós a sua morada, ou, como dizia Paulo novamente, Ignorais que sois o templo de Deus? O Deus de Jesus não é um Deus solitário, é um Deus comunhão, solidário com todos os Seus filhos. 2. Livro do Deuteronômio 4, 32-34.39-40 As Sagradas Escrituras, desde o Antigo Testamento, nos mostram como Deus foi, aos poucos, se revelando ao Seu povo. Revelou-se em primeiro lugar a Adão e Eva como criador do céu e da terra, dos homens e dos animais que nela habitam; revelouse a Abraão como Pai de uma grande nação; revelou-se a Moisés como Libertador; revelou-se aos profetas como um Deus justo e 276 santo; como um Deus que um dia enviaria o Seu ungido, o Messias, para inaugurar um reino de amor, de justiça e de paz. Com razão, podia Moisés perguntar ao seu povo: “Existe, porventura, algum povo que tenha ouvido a voz de Deus falando-lhe do meio do fogo, como tu ouviste, e tenha permanecido vivo?” Assim como Deus foi, aos poucos, revelando-se ao Seu povo ao longo dos séculos, assim também esse mesmo Deus vai aos poucos se revelando a cada um de nós. A cada vez que nos reunimos, aos domingos, para a escuta da palavra e para a fração do pão, mais Dele nos aproximamos e O conhecemos. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 14-17 Paulo, no caminho de Damasco, ao encontrar-se com Jesus ressuscitado não só se rendeu ao seu evangelho, mas mudou a qualidade do seu relacionamento com Deus. Deixou de sentir-se como escravo perante o seu mestre todo poderoso, para sentir-se livre como um filho, capaz de clamar perante o seu Deus, Abba, ó Pai. O caminho que Paulo percorreu até chegar aonde chegou também deve ser percorrido por nós. Às vezes ainda tememos a Deus como um escravo teme ao seu senhor, mas nós não somos escravos, somos filhos e como filhos e não escravos somos herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo. O próprio Espírito, com E maiúsculo se une ao nosso espírito com e minúsculo para atestar que somos filhos de Deus. 277 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 28,16-20 Com esses quatro versículos Mateus compõe a cena da Ascenção de Jesus e conclui o seu evangelho. Convocados pelo ressuscitado, os discípulos, os onze, dirigiram-se à Galiléia, onde Jesus começara a anunciar o Reino de Deus. Os seus discípulos também aí começariam a anunciar o Evangelho e a batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas não mais às ovelhas perdidas da casa de Israel e sim a todos os povos da terra. Encerrava-se a missão de Jeus e iniciava-se a missão da Igreja, que é também a nossa missão. Quando perguntavam a Moisés como se chamava o Deus em cujo nome ele falava, ele respondia, Javé, isto é, Aquele que é. Quando nos perguntarem o nome do nosso Deus, responderemos: Pai, Filho e Espírito Santo, o Pai que nos criou e vela por nós, o Filho Jesus que nos remiu e o Espírito Santo que nos santifica, nos dá a paz e nos cobre com seus dons. 278 2º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A experiência religiosa, em todas as tradições e não só na judaico-cristã, supõe a crença ou a fé de que Deus de alguma maneira se comunica com o Homem. Isso fica claro nas religiões do livro, o judeo-cristianismo e o islamismo, pois esse diálogo de Deus com o Homem está consignado na Bíblia e no Alcorão. As leituras de hoje nos mostram que o diálogo de Deus com o homem não é meramente gratuito, mas é, de fato, uma parceria em busca da construção de um mundo melhor. Isso fica claro na figura do jovem Samuel, chamado a ser um protagonista na História de Israel ao escolher Davi como sucessor de Saul e ao sagrá-lo Rei de Israel, de cuja descendência nasceria Jesus, o Messias; ficaria claro na figura do Batista que apontaria Jesus como o Cordeiro de Deus e ficaria claro na figura de Paulo, o apóstolo dos gentios. 2. Primeiro Livro de Samuel 3, 3b-10.19 Ao longo da História de Israel, há um grande número de vocacionados chamados por Deus para serem os seus lugarestenentes na construção da História de salvação. Samuel era filho de Ana que era estéril, mas pela graça de Deus engravidou e, como primogênito, Samuel, segundo a tradição levítica, foi consagrado a deus no Templo de Silo, anterior à fundação de Jerusalém e portanto à construção do primeiro Templo, o de Salomão. No Templo de Silo, desde criança, Samuel estava atento ao 279 chamado de Deus. Ele, conforme nos diz belamente a primeira leitura da liturgia hoje: “não deixava cair por terra nenhuma de suas palavras”, ou seja, palavras de Deus. São Paulo, na segunda carta a Timóteo, afirma: “toda (palavra de Deus) Escritura é inspirada e útil para ensinar, repreender, encaminhar e instruir na justiça”. Já repetimos mais de uma vez a afirmação de que Santo Agostinho, segundo a qual na celebração da missa a mesa do pão eucarístico é a mesma mesa do pão da palavra. Se pela fé cremos que Deus nos fala, por obediência filial, devemos ouvilo com atenção. Ele aguarda o nosso livre assentimento. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 6, 13-15.17-20 Paulo foi chamado por Deus, no caminho de Damasco, e posto a parte para ser apóstolo dos gentios com a missão de levar-lhes o evangelho de Jesus, que era um evangelho da dignidade não só da alma, mas também do corpo. Nós conhecemos pela História a frouxidão moral dos costumes no mundo pagão. Paulo não se furtou a chamar-lhes a atenção para a dignidade do corpo humano, do homem e da mulher. Como profanar o corpo, aquele mesmo corpo que foi comprado por um preço muito alto, o sangue de Cristo? Não poderíamos, sem nenhum falso moralismo, fazer a mesma pergunta aos nossos companheiros de hoje? 280 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 1, 35-42 O evangelho de hoje nos fala de grandes vocacionados que ouviram todos os seus chamados. Pela ordem cronológica temos o Batista, que foi anunciado pelos profetas, e chamado ainda no seio da sua mãe Isabel. Ele aponta com as mãos o vocacionado por excelência, Jesus, o Cordeiro de Deus. O cordeiro fiel que cumpriu a sua missão ao preço do derramamento do seu sangue. Dizia ele: “Meu Pai, eu vim para fazer a vossa vontade!” João Batista, líder de um movimento de reavivamento religioso, não era ciumento e ele encaminha para Jesus os seus discípulos André e o seu irmão Pedro, apontando para Jesus: “Eis o Cordeiro de Deus”! Meus caros irmãos e irmãs, até hoje Jesus continua chamando seus discípulos para aprenderem com Ele a serem seus apóstolos. Nós estamos entre eles. 281 4º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As três leituras deste domingo colocam-nos de maneiras bem diferentes diante de um só problema comum para todos os homens, o problema moral, ou seja, o problema da escolha entre o bem e o mal. Esse problema, no mundo em que vivemos, é exclusivo dos homens, já que aos animais, seguindo os seus instintos, são moralmente inimputáveis. Faz parte da tradição bíblica e dos ensinamentos de Jesus que não estamos sós na busca do bem, mas podemos contar com a ajuda do Espírito Santo, que ilumina os nossos passos no caminho do bem ou mesmo do melhor. Trata-se, com as luzes do Espírito, de refinar a nossa consciência, que é a nossa última instância moral, e tomar as decisões morais a respeito dos nossos atos. 2. Livro do Deuteronômio 18, 15-20 O profetismo é uma afirmação de que Deus, de alguma maneira, suscita homens, que através dos seus gestos e palavras indicam para o povo os caminhos, como se diz no Antigo Testamento, do direito e da justiça. Ao relermos a História de todos os povos, percebemos em todos eles figuras humanas que exerceram esses papéis. A História de Israel conta com um grande número de profetas, Moisés, Isaías, Jeremias, João Batista e o maior de todos, Jesus Cristo, filho de Deus e de Maria. Nos tempos de hoje, podemos lembrar Gandhi e Martin Luther King. A carta aos hebreus nos diz que Deus, no passado, de 282 muitos modos e maneiras, falou ao Seu povo, mas finalmente, de modo definitivo falou em Jesus Cristo, o verdadeiro e definitivo, profeta. Se é verdade, por um lado, que a nossa consciência pessoal é a nossa última instância moral e é ela que nos faz bons ou maus, justos ou injustos, é também verdade que para formála corretamente devemos consultar o ensinamento de Jesus. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 7, 32-35 Os ensinamentos de Paulo a respeito de casar-se ou não ou como viver no casamento só ganham o seu verdadeiro sentido dentro do contexto de vida da comunidade de Corinto ou mesmo das convicções de Paulo naquela época. Nas primeiras décadas depois da ressurreição, esperava-se para muito breve o fim da História e a segunda e definitiva vinda do Senhor. Nessa emergência só contava estar bem preparado para quando soassem as trombetas anunciando a chegada do Senhor! Tudo o mais perdia importância ou podia distrair do que realmente importava – responder ao chamado do Senhor! Daí, a relativização do casamento. Este trecho da carta de Paulo vale ainda para nós hoje? Vale na medida em que até hoje há uma hierarquia de valores morais e que essa hierarquia deve ser levada em conta na formação de nossa consciência. 283 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 21-28 As sinagogas, ou seja, os lugares em que, sob a liderança dos fariseus, o povo se reunia para orar, ler as Sagradas Escrituras, eram grandes formadoras de opinião e de uma opinião conservadora como a dos fariseus. Jesus entra na sinagoga e assume a palavra. E essa palavra causa espécie, pois falava como quem tinha autoridade e não se considerava obrigado a repetir o ensinamento repetitivo e autoritário dos fariseus. Um enfermo mental, por isso considerado possuído pelo demônio, manifesta o seu espanto e Jesus o liberta da sua enfermidade. O profeta Jesus iniciava a sua campanha de esclarecimento das consciências, uma luz que até hoje ilumina as nossas próprias consciências. 284 5º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O versículo introdutório da primeira leitura de hoje, do livro de Jó, “Não é por acaso uma luta a vida do homem sobre a terra?”, nos dá a nota, o tom para a nossa reflexão de hoje. As dificuldades da vida, nem todas elas negativas, são o nosso lote de todos os dias. Saber viver é saber conduzir essa luta de tal modo que a vitória sobre as dificuldades não seja só nossa, mas também do nosso próximo. Nem Jó, nem o apóstolo Paulo, nem Jesus, nós o sabemos, estavam sós na vida, mas batalhavam por uma causa justa, Jesus anunciando o Reino de Deus, Paulo divulgando no mundo inteiro o evangelho de Jesus, e Jó tentando entender o mistério da vida, o mistério do sofrimento do justo e do inocente. 2. Livro de Jó 7, 1-4 O livro de Jó não é um livro histórico, mas uma peça, um drama de ficção de alta qualidade filosófica, teológica e literária, que pretende discutir o problema: “como conciliar a apregoada bondade e justiça de Deus com o sofrimento do justo?” À época julgava-se, pela teoria da retribuição, que Deus recompensava o justo com benesses e uma vida longa e castigava com a pobreza, a doença e a morte precoce o pecador. O autor do livro de Jó discordava dessa tese e por isso o seu personagem Jó, sendo justo, sofreu todas as doenças e misérias. A tese, então, da retribuição não se sustentava. Nem por isso o livro de Jó é desesperador, 285 porque se o justo nem sempre é recompensado nesta vida, ele será na outra! A modernidade nos ensina que o mundo em que vivemos é limitado e por isso mesmo o sofrimento é muitas vezes inevitável, e que um dia morreremos totalmente. Mas o Espírito de Jesus nos faz esperar com toda a Esperança. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 9, 16-19.22-23 Nesse trecho da primeira carta aos coríntios, vemos o apóstolo Paulo de corpo inteiro. Assim como antes da sua conversão: “Saulo devastava a Igreja, entrava nas casas, agarrava homens e mulheres e os punha na prisão”; depois da sua conversão, o mesmo Saulo, agora já Paulo, com o seu novo nome de convertido, podia dizer: “Ai de mim se eu não pregar o Evangelho!” Oxalá pudéssemos cada um de nós, embora à nossa maneira, sustentar a mesma coerência interior de Paulo. Se a nossa fé em Jesus Cristo nos faz a cada domingo nos mover de casa até esta capela, por que guardamos só para nós as riquezas do evangelho? 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 29-39 O evangelho de hoje nos dá uma ideia do que Jesus entendia por pregar o reino de Deus. Melhor seria dizer o Reinado de Deus do que o Reino de Deus. O Reino de Deus parece algo com uma extensão geográfica, enquanto Reinado de Deus é algo dinâmico, que se está realizando, ou seja, as febres vão caindo, 286 os doentes vão sendo curados, os possuídos pelos demônios vão sendo libertados. Jesus não veio para ensinar uma nova doutrina ou fundar uma nova religião, Ele veio para salvar o homem e torná-lo mais humano. Para Jesus, salvar o homem é torná-lo mais humano, isto é, mais feliz, mais livre, mais solidário com os outros irmãos. Jesus deixava-se acompanhar por discípulos para deixar claro que a Sua missão devia ser partilhada por outros homens durante a Sua vida e também depois. A Igreja são os discípulos de Jesus hoje a fazerem o que Jesus fazia em vida, ou seja, salvar os homens, tornando-os mais homens. 287 6º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O tema que marca a primeira leitura, tirada do Levítico, e o Evangelho de Marcos é a lepra, uma doença que aterrorizou a humanidade durante séculos e só ultimamente perdeu o seu impacto ao tornar-se curável. Além de ser uma doença grave era também um estigma moral, uma maldição divina. É uma prova de como o homem não sabe lidar nem conviver com os seus limites. O homem pela sua própria natureza, e não poderá ser diferente, está destinado a morrer e poderíamos dizer que desde o seu nascimento a cada minuto que passa ele está mais próximo da morte. A lepra é apenas uma das muitas causas que pode apressar a hora da morte. Essa causa de morte é possível ser eliminada como já o foi em muitos países. A lepra não é nem castigo de Deus nem maldição porque Deus nem castiga, nem amaldiçoa ninguém, mas, pelo contrário a todos só premia e abençoa. É verdade que podemos rejeitar seu prêmio e sua bênção. 2. Livro do Levítico 13,1-2.44-46 O Levítico, na Bíblia do A.T, é um livro que corresponde mais ou menos a um Código de Leis, ao mesmo tempo civis e religiosas já que a cultura da época não distinguia as esfoeras civis e religiosas. Além de não distinguir as duas esferas, a cultura bíblica considerava a saúde como uma recompensa por uma vida justa e a doença como uma castigo pelos pecados. Dentro desse contexto ideológico não admira que a lepra, 288 a doença por excelência, fosse considerada como uma maldição divina e o leproso como um maldito e um impuro. “O homem atingido por esse mal andará com as vestes rasgadas, os cabelos em desordem e a barba coberta, gritando: impuro, impuro”. É evidente a crueldade dessa legislação que foi duramente criticada e desobedecida por Jesus. É uma boa oportunidade para ressaltar que nem tudo o que está na Bíblia e principalmente no AT é verdade de fé, mas sim, reflexo da cultura da época e como tal deve ser interpretada. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 40-45 O caráter enviezado e ideológico da legislação do Levítico sobre a lepra e os leprosos fica claro pelo comportamento de Jesus, claramente contra-cultural, em relação à lepra e ao leproso. Jesus não considera o leproso como um maldito de Deus ou um pecador, mas como um homem enfermo, discriminado e profundamente infeliz, digno, não de condenação, mas de amor e de compaixão. Tudo isso está resumido no versículo 41 do Evangelho de hoje: “Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele e disse: eu quero, fica curado”. Ao tocar com suas mãos o leproso, Jesus desafia as leis levíticas, segundo a qual quem tocasse com as suas próprias mãos um leproso era considerado impuro como o leproso e, como o leproso, estava proibido de entrar nas cidades. O evangelho de hoje sublinha: “Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora em lugares desertos. E de toda a parte vinham procurá-lo.” 289 4. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 10, 31-11, 1 O apóstolo Paulo, que antes de sua conversão era um homem cheio de preconceitos e se considerava, como fariseu, superior aos outros judeus e como judeu, superior aos gentios, depois de sua conversão, se despe de qualquer tipo de preconceito e se coloca humildemente a serviço de todos. Paulo, no texto da carta que estamos lendo hoje, talvez, ao notar nos seus destinatários algum tipo de preconceito discriminatório, os exorta: “Fazei como eu, que procuro agradar a todos, não buscando o que é vantajoso para mim mesmo, mas o que é vantajoso para todos a fim de que todos sejam salvos”. As atitudes amorosas e compassivas de Jesus em relação ao leproso e a de Paulo em relação a todos os coríntios nos mostram como olhar os nossos irmãos quaisquer que eles sejam. 290 7º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução No evangelho da Missa de hoje, Marcos nos conta que Jesus, antes de curar o paralítico, perdoou-lhe os pecados. Pio XII, em uma de suas célebres homilias, dizia que um dos problemas daquela época – e não só daquela época –, era que a sociedade havia perdido o sentido do pecado. Mas o que é o pecado? Seria o mau uso da sexualidade? O roubo? A impiedade? A crueldade? A inveja? O abandono dos idosos ou das crianças? O esquecimento de Deus, nosso Pai? Ou, especialmente, o esquecimento do faminto, do enfermo, do prisioneiro, como deixa entender o capítulo 25 de Mateus, quando Jesus se identifica com os prisioneiros, famintos, sedentos e enfermos? Tudo isso que arrolamos são atos pecaminosos por uma só razão, são todos eles pecados contra o amor. O que define o homem moralmente perante si mesmo, perante o próximo e perante Deus é o Amor ou o desamor. Os dez mandamentos da lei de Deus são dez maneiras diferentes de amar a Deus e ao irmão. Os dez pecados contra os dez mandamentos são dez maneiras de desamar a Deus e aos irmãos. 2. Livro do Profeta Isaías 43, 18-19, 21.22, 24-25 Trata-se aqui do segundo Isaías, portanto estamos vivendo um momento de graça, em que o povo deve esquecer os infortúnios do passado, causados pelos seus pecados, e olhar para o futuro com otimismo: “Eis que eu farei coisas novas, que já estão surgindo; acaso não as reconheceis? Pois abrirei uma estrada no deserto 291 e farei correr rios na terra seca”. Javé, ao mesmo tempo em que preparava tempos novos para Israel, também esquecia e perdoava os pecados do passado: “Sou eu mesmo que cancelo tuas culpas... e já não me lembrarei dos teus pecados”. Esse mesmo que acompanhou a História de Israel, na tempestade e na bonança, também do mesmo modo acompanha a nossa História. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 1, 18-22 Uma das características do apóstolo Paulo, antes e depois da sua conversão, é a clareza das suas posições perante Deus e perante as suas queridas comunidades. Dizia em sua segunda carta aos coríntios: “Irmãos, eu vos asseguro pela fidelidade de Deus: O ensinamento que vos transmitimos não é “sim” e “não”... mas somente “sim””. Um dos traços da cultura pós-moderna em que estamos banhados é a falta de firmeza e mais ainda de coerência nas tomadas de posição em face dos problemas morais que enfrentamos. Trocamos o que é permanente ou o que deve ser permanente pelo que é provisório. E o nosso sim passa a ser não ou mesmo sim e não ao mesmo tempo. Não importa ser sim ou não; o que importa é que o nosso sim seja sim e o nosso não seja não. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 2, 1-12 O desafio que Jesus enfrentou logo após a prisão de João Batista foi o de Ele mesmo anunciar o Reino de Deus, a começar pela Galileia dos pagãos, província discriminada de Israel. Não 292 era Seu propósito maior fundar uma nova religião, mas salvar o homem a começar pelos últimos, ou seja, os possuídos pelos demônios ou os dementes, os leprosos e, como vemos no evangelho de hoje, os paralíticos. O que é um paralítico, um tetraplégico, como diríamos hoje, senão um morto vivo? Já imobilizado antes de ser enterrado. É este morto-vivo que Jesus quer salvar a começar pela sua alma, perdoando-lhe os pecados. Não só sua alma, mas também o seu corpo: “O paralítico então se levantou e, carregando a sua cama, saiu diante de todos”. A nossa missão continua sendo a de Jesus: a de perdoar e a de fazer andar os paralíticos. 293 11º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução “Assim diz o Senhor Deus: Eu mesmo tirarei um galho da copa do cedro, do mais alto dos seus ramos, tirarei um broto e o plantarei sobre um monte alto e elevado. Vou plantá-lo sobre o alto monte de Israel.” O cedro é, de todas as árvores do Oriente próximo, a mais bela, a mais alta e a mais forte. Nem o carvalho a supera. É também a madeira mais resistente e com ela foi construído o belo Templo de Salomão na cidade santa de Jerusalém. É uma árvore poderosa e fecunda que de broto em broto jamais definhará. Ela enfrenta ventos e tempestades, os rigores do inverno e a inclemência do verão, mas a cada primavera vê reviver a sua seiva. O cedro é a imagem da obra de Deus, personificada pelo povo de Deus, inicialmente Israel, tantas vezes derrotado quantas vezes redimido e, depois de Jesus, povo cristão chamado a ser no mundo inteiro um só rebanho sob o cajado de um só pastor. 2. Livro do Profeta Ezequiel 17, 22-26 Juntamente com Isaías, Jeremias e Daniel, Ezequiel é um dos quatro grandes profetas que no Primeiro Testamento falaram ao povo em nome de Javé. Era ao mesmo tempo sacerdote e profeta que, ao ser exilado para a Babilônia, junto com muitos do seu povo, despiu os paramentos sacerdotais e se cingiu com a cintura do profeta para a sua dupla tarefa: a de condenar os 294 pecados do seu povo, a imoralidade, o descaso pelos pobres e a idolatria; e a de, sem contradizer-se, anunciar num futuro, ao mesmo tempo não acabado, mas seguro, a restauração da grandeza dos tempos de Davi a Salomão, quando o povo mudaria seu coração de pedra, num coração de carne, quando os seus esqueletos ressecados se cobririam de músculos, nervos e pele para recomeçar uma nova História. O povo como um cedro gigante não sucumbirá porque sobre o monte mais alto seria implantado um novo broto. O que valeu para o primeiro Israel, vale também para o novo Israel que está sempre aberto para os filhos de todas as nações. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 5, 6-10 São Paulo, com outras palavras, não nos diz coisa diferente. Fala da sua confiança de que a nossa esperança não é vã, embora ainda caminhemos na fé e não na clara visão. São Paulo, que se converteu ao ver o Senhor ressuscitado, que ele julgava morto e sepultado, não cansava de proclamar, com o máximo de convicção aos seus discípulos, que não devemos temer a morte porque ela é apenas o umbral de uma nova vida, na qual seremos recompensados segundo as nossas obras. Esse otimismo de base não é uma ilusão, porque ele está baseado na fé dos apóstolos que fizeram a experiência do senhor ressuscitado. E se Cristo ressuscitou, nós também ressuscitaremos. 295 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 4, 26-34 O evangelho de hoje tenta recuperar o ensinamento de Jesus a respeito do reino de Deus, ou seja, daquele mundo que o Pai preparava para os Seus filhos, que Ele gerou desde o alvorecer da humanidade e continuará gerando até o fim da História. Primeiro ele compara o Reino de Deus com uma semente que alguém planta e depois colhe, mas não sabe como apareceram as folhas e depois a espiga com os grãos que a vestem. Ou seja, o Reino é de Deus porque é Deus que está por detrás da História. Não houvesse Deus não haveria História. A vontade livre do homem, criada por Deus, é parte da História. O mistério do homem é que sua liberdade é ao mesmo tempo sua e um dom de Deus. E esse dom de Deus é como um grão de mostarda: uma pequena semente que se transforma numa grande árvore. 296 12º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Em nossa reflexão sobre as leituras da liturgia de domingo passado, deixamo-nos guiar pela imagem, bela e grandiosa, do cedro do Líbano, árvore bela, frondosa e plantada na terra, ícone da obra de Deus. Hoje a imagem que nos inspira é a da barca, frágil e trêmula, que mal se mantém sobre as ondas revoltas do mar da Galileia e sob o impacto do vento e das ondas do mar. À primeira vista, seja no plano pessoal, seja no plano social, parece que a barca agitada pelos ventos revoltos é imagem mais adequada que o cedro frondoso para descrever a vida do homem sobre a terra que o personagem Jó descreve como sendo uma batalha, senão uma guerra. A leitura dos textos sagrados da liturgia de hoje nos garante que ambos os símbolos são válidos e verdadeiros, porque, se o cedro tem raízes profundas e sólidas que lhe permitem atravessar as quatro estações, a barca não está à deriva, porque o timoneiro é Jesus Cristo a quem o vento e o mar obedecem. 2. Livro de Jó 38, 1.8-11 Jó, personagem principal do livro do mesmo nome, foi um homem justo, rico e feliz boa parte de sua vida, bem plantado na sociedade do seu tempo, como o cedro nos montes do Líbano, mas a partir de um certo momento as águas em que navegava se agitaram, o vento soprou e naufragaram esposa e filhos, ficou muito pobre e doente, coberto de chagas abertas. Diante de 297 tanta desgraça, o justo Jó vacila na fé e duvida de Javé. Será que Ele existe, será que Ele é justo? No texto de hoje, Javé responde apenas parcialmente a essa pergunta de Jó. Ele apenas diz a Jó que Ele é todo poderoso, foi Ele que abriu as comportas do mar e Ele também que cercou a arrogância das ondas nas areias da praia. Ao longo do livro Jó vai perceber que a vida é cheia de altos e baixos e que isso não depende tanto das virtudes e dos vícios de cada um, mas das circunstâncias da vida. Percebe também que, se nesta vida nem sempre as virtudes são recompensadas, na outra certamente serão e por toda a eternidade. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 5, 14-17 A narrativa dos Atos dos Apóstolos da conversão de Paulo nos conta que, após a sua iluminação no caminho de Damasco, os seus olhos se cobriram como que de escamas que o cegaram por um tempo, mas após o batismo elas se despregaram dos seus olhos e ele passou a ver tudo novo, agora com os olhos da fé: “O mundo velho desapareceu. Agora tudo é novo. (grifo do autor) Os nossos olhos carnais veem o que se passa conosco de bom e de mau, mas não veem tudo”. 298 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 4, 35-41 O episódio da tempestade amainada é uma parábola perfeita da nossa vida atribulada na Terra, não só da nossa vida particular, mas da nossa vida familiar, da nossa comunidade, da nossa Igreja e mesmo do nosso país. Nos momentos difíceis, parece que estamos sozinhos, abandonados e que vamos naufragar. Com certeza, um dia vamos soçobrar, mas até nesse momento dramático não estaremos sós, pois Deus criador e, além disso, pai, jamais nos abandona. E nos lembramos das palavras do profeta Isaías: “Pode uma mãe esquecer-se do seu bebê, deixar de querer o filho das suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não esquecerei”. 299 13º Domingo do Tempo Comum e Solenidade de São Pedro e São Paulo 1. Introdução Todo último domingo de junho, a Igreja celebra a festa conjunta de São Pedro e São Paulo, pois ambos são considerados, e o são de fato, as duas colunas que sustentam a Igreja, fundada por Jesus, quando fez de Pedro a pedra sobre a qual ela se ergueria e escolheu Paulo como o vaso de eleição para anunciar o Seu evangelho aos gentios. Toda Igreja socialmente instituída, para funcionar adequadamente, tem de ter uma liderança firme e autêntica, algo como uma rocha, capaz de resistir às ondas do mar e aos ventos. Essa foi a missão de Pedro, que a exerceu fielmente até a morte e, como o seu mestre Jesus, até a morte na cruz. Toda a Igreja, além de ser sólida como a rocha, tem que ser animada pelo Espírito para poder se expandir para além do espaço, necessariamente pequeno, onde nasceu. Paulo foi o portador desse Espírito. Judeu, conhecedor da língua grega, foi o grande apóstolo da Igreja de Cristo e levou o evangelho de Jesus para muito além da Palestina, da Ásia Menor e, passando pela Grécia e Itália, parece ter chegado aos confins do Mediterrâneo na Espanha. Paulo manteve sempre firme seu canto e só se calou quando foi mortalmente ferido pela espada. São Pedro e São Paulo mártires, rogai por nós. 300 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 12, 1-11 Esta narrativa da libertação de Pedro é uma parábola de toda a experiência como líder da comunidade fundada por Jesus e como pregador do evangelho. Pedro não foi aceito pelo estabelecimento religioso judaico e foi usado como massa de manobra pelo poder político. Por isso, foi preso. Mas como a palavra de Deus não pode ser amordaçada, o anjo do Senhor veio libertálo: “O anjo tocou o ombro de Pedro, acordou-o e disse: Levanta depressa. As correntes caíram-lhe das mãos”. 3. Segunda Carta de São Paulo a Timóteo 4, 6-8.17-18 Paulo, ainda jovem, em função da sua pregação da novidade do evangelho de Jesus, um evangelho que privilegiava o espírito e não a letra, sofreu por causa dele a perseguição, tanto da sinagoga, como do Império. Sofreu fome, sede, naufrágio, o açoite, a espada. Nada, porém, o afastou de Cristo e do Seu evangelho. Nesta carta a Timóteo, Paulo já está velho ou desgastado pelos sofrimentos da sua atribulada história. Percebe que o seu fim está próximo e para exprimir essa experiência usa o exemplo da libação em que se oferecia ao Senhor vinho sagrado. Vinho, símbolo do sangue, que é símbolo da vida. Paulo nesse apagar de luzes da sua vida oferecia ao Pai o seu sangue que em breve seria derramado pela espada. 301 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16, 13-19 A cena narrada pelo evangelista Mateus no evangelho de hoje marca um momento crucial no ministério de Jesus. As multidões com sofreguidão o procuravam e o aplaudiam por causa da autoridade com que falava, pelos seus milagres e exorcismos. Todo esse êxito teve seu preço. Provocou ciúme e inveja por parte dos fariseus e doutores da lei. E cedo esse ciúme e essa inveja, transformados em ódio, logo chegariam até os sumos sacerdotes de Jerusalém, que tinham fácil acesso às autoridades romanas. Jesus percebe a nova conjuntura e interpela os Seus discípulos: sabem os discípulos quem era Ele e que riscos estariam correndo por segui-lo? Diante disso, Jesus sente que deve fortalecer o grupo de discípulos e escolhe Pedro como chefe desse grupo. Pedro não estava ainda pronto, mas um dia chegaria lá e terminaria como o seu mestre, numa cruz, invertida! 302 14º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O tema predominante nas leituras de hoje, principalmente a do profeta Ezequiel e a do evangelista Marcos, é o da profecia considerada por Paulo como o mais importante dos carismas com os quais o Espírito Santo enriquece a Igreja. Para entender bem o significado da profecia é preciso antes de tudo relativizar o sentido que se dá a ela de previsão do futuro. De fato, vemos nos livros proféticos do primeiro testamento que os profetas previam castigos e bênçãos futuras, mas isso era secundário. A função primeira dos profetas era a de denunciar os desvios de Israel em relação à qualidade do testemunho que deveriam dar às outras nações. Denunciar em primeiro lugar a opressão dos pobres, não lhes pagando o salário justo e carregando os seus ombros com fardos pesados. Em segundo lugar, denunciar a idolatria ou com igual força os desvios na prática religiosa, que resultavam numa religião puramente exterior, sem uma verdadeira conversão do coração, como se Deus pudesse contentar-se com o sangue e a gordura de touros, bodes e carneiros em sacrifícios e holocaustos ao mesmo tempo em que os Seus filhos mais queridos, os órfãos, as viúvas, os pobres e os estrangeiros eram esquecidos e maltratados. 303 2. Livro do Profeta Ezequiel 2, 2-5 O pressuposto da fé em Deus é de que Deus, de alguma maneira, se comunica conosco, os homens. Caso contrário, não teríamos como chegar a Ele porque Ele está muito acima da nossa inteligência e da nossa imaginação. As Sagradas Escrituras dão testemunho de que Deus se comunica conosco e de modo particular através dos profetas, como por exemplo Ezequiel durante o exílio da Babilônia. O que aconteceu naquela época continua a acontecer. Se estivermos atentos ao que ouvimos, lemos e vemos, nas nossas conversas ou em qualquer dos meios de comunicação, com certeza alguma palavra ou alguma imagem nos chamará a atenção e nos questionará como as palavras de Ezequiel questionaram os judeus exilados na Babilônia. É preciso, todavia, que estejamos de pé, ou seja, atentos, como o profeta Ezequiel: “Naqueles dias, depois de me ter falado, entrou em mim um espírito que me pôs em pé”. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 7-10 O Senhor disse a Paulo quando em oração: “Basta-te a minha graça. Pois é na fraqueza que a força se manifesta”. Essa foi a grande descoberta de Paulo depois da sua conversão no caminho de Damasco. Antes, Paulo confiava na força da qual ele usava e abusava para perseguir a Igreja do Caminho, como era chamada a Igreja dos discípulos de Jesus. Paulo só conseguiu entender o significado do apelo do Senhor – Paulo, Paulo 304 por que me persegues? –, depois que ele depôs o seu coração de pedra, como diz o profeta Ezequiel, e se revestiu com um coração de carne. Só assim podemos ouvir o que os profetas de hoje nos dizem. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 6, 1-6 O Batista já tinha sido preso na Judeia, Jesus já tinha retornado à Galileia, já havia proclamado a proximidade do Reino de Deus – Convertei-vos e crede no evangelho, o Reino de Deus está próximo! –, já havia feito muitos milagres, quando voltou a Nazaré para aí continuar Sua missão. Mas o fez quase em vão, porque, ao invés de lhe darem crédito, escandalizaram-se com Ele. “Este homem não é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui convosco?” Ezequiel ouviu o Espírito, por que estava de pé pronto para ouvir, Paulo ouviu a voz de Jesus, porque deixou de acreditar na sua própria força. O povo de Nazaré, até os parentes de Jesus, não o ouviram, porque só acreditavam em si mesmos. 305 15º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje têm uma dimensão profética e pastoral, aquela que foi tirada do profeta Amós e do evangelho de Marcos e, a outra, uma dimensão teológica, ou seja, a esplêndida e surpreendente introdução à carta de Paulo aos Efésios. Para melhor entender a primeira e a terceira leituras, valeria a pena esclarecer melhor as possíveis diferenças entre “o profeta” no primeiro Testamento e “o apóstolo” do segundo Testamento. A função do profeta não era a de formar uma comunidade, mas a de falar à comunidade, denunciando-lhe os desvios, principalmente em relação à justiça e ao direito dos pobres, das viúvas, das crianças, dos enfermos e dos estrangeiros e também em relação aos direitos de Deus, lesados pela idolatria ou pela hipocrisia. A missão do apóstolo de Jesus é um mandato divino de anunciar o Reino de Deus e fundar comunidades para apressar a chegada do Reino. A dimensão teológica ou, melhor ainda, cristã, está expressa na introdução da carta de Paulo à comunidade de Éfeso. 2. Livro do Profeta Amós 7, 12-15 Amós é um dos profetas, chamados de menores, pela pouca extensão dos seus escritos e não pela qualidade deles. Ao contrário, poderíamos qualificá-lo como um grande pequeno profeta. Ele não pertencia a uma confraria de profetas, como é o caso de alguns, mas era homem do campo relativamente bem sucedido 306 em Judá: “Não sou profeta, nem filho de profeta, sou pastor de gado e cultivo sicômoros”. Era do Reino de Judá e foi chamado a profetizar no Reino do Norte. O Reino do Norte vivia num contexto de prosperidade que facilitava a boa consciência e a mediocridade moral. Dentro desse contexto de facilidade, era chamado a profetizar contra a injustiça social, provocada pelos ricos, e contra a idolatria. Para um mundo consumista como o que estamos vivendo, o profeta Amós tem muito a dizer. O problema é saber se estaríamos interessados em ouvi-lo. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 1, 3-14 Essa introdução de Paulo à sua carta aos efésios é considerada como um dos textos mais densos não só de Paulo, mas de todo o Novo Testamento. Somente uns 20 anos depois da ressurreição do Senhor, em apenas 12 versículos, Paulo escreve um tratado quase completo de cristologia, ou seja, da doutrina sobre Jesus. Fala-nos de Jesus e da sua inserção no mistério da Santíssima Trindade; da nossa adoção em Cristo como filhos de Deus pela efusão do Seu sangue; do Cosmos, de Cristo, concebido pelo Pai antes da criação do mundo e chamado a levá-lo à plenitude no tempo estabelecido quando tudo será recapitulado em Cristo. Trata-se de um texto difícil que não se presta muito a uma homilia, mas que precisa ser destacado, entendido e vivido. 307 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 6, 7-13 O envio dos doze em missão semelhante à Sua, a de anunciar o Reino de Deus, era sinal claro de que Jesus não se julgava o único missionário, mas queria ser ajudado por outros, não só durante a Sua vida, mas também depois de Sua morte, que ele já entrevia como próxima. Assim como ele usava sandálias e apenas uma túnica, queria que assim também o fizessem os Seus discípulos. Mais do que uma espécie de uniforme, tratavase de um sinal de fidelidade à mensagem de Jesus. A arma de Jesus não era o poder, fosse ele força, prestígio ou dinheiro, era apenas a palavra, o testemunho, o diálogo e jamais a imposição. O alvo não eram os ricos ou os pobres, mas os pobres e os enfermos. Os conselhos de Jesus, no seu espírito, valem ainda hoje. 308 16º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Há algumas décadas, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, ao falar de Jesus, disse que Ele, de tão humano que era, só podia ser divino. É o que sugere o versículo 31 do evangelho de hoje. Jesus, ao chegarem os Seus discípulos cansados da missão que haviam desenvolvido a pedido do mestre, lhes diz com o carinho de um irmão mais velho: “Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco”. Era tão grande o torvelinho em que estavam envolvidos os discípulos que nem para comer tinham tempo! Esse corre-corre em que Jesus e Seus discípulos estavam envolvidos se assemelha um pouco à agitação em que vivemos nos dias de hoje e, particularmente, numa cidade como a nossa. Todos nós carecemos de um lugar deserto para descansar um pouco. Por que não transformar o domingo e, de modo particular, a Eucaristia dominical nesse lugar deserto para o nosso repouso espiritual? Longe de fazer desse exercício uma mera obrigação, devemos vivê-lo como um refrigério para a nossa alma e para o nosso coração, à sombra do sacrário e das imagens tão comoventes de Francisco de Assis. O preceito sabático no Primeiro Testamento não tinha outra finalidade. Era o dia do Senhor e o dia do descanso para todos e de modo particular para os mais sofridos, que eram os escravos! 309 2. Livro do Profeta Jeremias 23, 1-6 A figura do pastor é clássica no imaginário popular de Israel, que nas suas origens eram clãs de beduínos que vagavam pelas bordas do deserto em busca de água e de verde para seus rebanhos de cabras e ovelhas. Além disso, o apogeu de Israel se deu ao tempo do Rei David, pastor na sua juventude. Desde então, o rei de Israel era visto como um pastor capaz de dar a própria vida pelo seu povo. Quando, no tempo de Jeremias, o reino de Judá no Sul e o reino do Norte já estavam fragilizados e perigosamente ameaçados pelos seus poderosos vizinhos, o profeta Jeremias, crente de que, se o povo escolhido rompera com a sua Aliança com Javé, Javé por seu lado, a manteria sempre de pé, profere o vaticínio: “Eis que virão dias, diz o Senhor, em que farei nascer um descendente de Davi que reinará como rei e será sábio, fará valer a justiça e o direito na Terra”. Até hoje, para nós, são válidas as figuras tanto de pastor, como de rebanho, porque cada um de nós conforme o tempo ou as circunstâncias somos ou pastores ou rebanhos. Como pastores, estamos a serviço do rebanho e não ao contrário e, como ovelhas do rebanho, devemos cerrar fileiras para construir a comunidade com a ajuda do pastor. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 2, 13-18 Paulo foi um homem do seu tempo e viveu em alto nível os dramas de seu tempo. Tempos em que Roma impunha com mão de ferro a sua paz armada ao mundo da época. Paulo, como 310 judeu de formação farisaica, opunha-se ao mundo dos pagãos de todos os naipes e se julgava superior a todos eles. Opunhase também dentro da comunidade judaica aos seus irmãos de sangue que seguiam o evangelho de Jesus. Paulo era um homem cercado de muros por todos os lados, até o momento em que ele percebeu que esse Jesus que ele perseguia já havia feito nascer um homem novo, restabelecendo a paz entre todos os filhos de Deus. Nós, que vivemos num mundo plural em todos os níveis, devemos criar a paz da diversidade como queria Paulo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 6, 30-34 No evangelho de hoje, em meio a uma grande agitação, nós vemos emergir em Jesus a figura do Bom Pastor, prevista pelo profeta Jeremias: “Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão (literalmente, deixou-se comover até o mais fundo das suas entranhas), porque eram como ovelhas sem pastor”. Jesus não se furtou a encarar aquela triste paisagem humana. Não perdeu tempo: “Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas”, com certeza, para que aquela multidão carente de tudo pudesse sair daquela situação. Nós, que nos dizemos discípulos de Jesus, fazemos o que Ele faz? 311 17º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O que mais chama atenção nas leituras da liturgia de hoje é a semelhança entre a primeira leitura tirada de II Reis e o evangelho de João. Ambas narram duas multiplicações de pães, uma pelo profeta Eliseu, sucessor de Elias, e a outra por Jesus. Nem o profeta, nem Jesus minimizam as necessidades materiais dos homens. Sem satisfazer suas necessidades materiais mínimas, o homem não consegue desenvolver o seu potencial humano, nem físico, nem intelectual, nem técnico e nem mesmo espiritual. Em sua última encíclica social, Caraticas em Veritate, “a caridade na verdade”, Bento XVI trata com grande competência e alto nível esse assunto. Nós, que todos os domingos nos reunimos para receber o Pão da Palavra e o Pão Eucarístico, devemos nos lembrar daqueles irmãos que, por não serem alimentados com o pão de cada dia, não conseguem aproximar-se da mesa da palavra e da mesa da Eucaristia. A nossa comunidade, como comunidade, não é omissa em relação a esse problema e espera a nossa colaboração pessoal nesse trabalho. 2. Segundo Livro dos Reis 4, 42-44 É impossível não notar a semelhança que há entre o milagre do profeta Eliseu ao multiplicar os pães e o de Jesus. Nos dois casos, havia pouco pão para muita gente, nos dois casos alimentar tanta gente parecia impossível, nos dois casos todos os famintos foram saciados e houve um grande sobejo. Nos dois 312 casos, vemos agir a mesma providência divina que olha pelos homens, principalmente os mais carentes, e com muito carinho. Nos dois casos, a providência divina age pelas mãos de Eliseu e Jesus, portanto não o faz sozinha. Além disso, no primeiro caso, alguém trouxe vinte pães de cevada e trigo novo, e no caso de Jesus, estava lá um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Os dois relatos nos garantem que a providência divina cuida do mundo e dos homens, mas o faz a quatro mãos, ou seja, duas delas são nossas. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 6, 1-15 Um leitor atento das sagradas escrituras não deixa de perceber a semelhança que há entre Jesus e Moisés, aquele que libertou o povo hebreu da escravidão no Egito, conduziu-o durante 40 anos através do deserto e que, num tempo de fome, fez, com a ajuda de Javé, cair do céu o maná benfazejo. Jesus, por seu lado, surge na multiplicação dos pães como o verdadeiro Moisés a libertar o povo de todas as escravidões e de todas as fomes. “Eu sou o pão da vida, quem come a minha carne e bebe o meu sangue nunca mais terá fome”. Um aspecto menos evidente na ação milagrosa de Jesus é, todavia, o mais importante. Jesus não era um milagreiro que queria extrair proveito pessoal dos Seus milagres. O versículo II nos diz que: “uma grande multidão o seguia porque via os sinais que ele fazia em favor dos doentes”. Depois da multiplicação dos pães, essa mesma multidão estava querendo levá-lo para proclamá-lo rei! A reação popular é fácil de entender: seria cômodo ter um rei que multiplica pães e cura os enfermos! Jesus rejeita esse tipo de assédio e retira-se de 313 novo para o monte. O que Jesus queria ensinar como as curas e as multiplicações dos pães era a misericórdia, por um lado, e a partilha por outro. A multidão, porém, buscava saúde pessoal e acumulação de bens. 4. Carta de São Paulo aos Efésios 4, 1-6 Éfeso, capital romana da Ásia Menor, era uma cidade plural, composta de pagãos convertidos ou não e judeus, convertidos ou não, ao evangelho de Jesus. Muitos se reuniam nas comunidades de Paulo em busca de uma vida nova. Paulo procurava ensinar-lhes: “Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só DEUS e Pai de todos, que reina sobre todos. Age por meio de todos e permanece em todos”. 314 18º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Os laços instintivos que caracterizam as famílias de animais os tornam capazes de formar comunidades muito bem organizadas, como os formigueiros, por exemplo, mas, sempre dentro de um quadro pré-estabelecido. Os homens, contudo, têm possibilidade de criar e recriar sempre o seu tipo de relacionamento, porque, além do instinto, têm a possibilidade de mudar de rumo e de planejar o diferente através da pesquisa própria e do diálogo, pois ele é capaz de falar e ouvir. A palavra e tudo o que ela implica é o dom mais precioso que o homem recebeu de Deus. E, mais do que isso, Deus se fez palavra para o homem em Jesus. O verbo se fez carne e habitou em nós. Mas antes de encarnar, o Deus da bíblia já se revelava de vários modos como nós vemos hoje na primeira leitura no diálogo do Senhor com Moisés a respeito do maná caído do céu e das codornizes que cobriram os acampamentos; o mesmo aconteceu no diálogo de Jesus com a multidão no outro lado do lago de Tiberíades; o mesmo também aconteceu no diálogo de Paulo travado com a comunidade de Éfeso. É em nossa vida ordinária de cada dia que Deus, através da nossa oração, que é uma forma de diálogo com Deus, ou mesmo na nossa conversa singela com os nossos irmãos, que Deus se nos revela. Cada palavra que falamos ou ouvimos pode ser palavra de Deus. Tudo é graça. Essa é a essência de nossa mensagem hoje. 315 2. Livro do Êxodo 16, 2-4.12-15 A intervenção ou o diálogo de Deus com Moisés e deste com o povo hebreu, cansado e faminto, foi profundamente esclarecedora para todos. Foi uma verdadeira catequese. A imagem que o povo, que atravessava o deserto, longo e áspero, tinha, era a imagem de um Deus distante, frio e mesmo enganador, já que a libertação do Egito parecia mais uma derrota do que uma vitória. A resposta de Deus a Abraão, autenticada pelo maná e pelas condornizes, veio consagrar a imagem de um Deus solidário e compassivo, que nada tinha do perfil autocrático dos ídolos. Esse diálogo de Deus com o povo tem ainda hoje algo a dizer-nos? É claro que temos de reinterpretar esses episódios nos dias de hoje, mas o significado de base continua o mesmo: o nosso Deus é um deus solidário e ainda que o abandonemos, por um tempo, Ele jamais nos abandonará. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 6, 24-35 Pelo evangelho de hoje, podemos perceber como o diálogo de Javé com Moisés e o povo continua no diálogo de Jesus com aqueles que O procuram. Um diálogo que não só continua como se aprofunda. O assunto da conversa ainda é o maná sob a forma do pão multiplicado, mas não se trata do pão comum de trigo ou de cevada. Diz Jesus: “esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna e que o filho do Homem vos dará. Pois este é que o Pai marcou com Seu selo”. E como chegar a esse alimento? O que fazer? Jesus continua o diálogo: “a obra de Deus é que acredi316 teis naquele que Ele enviou”. Acreditar em Jesus não é apenas formular um juízo a respeito de Sua missão, mas conformar a própria vida com a vida de Jesus e a Sua missão. Assim como Jesus se fez pão para aquela multidão que atravessara o lago para encontrá-lo, nos também devemos ser pão para os irmãos e irmãs que caminham conosco, os nossos companheiros. Etimologicamente, “companheiros”, aqueles que no caminho comem do mesmo pão. 4. Carta de São Paulo aos Efésios 4, 17.20-24 Distante da comunidade de Éfeso, Paulo inquieta-se a respeito dela. Estaria ela sendo fiel aos seus ensinamentos, ao seu evangelho? Paulo sabia que aquele que já deu um passo a frente, pode cansar-se e deixar-se levar sob o efeito das paixões enganosas. Renovai o vosso espírito e a vossa mentalidade. Paulo estimulava cada um a dialogar com a sua própria consciência a ver se estava sendo fiel ao que lhe fora anunciado em nome de Jesus. 317 19º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A liturgia de hoje se desenrola sob o signo do pão, o alimento por excelência. O alimento é o insumo da vida, sem ele perderíamos força, energia e substância até chegarmos à inanição e à morte. Em que pese a beleza e a nobreza do pão, principalmente do pão nosso de cada dia, o pão a que a liturgia se refere é o pão espiritual que, mais do que o nosso corpo, alimenta a nossa alma e o nosso coração. Para o velho profeta Elias, idoso e cansado, ansioso para parar e descansar, o pão, assado sob as cinzas e acompanhado de um jarro de água, veio devolver-lhe a vida e a energia para prosseguir até o Monte Horeb, o mesmo Monte Sinai em que Moisés conheceu a Deus pelo seu nome, Aquele que é para o Homem, não através de raios e trovões, mas na brisa suave. Para a multidão que o ouvia, Jesus se apresenta “Eu sou o pão que desceu do céu”. Expressando-se assim, Jesus recorda a antiga experiência, sempre lembrada, do maná do deserto, mandado por Deus para alimentar um povo faminto. 2. Primeiro Livro dos Reis 19, 4-8 Elias é uma das figuras mais importantes da História Bíblica. Chamado a ser profeta no Reino do Norte, Elias teve de conviver com os profetas de Baal e denunciar reis e rainhas que, maus pastores, aparentavam-se mais a si mesmos do que ao seu povo. Por isso teve de fugir para longe. E a sua fuga transformou-se em peregrinação, queria revisitar o monte onde, 318 ardendo na sarça ardente, Javé declinara a Moisés o seu próprio nome. Foi nessa peregrinação que Elias desfaleceu e, de tão cansado, pediu a morte, mas como resposta recebeu o pão assado sob a cinza que o fez reviver. O velho profeta Elias ainda não cumprira toda a sua missão: “Levanta-te e come. Ainda tens um caminho longo a percorrer.” e pela força desse alimento andou quarenta dias e quarenta noites até chegar ao Horeb, o Monte de Deus. A nossa missão pode não ser tão grandiosa como a de Elias, mas nem por isso o nosso Deus nos negará na hora certa o pão e o jarro d’água. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 6, 41-51 No evangelho de hoje, assistimos a uma pesada discussão entre Jesus e os “judeus” que no evangelho de João tem um significado muito especial, ou seja, aqueles judeus que não entendiam na sua linguagem um sentido espiritual. Eles a entendiam como grosseiramente material: “Não é este o filho de José? Não conhecemos o seu pai e a sua mãe? Como pode então dizer que vem do céu?” Como o maná no deserto, como o pão sob as cinzas, no caso de Elias, Jesus apresenta-se ao povo: “Eu sou o pão que desceu do céu”, o alimento espiritual que salvaria os homens da fome espiritual. Jesus, de algum modo, antecipa o pão eucarístico que saciará a fome espiritual dos Seus discípulos na última ceia e que nós renovamos a cada domingo na nossa liturgia dominical: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer desse pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo.” 319 4. Carta de São Paulo aos Efésios 4, 30-5, 2 Nas cartas às suas comunidades, além de uma parte doutrinal, Paulo sempre acrescenta uma parte exortativa em que ele tenta recuperar o ardor inicial e corrigir os desvios naturais à fragilidade humana. Pede aos efésios que não “contristem o Espírito que os marcara com o selo para o dia da libertação”. A chave da convivência é o perdão: “Perdoai-vos mutuamente como Deus vos perdoou por meio de Cristo” 320 20º Domingo do Tempo Comum e Solenidade da Assunção de Nossa Senhora 1. Introdução Entre os privilégios de Maria, Mãe de Deus, como a chama a Igreja desde os primeiros séculos, temos a sua Imaculada Conceição por ter sido concebida sem o pecado original e a sua Assunção aos céus por ter sido assumida pelo Pai, nos céus, em corpo e alma. Como se deu materialmente a Assunção de Maria, em virtude da nossa condição terrena, circunscrita ao tempo e ao espaço que nos envolve, nada podemos dizer ou descrever com palavras. Podemos, todavia, dizer algo a respeito do significado da Assunção de Maria aos céus: como a nossa vocação também é a de retornarmos ao Pai, após a nossa existência terrena, Maria aparece como as primícias do gênero humano a apresentar-se diante do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como primícias, Maria prepara a chegada de todos os seus filhos humanos que com ela por toda a eternidade hão de confraternizar-se perante o Pai. Como na Terra o que nos marca como indivíduos e pessoas é o nosso corpo, a Assunção de Maria em corpo e alma, significa que a mesma Maria que concebeu a Jesus e adormeceu no ocaso da sua vida terrena está agora nos céus perante a Trindade Santíssima. E o destino de cada 321 um de nós, cada qual com o seu nome próprio, também será o mesmo, após a nossa morte. 2. Livro do Apocalipse 11, 19a; 12, 1.3-6a.10ab A primeira leitura de hoje é tipicamente apocalíptica, ou seja, retrata o mundo dos homens como um drama em que se defrontam o bem e o mal sob o juízo de Deus. A vitória, porém, embora difícil, caberá a Deus. Na leitura de hoje, Deus está representado por uma mulher vestida de sol tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas. Por outro lado, o mal é representado por um grande dragão, cor de fogo. Tinha sete cabeças e sete coroas sobre as cabeças. Do embate entre as duas forças, vence a mulher vestida de sol. Essa mulher é figura da Igreja, de modo geral, e também de Maria, cuja presença é discreta nessa luta do bem contra o mal. Já aparece no terceiro capítulo do Gênesis; “O Senhor disse à serpente: ‘Ponho hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela: esta ferirá a tua cabeça quando tu ferires seu calcanhar”. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 15, 20-27a Paulo, em sua carta aos coríntios, não fala da assunção de Maria, mas da ressurreição de todos nós. Se Cristo ressuscitou, nós também ressuscitaremos, mas se Cristo não ressuscitou, nós também não ressuscitaremos, diz Paulo em alguma parte. O dia da Assunção de Maria é um dia propício para renovar a nossa fé na ressurreição. E temos razão para isso, porque o Amor de Deus é eterno e ele jamais nos deixará cair. É uma questão de fidelidade e o nosso Deus é fiel para sempre. 322 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 26-39, 56 O evangelho de hoje apresenta duas partes, a primeira refere-se à visitação de Maria, grávida do Senhor, à sua prima Isabel, já avançada em anos, mas grávida de João Batista, que no futuro há de preparar os caminhos do Senhor. Essa visitação de Maria a Isabel é a garantia de que, na necessidade, poderemos contar com a visitação de Maria. A segunda parte refere-se ao Magnificat, o canto de ação de graças de Maria. A Assunção de Maria é a prova de que o Senhor fez por ela maravilhas! 323 21º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A fala de Josué, valente guerreiro e sucessor de Moisés, às 12 tribos de Israel e a de Jesus aos Seus doze discípulos colocam seus ouvintes na situação limite de abandonar Javé, o Deus da Aliança, e aderir aos deuses pagãos e, no caso dos discípulos de Jesus, na situação de segui-lo ou na de abandoná-lo. Em outras palavras, o povo de Israel e os discípulos de Jesus, Seus futuros apóstolos, são chamados a uma opção fundamental, pró ou contra Javé ou pró ou contra Jesus. Essa situação não é excepcional, mas cedo ou tarde se repete com cada um de nós, homens e mulheres, adultos e adultas. Tentando sintetizar, podemos dizer que “opção fundamental é a atitude humana seminal, na qual a pessoa, assumindo toda sua história pessoal, elege o que é um Bem Absoluto para ela e se determina a direcionar todos os seus atos e ações para esse Bem Absoluto. Dessa forma, é este Bem Absoluto que dá sentido à sua vida e que se torna o critério fundamental a partir do qual a pessoa realiza todas as suas escolhas e ações”. (Itamar C. Gremom) 2. Livro de Josué 24, 1-2a.15-17, 18h Durante a travessia do deserto, desde a passagem do Mar Vermelho a pé enxuto até a chegada à Terra Prometida, a fidelidade do povo a Javé foi provada pelas dificuldades enormes da travessia, a fome, a sede, o desânimo, as serpentes venenosas, o 324 cansaço e tudo mais. Aos trancos e barrancos, mais pela generosidade de Javé do que por mérito próprio, o povo eleito cruzava o Jordão, também a pé enxuto, e tomava posse da Terra Prometida. Iniciava-se uma nova fase na História da Salvação, não menos difícil que a anterior. O povo deveria conviver com outros povos, com outras culturas, com outros deuses e deusas, cujos cultos eram sedutores porque exaltavam as forças da natureza animal e vegetal, nos cultos da fecundidade. As palavras de Josué dirigidas ao povo são claras. Não é possível servir a Javé e aos Baals, é preciso escolher o Deus que libertou o povo hebreu da casa da escravidão. E o povo faz a escolha certa. Mas por quanto tempo? Quantas vezes Javé terá que renovar a sua aliança? 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 6, 60-69 O Evangelho de hoje é parte de um contexto mais amplo. Jesus, diante de uma multidão faminta tem pena, multiplica pães e sacia a multidão. Mais do que um milagre, a multiplicação dos pães era um sinal do verdadeiro pão que, como o maná do deserto, descera do céu, o próprio Jesus. Jesus se apresenta como o verdadeiro pão, aquele que verdadeiramente alimenta. Quem comer desse pão jamais terá fome! O povo, nem mesmo os seus discípulos, estavam preparados para entendê-lo. Enquanto Jesus se referia a um pão espiritual, os seus ouvintes, inclusive seus discípulos, pensavam num pão grosseiramente material. Pedro foi o único que percebeu o grande equívoco e convenceu os seus amigos a continuarem a caminhada com Jesus: “a quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!” 325 4. Carta de São Paulo aos Efésios 5, 21-32 Em toda a tradição bíblica, nos dois testamentos, a instituição familiar sempre foi considerada sagrada, a ponto de os profetas do Antigo Testamento usarem a metáfora conjugal como símbolo da Aliança entre Javé e o povo escolhido. Javé era o esposo e Israel, a esposa amada. Na carta aos Efésios, Paulo adapta a mesma metáfora ao dizer que o marido deve amar a esposa como Cristo ama a Igreja. Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher e os dois serão uma só carne. É na família, pai, mãe e filhos, a trindade terrena, que se reflete melhor a Trindade Divina, Pai, Filho e Espírito Santo. 326 22º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O tema recorrente nas leituras da liturgia de hoje é a “lei”, tal como ela é vista por Moisés e, no evangelho de Marcos, como ela é vista por Jesus, em contraste com a visão que dela têm os fariseus e alguns mestres da lei. Como nós, homens e mulheres, somos chamados a viver em comunidades, pequenas, médias ou grandes, não podemos fazê-lo com um mínimo de harmonia, se não observarmos, com um mínimo de cuidado, as leis, as normas, as regras, os estatutos ou o que seja que as regem. Mas essas leis, por mais importantes e indispensáveis que sejam, não têm valor em si mesmas; estão lá para facilitar a amizade, o conforto e a ajuda mútua entre os membros da comunidade. Em outras palavras, é função delas transformarem uma mera convivência em amor. Se a lei, por alguma razão, gerar distanciamento, opressão, discriminação é sinal de que ela está sendo deturpada. 2. Livro do Deuteronômio 4, 1-2.6-8 O livro do Deuteronômio – a segunda lei em grego – é um longo discurso de Moisés, mas só aparentemente, pois na verdade se trata de um artifício literário. Trata-se de uma longa e profunda reflexão sobre a experiência do povo hebreu ao longo da sua História, cujo inspirador maior é Moisés, que libertou o povo da casa da escravidão e, para consolidar essa liberdade, proclamou as tábuas da lei que se resumem nos Dez Manda327 mentos. Diz o Moisés do Deuteronômio: “Vós os guardareis pois, e os poreis em prática porque neles estão a sabedoria e a inteligência perante os povos.” A observância da lei é vista como expressão da sabedoria, sem a qual não é possível uma existência feliz e pacífica, e não como um valor em si mesma. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 7, 1-8.14-15.21-23 Para entendermos bem o evangelho de hoje, devemos entender bem qual era o lugar social dos fariseus na sociedade judaica nos tempos de Jesus e refletido nas comunidades do evangelista Marcos. Os fariseus não eram sacerdotes, mas eram seus aliados. Eram leigos, eram intelectuais, tinham grande autoridade perante o povo, eram os grandes formadores de opinião e a grande tribuna deles eram as sinagogas que se distribuíam em toda a Palestina, contrariamente ao templo, que se limitava a Jerusalém. Caracterizavam-se pelo extremo rigor em relação às práticas legais, não só dos Dez Mandamentos, mas principalmente das tradições recebidas dos antigos, como as práticas da pureza legal que afetavam a dieta, isto é, alguns alimentos eram considerados puros e outros impuros, e afetavam também a higiene corporal e doméstica. Na medida em que a pregação dos fariseus era extremamente severa, ela gerava insegurança no povo e, por isso mesmo, se transformava em instrumento de poder para os fariseus. A postura de Jesus era oposta. Jesus valorizava os Dez Mandamentos, que ele reduzia a dois: O amor a Deus e o amor ao Próximo. Jesus relativizava as tradições dos antigos ao dizer: “Escutai todos vós e compreendei: o que torna impuro o 328 homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior. Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, assassínios etc” Não admira, pois, que o poder farisaico se tinha voltado mortalmente contra Jesus. 4. Carta de São Tiago 1, 17-18. 21b-22.27 A carta de Tiago é uma carta dirigida a judeus provindos do judaísmo palestinense, portanto fortemente marcados pela pregação dos fariseus. Com eles, Tiago não discute as firulas da lei ou da tradição dos antigos, mas vai diretamente ao assunto: “Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os pobres e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo”. 329 23º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Em nosso país, celebra-se a cada setembro o mês da Bíblia e por uma feliz coincidência as leituras de hoje, tanto a do profeta Isaías, a de São Tiago, como a do evangelista Marcos são extremamente fortes e significativas e, portanto, capazes de evidenciarem a riqueza do significado e do alcance da Palavra de Deus, comparada a uma espada afiada que penetra até a medula dos nossos ossos. O que caracteriza o Deus dos Patriarcas e dos Profetas e mais que tudo, o Deus de Jesus Cristo é que Ele é um Deus que fala, mais do que isso, um Deus que dialoga e, mais do que isso ainda, é Ele quem dá início ao diálogo e, quando o homem se cala, Ele fala de novo. Ele nos fala principalmente pelas Escrituras Sagradas, mas não só, fala-nos também quando oramos e, quando não oramos, fala-nos através dos sinais dos tempos, dos pobres e enfermos, das crianças e dos idosos e através das culturas e da História. 2. Livro do Profeta Isaías 35, 4-7 Ao lermos essa primeira leitura do Profeta Isaías, espantanos o seu otimismo. Para ele, os cegos vão ver, os coxos andar, os mudos, falar e, no entanto, são tantos os que continuam cegos, surdos e mudos. Quando somos crianças, a nossa história é curta, parece durar uma semana, talvez alguns meses. Adultos, 330 podemos olhar para trás e para frente e tomamos consciência da vastidão da História. Os que não têm fé acreditam que o homem pouco pode fazer para mudar o curso da História. Nós que acreditamos no Deus de Jesus Cristo, pensamos que a nossa história não se encerra neste mundo, mas há um outro melhor e definitivo. Acreditamos também que podemos construir uma História em que os homens possam ser mais felizes já neste mundo. Essa História não será nunca perfeita, porque só Deus é perfeito e não as criaturas limitadas por definição. A visão otimista de Isaías não é uma ilusão; será uma realidade mais gratificante para todos, se os videntes pensarem nos cegos, os ouvintes nos surdos e assim por diante. 3. Carta de São Tiago 2, 1-5 As palavras de Tiago são tão claras e contundentes que qualquer tentativa de explicá-las corre o risco de desmerecê-las. Vale a pena relê-las mais de uma vez principalmente para nós que não fomos, na nossa maioria, desfavorecidos pela sorte, mas fomos contemplados até com o supérfluo. A nossa comunidade toma várias iniciativas para não pré-julgar negativamente os pobres, mas ao contrário, tenta com muito respeito ajudá-los. Que o nosso padroeiro, Francisco de Assis, que soube tão bem não discriminar os pobres, mas exaltá-los, sirva-nos de exemplo! 331 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 7, 31-37 O que Isaías previra 800 anos antes realizava-o Jesus na região da Decápolis, curando um surdo-mudo. Como sempre, os milagres de Jesus não eram meros milagres, porque Jesus não era um milagreiro. Mais do que um milagre, a cura do surdomudo era um sinal. Era um sinal de que os tempos previstos por Isaías estavam a realizar-se com Jesus. A História da salvação estava no seu auge e o mundo encontrava a oportunidade maior de renovar-se. De curar não só uma enfermidade física, mas principalmente uma enfermidade moral. No Reino de Deus, todos os homens devem poder falar; nele não cabem os mudos, nem os emudecidos, mas, ao mesmo tempo, todos devem ouvir. Ao direito de falar, corresponde o dever de ouvir. Essa é uma das características do Reino de Deus, do mundo novo que Jesus veio inaugurar. É nesse sentido que devemos construir a nossa família, a nossa comunidade, o nosso país. 332 24º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As três leituras de hoje, a primeira, do profeta Isaías II, a segunda, da carta de Tiago e a terceira, do evangelho de Marcos, embora tão diferentes no estilo, têm um ponto em comum: convocar-nos, como Jesus fizera em relação aos Seus discípulos, durante o episódio da pesca milagrosa: avancem para águas mais profundas! Ou seja, não fiquem parados, estagnados! Abandonem a rotina, a superficialidade! Como no campo profissional, assim também na prática religiosa, ou melhor dizendo, na prática do evangelho ou da caridade, não podemos nem parar e muito menos retroceder. Também aqui, quem não avança, recua. É isso que percebemos no oráculo de Isaías II, na homilia de Tiago aos cristãos vindos do judaísmo e no diálogo de Jesus com os Seus discípulos. 2. Livro do Profeta Isaías 50, 5-9 Estamos hoje lendo uma passagem de Isaías II, ou seja, um profeta da tradição de Isaías, um discípulo de Isaías. Ele profetizou no exílio ao tempo de Ciro, aos seus compatriotas para reanimar-lhes a fé, ameaçada pelo esquecimento da tradição religiosa de Israel, pelo indiferentismo ou outras causas. Para passar a sua mensagem, ele criou a imagem do servo sofredor, ou seja, de alguém que é fiel a Javé e Nele confia totalmente, quaisquer que sejam as dificuldades pelas quais possa passar. 333 Estará sempre disposto a pagar as suas culpas, mas não só isso, também as faltas dos outros: “O Senhor abriu-me os ouvidos: Não lhe resisti nem voltei atrás. Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba, não desviei o rosto de bofetões e de cusparadas”. Quando lemos atentamente o relato da Paixão do Senhor, não podemos deixar de perceber que Jesus tinha no servo de Javé um modelo a seguir. 3. Carta de São Tiago 2, 14-18 Tiago, também conhecido como o irmão do Senhor, ou seja, da Sua parentela, era uma das figuras mais importantes da Igreja primitiva da Palestina. Tiago não era um teórico, mas um homem prático, não de palavras, mas de obras. Na contramão do apóstolo Paulo, que dava prioridade à fé, sobre as obras, na medida em que as obras eram uma consequência natural da fé como a luz o é da lâmpada, Tiago dava prioridade às obras, como garantia da fé verdadeira. O ponto de partida de Paulo e Tiago é diferente, mas o ponto de chegada é o mesmo, ou seja, uma fé apenas teórica, que não transforma o nosso agir, é vazia, como também são vazias as obras cuja motivação não nasça da fé, cujo vínculo de perfeição, como diz Paulo, não seja o amor. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 8, 27-35 A chegada de Jesus com Seus discípulos a Cesareia de Filipe marca o que os exegetas chamam de “crise galilaica”, ou seja, até então o prestígio de Jesus junto à multidão era grande 334 por causa dos Seus milagres e exorcismos. Mas esse mesmo prestígio causava a inveja dos fariseus, cuja seita era poderosa junto às autoridades civis e do Templo. Jesus já se sentia ameaçado e se sentia forçado a prevenir os discípulos. Sabiam eles bem quem Ele era e o risco que corriam em segui-lo? Daí a pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pelo comportamento de Pedro, no primeiro e no segundo momento, podemos ver que ele estava iludido. Ele imaginava um Jesus vencedor e não um messias semelhante ao servo sofredor do Isaías 2 da primeira leitura: “Se alguém de vós quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga! Pois se alguém quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim e do evangelho vai salvá-la.” 335 25º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Raramente nas liturgias dominicais, quando há convergência temática entre as leituras, ela é tanta como neste domingo. Todas apontam para o lado sombrio do comportamento humano, que levou o filósofo Hobbes a definir o homem como um lobo para o homem, e ao personagem Jó a dizer que a vida do homem sobre a Terra é uma batalha. O homem combina dentro de si a afetividade e a agressividade e isso lhe permite, ao mesmo tempo, amar e lutar e assim ser feliz e construir a sua personalidade e a sua história, contanto que ele saiba dosar as duas vertentes, coisa que nem sempre acontece quando a agressividade inibe a afetividade sob a ação da inveja, dos ciúmes, da competitividade, da ambição e do ressentimento, essas pequenas paixões tristes, que tanto diminuem o homem. 2. Livro da Sabedoria 2, 12 17-20 A cultura bíblica caracterizava-se por dois dinamismos: a profecia e a sabedoria. Pela profecia, o israelita denunciava os abusos morais e defendia o direito de Deus e dos pobres. Pela sabedoria, buscava na tradição recebida dos antepassados uma maneira harmoniosa de viver em sociedade. Assim viviam os sábios e, ao contrário, os insensatos. Moralmente inferiorizados, os insensatos buscavam uma maneira criminosa de prejudicarem os sábios, também chamados de justos, como se com isso 336 se redimissem. O versículo 2 desta leitura – “vamos condená-lo à morte vergonhosa, porque, de acordo com as suas próprias palavras, virá alguém em seu socorro” – nos remete diretamente ao evangelho da Paixão de Jesus segundo Mateus: “A outros salvou, a si mesmo não pode salvar. Se é Rei de Israel, desça agora da cruz e creremos nele. Confiou em Deus: que o livre, se é que ama. Pois disse que é Filho de Deus.” Jesus viveu plenamente o carisma da profecia e da sabedoria. Nós, que nos consideramos discípulos Seus, devemos humildemente buscar vivê-los no nosso dia a dia. 3. Carta de São Tiago 3, 16-4, 3 A descrição que Tiago faz da sua comunidade não é das mais elogiosas, deixa entender que estava prejudicada principalmente pela inveja que, como não poderia deixar de ser, corroía todo o tecido comunitário. Seria a comunidade de Tiago pior que as outras? Não podemos dar uma resposta conclusiva a essa pergunta, mas podemos dizer, sem medo de errar, que a inveja é uma ameaça para todas as comunidades, até as mais exemplares. A inveja é um desvio moral que nos faz desejar para nós o que é de outrem por direito e leva facilmente ao ressentimento, que é o desejo de destruir aquele que nos parece mais dotado que nós. 337 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 9, 30-37 A expectativa de um Messias salvador começou a surgir em Israel quando o seu povo amargava a profunda tristeza de ver ruir a sua História. Já iam longe os dias gloriosos de Davi e Salomão, quando os reinos do sul e do norte se exibiam soberanos perante os povos vizinhos. No tempo de Jesus, quem dominava o mundo eram os romanos, que impunham sobre o mundo a Pax Romana, uma paz que não era fruto da justiça, mas da força. Diante desse paradigma, o Messias esperado deveria assemelhar-se a Cesar, que exigia que as nações e os povos dominados o adorassem como Deus, Divus Caesar! Pouco a pouco, o Messias esperado por Israel assumia indevidamente a imagem de Cesar, pelo menos como poder. O Messias só poderia ser mais poderoso do que Cesar. Se não, como haveria de superá-lo? Jesus iniciou o seu ministério dentro desse universo de expectativas e não demorou muito para perceber quão difícil lhe seria corrigir essa expectativa. Sentiu-se obrigado a afastar-se da multidão por um tempo para alertar os discípulos a respeito do verdadeiro sentido da Sua missão e dizia-lhes: “O Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas três dias após a sua morte, ele ressuscitará”. Como os discípulos mal acreditavam nas suas palavras, Jesus acrescenta uma frase sobre a qual não poderia haver dúvidas a respeito da natureza do Reino que ele viera instaurar: “Se alguém quiser ser o primeiro no meu Reino, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” 338 26º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Enquanto a segunda leitura de hoje apresenta uma temática totalmente particular, ou seja, a justiça social; a primeira, tirada do Livro dos Números e do Evangelho de Marcos apresentam, entre outros, um tema comum que nós poderíamos chamar em termos modernos “ECUMENISMO”, uma generosa abertura de uma denominação religiosa em relação a uma outra denominação. Assim falamos de ecumenismo stricto sensu, em relação à busca de uma união, total ou parcial, entre as religiões cristãs, ou de ecumenismo lato sensu, quando nos referimos à aproximação entre as grandes tradições religiosas não cristãs e cristãs. O espírito ecumênico é uma conquista da modernidade e se baseia na crença de que Deus não se revelou apenas na tradição judeo-cristã, mas também através das grandes tradições religiosas como o hinduísmo, islamismo etc. Nós, cristãos, não somos donos de toda a verdade e, se temos obrigação de anunciar o evangelho de Jesus, temos também a obrigação de ouvir o que outras tradições religiosas têm a dizer-nos. 2. Livro dos Números 11, 25-29 O Livro dos Números assim se chama por causa dos 40 anos de travessia do deserto pelo povo hebreu em busca da Terra Prometida. Nele são narrados acontecimentos marcantes dessa travessia, entre eles o episódio de hoje. Algumas considerações 339 preliminares: em todo o Oriente Médio, havia uma tradição profética, individual ou mesmo sob a forma de confraria. Certas pessoas talentosas, perspicazes e como tais consideradas pelo povo julgavam-se portadores da palavra de Deus. É certo que, ao lado dos bem-intencionados, havia os mal-intencionados. Embora num outro formato cultural, até hoje encontramos pessoas que facilmente podemos chamar de profetas, como por exemplo: Martin Luther King, Gandhi e outros. O episódio de hoje nos mostra duas maneiras distintas de acolhermos a profecia ou, para usar uma linguagem mais moderna, duas maneiras de acolhermos a mensagem que nos chega de mil maneiras, de viva voz ou por todos os meios de comunicação. Generosamente, como Moisés, ou como Josué, filho de Num, de modo mesquinho. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 9, 38.43.45.47-48 Os episódios de hoje são dois: o primeiro refere-se a um exorcismo e o segundo é uma advertência contra o escândalo, principalmente aos pequeninos. Ambos exigem uma explicação preliminar. Quanto ao exorcismo, devemos lembrar que, como o profetismo, o exorcismo era também uma prática comum em Israel e deve ser entendida dentro desse contexto cultural. Na falta de uma explicação científica, toda enfermidade, principalmente mental, era atribuída à ação demoníaca. Assim como hoje nas regiões mais atrasadas, há curandeiros e curandeiras que conseguem lograr algum êxito, na época de Jesus havia exorcistas, alguns exerciam a sua profissão em nome de Jesus. 340 Como Josué, filho de Num, os discípulos de Jesus queriam impedi-los de fazer o bem. Disse, porém, Jesus: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor.” Em relação aos escândalos contra os pequeninos, podemos lembrar que Jesus foi enviado ao mundo não para os fortes e os grandes, mas para os frágeis e os pequeninos. Daí, os ciúmes de Jesus pelos pequeninos e a força de expressão: “Se alguém escandalizar um desses pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada no pescoço”. Quanto à expressão “Se tua mão te leva a pecar, corta-a”, devemos considerá-la evidentemente como força de expressão. 4. Carta de são Tiago 5, 1-6 A carta de Tiago, cheia de indignação, reflete a terrível situação econômica e social da Palestina à época. Um pequeno número de ricos e credores e uma infinidade de pobres e endividados. A oração do Pai Nosso, que Jesus nos ensinou, reflete essa situação: “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores.” A nossa sensibilidade à situação cruel dos pobres é uma prova real do nosso amor a Deus. Este não vai sem aquele! 341 27º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O Salmo 8, versículo 4 nos introduz com muita propriedade às leituras da liturgia deste Domingo: “Quando contemplo teu Céu, obra de tuas mãos, a lua e as estrelas que dispuseste, o que é o homem para que dele te lembres, o filho de Adão para que dele te ocupes? Tu o fizeste pouco menos que um Deus, de glória e de honra o coroaste, deste-lhe domínio sobre as obras de tuas mãos!”. Ponto alto da obra criadora de Deus, o homem e a mulher resumem em seus corpos o mundo mineral, o mundo vegetal, o mundo animal e o mundo espiritual e, como tais, oferecem-se a Deus, a si mesmo e a toda a criação como sacrifício de louvor. O que a consciência ecológica de hoje está descobrindo já estava implícito nos dois testamentos e mesmo no primeiro capítulo do Gênesis, que começa com a criação do Céu e da Terra, com a separação dos mares e dos continentes, com as frutas e árvores, e culmina com a criação dos animais e, por fim, do homem e da mulher, como os reis da criação. Mas antes de toda a criação, o Pai já havia concebido, no seu coração, a Jesus, o Cristo, o Seu ungido, para transfigurar o mundo mundano no reino de Deus. 342 2. Livro do Gênesis 2, 18-24 O que as ciências, com toda a razão, descrevem como um longo processo evolutivo de milhões de anos, o mito bíblico, cheio de beleza e de ensinamentos, no-lo descreve como um ato criador de Deus. O homem e a mulher são parte um do outro, solidários entre si, na vida e na morte: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher e eles serão uma só carne”. É essa vocação dos homens e das mulheres no mundo inteiro e, como não poderia deixar de ser, também em nossa Igreja, onde os casais se unem com vínculo indissolúvel, ou seja, até a morte do cônjuge, e geram filhos para o Reino de Deus. A radicalidade do casamento bíblico que faz do homem e da mulher uma só carne, portanto impossibilita uma separação no futuro, espanta a modernidade e mais ainda a pós-modernidade que se sente mais confortável no provisório do que no definitivo. Mas o que parece impossível aos homens, é possível com a graça de Deus e com a colaboração dos homens. 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 2, 9-11 O autor da carta aos hebreus, hebreu também ele, cultivara, desde sempre, a fé maior de todos os hebreus, a fé no Messias, o ungido de Deus, que viria para consolidar definitivamente a Aliança de Javé com o povo, testemunha da Aliança. O autor da carta foi um daqueles judeus em quem não havia dolo, e que acreditou em Jesus como o Messias prometido, apesar de ter sofrido em sua carne a morte na cruz. O autor da carta, cujo nome a História não guardou, não via contradição entre os sofrimentos sofridos por Jesus e a glória da Sua divindade, 343 porque convinha de fato que aquele por quem e para quem as coisas existem, para salvar os homens do sofrimento, passasse também Ele pelo sofrimento. Por isso não se envergonhava de chamar de irmãos aqueles que passam pelo sofrimento. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 10, 2-16 O evangelho de hoje contém duas narrativas de diálogo: a primeira, envolvendo Jesus e os fariseus, e a segunda, Jesus e os Seus discípulos. Tanto com os fariseus, como com os discípulos, Jesus defende intransigentemente a indissolubilidade do matrimônio, ou seja, ele condenava o segundo casamento antes da morte do cônjuge. A posição de Jesus tinha dois motivos. O casamento é uma coisa tão séria que ele só deve ser contraído quando os pretendentes tiverem certeza moral que o fazem para sempre. O segundo motivo era o fato de que a carta do divórcio era uma arma na mão dos maridos contra as esposas e Jesus posicionava-se, numa cultura machista, ao lado das mulheres. No diálogo com os discípulos, sublinha a igualdade de condição entre os homens e as mulheres. O evangelho termina com um abraço carinhoso entre Jesus e as crianças, as maiores vítimas do divórcio. Ele abraçava as crianças e as abençoava impondo-lhes as mãos! 344 28º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Já tivemos a oportunidade de repetir aqui que podemos perceber, ao longo de toda a Bíblia, os dois testamentos; que há neles dois fios condutores, o da profecia e o da sabedoria. A profecia tem a ver com a defesa dos direitos de Deus, pela prática da verdadeira religião, e dos direitos dos pobres, pela prática da justiça, de modo particular da justiça distributiva, que não nega a ninguém o que é dele. A sabedoria tem a ver com a escala de valores que deve guiar as nossas escolhas no dia a dia da nossa vida. E nós vamos perceber pelas leituras de hoje que, por mais que a economia, a cultura e os contextos sociais tenham mudado, a profecia e a sabedoria, encerradas nas três leituras de hoje, continuam válidas e atuais. Pois como diz o autor da Carta aos Hebreus: “a palavra de Deus é viva e eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”. 2. Livro da Sabedoria 7, 7-11 O homem em toda a história sempre foi vítima do que o evangelista João, em uma das suas cartas, chama de tríplice concupiscência ou a tríplice cobiça do poder, do dinheiro e do prazer. Segundo a época e a cultura, a sedução de uma ou de outra cobiça pode ser maior ou menor, mas estão sempre presentes. A primeira leitura de hoje nos aconselha a preferir a sabedoria aos cetros e tronos para combater a sede de poder. 345 Mostra-nos que a sabedoria vale mais do que a pedra mais preciosa e do que todo ouro do mundo. Essa relativização do valor da riqueza e do dinheiro, ao comparar o ouro à areia e a prata à lama, é extremamente oportuna nos dias de hoje em que o valor econômico é o supremo valor. Em relação à terceira concupiscência, a do prazer, vivemos uma cultura de endeusamento do corpo. E a leitura de hoje nos diz: “Amei mais a sabedoria do que a saúde e a beleza e quis possuí-la mais que a luz”. 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 4, 12-13 A fé bíblica repousa na crença de que Deus nos fala, ou seja, de que Deus é a Palavra. Começa assim o evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus”. Por isso, vale a pena valorizar a missa dominical, porque nela se serve, além do pão eucarístico, o pão da palavra, “que nos penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Ela julga os pensamentos e as intenções do coração”. É profunda essa ideia de que a palavra de Deus julga não só os nossos pensamentos, mas também as intenções dos nossos corações. Em vez de julgarmos os nossos irmãos, deixemo-nos julgar pela palavra de Deus que, se a ouvirmos bem, não nos deixará mentir nem aos outros e muito menos a nós mesmos. “Tudo está nu e descoberto aos seus olhos e é a ela, à palavra, que devemos prestar contas”. 346 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 10, 17-30 O evangelho de hoje é relativamente longo e, por isso mesmo, vamos limitar nosso comentário às palavras de Jesus: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”. Essas palavras causam espécie pela sua radicalidade e são preocupantes para muitos de nós que somos ricos, na medida em que nada ou pouco nos falta. O que é certo é que o Reino de Deus que Jesus veio inaugurar desde já, aqui na terra, é um reino em que os pobres, de todo o tipo de pobreza, devem ser felizes, porque nesse Reino sempre haverá alguém que os socorra. Se nós, em função de nossa história pessoal, fomos contemplados pela fortuna, não devemos desperdiçá-la, mas sim fazê-la render para que um número maior de pessoas possam dela se beneficiar. Todos nós que fomos aquinhoados por Deus devemos nos revestir daquela sabedoria, trocar o poder pelo serviço, o prazer para si pelo prazer do outro, o dinheiro acumulado pelo dinheiro que é dom. 347 29º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O ser humano é uma criatura contraditória, chamado a elevar-se muito acima de si mesmo por vocação divina, e isso, de alguma maneira, resume a nossa fé cristã, baseada na experiência de morte e vida de Jesus, o ungido de Deus, filho do Altíssimo por um lado e, por outro, de Maria Virgem, esposa de José. Somos feitos de barro, cujo peso nos prende à terra, mas ao mesmo tempo sentimos vibrar dentro de nós um dinamismo interior que nos projeta para o alto, para além de nós mesmos. As leituras de hoje, as três, de maneiras distintas, nos falam dessa vocação humana à autosuperação, à libertação das amarras que nos prendem aos nossos próprios limites e aos horizontes puramente terrenos e egoístas. Somos hoje chamados a contemplar, da pequena barca em que navegamos, a terceira margem do rio que percorremos com dificuldades, e também somos chamados a contemplar as paisagens que se escondem muito além da linha do horizonte. 2. Livro do Profeta Isaías 53, 10-11 Em apenas dois versículos tirados do livro do profeta Isaías, ou melhor, de um dos seus discípulos, Isaías 2, a primeira leitura nos fala do servo sofredor, uma figura simbólica, que, sem medir esforço diante dos sofrimentos que lhe são infringidos pelos seus inimigos, resgata os seus próprios inimigos. O servo 348 sofredor, sem louvar o sofrimento pelo próprio sofrimento, mostra como ele é parte do nosso destino, já que somos seres limitados por um lado, mas, por outro, sedentos de poder, de dinheiro e de prazer. É nesse contexto que somos chamados a conseguir a verdadeira felicidade e a verdadeira paz. A nossa experiência do dia a dia mostra-nos com clareza que, se não houver renúncia, não haverá paz; num mundo de escassez, se não houver partilha, não haverá saciedade. 3. Certa de São Paulo aos Hebreus 4, 14-16 Na carta aos hebreus, o seu autor, de nome desconhecido, era hebreu e escrevia para hebreus, vindos do judaísmo. Ele estava perfeitamente ciente de que a crucificação de Jesus foi um tremendo golpe para os judeus, que esperavam como Redentor e Messias um vencedor e não um perdedor. É por isso que nas entrelinhas desta segunda leitura de hoje, ele lembra a figura do Servo Sofredor bem conhecida dos seus destinatários. O Servo Sofredor era ao mesmo tempo vencedor, mas um vencedor diferente, que não abatia os seus inimigos, mas os levantava. “Irmãos, temos um Sumo Sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus”. A lógica do Servo Sofredor é a lógica de Jesus. Será a nossa lógica? 349 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 10, 35-45 O evangelho de hoje é de tal ordem que ele praticamente não precisa ser explicado, mas explica tudo que tentei dizer sobre a condição humana, ao mesmo tempo amarrada à terra e voltada para o alto. Tiago e João, filhos de Zebedeu, quando pescadores no mar da Galileia, deixaram tudo, o seu pai, a barca, e seguiram Jesus, mas, ao mesmo tempo, queriam os primeiros lugares no Reino que Jesus anunciava, um à direita e outro à esquerda de Jesus! O voo era alto, mas os pés eram de barro! Com clareza meridiana,Jesus lhes explicou: “Quem quiser ser grande seja vosso servo, e quem quiser ser o primeiro seja escravo de todos. Por que o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate de muitos”. 350 30º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Não será difícil extrair das três leituras de hoje, tiradas do livro de Jeremias, da Carta aos Hebreus e do Evangelho de Marcos, um denominador comum, apesar de destinatários tão distintos. Jeremias fala uma linguagem de reconciliação e de esperança aos povos de Judá e do Norte, irmãos separados, mas chamados a uma nova vida como irmãos que são; o autor da Carta aos hebreus convoca-os a se reunirem sob o signo de Jesus, único Sumo Sacerdote que une, sob o mesmo culto, ex-pagãos e judeus. O evangelista Marcos narra o encontro de Jesus, no caminho de Jericó, com o cego Bartimeu, que representa a cegueira, não só a nossa, mas a cegueira de toda a humanidade. Todas as leituras nos falam dos nossos limites, das nossas divisões, dos nossos preconceitos e da nossa incapacidade de ver, mas ao mesmo tempo indicam os caminhos que devemos seguir para encontrar o nosso destino, um destino reparador. 2. Livro do Profeta Jeremias 31,7-9 Jeremias e Isaías são talvez os dois maiores profetas bíblicos que em meio aos grandes profetas bíblicos da História se posicionaram ao lado do povo eleito contra os inimigos poderosos, a Assíria e a Babilônia, e ao lado de Javé, contra os deuses e deusas pagãs. Na leitura de hoje, em pleno cisma, Jeremias convoca Judá, o reino do Sul, e Efraim, o reino do Norte, a se unirem, 351 pois são parte das doze tribos que tomaram posse da Terra Prometida. Essa união não é apenas uma estratégia política, mas é um sinal messiânico: “Exulta de alegria por Jacó, aclamai a primeira das nações, tocai, cantai e dizei: Salva, Senhor, o teu povo, o resto de Israel... Neste reino há cegos e aleijados, mulheres grávidas e parturientes: são uma grande multidão que retorna”. 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 5, 1-6 Como já dissemos outras vezes, os destinatários desta carta que estamos a comentar são cristãos vindos do judaísmo, acostumados a frequentarem o Templo de Jerusalém, cujo culto era celebrado pela classe sacerdotal e liderado pelo sumo Sacerdote, figura de prestígio não só religioso, mas também político. Os cristãos, seguidores de Jesus, continuavam a se reunir para a partilha do pão e a escuta da Palavra e já não era mais o Sumo Sacerdote, sucessor de Anãs e Caifás, que celebrava, era um seguidor de Jesus que celebrava o culto em nome de Jesus, o único e verdadeiro Sumo Sacerdote. “E ninguém deve atribuir-se essa honra senão aquele que foi chamado por Deus, Jesus Cristo, Senhor Nosso”. A quem o Pai diz: “Tu és meu Filho e eu hoje te gerei”. 352 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 10, 46-52 Desde os tempos messiânicos, desde Isaías e Jeremias, oito séculos antes de Jesus, já estava previsto que os coxos andariam, que os surdos ouviriam e os cegos enxergariam. Jesus, vindo desde a Galileia, chegava a Jericó, última etapa da planície desértica, antes da subida a Jerusalém, onde entraria solenemente aclamado, entre ramos de oliveira e palmas, Messias e Rei de Israel. O cego Bartimeu é um pobre homem e, além de mendigo e cego, está sentado à beira do caminho. Ele é um homem, mas também é mais do que um homem. Ele é o retrato de todos os homens, de todos os mendigos, de todos os cegos do mundo de todos os tempos. Ele é também o nosso retrato. Porque todos nós temos dificuldade para enxergarmos a nós mesmos e principalmente nossos irmãos. Durante a celebração, coloquemo-nos aos pés de Jesus, confessemo-lhe a nossa cegueira e digamos como o ceguinho Bartimeu: “Mestre, que eu veja”. 353 31º Domingo do Tempo Comum e Solenidade de Todos os Santos 1. Introdução O tema central de hoje é a santidade que vamos interpretar como perfeição moral e espiritual. Dizem as Sagradas Escrituras de várias maneiras e com razão que só Deus é Santo por natureza, mas nós o seremos por participação como dádiva divina: ”Sede santos porque Deus é Santo”. Assim, como santos por participação à santidade de Deus, o mundo ou todas as criaturas podem também ser santas pelas mãos dos homens. O homem que está no topo da obra criadora de Deus pode oferecê-la de volta ao criador, tornando-a santa, como fazia Francisco de Assis, nosso Santo padroeiro, no seu Cântico às Criaturas: “louvado seja o meu Senhor pelo irmão sol, belo e radiante; pela irmã lua e as estrelas; pela irmã água casta e pura” e assim por diante. Num sentido mais restrito, a festa de hoje celebra todos os santos que fazem parte da Igreja triunfante, ou seja, daqueles que já passaram pela primeira morte e foram julgados dignos de aceder à glória eterna junto do Pai, ao lado do seu Filho Jesus, iluminados pelo Espírito. Amanhã, dia dos fiéis defuntos, celebraremos os nossos irmãos falecidos à espera da coroação eterna. Esses fiéis defuntos são a Igreja padecente e nós, aqui na Terra, somos a Igreja militante. 354 2. Livro do Apocalipse 7, 2-4.9-14 Apocalipse é uma palavra grega que significa “revelação” daquilo que não podemos ver com os nossos olhos carnais, porque são cenários que transcendem a nossa experiência terrena. A leitura de hoje é uma tentativa de João de nos mostrar como poderá ser o Juízo Final e o mundo que a ele segue. O mundo da Igreja triunfante, o mundo futuro de todos nós. Estaremos junto do Pai e do Cordeiro imolado, Nosso Senhor Jesus Cristo, ao lado de uma grande multidão: “Ouvi então o número dos que tinham sido marcados: eram cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel”. As doze tribos referem-se às tribos do novo Israel, formadas pelos seguidores de Jesus Cristo, o novo Moisés. A ideia que nos fica dessa leitura profética é a de que o mundo que nos espera após a experiência terrena é um mundo grandioso, belo e generoso. 3. Primeira Carta de São João 3, 1-3 Num outro estilo e com outra linguagem, a carta de São João repete o Apocalipse de João. Ou seja, após a nossa morte, na companhia do Pai, ao lado de Jesus, teremos plena consciência de que Pai somos filhos. Aqui na Terra, Jesus já nos revelara a bondade infinita do seu Pai e nosso Pai, em todos os Seus atos e palavras, mas de modo particular na parábola do filho pródigo e na Sua ressurreição pelo Pai. Mas durante a nossa experiência terrena não temos nem palavras, nem conceitos, nem imagens para saber com clareza de quem somos filhos, mas uma vez diante d’Ele, quando Jesus se revelar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como Ele é. 355 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 5, 01-12a Bem-aventurança é uma palavra chave dos evangelhos sinóticos, de Marcos, Lucas e Mateus, que quer dizer “felicidade”, “plenitude de vida”. A felicidade plena que viveremos na outra vida, após a nossa morte, já se antecipa nesta vida terrena, através da vivência das bem-aventuranças de Jesus, apesar das aparências em contrário. Para evitar confusões, devemos lembrar que Jesus fala de bem-aventurança no reino de Deus e não no reino egoísta dos homens. Por que são felizes os pobres no reino de Deus? Porque no reino de Deus há quem os socorra. Por que são felizes os aflitos? Porque há quem os console. Por que são felizes os mansos? Porque não há quem os explore. Por que são felizes os misericordiosos? Porque também eles encontrarão misericórdia! E assim por diante. Olhando por esse lado, podemos perceber que as bem-aventuranças são na realidade outra maneira de viver os dez mandamentos resumidos por Jesus: Amai-vos uns outros como eu (Jesus) vos amei!! 356 Celebração dos Mortos 1. Introdução Pelo menos desde os tempos dos Macabeus, uns 200 anos a.C., já se considerava como salutar o costume de se rezar pelos mortos. Esse hábito significava não apenas a fé na sobrevida após a morte, mas que também os falecidos poderiam necessitar de orações, ou em outras palavras que a sorte eterna deles, embora assegurada, não estava ainda definida. Essa crença está na base do culto que prestamos hoje aos fiéis defuntos da Igreja Padecente. Eles foram salvos da segunda morte, a pena eterna, mas não estão prontos ainda para a plena visão de Deus. Como para um Deus justo e santo o mal e o bem não podem ser indiferentes, enquanto todo o mal não estiver resgatado, a felicidade eterna não poderá ser desfrutada. Daí a crença no Purgatório como um espaço de purificação que está na base de um imaginário popular, que ganha em ser relativizado. Na verdade, a mente humana não tem como imaginar o que transcende o espaço e o tempo. 2. Livro do Profeta Isaías 25, 6a.7-9 Isaías, neste trecho impressionante, descreve um desfecho grandioso e generoso para a aventura do homem sobre a Terra, de todos os homens de todos os tempos e gerações. “O Senhor Deus iluminará para sempre a mente e enxugará as lágrimas de todas as faces e acabará com a desonra do seu povo em toda a Terra.” 357 3. Carta de São Paulo aos Romanos 8, 14-23 Com outras palavras, Paulo descreve para os homens o desfecho glorioso da História para todos os homens. Paulo que, desde a sua infância, acreditava na generosidade do Deus da Aliança, desde a sua conversão, iluminado pelo Espírito, não consegue calar a sua descoberta e chama “Abba! Pai!” diante de Javé. Se Javé é Pai, ele, Paulo, necessariamente é “filho”. E se é filho, também é herdeiro, portanto não lhe será negada nenhuma parte da herança. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 25, 31-48 Mais importante do que o cenário em que se desenvolve a parábola é o ensinamento que ela encerra. Em primeiro lugar, os destinatários desta parábola são todos os homens sem exceção, de todas as religiões, classes e nações de todos os tempos. O que está em jogo no Juízo Final não é a nossa pertença religiosa, as nossas práticas religiosas, a nossa teologia, a nossa filosofia, mas a nossa vivência do amor. Como diz São João da Cruz, no fim da nossa vida seremos julgados pelo amor. De que o amor se trata? De qualquer tipo de amor, contanto que seja amor do outro e não de si mesmo. Pode ser o amor da namorada, do cônjuge, do filho, do irmão, do carente, do prisioneiro, do enfermo, do drogado, do necessitado... Porque tudo que tivermos feito a esses mencionados foi ao próprio Jesus que fizemos! 358 32º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O que chama a atenção nas leituras de hoje é a figura da viúva que protagoniza as narrativas da primeira leitura tirada do Livro dos Reis, a viúva de Sarepta e a viúva do Templo de Jerusalém do evangelho de Marcos. É sabido que na sociedade e na cultura bíblica a viúva era um elo frágil na malha social, juntamente com o órfão e o estrangeiro, em virtude do desamparo econômico de que eram vítimas por causa da estrutura econômica da família em Israel, voltada exclusivamente para si mesma. Por definição, o estrangeiro não tinha vínculos familiares. O órfão e a viúva, se o tiveram, o perderam com a morte dos pais ou do marido. Na tradição bíblica, os órfãos, os estrangeiros e as viúvas eram a menina dos olhos dos profetas, que sempre os defendiam do egoísmo e da exploração dos mais fortes. Jesus, na linha dos profetas, ressuscitou o filho único da viúva da Naim e o famoso versículo 1, 27 da Carta de São Tiago nos diz: “Religião pura e irrepreensível diante de Deus Pai consiste em cuidar de órfãos e viúvas em suas necessidades e em não deixar se contaminar pelo mundo”. 2. Primeiro Livro dos Reis 17, 10-16 Elias foi um grande profeta, mas um profeta especial. Ele profetizava mais através de seus atos do que através de palavras e oráculos. Junto com seu discípulo Eliseu, foram os únicos profetas a operarem milagres. Um deles foi a multiplicação do 359 azeite e da farinha que a viúva de Sarepta guardava para si e para o seu único filho antes de morrer de fome. Como todo o milagre bíblico, é mais do que um milagre, é um sinal de algo mais elevado, é uma lição de vida. Dar de comer a quem tem fome e mais a quem está a morrer de fome é a prova real da verdadeira religião da viúva de Sarepta, onde vivia a viúva em questão e que era uma região pagã, portanto ela também era pagã. Mas isso não lhe foi levado em conta, ela foi recompensada e abençoada por Javé, o verdadeiro Deus. O azeite e a farinha multiplicados antecipam a multiplicação dos pães feita por Jesus e a Eucaristia que renovamos aqui todos os domingos. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 12, 38-44 Jesus não ensinava apenas através de parábolas, mas também a partir da vida concreta das pessoas que Ele observava nos seus usos e costumes. Como é o coxo do evangelho de hoje. De um lado a empáfia dos que se diziam doutores da lei e assim eram considerados. Eram religiosos profissionais e tiravam desse exercício o seu ganho, o seu prestígio e o seu poder. Como eram ricos, depositavam nos cofres grande quantidade de moedas, fazendoas tilintar. De outro lado, havia uma pobre viúva que tinha apenas duas moedas. Podia, pois, dar uma e guardar a última para si. Fazendo assim, já estaria fazendo muito, mas ela quis ir além: ofereceu as duas e ficou sem nada. Ninguém nem viu, nem ouviu o seu gesto. Mas o Senhor que perscruta os corações viu tudo: “Todos deram o que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”. 360 4. Carta de São Paulo aos Hebreus 9, 24-28 O autor da Carta aos Hebreus, ele mesmo hebreu, fala das diferenças entre o sacerdócio da antiga lei, como ele era solenemente exercido no Templo de Jerusalém e o sacerdócio da nova lei, exercido por Jesus, o único sacerdote. Todos os outros sacerdotes da nova lei são apenas representantes visíveis do único sacerdote visível, Jesus Cristo, que estabelece vínculo perene entre nós, os homens, e o Pai. É função dos sacerdotes e dos padres apontar sempre para o único e verdadeiro sacerdote, Jesus Cristo. 361 33º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Estamos a duas semanas do fim do Ano Litúrgico, que é uma parábola do tempo que corre desde a criação do mundo até o desfecho da História da humanidade. O homem que está no topo da criação, ocorrida de consciência moral, capaz de praticar o bem e o mal e sabendo que a eternidade é uma prerrogativa de Deus, sabe que um dia a História terá o seu desfecho e que ele deverá prestar contas ao criador, Deus justo e misericordioso. O Juízo Final, o juízo de Deus, realizando-se fora do tempo e do espaço, está fora do alcance das nossas palavras para ser descrito objetivamente. O gênero apocalíptico, que aborda esse tema, o faz segundo o imaginário que nos é conhecido até hoje. Esse imaginário, ao ser visto como realidade, fascina e aterroriza as pessoas. O Juízo de Deus, na verdade, está sempre a exercerse sobre nós, acompanhada da sua imensa misericórdia. 2. Livro do Profeta Daniel 12, 1-3 Daniel não foi o único profeta apocalíptico do Antigo Testamento, mas foi talvez o mais brilhante e toda a sua inspiração e talento literário fizeram dele uma fonte de responsabilidade moral para todo o crente até os dias que correm, desde um tempo em que a sorte dos povos e nações se decidia nos campos de batalha, com tudo o que as guerras traziam de sofrimento, de sangue e de morte. Daniel imagina o Juízo Final como uma batalha: “Naquele tempo se levantará o arcanjo Miguel, o gran362 de príncipe, defensor dos filhos do seu povo, e será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir as nações”. Por outro lado, não será apenas terrível aquele dia, pois “muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, outros para o sombrio eterno”. Será também um dia de justiça. Mas, desde Jesus, nós sabemos que, tanto os justos, como os condenados, não serão apenas julgados pela justiça de Deus, mas também pela sua misericórdia. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 13, 24-32 Podemos dizer, em termos modernos, que o evangelho de Marcos foi lançado nos fins dos anos 60 e início dos anos 70 do primeiro século. Época de exacerbação política, militar e religiosa. A resistência heróica dos judeus à dominação romana provocava a retaliação violenta do exército romano, que terminou com o que restava do estado judeu, com a destruição de Jerusalém e o incêndio do terceiro Templo e até hoje o último Templo de Jerusalém. Dentro do imaginário apocalíptico, os tempos não podiam ser mais apocalípticos. O evangelho de Marcos reflete esse clima, mas ao mesmo tempo o transcende. Diz Marcos nos últimos versículos: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão. Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o filho, mas somente o Pai”. Nessas últimas semanas, uma grande revista curial trará uma matéria de cunho apocalíptico e mesmo bíblico ou simplesmen363 te religioso. As ameaças à História e ao planeta são obra humana – armas de destruição e poluição – e não ameaças divinas. 4. Carta de São Paulo aos Hebreus 10, 11-14.8 Em continuidade à segunda leitura do domingo passado, o autor da carta aos hebreus sublinha a superioridade do sacerdócio da nova lei, exercido por Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre o sacerdócio da Antiga Lei, exercido pelos Sumos Sacerdotes do Templo de Jerusalém. Na Antiga Lei, os Sumos Sacerdotes eram obrigados a reiterar os mesmos sacrifícios, pois eles eram incapazes de perdoar todos os pecados que se lhe seguiam, ao passo que o sacrifício de Jesus, que se deve ao Pai, de uma vez por todas perdoou todos os pecados de todos os homens por todos os tempos. 364 34º Domingo do Tempo Comum e Solenidade de Cristo, Rei do Universo 1. Introdução Desde que Samuel ungiu Saul rei de Israel, a imagem do Rei passou a ser um símbolo importante na tradição bíblica. Era, de alguma maneira, a imagem de Javé. O rei de todos os reis, para quem os reinados terrenos nada mais eram do que o escabelo de seus pés, como descreviam os salmos. De todos os reis de Israel, o rei Davi se sobrepunha a todos os demais, inclusive Salomão, rei sábio e poderoso. A dinastia ao longo dos séculos, permaneceu presente na cultura de Israel. Mesmo sucumbido pela força dos reis da Assíria, da Babilônia, da Pérsia, da Grécia e de Roma, o povo, alentado pelo sopro dos profetas, esperava que um dos seus descendentes, apesar de todos os pesares, restaurasse a sua dinastia. Essa esperança não se apagava nunca e sempre renascia, embora nem sempre de acordo com o profeta Isaías, que previa um rei diferente, que se impusesse não pela força, mas pelo amor. O Faraó do Egito, os reis da Assíria e da Babilônia, Alexandre, o grande, os Césares, todos eles passariam, mas o Filho de Davi não passará! 365 2. Livro do Profeta Daniel 7, 13-14 A visão noturna de Daniel, dentro de um quadro apocalíptico, é a antecipação mais explícita dos tempos messiânicos, em que alguém, como um filho de homem, aparece cheio de glória e de esplendor, sinais da sua realeza, diante de todos os povos, línguas e nações. Impossível não ver, na figura do Filho do Homem, o próprio Jesus, filho de Deus e de Maria. É agora um bom momento para lembrar que, em vida, o próprio Jesus se atribuía o titulo de Filho do Homem. Podemos ver, nessa autoidentificação de Jesus como Filho do Homem, um sinal de autoconsciência messiânica de Jesus, ou seja, Jesus tinha consciência de que fora convocado pelo Pai para cumprir os desígnios de Deus de restaurar, de um modo insuspeitado, a dinastia de Davi. 3. Livro do Apocalipse de São João 1, 5-8 Enquanto na primeira leitura de Daniel antevemos a presença do Filho do Homem numa visão de futuro, profética, a visão apocalíptica de João, nesta segunda leitura, é uma visão post-factum: “Jesus Cristo é a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos. O soberano dos reis de toda a terra”. Na visão de Daniel, o Filho do Homem viria para inaugurar os tempos messiânicos, para restaurar o passado. Na visão de João, Jesus, o Filho do Homem, virá para coroar a História. Porque Ele é o Alfa, e o Ômega, a primeira e a última letra, diante de quem todas as tribos na Terra baterão no peito por causa dele, “Aquele que é, que era e que vem, o todo-poderoso”. 366 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 18, 33b-37 Jesus está preso, foi caçado no Jardim das Oliveiras como se fosse um malfeitor e conduzido a Pilatos, um proposto de César, para ser interrogado e submetido a juízo. Jesus é claro em sua resposta à pergunta de Pilatos: “Então tu és rei? Jesus respondeu: Tu o dizes eu sou rei”. Todo o segredo dos evangelhos está em descobrir o significado do reino de que Jesus é o Rei supremo. O reino de Jesus não é um colosso, como Babilônia ou a Roma Imperial, mas como um grão de mostarda ou como um pouco de fermento, que faz crescer a massa. O reino de Jesus não é o reino dos poderosos, mas dos pobres, dos mansos, dos enfermos e dos que chamam por justiça. Jesus, ao entrar triunfalmente em Jerusalém, aclamado pelo povo como Filho de Davi, não cavalgava o fogoso corcel do Faraó do Egito, mas o humilde jumentinho, montaria dos verdadeiros reis de Israel, que estavam, não a serviço de si mesmos, mas a serviço dos pobres de Israel. 367 Lecionário Dominical Ano C 1º Domingo do Advento 1. Introdução O roxo dos paramentos litúrgicos indicam o início do Advento, palavra de origem latina que significa chegada. Sendo uma cor mais discreta, que na Quaresma significa penitência, no Advento significa recolhimento interior, na expectativa da segunda e definitiva vinda de Jesus, a acontecer nos fins dos tempos, conforme anunciada pelo Senhor, na expectativa também da festa do Natal, em que lembraremos o nascimento do Menino Jesus na gruta de Belém. Lembrando-nos sempre de que o nascimento de Jesus, seguido da sua vida, paixão, morte e ressurreição é o maior evento de toda História que já estava no coração do Pai muito antes da criação do mundo. Tempo denso e fecundo, procuraremos vivê-lo intensamente nas eucaristias dominicais, comungando profundamente o pão eucarístico e o pão da Palavra. Não podemos deixar de levar em conta o intenso ruído ao qual estaremos submetidos pela propaganda natalina. Não adianta condená-la, mesmo porque nem tudo nela é condenável e pode até estreitar as nossas relações familiares e de amizade. Devemos, no entanto, relativizá-la e não transformá-la no núcleo duro do Natal. 2. Livro do Profeta Jeremias 33, 14-15 O profeta Jeremias, desde muito jovem, desde o seio da sua mãe, em meio às ameaças das nações poderosas que envolviam um Israel debilitado e impotente, em meio à injustiça do jugo 371 servil a que eram submetidos os pobres de Israel, em meio à ousadia dos idólatras que corrompiam a verdadeira religião, (o profeta Jeremias) anunciava o Messias, o ungido de Javé, chamado a restaurar a dinastia davídica e redimir o povo de toda a escravidão: “Eis que dias virão, diz o Senhor, em que farei cumprir a promessa de bens futuros para a casa de Israel e para a casa de Judá”. Essa união entre os reinos de Judá (no sul) e o de Israel (no norte) significava também a reunião das doze tribos de Israel, que haviam sido dispersas pelas grandes nações do Oriente Médio de então. E nos lembramos de que os doze apóstolos constituídos por Jesus são o germe do novo povo de Deus, das novas doze e definitivas tribos de Israel, a Igreja de Deus, o Corpo Místico de Cristo. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 3, 12-4, 2 Embora não seja o primeiro livro do Novo Testamento, a 1a carta aos tessalonicenses é historicamente o primeiro escrito que foi incorporado ao Novo Testamento. Data do ano 51 do século I d.C., mais de vinte anos ou quase antes dos evangelhos. E nessa carta Paulo já estimulava os seus irmãos de Tessalônica a que se mantivessem atentos ao amor mútuo em vista da vinda do Senhor: “Que assim ele confirme os nossos corações numa santidade sem defeitos aos olhos de Deus, nosso Pai, no dia da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os seus santos”. 372 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 21, 25-28-34-36 O evangelho de hoje é conhecido como o apocalipse de Lucas. Nele Lucas revela com clareza a sua visão do fim do mundo, que não era só dele, mas da maioria dos crentes da época, inclusive de Paulo, com quem Lucas trabalhara por algum tempo na evangelização dos pagãos. Há algo de fundamental que devemos reter e há algo ligado ao imaginário apocalíptico da época, que devemos mais inter pretar do que acatar ao pé da letra. O que devemos acatar é que a História terrena dos homens não é eterna, mas teve um começo, como é óbvio, e também terá um fim. Como e quando será esse fim não o sabemos. A geração de Lucas imaginava que esse fim estaria próximo e seria acompanhado de sinais catastróficos. Mais importante do que esses sinais exteriores é o fato de que o Senhor retornará, ou seja, teremos de dar-lhe conta da nossa administração. E poderemos, então, assim como desde já, contar não só com a Sua justiça, mas também e mais ainda com a Sua misericórdia. 373 2º Domingo do Advento 1. Introdução O Advento nos coloca ao lado de Jesus e Maria, num clima de esperança, ou seja, na certeza de que a nossa existência humana não está fadada ao malogro, mas tem um futuro brilhante e, mais do que isso, um futuro eterno ao lado do Pai, de cujo seio viemos. A crença na vida eterna é o fundamento da nossa esperança. Toda a História da Salvação sempre foi um projeto de construção do futuro. É assim que Abraão foi convidado para construir uma nova nação que fosse governada pelo direito e pela justiça; é assim que Moisés foi convocado a libertar o povo da escravidão do Egito; Davi foi convidado a consolidar as 12 tribos num só reino, desde o Norte até o Sul; os profetas, em meio a dores, aflições e derrotas, anunciavam o retorno de todos os exilados à Montanha de Sião, de onde todos os povos da terra viriam adorar Javé, o único Deus; João Batista apontaria com os seus dedos a Jesus, o Cordeiro de Deus; Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios, os queria puros e sem defeitos para o dia de Cristo. 2. Livro do Profeta Baruc 5, 1-9 Sabe-se do profeta Baruc que foi discípulo e secretário, diríamos hoje, do profeta Jeremias, de quem herdou um pouco do estilo e muito do pensamento e da esperança messiânica. O primeiro versículo da leitura de hoje expressa, de modo claro, como a situação calamitosa em que se encontrava Jerusalém 374 em nada o impedia de ver-lhe a glória futura: “Despe, ó Jerusalém, a veste de luto e de aflição e reveste, para sempre, os adornos da glória vinda de Deus.” A grande esperança que animava o profeta fazia com que ele visse muito além dos pequenos percalços enfrentados pelo povo, ao longo da sua pequena história e desvendasse os desígnios de Deus que apontavam para muito além do cotidiano. Muitas vezes nos deixamos abater pelas dificuldades do dia a dia, mas, como o profeta, devemos mirar para mais longe, sabendo que o mundo não acaba na linha do horizonte. 3. Carta de São Paulo aos Filipenses 1, 4-6, 8-11 Um dos aspectos mais reveladores do evangelho de Jesus, já anunciado pelos profetas e pelo salmista do Antigo Testamento é a ternura de Deus pelos seus filhos, os homens. Dizem as Escrituras que se uma mãe pode, em algum momento, esquecer o seu filho, Javé não o fará nunca. Era esse sentimento que ligava Paulo à sua amada comunidade de Filipos: “Deus é testemunha de que tenho saudade de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus.” Uma maneira de vivermos bem o Advento é alimentar, em nossos corações, uma grande ternura não apenas em nossos lares, mas também em nosso ambiente de trabalho: “E assim ficareis puros e sem defeito para o dia de Cristo.” 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 3, 1-2 João Batista é uma figura maior na História da Salvação e também na História da civilização. João Batista não é uma personagem mítica, mas um protagonista da história de Israel, do 375 primeiro século da era cristã. O historiador judeu, Flavius Josephus – que narrou as peripécias da guerra dos judeus e romanos que acabou com o estado judeu e não deixou em Jerusalém pedra sobre pedra – conta a história do assassinato de João Batista por Herodes, por razões políticas. João Batista, como as grandes figuras do Antigo Testamento recebeu, desde jovem, uma missão a cumprir: “Preparai os caminhos do Senhor, endireitai as suas veredas”. João Batista é um exemplo para nós. Ele, que era da casta sacerdotal, abandonou o Templo e desceu até o deserto para, desde lá, anunciar que não havia mais tempo a perder, o Senhor estava para chegar e era preciso acolhê-lo! 376 3º Domingo do Advento 1. Introdução No início desta terceira semana do Advento, entramos na segunda fase deste denso tempo litúrgico que consiste na preparação da festa do Natal, ou seja, do nascimento do Menino Jesus na gruta de Belém. O sentimento predominante nas duas semanas antes da grande festa é a alegria, conforme expressa a antífona da entrada da liturgia de hoje: “Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo eu digo alegrai-vos! O Senhor está perto.” Esse hino é praticamente uma transcrição das palavras do apóstolo Paulo em sua carta aos Filipenses que acabamos de ler. Trata-se menos de uma alegria ruidosa do que de uma alegria tranquila e plenificante, que alimenta a nossa certeza de que Deus se lembra de nós e nos visita. Os festejos natalinos que induzem as famílias a se reunirem e a se alegrarem juntas não nos devem fazer pensar que o Natal é uma festa só da nossa família, mas sim que é uma festa, ou melhor, é a data mais importante de toda a História, com H maiúsculo. Lembra o dia em que Deus se fez homem, o dia em que se completou a obra criadora de Deus. 2. Livro do Profeta Sofonias 3, 14-18a Sofonias faz parte do grupo chamado dos “pequenos profetas” em oposição aos grandes, como Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel. São chamados de pequenos, não porque sejam profetas menores, mas porque os seus escritos são menos extensos. Sofonias foi contemporâneo de Jeremias, portanto viveu o mesmo 377 drama de Jeremias. Viveu um momento em que o povo escolhido, posto a parte por Javé para formar um povo justo e santo, estava combalido, ameaçado e dividido pelas nações inimigas e, mais que tudo, tentado a abandonar o verdadeiro Deus, aparentemente derrotado, e a aderir aos deuses dos pagãos, aparentemente mais fortes e poderosos. Sofonias pensava diferente e clamava: “O Senhor teu Deus está no meio de ti, o valente guerreiro que te salva; ele exultará de alegria por ti, movido pelo amor; exultará por ti, entre louvores, como nos dias de festa.” 3. Carta de São Paulo aos Filipenses 4, 4-7 Paulo, em suas cartas às comunidades por ele fundadas, reservava sempre uma parte delas a recomendações especiais, relativas às dificuldades vividas por elas. A comunidade de Filipos e a maioria delas, inclusive o próprio Paulo, vivia a angústia da Parusia iminente, ou seja, acreditava no retorno breve do Senhor, no Juízo Final, no fim da História. Paulo também vivia essa expectativa, mas nem por isso vivia angustiado por que ele confiava na misericórdia do Senhor, um Deus justo, mas ao mesmo tempo infinitamente misericordioso. Por isso, dizia aos filipenses: “O Senhor está próximo, (mas) não vos inquieteis com coisa alguma mas apresentai as vossas necessidades a Deus, em orações e súplicas, acompanhadas de ações de graças. E a paz de Deus... guardará os vossos corações.” 378 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, 3, 10-18 Na primeira parte do evangelho de hoje, João Batista procura orientar o povo a resolver de acordo com a reta consciência os problemas bem concretos da vida real. Para João, a verdadeira religião não se vivia principalmente nas grandes cerimônias, no ritual do Templo, mas na prática da justiça e da misericórdia: quem tem duas túnicas e comida de sobra, que as dê a quem não tem! Que os cobradores de impostos não peçam propina! Que a polícia não pratique a extorsão! Na segunda parte do evangelho, João esclarece a sua relação com o Messias. Apesar da sua importância e do brilho do seu carisma, João timbrava em esclarecer que ele não era o Messias. O Messias viria depois, e que era mais forte do que ele e João não era digno nem de desatar a correia das suas sandálias! 379 4º Domingo do Advento 1. Introdução As leituras de hoje, todas elas e de diferentes maneiras, lembram-nos o capítulo 55, versículo 8 do segundo Isaías: “Os meus planos ou os meus pensamentos, diz Javé, não são vossos planos ou vossos pensamentos, vossos caminhos não são os meus caminhos – oráculo do Senhor”. Os nossos pensamentos estão voltados para o nosso eu, os nossos planos visam o nosso bem. Os planos e os pensamentos de Deus, porém, estão voltados para as suas criaturas, para esse imenso e misterioso mundo que Ele criou como refúgio e teto dos seus filhos queridos – nós homens e mulheres de todas as línguas, povos e nações, como nos descreve o Apocalipse de João. Isso nós vemos claramente no hino do apóstolo Paulo, transcrito em sua carta aos filipenses: “Ele, Jesus, apesar da sua condição divina, não fez alarde de ser igual a Deus. Mas se esvaziou de si e tomou a forma de escravo, fazendo-se semelhante aos homens”. Enquanto o primeiro Adão queria ser como Deus, o segundo Adão queria ser como o homem. Para entendermos a graça do Natal devemos lembrar-nos disso. 2. Livro do Profeta Miqueias 5, 1-4a Miqueias, juntamente com Isaías e Jeremias, foi um dos numerosos profetas do século VIII a.C. que iluminaram, numa época de trevas, o povo de Deus. Contrariamente aos falsos 380 profetas que anteviam um Messias poderoso, capaz de enfrentar assírios e babilônios, Miqueias previa alguém que, despretensiosamente, armado apenas com a força de Deus, viria da pequenina Belém e não de uma grande metrópole: “Tu, Belém de Efratas, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair alguém que dominará em Israel, sua origem vem de tempos remotos, desde os dias da eternidade”. Jesus, nascido na humilde Belém, é o mesmo Jesus que, já adulto, deixará a humilde Nazaré para preparar-se, com João Batista, para sua grande missão de anunciar o Reino de Deus. Ele sai dessa Nazaré de que nada de bom e de grande poderia sair! 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 10, 5-10 Através da religiosidade, o homem ritualiza os seus sentimentos em relação a Deus. Assim como os filhos se relacionam com os pais através de gestos, palavras e comportamentos especiais, também os homens se relacionam com Deus através do cerimonial religioso. Toda religião tem a sua liturgia. O autor da carta aos hebreus contrasta os grandiosos holocaustos e sacrifícios da antiga Lei com o sacrifício de Jesus. De um lado, os holocaustos e sacrifícios de touros e de cordeiros, espetáculo grandioso e vazio; de outro lado, o sacrifício de Jesus. Sacrifício que consistia apenas em fazer a vontade de Deus. E fazê-la a qualquer preço, sabendo que a vontade de Deus é a salvação de todos. Morrendo na cruz e perdoando os seus algozes, Jesus provou que o amor de Deus não tem limites. No Deus de Jesus prevalecem o tu e o vós e não o eu. 381 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 39-45 A visitação de Maria à sua prima Santa Isabel, não foi uma mera visita, muito menos uma visita de cortesia. Por visitação, na linguagem cristã, entende-se uma visita marcada por um grande amor que não mede nenhum esforço para ajudar um irmão em necessidade. Uma visita em que o tu e vós são mais importantes que o eu! A festa do Natal comemora a visitação de Jesus, filho de Deus e de Maria, a todos nós, filhos e filhas de Deus. Maria não se poupou, ela partiu para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade da Judeia. Tão importante quanto a visitação de Maria é a acolhida de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” 382 Natal do Senhor 1. Introdução A alegria natalina é contagiante e dificilmente poderíamos eximir-nos de vivê-la, mas nem tudo, nesse contexto, tem a mesma importância para o cristão que deseja aprofundar a sua fé. Nada de melhor poderia acontecer para o homem indivíduo e para a humanidade, como um todo, do que esse mergulho profundo do próprio Deus na História da Humanidade e de cada homem em particular. Sem a humanidade de Jesus – historicamente comprovada e adequadamente relatada, principalmente nos quatro evangelhos, – a imagem de Deus que teríamos, apesar de grandiosa, não nos revelaria a profundidade do seu amor, ao mesmo tempo de Pai e de Mãe, por nós, homens e mulheres, infinitamente queridos por Deus! Inspirados na “antífona da entrada”: “Alegremo-nos no Senhor, hoje nasceu o Salvador do mundo, desceu do céu a verdadeira Paz!” 2. Livro do Profeta Isaías 9, 1-6 Essa primeira leitura da liturgia desta noite de Natal não vale apenas para os contemporâneos de Isaías, que viviam momentos dificílimos da História do Povo de Deus. Vale para todo homem e toda mulher de todos os tempos. O homem e a mulher sós não têm como superar a sua solidão e, com ela, a tristeza, quando não o desespero! Isaías estava a oito séculos do nascimento de Jesus, mas Ele já se fazia presente na sua esperança 383 messiânica. A geração de Isaías não fazia a experiência de um Deus grandioso, espelhados nos grandes cerimoniais do Templo de Salomão. Mas já no exílio, fazia a experiência de um Deus adorado no recesso do lar e, por isso, com rosto de Pai e de Mãe. É esse rosto paterno e materno que se revela na gruta de Belém, na noite de Natal. Esse Deus infante, ainda incapaz de falar, quer aprender a fazê-lo nos lábios de Maria e de José. 3. Carta de São Paulo a Tito 2, 11-14 Tito fala à sua comunidade sobre a salvação trazida por Jesus. Como discípulo de Paulo, aquele que, melhor do que ninguém, sabia o que significava e continua significando a salvação, Tito tentava explicar em que consistia essa salvação. Não se tratava, necessariamente, de uma nova religião, de uma nova moral com regras mais severas, tratava-se, sim, de uma conversão interior, de uma visão diferente de Deus, tal como experimentara Paulo de Tarso no caminho de Damasco: o Deus de Jesus “que se entregou por nós para nos resgatar da maldade e purificar para si um povo que lhe pertence e que se dedique a praticar o bem”. Coloquemo-nos em espírito diante da Gruta de Belém, diante do Divino Infante, ao lado de Maria e José e tentemos captar, nessa experiência, o novo rosto de Deus, que se revela no rosto do Menino Jesus. 384 4. Evangelo Lucas 2, 1-14 É no evangelho de Lucas da liturgia de hoje que encontramos a fonte de todo o imaginário natalino que habita a nossa memória, desde crianças. Lá está o recenseamento em Belém, cidade de Davi, que obrigou a Sagrada Família a uma longa e difícil viagem. Lá estão o nascimento apressado de Jesus e a manjedoura que serviu de berço ao recém-nascido. Lá estão os pastores que, sendo os últimos na escala social, foram os primeiros a serem convocados para adorar o recém-nascido. Lá estão os anjos a cantar louvores a Deus: “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens por ele amados”. Somos chamados na noite (e dia) de hoje, não só a reviver esse imaginário, mas a transformá-lo em oração e em conversão ao espírito do Natal, que é um espírito de paz, de alegria, de esperança, de luz e, mais que tudo, de amor! 385 Sagrada Família de Jesus, Maria e José 1. Introdução Como não poderia deixar de ser, a Igreja, como boa mãe, coloca no primeiro domingo, após o Natal, a solenidade da Sagrada Família. De fato, com o nascimento de Jesus, completava-se a sagrada família: Jesus, Maria e José, reflexo imediato da família trinitária, Pai, Filho e o Espírito Santo. José pelo Pai, Jesus pelo Filho e Maria, aquela em que o Senhor operou maravilhas, o Divino Espírito Santo. Todos somos unânimes em perceber que a família cristã vem passando, desde as últimas décadas, por uma profunda transformação que abala as suas estruturas. Nós conhecemos as causas dessas transformações. A profissionalização da mulher fora do lar, o controle da natalidade, a exacerbação dos meios de comunicação, a propaganda de todos os naipes e as novas ondas juvenis abalam as estruturas tradicionais da família e, no entanto, a vida em família continua indispensável, psicológica e moralmente, para pais e filhos. É na Sagrada Família de Nazaré que pais e filhos da pós-modernidade devem buscar o modelo para as suas famílias atribuladas de hoje. 386 2. Livro do Eclesiástico 3, 3-7.14-17 Essa primeira leitura de hoje é uma reflexão profunda por parte do sábio, o autor do Eclesiastes – um dos livros sapienciais do Primeiro Testamento, sobre o 4o mandamento da lei de Moisés: “Honra teu pai e tua mãe e assim prolongarás a tua vida na Terra”. Esse mandamento dirige-se primeira e diretamente aos filhos e filhas, mas, como as famílias acabam se desdobrando em duas ou três gerações, os filhos são filhos da primeira geração e pais da segunda. Assim, o mandamento diz respeito a toda a família que cumpre verdadeiramente a sua função, quando avós, pais, filhos e netos honram-se mutuamente. Por honra entendese o amor e respeito mútuos. O matrimônio cristão é um dos sete sacramentos, cuja graça sacramental preside a geração dos filhos, a sua educação cristã e o amor mútuo dos cônjuges que ele implica. Para manter os valores da família não precisamos ser tradicionalistas, mas não podemos desprezar a grande tradição. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 12-21 Em menos de dez versículos Paulo dá uma aula completa sobre como conduzir uma vida em família, de acordo com a sabedoria bíblica; a grande tradição, baseada nas grandes virtudes da convivência familiar, ou seja, diz Paulo: “Por isso revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência”. Nenhuma dessas virtudes mencionadas são fáceis e óbvias, ao contrário, são difíceis, mas nem por isso dispensáveis. Todas elas não vingam sem um grande esforço. Mais adiante, menciona, com razão, a capacidade de perdoar talvez o que mais nos 387 custa: “Como o Senhor os perdoou, assim também perdoai vós”. Ao lado do perdão, fala do diálogo que deve existir dentro do lar. Ao lado do direito de falar, que cabe a todos, também lhes cabe a obrigação de ouvir. “Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda sabedoria...” 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2, 41-52 Apesar de um certo estranhamento que o episódio de hoje nos causa, seja pelo aparente descuido de Maria e José, seja pela vontade do menino Jesus, o Evangelho de hoje é rico de lições. Um dos dogmas mais importantes da nossa fé é de que Jesus é ao mesmo tempo homem e Deus; verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O atestado da humanidade de Jesus aparece claro no versículo 52. “E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens”. Antes de chegar à plena maturidade dos seus trinta anos, quando abandonou o seu lar na Galileia, para conhecer o Batista na Judeia, Jesus, como homem, teve de subir degrau por degrau a escada da maturidade. Mas, ao mesmo tempo, como Deus, ainda adolescente, Jesus já interrogava os seus pais: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa do meu Pai?” Para terminar e para algum consolo de nossas famílias podemos constatar que também a Sagrada Família teve de contornar certos problemas inesperados! 388 Solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria 1. Introdução Estamos vivendo hoje um dia festivo por muitas razões. A mais óbvia é que estamos no primeiro dia do ano, momento em que o nosso coração se abre para o futuro e para a esperança. Com o coração sincero desejamos a todos os nossos irmãos e irmãs um próspero e feliz ano novo, que, no passado, definíamos simplesmente como Ano Bom! O primeiro dia do ano é também o dia da Paz, o Shalom bíblico que poderíamos definir como a convergência no coração dos homens de todos os dons do Espírito Santo: sabedoria, conselho, fortaleza etc. E, mais do que tudo, é o dia em que nos lembramos de Maria, nossa mãe e mãe de Deus. Nos primeiros séculos, os cristãos de então se perguntavam se podiam chamar Maria de Mãe de Deus. Poderia uma filha de homem ser a mãe de Deus? Em resposta a essa dúvida, apoiada em definições conciliares, a Igreja respondeu que sim. Maria podia ser chamada de Theotokos, Mater Dei, Mãe de Deus. Se a natureza divina de Jesus e a humana estavam unidas na pessoa de Jesus, Maria, sendo a Mãe de Jesus, com propriedade poderia ser invocada como mãe de Deus. Esse foi o caminho que o Deus de Jesus encontrou para ser um dos nossos, como nós, filho de mulher! 389 2. Livro dos Números 6, 22-27 Os filhos dos hebreus estavam a caminho da Terra Prometida em pleno deserto, enfrentando o calor, a sede, a fome, as serpentes venenosas e, ao mesmo tempo, eram contemplados com uma das mais belas bênçãos, sempre nos lábios de Francisco de Assis, quando se dirigia aos seus irmãos: “O Senhor vos abençoe e vos guarde! O senhor faça brilhar sobre a ti a sua face e se compadeça de ti!” As pessoas, muitas vezes, procuram o sacerdote para que ele as abençoe. É preciso, todavia, lembrar-se de que só Deus é o autor de todas as bênçãos. Em que consiste a benção de Deus? Consiste em nada mais do que no seu olhar amoroso sobre nós. Esse olhar misericordioso de Deus está sempre voltado sobre nós. A benção do sacerdote apenas nos faz lembrar que Deus, nosso Pai, está sempre a nos abençoar! 3. Carta de São Paulo aos Gálatas 4, 4-7 A maternidade de Maria foi um dos caminhos escolhidos por Paulo para anunciar a novidade, não só do evangelho de Jesus, mas da própria pessoa de Jesus. Era importante para Paulo que ficasse bem claro para pagãos e outros, que Jesus não era um extraterrestre, caído do céu, mas era um filho de mulher, como todos os homens. Essa era uma condição para que nós, homens da mesma raça de Jesus, recebêssemos em nossos corações, como Jesus, “O espírito do seu Filho que chama: Abba – ó Pai !” Mãe de Deus, não é apenas um título a mais de Maria, mas um caminho escolhido por Deus. 390 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2, 16-21 O evangelho de hoje é um resumo do que acontecera nos últimos oito dias. O núcleo duro de toda a História da Civilização, desde o início dos tempos até o final de todos os séculos. Relembra-nos a vinda apressada dos pastores até a gruta de Belém, o encontro deles com Maria, José e o Menino Jesus envolto em panos. Relembra-nos a experiência interior de Maria, cuja profundidade só podemos imaginar: “Quanto a Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração!” O evangelho de hoje termina com a circuncisão do Senhor, no caso do menino Jesus, quando ele recebe o nome de Jesus, que quer dizer Salvador: “Quando se completara os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido.” 391 Epifania do Senhor 1. Introdução Tradicionalmente chamada de Dia de Reis e celebrada no dia 06 de Janeiro, a festa da Epifania é celebrada hoje, no 1o domingo depois do 1o de Janeiro. Epifania é uma palavra de origem grega que significa revelação, de algum modo ligada aos mistérios divinos. É o que acontece com a Epifania do Senhor, em que celebramos a revelação, não só aos judeus, mas a todos os pagãos, do mistério da encarnação do Filho de Deus em Jesus Cristo Senhor Nosso Senhor. Os três reis magos ou os três sábios que vêm do Oriente, guiados pela estrela, representam todos os povos da Terra que buscam a salvação. A solenidade litúrgica de hoje é tão importante, que as Igrejas do Oriente lhe dão mais importância do que ao próprio Natal. Um Natal ao qual não se seguisse a Epifania seria um Natal incompleto, sem vocação ecumênica. 2. Livro do Profeta Isaías 60, 1-6 A narrativa dos reis magos é uma narrativa mais teológica do que histórica nos seus pormenores, mas independentemente desses pormenores, Jesus de fato se revelou como Messias, Rei e Senhor a todos os povos da terra e tudo isso tinha sido de alguma maneira previsto pelo segundo Isaías, na 1a leitura de hoje: “Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão da tua aurora.” 392 “Ao vê-los ficarás radiante, com o coração vibrante e batendo forte, pois com eles virão as riquezas de além-mar e mostrarão o poder das suas nações”. Nesse trecho da profecia do segundo Isaías fica claro que o Deus de Israel não era o Deus apenas de Israel, mas sim de todos os povos. E a experiência de Deus, nessa época, já era suficientemente madura para perceber que nos céus não cabem mais de um Deus. Existe só um Deus e, por isso mesmo, é o Deus de todos os povos, línguas e nações, como diz o livro do Apocalipse, palavra quase sinônima de Epifania. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 3, 2-3a.5-6 A crença num só Deus e numa só salvação para todos os povos e nações já vinha amadurecendo desde o séc. VIII antes de Cristo, mas se tornou evidente no mistério de Jesus. Esse mistério, como diz Paulo, estava como que escondido, mas foi escancarado por Jesus. Paulo, como judeu e fariseu convicto, tinha dificuldade em admiti-lo, por julgar-se superior aos pagãos, mas a sua iluminação no caminho de Damasco rompeu o véu que turvava a sua visão: “Esse mistério Deus não o fez conhecer aos homens das gerações passadas, mas acaba de revelar agora, pelo Espírito, aos seus santos apóstolos e profetas: os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo por meio do seu evangelho”. Acreditar num Deus para alguns e num Deus para todos é acreditar em dois deuses diferentes; só um deles é o verdadeiro. 393 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 2, 1-12 Já dissemos que a narrativa dos reis magos é mais teológica do que histórica, isto é, ela nos ensina mais sobre Jesus do que sobre a história da infância de Jesus. Em primeiro lugar, nos ensina que Jesus era o Messias prometido por Javé e anunciado pelos profetas. Como previsto pelo profeta Malaquias, Mateus constata o nascimento de Jesus na pequenina cidade de Belém, na Judeia. Conforme previsto por Isaías, reis viriam à luz das estrelas, carregados de presentes, para adorar o Messias no monte Sião. Os presentes dos reis magos dizem e ensinam muito sobre Jesus: pelo incenso sabemos que Jesus é Deus, pelo ouro sabemos que Ele é rei e pela mirra que vai preparar o seu corpo para a sepultura sabemos que Jesus é homem. Ao abrirem os seus cofres os magos nos ensinam a ser generosos e que é melhor dar do que receber! 394 Batismo do Senhor 1. Introdução Batismo é uma palavra de origem grega que significa “mergulho” na água e que, na tradição de Israel, foi adotado como ritual religioso de iniciação que inclui, não só a imersão na água, mas também a emersão da água. O batizando mergulha na água para se purificar e dela emerge purificado. Paulo radicaliza essa metáfora e vê no mergulho a morte e na emersão a vida. O batismo era uma prática em Israel, em certos meios e movimentos religiosos. João Batista o utilizava para simbolizar a conversão radical que ele pregava no deserto de Judá, em preparação para a vinda do Messias prometido. Jesus, tendo ouvido falar de João Batista, deixou-se seduzir pela sua pregação, veio ao seu encontro no deserto da Judeia e fez-se seu discípulo e, em sinal de solidariedade com a sua pregação e com os seus discípulos, deixou-se batizar por João. Com a prisão de João Batista, Jesus retorna à sua Galileia, onde vai anunciar o Reino de Deus, como o Messias prometido pelos profetas e apontado por João como aquele que deverá vir depois dele e que era maior do que ele. A Igreja católica e as igrejas cristãs, embora numa variedade de rituais, que sempre envolvem uma passagem pela água, imersão ou ablução, conservaram a tradição do Batismo. 395 2. Livro do Profeta Isaías 42, 1-4.6-7 O primeiro versículo dessa primeira leitura: “Assim fala o Senhor: ‘Eis o meu servo – eu o recebo; eis o meu eleito – nele se compraz minha alma; pus meu espírito sobre ele, ele promoverá o julgamento das nações. Ele não clama nem levanta a voz, nem se faz ouvir pelas ruas”, está em relação direta com o último versículo do evangelho de hoje: “E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado, em Ti ponho o meu benquerer”. O servo de Javé, anunciado por Isaías 2o, em pleno exílio, é o mesmo Jesus que, no momento do seu batismo por João, é declarado pelo Pai seu Filho amado. A missão do servo de Javé é a mesma missão de Jesus: “eu te constituí como centro de aliança do povo, luz das nações para abrires os olhos aos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas”. 3. Livro dos Atos dos Apóstolos 10, 34-38 Nesse discurso que estamos a ler na liturgia de hoje, Pedro associa o Batismo de Jesus pelo Batista ao início da pregação de Jesus sobre a proximidade do reino de Deus, “pois tinha sido ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder”. Esse nexo entre o Batismo de Jesus e a sua pregação do reino nos faz descobrir que a graça do Batismo não é um privilégio pessoal, mas uma missão. Ao sermos batizados não entramos num clube de privilegiados, mas numa vanguarda missionária para anunciar a salvação pela prática da justiça e do amor a todos os homens, qualquer que seja a nação a que pertençam. O que Pedro diz de Jesus: “Ele andou por toda a parte fazendo o bem”, deveríamos dizer de todos nós que fomos batizados. 396 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 3, 15-16.21-22 Os profetas já haviam anunciado no passado que antes do Messias viria o seu precursor para preparar-lhe o caminho. João, versado na leitura dos profetas, percebeu qual era a sua missão e foi-lhe fiel: “Eu vos batizo na água, mas virá aquele que é mais do que eu... Ele batizará no Espírito Santo e no fogo”. Trata-se aqui de um fogo purificador, como o fogo do cadinho que purifica o ouro de todas as suas impurezas. O evangelho de hoje se conclui com uma cena semelhante à da transfiguração do Senhor em que Jesus, banhado pela luz do Espírito Santo é reconhecido pelo Pai como seu Filho amado: “Tu és meu Filho amado, em ti ponho o meu benquerer”. Meus caros irmãos, hoje encerramos o Tempo do Natal e iniciamos a primeira parte do Tempo Comum, quando leremos na liturgia Dominical o evangelho de Lucas, evangelho dos pobres e da misericórdia. 397 1º Domingo da Quaresma 1. Introdução Durante quarenta dias e quarenta noites choveu durante o dilúvio; durante quarenta anos o povo de Deus peregrinou pelo deserto entre o Egito e a Terra prometida; durante quarenta dias Jesus foi tentado no deserto, como veremos no evangelho de hoje. Quaresma, do latim quadragesima, indica os quarenta dias que nos separam da Ressurreição do Senhor. Quarenta dias, mais que um algarismo, é na Bíblia um número simbólico que indica um tempo de graça em que nos preparamos para um encontro com o Senhor. No nosso caso, para o encontro com o Senhor ressuscitado na Páscoa da Ressurreição. É o tempo propício de que fala São Paulo, é um tempo de oração, um tempo de jejum e de esmola. De oração, para nos recolocar diante de Deus, nosso Criador e Pai; de jejum, para rever a nossa escala de valores e de esmola, para não pensar apenas em nós mesmos. O roxo é a cor dos parâmentos sacerdotais e essa cor indica que a quaresma é um tempo de penitência, ou seja, um tempo em que renunciamos ao supérfluo para nos voltar ao essencial. 2. Livro do Deuteronômio 26, 4-10 A primeira leitura de hoje nos lembra quem somos nós, o povo de Deus, e qual é a nossa origem. O arameu errante a quem Moisés se refere é Abraão, o nosso pai na fé, aquele que acreditou contra toda esperança. A leitura de hoje mostra-nos também quem é o nosso Deus, um Deus libertador que ouviu 399 o clamor de seu povo. E o que isso tem a ver com a quaresma? Abraão foi convocado por Deus para construir uma nova nação, baseada no direito e na justiça e nós, na quaresma, somos convidados a reconstruir a nossa vida, também no direito e na justiça. E se nosso Deus é um Deus libertador, na quaresma devemos libertar-nos de nós mesmos para libertar os nossos irmãos. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 10, 8-13 O profeta Isaías no antigo testamento exprobava os falsos adoradores de Javé porque os seus lábios exaltavam a grandeza de Javé, mas seus corações estavam longe d’Ele. Na tradição dos grandes profetas e, principalmente de Jesus, Paulo também insistia na verdade interior e na coerência entre os lábios e o coração. É isso que Paulo ensina, ao dizer-nos: “Se pois com tua boca confessares Jesus como Senhor, e no teu coração creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo.” Mais uma vez perguntamos: e o que isso tem a ver com a quaresma? A tentação do farisaismo, ou seja, a valorização do exterior em prejuízo da verdade interior, é uma constante em todos nós. A quaresma é um tempo propício para verificar até que ponto não estamos escondendo com a boca o que se passa em nosso coração. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 4, 1-13 Antes de comentar o evangelho de hoje vale apena dizer que a narrativa de Lucas não deve ser entendida ao pé da letra, mas deve ser interpretada como uma parábola. Antes de se assumir como Messias, Jesus tinha de decidir que tipo de Messias deve400 ria assumir. Seria um rei como Davi e lhe restauraria a dinastia real? Seria um general poderoso capaz de libertar seu povo como um novo César? Seria um líder revolucionário que restabeleceria a justiça social, derrubando os poderosos e exaltando os humildes? Ou seria ele um Messias à semelhança do servo de Javé, que não apaga nenhum pavio que ainda fumegue, que não levanta a voz para calar quem queira falar? Se lermos atentamente as tentações a que Jesus foi submetido nessa parábola, podemos perceber que Jesus optou pelo messianismo do servo sofredor e não pelo messianismo do diabo tentador! 401 2º Domingo da Quaresma 1. Introdução As três leituras de hoje nos levam a aprofundar a espiritualidade quaresmal, na medida em que elevam o nosso espírito para muito além dos nossos interesses imediatos, quando não mesquinhos. A primeira leitura, tirada do livro do Gênesis, falanos da Aliança contraída por Javé com Abraão, o pai de todos os crentes e representante do povo eleito, povo que sobrevive até hoje na Igreja de Cristo e no coração de todos os homens de boa vontade. Na segunda leitura, Paulo, escrevendo aos filipenses e a todas as comunidades, inclusive a nossa, convida-nos a olhar para o alto, muito acima do nosso estômago. O evangelho de hoje é uma das páginas mais belas dos evangelhos que inspirou grandes pintores da história da arte. Nesse episódio, Jesus figura como o novo Moisés, anunciado pelo Pai, o novo nome de Javé, como o seu Filho amado em que Ele pôs todo o seu amor. 2. Livro do Gênesis 15, 5-12-17-18 A graça da quaresma é uma graça que nos faz aproximar de um Deus que, sendo Deus, portanto infinitamente maior do que nós, está muito próximo de nós, a ponto de Santo Agostinho poder dizer, e com razão, que o Deus de Jesus é mais íntimo a nós do que nós mesmos, já que somos tantas vezes alienados de nós mesmos. A leitura de hoje, uma descrição 402 brilhante da Aliança de Javé com o seu povo, deve nos levar a aprofundar o sentido dessa Aliança. Não se trata de uma aliança entre iguais, não se trata de uma aliança baseada na estrita justiça, mas de uma aliança de um Deus todo poderoso e um povo ainda por formar-se. Como seria a aliança de um pai e uma mãe com um filho recém-nascido, ou mesmo ainda por nascer. Trata-se, pois, de uma aliança baseada no amor e na confiança. Uma aliança de risco: “Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates”. 3. Carta de São Paulo aos Filipenses 3, 17-4,1 Um pouco de história ajudará uma melhor compreensão dessa segunda leitura. Fica claro, pelo contexto, que Paulo tenta preservar os seus destinatários das más influências daqueles que ele chama de inimigos da cruz, ou seja, daqueles que não admitiam, nem como possibilidade um Messias crucificado, morto e sepultado. O mistério da ressurreição do Senhor só tinha o seu verdadeiro sentido como consequência da sua crucifixão. Paulo sabia muito bem que Jesus não buscou a cruz, mas foi obrigado a aceitá-la para manter vivo o anúncio de um novo reino, em que prevalecessem o amor, a fé e a liberdade interior, e não o legalismo, o culto exterior e a tradição dos antigos (como a lei da pureza legal e das centenas de prescrições que encobriam os mandamentos da verdadeira lei de Deus). O interesse de Paulo não era defender-se, mas sim defender os seus queridos filhos de falsos apóstolos. 403 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 9, 28-36 Para entendermos bem o que se passou no Monte Tabor é preciso entender bem o que se passou no Monte Calvário. Lá a transfiguração e aqui a desfiguração. A exegese tradicional da Transfiguração do Senhor interpreta essa cena como uma preparação para o impacto quase insuperável a que seriam submetidos os apóstolos diante da flagelação, crucifixão, morte e sepultura do Senhor. Para qualquer um que não tivesse visto o Senhor transfigurado, a desfiguração do Senhor no Monte Calvário seria quase insuperável. A transfiguração do Senhor também é uma imagem do reino de Deus. Nele os surdos se transformarão em ouvintes; os cegos em videntes; os famintos em saciados. Por outro lado, cabe a nós, cristãos, reconhecer nos rostos desfigurados dos irmãos caídos à beira da estrada o rosto transfigurado de Jesus ressuscitado. “Este é o meu Filho, o escolhido, escutai o que Ele diz.” 404 3º Domingo da Quaresma 1. Introdução Já comentamos muitas vezes aqui que a base da nossa fé reside na crença de que Deus se comunica conosco bem no fundo da nossa consciência e se nos revela como Pai e Senhor. Isso significa que Deus se faz Palavra para nós, torna-se compreensível. Ao longo da história dos diferentes povos e culturas, a experiência de Deus se fez presente nas grandes tradições religiosas: o judeo-cristianismo, o islamismo, o budismo, o hinduísmo etc. As leituras de hoje referem-se ao judeo-cristianismo, que é a nossa tradição religiosa e que, não só herdamos, mas adotamos pessoalmente e a vivemos em nossas famílias e em nossas comunidades. As leituras de hoje nos falam do Deus de Abraão, do Deus de Moisés, do Deus de Jesus, do Deus de Paulo. Porém, nos falam, também, do homem que tem muito a ver com Deus, um pouco como todo filho tem a ver com seus pais, porque entre Deus e os homens, entre pais e filhos, existe o amor. 2. Livro do Êxodo 3, 1-8a. 13-15 A primeira leitura de hoje é como uma semente que contém dentro de si toda a história do Antigo Testamento dali para a frente. Abraão, o arameu errante, sabia que o Deus que o convocara era um Deus diferente, pois convocara-o para abandonar a sua terra e fundar uma nação, não qualquer nação, mas uma nação onde reinassem o direito e a justiça. No alto do Sinai ou do Horeb, o Deus de Abraão se desvela um pou405 co mais e se revela a Moisés como Aquele que é, não para si, mas para o homem, principalmente para o homem oprimido; não para o senhor, mas para o escravo. O Deus de Moisés se revela na sarça ardente, que arde, mas não se consome. É um Deus vigilante que aquece e ilumina o seu povo. Trata-se de um Deus que não só declara o seu nome, mas chama a Moisés pelo nome: “Moisés, Moisés!” Isso significa que Javé olhava, carinhosamente, por um povo de escravos, mas sabia que cada escravo tinha um nome próprio, era alguém. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 10, 1-6.10-12 Paulo, apóstolo, era herdeiro de Abraão, de Moisés e de Jesus e conhecia perfeitamente a história do seu povo. Não só a conhecia, mas sabia interpretá-la. Assim como conhecia a história do seu povo, as suas vitórias, reconhecia também os seus pecados. Nem sempre souberam reconhecer o carinho de Deus como o maná do deserto e a água pura saída da rocha, para matar a sede dos caminhantes. Essas intervenções divinas, o maná e a água viva, são vistas por Paulo como antecipações de Cristo na História, já que o próprio Cristo, na tradição joanina, se declara como verdadeiro maná e como a água viva que jorra para a vida eterna. 406 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 13, 1-9 O evangelho de hoje apresenta duas partes: a primeira se refere à violência de Pilatos, que misturou o sangue de galileus ao sangue de animais sacrificados; a segunda se refere à figueira estéril. Na primeira parte, baseados na “lei da retribuição”, segundo a qual mais pecados corresponderiam a mais castigos da parte de Deus, as pessoas queriam saber se os galileus sacrificados eram grandes pecadores. Jesus responde que mais importante do que contabilizar os sofrimentos futuros, é buscar a própria conversão enquanto é tempo. A lei do talião não vigora no Reino de Deus. A parábola da figueira mostra que da parte de Deus não existe índole punitiva, ao contrário, Deus, sendo Pai, é inclinado à misericórdia e ao perdão. Não devemos transferir para Deus nem a nossa insegurança nem a nossa maldade. 407 4º Domingo da Quaresma 1. Introdução Estamos no coração da Quaresma, mas as leituras de hoje nos mostram que a nossa libertação está próxima, ou mesmo, que já chegou. Na primeira leitura, na companhia de Josué, filho de Num e sucessor de Moisés, entramos na Terra Prometida; na carta de Paulo aos coríntios tomamos conhecimento de que somos embaixadores de Cristo, ou seja, temos um mandato especial de anunciá-lo aos nossos irmãos. Na parábola do Filho Pródigo, ou mais adequadamente, do pai misericordioso, temos o ponto mais alto da revelação cristã, ou seja, de que o nosso Deus é um Deus de amor, de misericórdia e de perdão. Nessa parábola temos a síntese de todo o evangelho de Jesus, ou mesmo de todas as Escrituras, do Gênesis ao Apocalipse. “Quando (o Filho Pródigo) ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão.” 2. Livro de Josué 5, 9a.10-12 O mesmo Javé que, no alto do monte Sinai, dizia a Moisés: “Eu ouvi o clamor do meu povo”, também algumas décadas mais tarde dizia a Josué: “Hoje eu tirei de cima de vós o opróbrio do Egito”. A caminhada de quarenta anos pelo deserto, desde o mar Vermelho até a Terra Prometida, sempre foi interpretada como uma parábola da vida do homem. Viver não é fácil, ao contrário, é difícil e mesmo perigoso. É um desafio que tem de ser assumido, por que a responsabilidade é nossa e de ninguém mais. Mas, podemos encará-lo, porque não estamos sós. 408 Enquanto precisavam da ajuda do alto, os hebreus recebiam do alto o maná de cada dia, mas, chegados à Terra Prometida comeram do fruto da terra que eles mesmos haviam plantado. Em filigrana no rosto de Javé, já podemos pressentir o rosto do Pai misericordioso da Parábola do Filho Pródigo. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 5, 17-21 Paulo de Tarso que era quase fanático na defesa das tradições, do antigo, do velho, se transforma no apóstolo do novo: “O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo.” E qual era, para Paulo, a novidade de Jesus? A novidade não era, primeiro, que Deus era amor e perdão, mas, sim, que Deus é radicalmente, sem nenhuma dúvida e sempre, amor e perdão. “Com efeito, em Cristo Deus reconciliou o mundo – não só o mundo dos judeus – consigo, não importando aos homens as suas faltas e colocando em nós a palavra de reconciliação.” Ao aceitar o sofrimento na cruz, Jesus, como homem e como Deus, mostra um Deus misericordioso, que ao invés de punir, prefere ser punido: “Aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós para que nele nos tornemos justiça de Deus.” 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 15, 1-3.11-32 O que dificulta a convivência entre os humanos é a nossa pouca capacidade de perdoar-nos mutuamente e radicalmente, com um perdão definitivo. Normalmente, nós nos perdoamos, mas só até certo ponto e com restrições. A razão é que nós podemos até amar os nossos irmãos, mas dificilmente nós os 409 amamos mais do que amamos a nós mesmos. A grande lição da parábola do Pai misericordioso é a de que o verdadeiro perdão não impõe nenhuma condição, ele apenas perdoa e, justamente por que ele não impõe nenhuma condição, ele seduz o pecador e o transforma. “E começaram a festa!” 15,24b Antes de terminar, podemos perguntar-nos por que o filho mais velho não quis participar da festa? Ele só poderia participar da festa com alegria se ele também tivesse com amor perdoado o seu irmão. A fidelidade sem amor envenena os corações. 410 5º Domingo da Quaresma 1. Introdução O aspecto penitencial da Quaresma pode levar-nos a olhar mais para o passado do que para o futuro e, no entanto, as três leituras de hoje chamam-nos a atenção para o futuro, e não para o passado. O profeta Isaías, na primeira leitura, vocalizando Javé, diz ao povo: “Vou abrir uma via pelo deserto, e fazer correr arroios pelo deserto.” Paulo, sem esquecer o seu passado, por isso mesmo, joga todas as suas fichas no futuro e exclama: “Prescindindo do passado e, atirando-me ao que resta pela frente, persigo o alvo, rumo ao premio celeste, ao qual Deus nos chama, em Jesus Cristo”. A terceira leitura, a narrativa da mulher surpreendida em adultério, encerra uma fase negra de hipocrisias e opressão e abre as portas do perdão. Podemos dizer que o perdão à mulher adultera é emblemática dos tempos novos, inaugurados por Jesus. Depois de Jesus nada será como antes! 2. Livro do Profeta Isaías 43, 16-21 O profeta Isaías retira-se historicamente, num tempo em que Israel já viveu os tempos gloriosos de Davi e Salomão e vive, então, na defensiva, enfraquecido e cobiçado pelos vizinhos poderosos. Isaías tinha tudo para ser pessimista, mas, confiante no Deus de Israel, prevê os tempos messiânicos em que o Messias, o ungido de Javé, reverterá a situação e os inimigos de hoje serão vencidos e convencidos: “Os animais selvagens me darão a glória, os chacais e as avestruzes, pois terei feito jorrar 411 água no deserto.” A história de Israel não é muito diferente das nossas histórias pessoais. Também nós pecamos e fomos infiéis, nós mesmos semeamos o joio em nosso trigo. Mas o Senhor é paciente e misericordioso e, na hora da colheita, nos ajudará a separar o joio do trigo, como nos ensina a conhecida parábola. 3. Carta de São Paulo aos Filipenses 3, 8-14 São Paulo, seja antes, ou depois da sua maravilhosa conversão, nunca foi morno ou medíocre. Empenha-se até as armas para defender o patrimônio dos antigos: a pureza da Torá, o Templo e o culto, a tradição dos antigos, o prestígio dos fariseus, o ódio aos seguidores de Jesus Nazareno. Isso, até o dia em que se defrontou com esse mesmo Nazareno no caminho de Damasco. Paulo nos diz nessa carta que ele trocou o que lhe parecia ser justiça, pela justiça que se obtém pela fé em Cristo, a justiça que vem de Deus pela fé. Antecipando o comentário ao evangelho da mulher surpreendida em adultério, podemos dizer que Paulo abandonou a justiça que levava os fariseus a condenarem a adúltera, pela fé que perdoou a pobre mulher. Deixando de prender-se ao passado, Paulo tem a coragem de olhar para o futuro ao qual somos chamados a cada dia. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 8, 1-11 O evangelho de hoje é um dos mais fáceis de serem interpretados. Era odiosa a atitude dos escribas e dos fariseus, ao trazerem a Jesus, para ser condenada, apenas a mulher adúltera, desacompanhada do seu parceiro. Era não menos odiosa a atitude de, para testar Jesus, submeter a pobre mulher a um 412 apedrejamento. Do ponto de vista da lei em vigor, Jesus deveria condenar à morte, por apedrejamento, a mulher adúltera. Mas, a lei de Jesus era outra e incompatível com a lei de Moisés. Para Jesus, toda lei tem de ser referendada pela lei da nossa consciência moral, a única capaz, no plano pessoal, de escolher entre o bem e o mal. Por isso, Jesus, sem condenar a mulher adúltera, deixou que todos consultassem a própria consciência: “A essas palavras, sentindo-se acusados pela própria consciência, eles se foram retirando um por um, a começar pelos mais idosos.” 413 Domingo de Ramos da Paixão do Senhor 1. Introdução A festividade e a exuberância da liturgia de hoje podem nos colocar na pista errada para uma compreensão adequada da celebração de Ramos. As aclamações a Jesus, “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!”, são exclamações de alegria. Mas, ao mesmo tempo, o fato de Jesus não estar montando o fogoso corcel do faraó do Egito, ou de César Augusto, mas um modesto jumentinho, que era a montaria dos reis de Israel, – servidores dos fracos e oprimidos – era a manifestação de um veemente protesto! Jesus aceitava, sim, o título de Rei, porque ele era muito mais que César ou o Faraó, mas era um rei diferente, à imagem do modesto jumentinho que cavalgava. Era um novo modelo de rei que surgia, um rei para o outro e não um rei para si. Um rei, não para explorar, mas um rei para servir. Por uma vez, contrariamente ao que sempre fazia, Jesus deixou-se aplaudir e negou-se a fazer calar os aplausos: “Eu vos declaro, se eles se calarem, as pedras clamarão.” 414 2. Livro do Profeta Isaías 50, 4-7 Isaías refere-se, nessa primeira leitura de hoje, à figura fascinante do servo sofredor, ou seja, àquele servidor que fazia de tudo para bem ouvir a Palavra que lhe era dirigida por Javé, para melhor repeti-la a quem quisesse ouvi-la por uma vez. “O Senhor abriu-me os ouvidos, não lhe resisti nem voltei atrás!” Jesus, como Verbo de Deus, como Palavra de Deus, neste Domingo de Ramos, nos transmite uma Palavra especial: Ele é o nosso Rei, mas o seu reino não é deste mundo, o mundo do desejo, do dinheiro, e do poder. Não é deste mundo, mas é para este mundo, para salvá-lo de si mesmo. 3. Carta de São Paulo aos Filipenses 2,6-11 Esses poucos versículos da carta de Paulo, escrita apenas havia 20 anos da ressurreição do Senhor, revelam o mistério de Jesus, desse Jesus que se nos apresenta hoje como Rei de Israel, como o nosso Rei, dos cristãos de todos os tempos. Ei-lo: “Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez alarde de ser igual a Deus, mas esvaziou-se de si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens.” Essas palavras tão claras e explícitas, nos mostram, com todas as letras, quem era aquele Jesus que, montando um jumentinho, subia triunfante o monte Sião, em direção ao Templo, o coração da cidade santa de Jerusalém. Por isso, como Paulo diz, logo à frente, e o veremos no Domingo de Páscoa: “Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o nome que está acima de todo nome... Ao nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra e debaixo da terra.” 415 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 23, 1-40 Nas diferentes liturgias da semana santa temos os diferentes relatos da Paixão, da Morte e, na Vigília Pascal, também da Ressurreição do Senhor. Podemos dizer que esses relatos são o coração das Sagradas Escrituras e que todo o primeiro e o segundo Testamentos convergem para ela. É difícil comentá-las e dizer algo que elas não digam sobre Jesus e a nossa salvação. Mais do que comentá-las, é preciso rezá-las em profundidade em nossos corações, como fazia Paulo, por exemplo, ao escrever a sua carta aos filipenses, inscrita na liturgia de hoje. Neste Domingo de Ramos, em vez de lembrá-lo entrando triunfalmente em Jerusalém, tentemos imaginá-lo entrando em nossas cidades e em nossas casas: “Bendito o que vem em nome do Senhor: Hosana nas alturas!” 416 Quarta-feira Santa Meus caros alunos, alunas, professores/as, Hoje é quarta feira santa, véspera do que na liturgia católica se chama o “Tríduo Pascal”, ou seja, o coração da semana santa, quando na quinta-feira celebramos a instituição da Eucaristia e o Lavapés; na sexta-feira celebramos a Paixão, a Morte e o sepultamento do Senhor; no sábado, a Vigília Pascal, e na manhã do domingo, celebramos, com imensa alegria, a Ressurreição de Jesus, Filho de Deus e de Maria e Irmão nosso. Vamos, em nossa homilia, aprofundar um pouco o significado espiritual dessas celebrações: A quinta-feira Santa é o dia em que, na Última Ceia, jantando com os seus discípulos, Jesus instituiu o sacramento da Eucaristia, ou seja, se fez pão espiritual para todos nós. Para isso, convidou-nos, a todos, para dela participar; uma mesa em que todos, sem nenhuma exceção, de ninguém, possamos sentar. A Eucaristia é o sacramento da comensalidade, ou seja, aquela mesa imensa, em que todos, sem nenhuma discriminação, podem se sentar para comer do mesmo pão e beber do mesmo vinho. É também o dia do lava-pés, o dia em que Jesus, após a Ceia, empunhando uma bacia com água, cingindo-se com uma toalha, lavou os pés de seus discípulos, para que ficasse muito claro o sentido da sua missão: Ele viera para servir, e não para ser servido. Com isso, Jesus queria dizer que a nossa missão também é de servir e não a de ser servido. A nossa felicidade é a felicidade do irmão. É melhor dar do que receber, dirá Francisco de Assis um pouco mais de mil anos mais tarde. 417 Na Sexta-feira Santa, já dissemos, celebramos a Paixão, a Morte e o sepultamento do Senhor. Jesus se entrega aos seus inimigos, sem usar o seu poder divino de retaliação e os perdoa porque só para isso Ele viera ao mundo, ou seja, para ensinar os homens o perdão. Que o amor é o bem mais precioso, todos os homens, de todos os tempos, o sabem, mas Jesus veio ensinar-nos, pagando o preço mais alto para isso, que a forma mais sublime do amor é o perdão, porque ele refaz o amor que se perdera. Antes de espirar, Jesus olhou para o alto e exclamou: “Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que estão fazendo”. Da sexta-feira, à tarde, até a madrugada do domingo, Jesus permaneceu na sepultura. Em seguida, o Pai o ressuscitou dos mortos. É esse o evento mais extraordinário da História dos homens, que a Igreja celebra na Vigília Pascal do sábado santo e no domingo na madrugada da Ressurreição, a Páscoa do Senhor. Na ressurreição de Jesus, a Vida, com V, vence a morte, com M. Não há mais nada a temer para nós, humanos. Foi, com a ressurreição do Senhor, a vitória do amor sobre o ódio. Em outras palavras, a vitória da vida sobre a morte. As festas de Páscoa têm origem em tempos muito antigos, quando os hebreus, maravilhados com o nascimento das flores do campo, passaram a celebrar a vitória da primavera sobre o inverno. Antes de terminar, uma palavra direta aos nossos queridos alunos: vocês são jovens, muito jovens, vocês são a primavera e ainda devem percorrer todas as estações, o verão, o outono e o inverno, mas, desde já, vocês sabem que as promessas da Páscoa terminarão num outono cheio de frutos. 418 Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor 1. Introdução É de origem rural a festa da Páscoa no antigo Israel. Páscoa quer dizer passagem e, no caso, era a passagem do inverno para a primavera, quando os campos e as colinas trocavam o tom cinza do inverno pelos tons festivos das flores da primavera. A alegria era tanta, que não havia como deixar de festejá-la e, por isso, de louvar a Deus. Sobre essa antiga tradição, Israel passou a celebrar outra passagem ainda mais promissora, a passagem do Mar Vermelho, que marcou a libertação do povo hebreu da escravidão do Egito pelas mãos de Moisés: “Os israelitas entraram pelo mar a pé enxuto e as águas formaram uma muralha à direita e à esquerda. Os egípcios perseguindo-os, entravam atrás deles no mar, com os cavalos do Faraó, seus carros e cavaleiros... as águas cobriram os carros... o exército... e não escapava um sequer.” A passagem da escravidão para a liberdade é o significado maior da Páscoa bíblica cujo ícone maior é a Páscoa de Jesus, quando Ele passa da Morte para a Vida, na madrugada do domingo. A Páscoa de Jesus é o fundamento da nossa Páscoa. Como dirá Paulo, pouco tempo depois do grande acontecimento que mudou para sempre a história do mundo e dos homens: “Se Cristo ressuscitou, nós também ressuscitaremos.” 419 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 10, 34a.37-43 Nessa primeira leitura tirada dos Atos dos Apóstolos, Pedro, escolhido pelo Mestre como chefe dos doze, dá, de público, testemunho de Jesus, cumprindo assim a sua obrigação maior. Enfrentando qualquer perigo da parte das autoridades judaicas, inimigas de Jesus, Pedro anuncia que Jesus é o Messias: “Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu juiz dos vivos e dos mortos. Todos os profetas dão testemunho dele. Todo aquele que crê em Jesus, recebe em seu nome o perdão dos pecados. Não fosse o testemunho de Pedro e dos outros apóstolos, o nome de Jesus não teria chegado até nós, como não chegará aos que vierem depois de nós se nós não lhes anunciarmos. Devemos fazê-lo, não só como indivíduos, mas também como família e como comunidade. Se no passado, por razões culturais, a transmissão da fé de pais para filhos era quase automática, hoje sabemos que já não é assim. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 1-4 A conversão de Paulo no caminho de Damasco não foi meramente epidérmica, mas atingiu o coração do seu eu mais profundo. O seu interesse passou a ser as coisas do alto, onde está Cristo, à direita de Deus Pai. O mesmo ele desejava para os seus amigos e irmãos de Colossos e, como a carta de Paulo destinada àquela comunidade está hoje destinada à nossa, também nós devemos atender ao seu pedido. Não nos deixemos iludir pelos bens deste mundo, o dinheiro, o prazer e o poder, mas voltemo-nos para o que é do alto! 420 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 1-9 Sem contar o ressuscitado, são três as personagens do evangelho de hoje: Maria Madalena e os dois apóstolos de Jesus, Pedro e João. Todos os três estão entre os amigos de Jesus, entre os seus amigos mais íntimos e, no entanto, como nos diz o evangelho de hoje “Eles não tinham ainda compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos”. Não só as escrituras anunciavam a ressurreição de Jesus, mas o próprio Jesus, em vida, anunciara aos seus discípulos a sua ressurreição, depois de ser preso, batido e morto pelas autoridades do Templo. Ainda assim, nenhum dos três amigos de Jesus, apesar de não vê-lo no túmulo, pensou que a sua ausência indicava a sua ressurreição; ninguém viu nada. Até que João, o discípulo amado, viu e acreditou. Com a fé de João na ressurreição de Jesus, inicia-se o Novo Testamento. Jesus, Filho de Deus e de Maria, é reconhecido como Deus e Salvador! 421 2º Domingo da Páscoa 1. Introdução Todas as leituras de hoje refletem o clima pós-pascal de fé, esperança e caridade em que vivia a comunidade dos fiéis. Passado o estranhamento e mesmo a decepção provocados pela morte horrível do Senhor, a experiência do Senhor ressucitado, ao memso tempo em que reavivava a esperança no coração dos fiéis, fazia-os reviver os tempos de Jesus: nos atos dos apóstolos repetem-se as cenas em que Jesus era quase assediado pelas multidões que o buscavam para serem curadas de todos os seus males físicos ou morais. A figura iluminada do Filho do Homem, ao mesmo tempo que renova o sonho messiânico de Daniel, lembra o Senhor transfigurado no Monte Tabor. O evangelho de João, mais uma aparição do Ressuscitado, aos seus amigos, relembra a Última Ceia, que precedeu a sua Paixão, Morte e Sepultura. A morte do Senhor em nada impediu que a sua missão prosseguisse, agora pelas mãos dos seus amigos muito queridos. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 5, 12-16 O exemplo da vida de Jesus antes da sua morte era um modelo sempre vivo para a comunidade primitiva de Jerusalém, que fazia de tudo para imitá-lo. Assim como Jesus deixavase assediar pelas multidões atribuladas que vinham pedir-lhe consolo em suas tribulações, as mesmas multidões continuavam a fazê-lo como os apóstolos: ”...era uma multidão de homens e mulheres... chegavam a transportar para as praças os doentes em camas e macas, a fim de que quando Pedro passasse, pelo menos a sua sombra tocasse algum deles...”. Cena 422 semelhante a essa encontramos a respeito de Jesus, o mesmo que dissera aos seus discípulos ao lavar-lhe os pés na Última Ceia: “assim como eu vos fiz, fazei-o também vós”. 3. Livro do Apocalipse 1, 9-11a.12-13, 17-19 A autoria do livro do Apocalipse é atribuida ao discípuo João, aquele que Jesus amava. Em meio a uma perseguição religiosa ele é exilado na ilha de Patmos, uma ilha grega, e lá ele redige o Apocalipse, um livro sagrado, vasado num estilo metafórico que deve ser interpretado com cuidado. Trata-se de uma advertência e de um estímulo aos cristãos perseguidos da Ásia Menor. O autor do Apocalipse exorta as comunidades a que, apesar das perseguições, sejam fiéis ao evangelho de Jesus, ou, como ele diz em outra parte, que sejam fiéis ao seu primeiro amor. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 19-31 A liturgia da oitava da Páscoa põe em evidência as aparições de Jesus ressuscitado aos seus discípulos e, para coroar essa semana, está à nossa disposição a cena da aparição de Jeus aos seus discípulos que ceiavam juntos, mas às portas fechadas, por medo dos judeus. Essa cena é chamada pelos exegetas como Pentecostes de João, já que, ao apresentar-se aos seus discípulos, após desejar-lhes a paz, lhes diz: “Recebei o Espírito Santo!” Essa antecipação à Pentecostes dos Atos dos Apóstolos, ocorrida em Jerusalém 50 dias depois da ressurreição, não nos deve espantar, já que, na verdade, Pentecostes ocorre todos os dias. O Espírito que nos foi infundido no dia do nosso Batismo está sempre ao nosso lado, ou melhor, sempre conosco e dentro de nós! 423 3º Domingo da Páscoa 1. Introdução Duas citações, uma tirada do Apocalipse (primeira leitura) e a outra do evangelho de João, dão a tônica da liturgia deste terceiro domingo da Páscoa do Senhor. A primeira refere-se às miríades de milhões de milhares de anjos que cantam as glórias do Cordeiro imolado e glorificado. A segunda refere-se à rede lançada ao mar que, de tão repleta de peixes, mal podia ser arrastada e trazida à praia. Essas imagens multitudinárias sugerem-nos, para o gênero humano, um futuro promissor. Apesar das nossas falhas, muitas delas frutos dos nossos limites de criaturas, elas nos serão perdoadas pela misericórdia infinita do Pai. Essa visão otimista do futuro da humanidade não é gratuita nem ilusória, ela se baseia no infinito amor de Deus pelos seus filhos humanos que inclui o seu próprio Filho, Jesus Cristo. Tudo isso, sabendo-se que se Deus jamais falhará, nós, ao malbaratar a nossa liberdade poderemos falhar. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 5, 27b-32, 40b-41 Nessa leitura, assistimos ao confronto entre o Grande Conselho, presidido pelo sumo sacerdote, e os discípulos de Jesus. Esse enfrentamento era inevitável porque os interesses imediatos e demasiadamente humanos do Grande Conselho eram necessariamente contrariados pela pregação dos discípulos de Jesus, que pregavam não em seus próprios nomes, mas em nome 424 de Jesus, como eles mesmos diziam. O Grande Conselho estava interessado em promover a sua própria autoridade perante o povo, o que lhe garantia poder, ao mesmo tempo político, religioso e também financeiro. Em que pese tudo isso, os discípulos de Jesus, com Pedro à frente, não duvidaram em seguir a própria consciência moral, que é, como sabemos a nossa última instância moral que derroga todas as outras. Por isso mesmo, “Eles, os discípulos, saíram da sala do Grande Conselho, cheios de alegria, por terem sido achado dignos de sofrer afrontas, pelo nome de Jesus.” A alegria aqui não era apenas um sentimento frívolo, mas, sim uma síntese muito rica dos sete dons do Espírito Santo. 3. Livro do Apocalipse de São João 5, 11-14 Além de augurar um futuro feliz para a humanidade, João, o evangelista e autor do Apocalipse, exalta a figura de Jesus e coloca-o no seu devido lugar. Aquele mesmo Jesus que nascera na gruta-estábulo de Belém é aclamado por miríades de anjos: “Digno é o Cordeiro imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a glória, a honra e o louvor”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 21, 1-19 Ao ler o evangelho de hoje podemos imaginar o grupo órfão dos discípulos a viverem a experiência de grandes amigos que perderam o irmão maior, que era, ao mesmo tempo, um grande Mestre. Esse grupo de ex-pescadores resolve matar as saudades e vai pescar junto com Pedro. E a pesca foi um grande fracas- 425 so. Nenhum peixe, nem grande, nem pequeno! Mas, tudo não passava de um ensaio, quase de uma provocação, pois o grande Pescador estava por perto. Com ele, a pesca seria de 153 grandes peixes, isto é, de todos os peixes do Mar da Galileia! O mesmo Jesus que lhes servira pão e vinho na última Ceia e lhes lavara os pés, lhes serve, agora, assados na brasa, pão e peixe! 426 4º Domingo da Páscoa 1. Introdução Ao longo do tempo, a pessoa de Jesus foi identificada pelos seus seguidores por diferentes títulos, que permitiam visualizálo sob vários aspectos, como Filhos de Deus, Senhor, Rei, Mestre e também Pastor, ou melhor, Bom Pastor – aquele que dá a vida por suas ovelhas. A figura do Pastor era emblemática na cultura palestinense. Eminentemente rural, de um lado agrícola, com a cultura de grãos e uva e, de outro, com a pecuária de pequeno porte, cabras e ovelhas, que se deslocavam pelos vales e colinas em busca de pasto, conduzidas por pastores que as protegiam contras as feras e os assaltantes. O rei de Israel era visto como o Pastor supremo do povo, responsável pela vida e pela sobrevida do povo. Dentro desse contexto, não admira que Jesus, que deu a sua vida pela salvação de muitos, fosse identificado com a figura do Bom Pastor. Quem não se lembra da imagem de Jesus, vestido como pastor, a carregar uma ovelha nas costas? Quem não se lembra da parábola do Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas? 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 13, 14.43-52 Essa leitura nos fala das adversidades sofridas por Paulo e Barnabé, em Antioquia da Pisídia, na Ásia Menor. Barnabé é o mesmo Barnabé que convocava Paulo para ajudá-lo na evangelização de Antioquia, na Síria, cidade em que os seguidores do evangelho foram primeiro chamados de cristãos. Nós sabemos, 427 pela história, que havia judeus e prosélitos, ou seja, pagãos convertidos ao judaísmo, por toda a parte, na bacia do Mediterrâneo em Antioquia não era diferente. Paulo e Barnabé começavam a sua pregação do evangelho junto a essas comunidades. E, quanto mais exitosa fosse essa evangelização, maior era a frustração dos que não se deixavam converter. Toda estratégia, ainda que mentirosa, era útil para hostilizar Paulo e Barnabé. Daí a declaração solene de Paulo: “Eu preciso anunciar a palavra de Deus primeiro a vós. Mas, como a rejeitais e vos considerais indignos da vida eterna, sabeis que vamos dirigir-nos aos pagãos.” 3. Livro do Apocalipse de São João 7, 9.14-17 O autor do Apocalipse, pela tradição o evangelista João, narra a sua fé através de visões grandiosas com a da liturgia de hoje. Uma grande assembleia de pessoas oriundas de todos os povos e línguas, trajando vestes brancas e empunhando palmas, símbolo do martírio, está diante do trono e do Cordeiro, entoando cânticos de louvor e ação de graças. Esse é o destino daqueles que acreditaram na Palavra e por ela deram a sua vida. “Porque o Cordeiro será o seu Pastor e os conduzirá às fontes da água da vida”. 428 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 10, 27-30 O Bom Pastor é aquele que conhece as ovelhas pelo nome, isto é, mantém com cada ovelha uma relação de afeto e de carinho pessoais. É sempre frustrante ser tratado por alguém com outro nome, como se pudéssemos ser qualquer um, e não nós mesmos. Se isso pode acontecer, e acontece muito, entre os humanos, para nossa felicidade, não acontece no relacionamento de Deus conosco. Deus jamais se esquece do nosso nome ou o confunde com outro nome. Se é verdade que Deus é um espírito perfeitíssimo, eterno e criador do céu e da terra, é muito mais verdade que Ele é como um pastor zeloso que conhece as suas ovelhas, que somos nós, pelos nossos nomes, quaisquer que eles sejam. Podemos guardar firmemente na nossa memória as palavras que o evangelista João colhe nos lábios de Jesus: “Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minhas mãos.” 429 5º Domingo da Páscoa 1. Introdução Se tivéssemos que escolher um só versículo que, de alguma maneira, resumisse a mensagem da liturgia de hoje, esse versío culo, seria o 56 do 21 capítulo do Apocalipse: “Eis que eu faço nova todas as coisas.” O envelhecimento é um sinal precursor da morte que, pela fé, nós sabemos, foi destruída pela ressurreição do Senhor. Aquele sopro com que o criador deu a vida a Adão, feito do barro da terra, estava destinado a permanecer para a eternidade, carregando sempre consigo a juventude eterna de Deus. Durante todo o Tempo Pascal, alimentamos a nossa fé na ressurreição do Senhor e também na nossa ressurreição e isso, não para embalar-nos numa doce ilusão, mas porque a ressurreição do Senhor é o penhor da nossa própria ressurreição: “Se Cristo ressuscitou, então nós também ressuscitaremos.” Trata-se, aqui, da lógica do amor, exclusivamente. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 14, 21b-27 Esta primeira leitura de hoje nos fala da febril atividade de Paulo e Barnabé, que não se limitavam a fundar novas comunidades cristãs, mas se empenhavam com grande zelo apostólico em estruturá-las e mantê-las sempre vivas, em que pesassem as longas e perigosas viagens que devessem realizar. A nossa comunidade desta capela de São Francisco não deveria contentar-se em reler as cartas de São Paulo, mas deve acatar as suas orientações, ainda que, para isso, devamos levar em conta as adver430 tências de Paulo: “É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no reino de Deus.” Os sofrimentos das comunidades paulinas eram outros que os nossos, deviam enfrentar perseguições movidas pelos inimigos do evangelho, fossem judeus ou pagãos. Hoje somos perseguidos pela mediocridade, pelo alto consumo e por falsas ideologias. Paulo e Barnabé faziam tudo para preservar a novidade que semearam. 3. Livro do Apocalipse de São João 21, 1-5a Na cultura bíblica, em virtude dos perigos dos mares e dos monstros marinhos que supostamente os habitavam, o mar era visto como perigoso, em comparação com a terra firme. Esta era vista como um jardim acolhedor para o homem, um pouco como o paraíso, infelizmente perdido, dos nossos primeiros pais. Esse pressuposto nos faz entender o que João queria nos dizer ao escrever: “Eu, João, vi um novo céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a primeira terra passaram e o mar já não existe.” Expulso do paraíso, com Jesus ressuscitado, o homem volta definitivamente ao paraíso. “Esta é a morada de Deus entre os homens. Deus vai morar no meio deles (...) Deus enxugará toda lágrima dos seus olhos.” Nós, cristãos, homens de fé, somos chamados, não só a esperar essa nova terra, mas somos chamados a construí-la desde já. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 13, 31-33a.34-35 Sabendo-se que Jesus pronunciou estas palavras: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”, du431 rante a última ceia, após a traição de Jesus e logo antes da sua Paixão, Morte e Sepultamento, como entendê-las? Ao invés de glorificação, não se deveria falar em humilhação? É que João vê na aceitação da cruz, por parte de Jesus, a expressão máxima do seu amor por nós homens; foi no alto da cruz, ao perdoar os seus algozes, que Jesus se revelou o Filho de Deus, a Glória de Deus. É por isso que o Centurião, depois de ter trespassado o coração de Jesus no alto da cruz, disse: “Realmente este homem era filho de Deus!” 432 6º Domingo do Senhor e Dia das Mães 1. Introdução O Dia das Mães não consta no calendário litúrgico, mas ele se impôs na religiosidade popular e não poderia deixar de se impor, pela sua força afetiva. Como deixar em branco, no dia do Senhor, em plena Páscoa, o dia das nossas queridas mães, aquelas que nos deram a vida com o seu sangue, nos nutriram com o leite da ternura humana e nos ensinaram a sorrir, a falar e a chorar, por que nem tudo na vida são flores? Com certeza, temos, aqui, muitas avós e a elas queremos também homenagear por que são duas vezes mães, e também as bisavós, três vezes mães. Queremos também lembrar a presença muito oportuna dos pais que aqui vieram para homenagear as suas queridas esposas, mães dos seus queridos filhos. Invocamos também a proteção de nossa querida Mãe, Maria. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 15, 1-2.22-29 Essa leitura de hoje narra o final feliz de uma grande história polêmica, vivida pelas comunidades cristãs primitivas de Jerusalém, formada por cristãos, provindos do judaísmo, e as comunidades cristãs da Antioquia na Síria, formadas de cristãos na maioria provindos do paganismo. A pendência entre as duas comunidades vinha do fato de que os cristãos, vindos do paganismo, deveriam, não só adotar os costumes religiosos 433 judaicos e como as regras de pureza legal, mas também a circuncisão. Enquanto a comunidade de Jerusalém pensava assim, a de Antioquia pensava o contrário. Para resolver o impasse, que poderia ter consequências gravíssimas para o futuro do cristianismo no mundo pagão, convocou-se o Concílio de Jerusalém em que se chegou a um consenso que se tornou um modelo para, à luz do bom senso e do Espírito Santo, resolver as divergências normais a toda comunidade humana. 3. Livro do Apocalipse de São João 21.10-14.22-23 A cidade santa Jerusalém, descendo do céu, de junto a Deus, brilhando com a glória de Deus é uma metáfora do mundo futuro, quando se tiverem completados os desígnios de Deus. Tratase de um mundo novo e definitivo, que jamais correrá o menor risco de desabar. Uma cidade tão bela e indestrutível como o Amor de Deus! Trata-se de um recurso poético para falar da nossa ressurreição, da vida eterna, de uma felicidade sem fim. Na verdade, meus caros irmãos e irmãs, é nisso que cremos e, sendo Deus quem é, um amor infinito que ama infinitamente, nada podia ser diferente. “A cidade não precisa de sol nem de Lua que a iluminem, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada é o Cordeiro”. 434 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 14, 23-29 O evangelho deste domingo é uma parte do discurso de despedida de Jesus, pronunciado por ocasião da Última Ceia, portanto, na Quinta-feira Santa, no dia da sua prisão e julgamento. Jesus tem consciência de que esta é a última oportunidade que ele tem de instruir os seus discípulos. Cada minuto é importante, por isso ele escolhe as suas palavras. “1. Se alguém me ama guardará as minhas palavras; 2. A palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou; 3. Isso é o que vos disse enquanto estava convosco. Mas o defensor, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.” Essas palavras de Jesus, pronunciadas num momento tão crucial, valem até hoje, para nós. Na verdade podemos ter a certeza de que o Espírito Santo está sempre a recordar o que disse Jesus aos seus discípulos na Última Ceia. 435 Ascensão do Senhor 1. Introdução Ascensão, substantivo derivado de ascender, que significa subir, diverge quanto ao significado de assunção, substantivo derivado do verbo assumir, que significa tomar para si. Ascensão se diz de Jesus, que, tendo cumprido a sua missão terrena, retorna por si mesmo ao Pai, ao mesmo tempo que entrega à Igreja, que fundara, a missão de continuar a sua obra: “Ide fazer discípulo entre todos os povos, batizai-os, consagrando-os ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Assunção se diz de Maria, que, como primícia do gênero humano, ao adormecer, no fim dos seus dias terrenos, foi assumida pelo Pai nos céus. Ascensão de Jesus e assunção de Maria têm a ver uma com a outra, porque a missão de ambas é a mesma, ou seja, preceder-nos no reino dos céus. 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 1, 1-11 A leitura de hoje é composta pelas primeiras linhas do livro dos Atos dos Apóstolos, que narra a história emocionante das primeiras comunidades cristãs que foram constituídas pela pregação dos apóstolos, em função do mandato que receberam da boca de Jesus, ao subir aos céus, no dia de sua ascensão. A igreja foi plantada por Jesus quando ele constituiu, como apóstolos do Reino, doze dos seus companheiros, ainda em sua vida terrena. Já plantada, a Igreja desabrocha após a sua ascensão. Termina na Ascensão a missão terrena de Jesus 436 e, com ela, inicia-se a missão da Igreja no mundo ao longo dos séculos, o que significa dizer, continua a nossa missão nos dias que correm e no lugar em que vivemos. Hoje, em nosso meio, não existe ninguém, a não ser nós mesmos, para anunciar aos nossos irmãos o evangelho de Jesus. 3. Carta de São Paulo aos Efésios 1, 17-23 Diante dessa missão tão grandiosa de anunciar o evangelho aos nossos irmãos e diante da nossa carência tão evidente, como proceder? Proceder como São Paulo sugeria à comunidade de Éfeso: pedir a Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos dê um espírito de sabedoria que nos faça saber, ou seja, não só conhecer, mas saborear a esperança a que fomos chamados a viver. Dar-nos conta de que veio revelar-nos valores muito mais valiosos do que aqueles que os nossos olhos carnais podem contemplar, as belas paisagens que se escondem atrás da linha do horizonte, as belas flores que bordejam a terceira margem do rio. Com certeza, a missão que nos compete, e a ninguém mais, será difícil, mas não tanto, se nos colocarmos à escuta da Palavra de Deus. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 24, 46-53 Assim está escrito: “o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos no terceiro dia, e, no seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecadores a todas as nações”. Nestas poucas frases está todo o resumo da história da salvação, não só da salvação do mundo, mas da salvação de cada um de nós. A história de Jesus, pela sua própria natureza, é parte da nossa história 437 pessoal, porque ele se fez homem para salvar a todos e a cada um de nós. É isso que nós, como cristãos, discípulos de Jesus Cristo, temos, depois da Ascensão do Senhor, a obrigação de dizer, ou mesmo de gritar a todos que nos rodeiam: estamos salvos. Em primeiro lugar, salvos de nós mesmos, do nosso egoísmo, da busca exclusiva do nosso prazer e da riqueza material, a exemplo de Jesus que, sendo Deus, se fez pobre e irmão de todos. 438 Domingo de Pentecostes 1. Introdução No alvorecer da história, marcado no livro do Gênesis, Deus, com a fecundidade do seu sopro, criou o homem e a mulher: “Então Javé modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”. Na plenitude dos tempos, Jesus ressuscitado, aparece aos discípulos reunidos e depois de ter dito “a Paz esteja convosco, soprou sobre eles e disse recebei o Espírito Santo.” A primeira criação foi o primeiro episódio de uma longa história, a História da Salvação que se foi desdobrando ao longo dos séculos e se consumou em Pentecostes, com o sopro de Jesus ressuscitado. Depois desse sopro só restava a Jesus retornar ao Pai; a sua missão estava cumprida. Caberia aos homens prolongá-la ao longo dos séculos, mas não sozinhos, e sim com a ajuda perene do Espírito Santo, o Espírito de Jesus e do Pai. João, no evangelho de hoje, narra a vinda do Espírito de um modo diferente do modo com que Lucas a narra no livro dos Atos, primeira leitura. Isso não indica uma contradição, mas sim que Pentecostes não é um episódio pontual, mas percorre toda a História, tanto a geral, como cada uma das nossas histórias pessoais. 439 2. Livro dos Atos 2.1-11 O homem e a mulher não foram criados para a solidão, mas para a comunhão. O homem só é feliz quando vive em comunidade de amor com os seus pares e pode exprimir esse amor. O meio por excelência de comunicação é a palavra. É por isso que o Espírito Santo, com estrondo e como num vendaval, aparece aos discípulos reunidos sob a forma de língua de fogo, uma língua capaz de criar comunidade, um idioma compreensível aos homens dos quatro cantos do mundo. O espírito da discórdia e do orgulho corrompera o idioma dos que queriam construir uma Babel tão alta que atingisse os céus, tornando-o incompreensível. Esse idioma seria substituído por um novo, capaz de ser entendido por todos. Pentecostes é a anti-Babel. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 3b-7.12-13 Paulo nos fala, hoje, dos carismas, ou seja, dos dons do Espírito que são muitos e mesmo inesgotáveis. Isaias e a Bíblia falam de seis dons e a tradição acrescenta o dom da piedade, mas cada um de nós poderia acrescentar outros mais, segundo a nossa experiência pessoal, porque o Espírito Santo nunca nos abandona em situação alguma, seja ela pessoal ou comunitária. São Paulo chama atenção para o fato de que os dons do Espírito Santo não têm caráter pessoal, mas estão sempre orientados para o bem comum da comunidade. É através desses dons que as carências da comunidade cristãs são preenchidas. Como entre nós, há os ministros da eucaristia, há os ministros da palavra, da liturgia, 440 do canto, da catequese, da pastoral social etc. E não podia ser diferente, pois “fomos formados no mesmo Espírito, para formarmos um único corpo”. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20, 19-23 Ao aparecer aos discípulos na tarde da sua ressurreição, Jesus infunde-lhes o Espírito insistindo sobre dois dons em particular: a Paz e o Perdão. Por Paz, o Shalom Judaico, podemos entender a síntese de todos os dons do Espírito que enche o nosso coração de Paz, que não é apenas ausência de tribulação, mas plenitude interior. Por Perdão entendemos o ponto mais alto do amor, porque não há prova maior de amor do que, pelo perdão, mostrar o amor ao ofensor. 441 Solenidade da Santíssima Trindade 1. Introdução A segunda etapa do Tempo Comum, no Ano Litúrgico, começa com a festa da Santíssima Trindade, o mistério mais alto da nossa fé, Deus uno e trino e, ao mesmo tempo, o mais familiar, o mais íntimo, já que, como nos diz Paulo, com outras palavras, a Trindade Santa nos habita e nós A habitamos. Lemos no Apocalipse o que nos fala a nós, homem e mulheres, em nome de Deus santo, o anjo da Igreja da Laodiceia: “Se alguém escuta o meu chamado e abre a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo”. Não se trata para nós, em nossa caminhada terrena, de especular sobre o paradoxo da unidade e da trindade de Deus. A trindade de Deus não é um problema aritimético, mas uma maneira humana de representar a riqueza infinita da natureza divina, que está muito acima da nossa capacidade de compreender e de formular, em linguagem humana, a sua compreensão. 2. Livro dos Provérbios 8, 22-31 A riqueza infinita de Deus sempre seduziu as mentes e os corações de todos os homens e foi, aos poucos e às apalpadelas, que nossos pais, na fé, foram tentando conhecê-la e, mais do que isso, experimentá-la e, vivê-la. No livro dos Provérbios o Deus supremo e criador já é visto e sentido como “Sabedo442 ria”, que já existia antes da criação do mundo: “O Senhor me possuiu como primícias do seu caminho, antes de suas obras mais antigas; desde que a eternidade foi constituída, desde o princípio, antes da origem da terra”. A menção do criador e da sabedoria em relação com o Senhorio de Deus já deixam entrever um pouco do mistério da Trindade, que, mais tarde, seria revelado de modo mais claro por ocasião do Batismo de Jesus e da sua transfiguração no Monte Tabor. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 5, 1-5 Quanto a Paulo, o apóstolo por excelência de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi através de Jesus que ele, chegou, não a explicar, mas a viver o mistério da Trindade Santíssima. Foi o Espírito que convenceu Paulo e o fez descobrir que não era a Lei, a tábua da salvação, mas sim o amor. A letra mata, mas o Espírito vivifica. Foi Paulo que soube distinguir, nos carismas que enriqueciam as primeiras comunidades, os dons do Espírito Santo. No Javé do primeiro Testamento, Paulo soube reconhecer o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 16, 12-15 Nesse pequeno trecho do evangelho de João, no seu desabafo, nos últimos momentos de convivência, Jesus nos fala mais da Trindade Santíssima do que os longos tratados de teologia dogmática. Trata-se de um desabafo de Jesus, inspirado pela íntima comunhão dele com a Santíssima Trindade. Que os 443 seus discípulos não se apavorassem com a sua partida do mundo, em outras palavras mais cruas, com a sua morte, porque: “Tudo o que o Pai possui é meu”! Em outras palavras, como está dito em outra parte do mesmo evangelho: “Eu e o Pai somos um”. O traço de união entre o Filho e o Pai é o Espírito: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora. Quando, porém, vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá à plena verdade”. Voltando ao que foi dito nesta homilia, não se trata de contar nos dedos das mãos as três Pessoas divinas, mas trata-se de vivê-las na sua misteriosa unidade. Pois ela está à porta e bate. Se a atendermos ela entrará, ceará conosco e nós com Ela! 444 Solenidade do Sagrado Coração de Jesus 1. Introdução Todos conhecemos, com maior ou menor precisão, a história das devoções ao Sagrado Coração de Jesus, difundida mundialmente por Santa Margarida Maria desde o Convento de Parayle-Monial, na França do século XVIII. São também conhecidas as práticas devocionais ligadas às primeiras sextas-feiras do mês. Ninguém pode negar a relevância dessas práticas, mas elas não nos devem fazer esquecer que não valem por si mesmas, mas, sim, na medida em que são a expressão de um coração convertido e transformado, na medida em que são frutos de um coração de carne, e não de um coração de pedra na expressão bíblica. 2. Livro do Profeta Ezequiel 34, 11-16 Na liturgia deste ano somos premiados, nesta festa do Sagrado Coração de Jesus, com o texto sobre os bons pastores do profeta Ezequiel, que aprofundou esse tema tão típico da cultura e da fé bíblica que vê em José um pastor, ao mesmo tempo, dedicado e compassivo. Vale a pena citar uma frase do profeta Isaías, que conjuga os dois termos pastor e coração aparentemente tão distantes semanticamente um do outro; diz Ezequiel, vocalizando José: “Eu vos darei pastores segundo o meu coração”. O profeta Ezequiel viveu duas fases, a primeira às vésperas do exílio e a segunda, durante o exílio, quando Isra445 el vivia a sua maior humilhação. Mas a confiança de Ezequiel é tanta que ele profetiza: “Vou retirar as minhas ovelhas do meio dos povos e recolhê-las do meio dos países para conduzi-las à uma terra”. É essa a missão de um pastor, constituído segundo o Coração de Jesus. 3. Carta de São Paulo aos Romanos 5, 5b-11 Faz bem a liturgia de hoje em chamarmos a atenção para o fato de que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo espírito que nos foi dado”. O coração de carne de Jesus – esse órgão sensível que registra todas as nossas emoções – foi o instrumento ou a sede que o Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade, escolheu para atuar em Jesus, como por exemplo, quando o evangelista Marcos diz, usando o termo entranhas, que poderíamos traduzir por coração. A ver a multidão faminta e errática com um rebanho de ovelhas sem pastor, o seu coração de Jesus estremeceu dentro de si. O coração de Jesus é a sede dos seus sentimentos e mesmo de suas paixões humanas, mas é, principalmente, a sede do Espírito Santo de Deus. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 15, 3-7 Para o Coração de Deus e para o Coração de Jesus o que importa, o que é decisivo, não é a quantidade, é a pessoa humana, dona de um coração feito para amar e ser amado, seja ela uma só, sejam cem, mil ou infinitas. Quando o Pai do filho pródigo deixava a sua propriedade e se dirigia para a colina, de cujo alto ele tentava esquadrinhar o horizonte a ver se o seu filho mais jovem estava a voltar ao lar, só pensava nele Seu 446 filho mais velho, os seus empregados, a sua propriedade eram importantes, mas ficavam para depois. O que importava era a ovelha perdida que ele queria recuperar o quanto antes, para regozijar-se com os seus amigos: “Alegrai-vos comigo! Encontrei a ovelha que estava perdida”. 447 2º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As três leituras de hoje são extremamente positivas na sua mensagem e contrariam de frente uma certa tradição religiosa, mais voltada para a privação, o sacrifício, como se o sofrimento fosse a expressão da vontade de Deus. Essa visão negativa tem a sua origem numa interpretação errônea da Cruz de Jesus. Jesus não carregou a cruz por sua vontade, como se ela fosse um bem em si. Jesus portou a cruz por que a ela foi condenado pelos seus inimigos que se sentiam prejudicados por sua pregação libertadora. Ao invés de renunciar à sua pregação, reafirmou-a, ainda que pelo preço da cruz. Jesus veio ao mundo e se fez homem como nós para nos dar a vida e, como nos diz o evangelista João, para nos dar a vida em abundância. Tão em abundância como o vinho das Bodas de Caná. 2. Livro do Profeta Isaías 62,1-5 O oráculo do profeta, com certeza um discípulo de Isaías, é um poema de amor e de exaltação à cidade Santa de Jerusalém, que é a imagem do povo de Deus, escolhido para dar, perante todos os povos, testemunho de Javé, o verdadeiro Deus: “Por amor de Sião não me calarei, por amor de Jerusalém não descansarei, enquanto não surgir nela, como um luzeiro, a justiça e não se acender nela uma tocha, a salvação”. Na sequência do poema, o discípulo de Isaías retoma a tradição do grande pequeno profeta Oseias, que vê nas relações entre Javé e o povo uma imagem de 448 amor matrimonial: “Não mais te chamarão abandonada e tu não será chamada deserta; teu nome será Minha Predileta e tua terra será a bem casada, pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será a bem casada”. Deus não nos cria para o malogro, mas para a plenitude da vida. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo João 2, 1-10 João em todo o seu quarto evangelho jamais se refere aos grandes feitos extraordinários de Jesus como milagres, mas, muito a propósito, como sinais. Na verdade, Jesus não era um milagreiro que se valia do seu poder para proveito próprio. Os milagres de Jesus eram um ato de amor ao sofredor ou ao carente e também um sinal. Cabe-nos hoje descobrir o que sinaliza o milagre de Caná ou a transformação de tanta água em tanto vinho numa festa de casamento! A presença de Jesus, acompanhado de seus discípulos e da sua mãe numa festa de casamento é tradicionalmente vista na Igreja como a instituição do sacramento do matrimônio cristão. O amor recíproco do homem e da mulher é uma graça de Deus e, ao mesmo tempo, a expressão mais concreta e evidente do Amor, que é Deus. A transformação da água em vinho sinaliza a passagem da morte para a vida; já não somos mais servos, mas filhos e, portanto, podemos proclamar, em verdade, do fundo do coração: Abbá, Pai! 449 4. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 4-11 Assim como o vinho em relação à água apresenta predicados superiores como o sabor, a cor, o aroma, a textura etc, assim também o cristão que é parte da comunidade apresenta em relação ao homem comum seus predicados próprios que lhe são doados pelo Espírito. Em vez de usar os nomes doados por São Paulo aos dons do Espírito, vamos usar os nossos. Podemos perceber, dentro da nossa comunidade, que, para alguns, Deus dá o dom da palavra e do comentário, a outros, o da catequese ou da distribuição da eucaristia, a outros, de organizar a liturgia e de cuidar dos pobres, a outros de acolher o povo e celebrar a Eucaristia etc. 450 3º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Há duas palavras-chave, nas leituras de hoje, que vão ocupar nossa atenção nesta homilia: a Palavra de Deus e o Corpo de Cristo. Na primeira leitura tirada do livro de Neemias, a Palavra de Deus aparece sob o nome “livro” ou “lei”, ambos portadores da sabedoria e do amor de Deus por nós. Palavra, na bíblia, não significa apenas um item de um dicionário, mas a expressão da vontade de Deus a nosso respeito e, por isso mesmo, sendo a Palavra de quem é, é a expressão do amor de Deus por nós. E mais ainda, podemos dizer que ela é a expressão do próprio Deus, segundo lemos no evangelho de João: “No princípio era a Palavra e a Palavra era Deus.” Nós sabemos que essa Palavra encarnou-se em Jesus que é a Palavra definitiva de Deus aos homens. Em sua primeira carta aos Coríntios, Paulo fala da comunidade cristã, não como um aglomerado de batizados, mas como uma comunidade solidária, como são os membros de um só Corpo, cuja cabeça é Cristo. 2. Livro de Neemias 8, 2-4a.5-6.8-10 Neemias é um dos livros históricos da Bíblia relativo à restauração de Judá após o retorno do exílio da Babilônia. O vácuo político, religioso e cultural criado pelo exílio teria que ser preenchido. O primeiro passo para o reerguimento do povo era o retorno à leitura da Lei, ou seja, do Livro Sagrado ou da Palavra de Deus. “Assim, na praça que ficava defronte da porta 451 das águas, Esdras fez a leitura do Livro, desde o amanhecer até o meio-dia, na presença dos homens e das mulheres e de todos os que eram capazes de entender.” A época em que vivemos também nos coloca numa espécie de exílio espiritual e religioso. Também, para nós, seria bom retornar à leitura e à escuta da Palavra de Deus. A mesa da eucaristia que nos reúne todos os domingos, onde se serve o Pão, e a Palavra é um lugar ideal para aprofundar a nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 1-4; 4, 14-21 O primeiro parágrafo da leitura de hoje são os versículos introdutórios do evangelho de Lucas. Não tendo sido discípulo de Jesus, Lucas deixa claro que o seu texto é fruto de consultas às pessoas que foram testemunhas oculares da vida, do ministério e das palavras de Jesus. Estaremos, este ano, nos domingos do Tempo Comum, lendo o evangelho de Lucas, também conhecido como o evangelho dos pobres, do divino Espírito Santo e do Pai misericordioso. O segundo parágrafo narra a pregação de Jesus na sinagoga de Nazaré, pregação inaugural e programática em que Jesus assume o papel do Messias, conforme prometido a Isaías. “O Espírito do senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a boa nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação dos cativos e aos cegos a recuperação da vista...” Esse versículo é fundamental para todos nós e para a nossa Igreja, porque a nossa missão continua a ser a mesma que Jesus assumiu na sinagoga da Nazaré. 452 4. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 12-30 A exposição de Paulo a respeito do que deve ser a Igreja universal e, também, cada comunidade cristã em particular, usando a comparação do corpo e de cada um dos seus membros, é clara e auto-explicativa. Cabe-nos apenas sublinhar que não basta sentirmo-nos como membros de um só corpo, mas é preciso lembrar que a cabeça desse corpo é Cristo, a Palavra de Deus encarnada, nosso caminho, nossa verdade, nossa vida! 453 4º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As três leituras de hoje estão entre as mais belas e significativas das liturgias dominicais. Falam-nos do Senhor, profeticamente pela boca do grande profeta Jeremias: “Antes de te formares no ventre de tua mãe, eu te conheci, antes de saíres do ventre de tua mãe eu te consagrei e te fiz profeta das nações.” Falam-nos de Jesus pela boca do próprio Jesus: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir”. A segunda leitura tirada da primeira carta de Paulo aos Coríntios encerra a essência mais pura de todo o ensinamento de Paulo e, não só de Paulo, mas do próprio Jesus, cuja essência também era a caridade: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, dizia Jesus. Entre a profecia de Jeremias e o Evangelho de Lucas, passando pela carta de Paulo, medeiam oito ou nove séculos. Até chegar a nós, são mais de dois mil anos e a Palavra de Deus continua a mesma: “A caridade não acabará nunca”. 2. Livro do Profeta Jeremias 1, 4-5.17-19 A grande intuição bíblica, que nós acreditamos ser fruto da inspiração divina, é a de que Deus é também o criador do Universo que tem no homem e na mulher o seu ponto mais alto. Desde antes dos tempos, quando ainda o espírito não pairava sobre as águas, Deus criador concebeu na sua mente divina o homem Jesus, seu Filho, e filho de Maria, esposa de José, o carpinteiro de Nazaré. Segundo a tradição bíblica, o nascimento de 454 Jesus foi, durante séculos, anunciado pelos profetas, para que os homens pudessem estar preparados para recebê-lo e aceitá-lo livremente. A aceitação do futuro Messias não seria, como não foi, uma tarefa fácil, pois o ideal que ele apresenta não é banal. Para estar-lhe à sua altura, o homem precisa ser como uma cidade fortificada, uma coluna de ferro, um muro de bronze. Mas, por outro lado, o homem não deve temer, porque Deus estará com ele para defendê-lo. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 4, 21-30 O Evangelho de hoje é marcante porque narra o primeiro encontro de Jesus, claramente assumido como Messias, como vimos no evangelho do último domingo, na sinagoga de Nazaré onde foi criado. Para entender bem o evangelho de hoje precisamos entender a aparente contradição que existe dentro dele. De um lado “todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saiam de sua boca” e, por outro: “quando ouviram essas palavras ficaram furiosos e levaram-no até o alto do monte, com a intenção de lançá-lo do precipício”. Essa cena contraditória de hoje antecipa o drama de Jesus, que começa aplaudido nas praças por causa dos seus milagres e exorcismos, mas termina pendurado numa cruz! Na verdade, o povo de Nazaré, como, no futuro, os sumos sacerdotes, os fariseus, os saduceus, os doutores da lei esperavam um Messias poderoso, capaz de salvá-los da pobreza e da humilhação perante o Império Romano, e este não poderia ser o filho de um carpinteiro, chamado José! 455 4. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 12, 31-13, 13 O que Paulo está a nos dizer nesta leitura de hoje é que perante Deus, que é puramente amor e só amor, a única coisa que vale é o amor. Esse amor, é claro, só pode manifestar-se exteriormente, mas não é a sua manifestação que importa, porque ela pode ser mentirosa. A qualidade de um gesto não se mede pela sua performance, mas pela sua motivação. Importa menos o que eu faça e mais o porque e o como se faça. Se é por amor, Deus o acolhe; se é por algum tipo de vaidade, Deus o ignora. Diante de Deus, isto é assim e assim o será sempre, nesta e na outra vida. É uma regra eterna que não tem prazo de validade. É uma regra que define nossa maturidade espiritual: “Quando eu era criança falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança”. 456 5º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A raiz da fé bíblica vivida pelos profetas do Antigo Testamento, confirmada pelo testemunho de Jesus Cristo – que viveu, morreu e ressuscitou por nós – reside na crença de que Deus, nosso Pai e Senhor, se comunica conosco na intimidade da nossa consciência, nos convoca e, mais do que isso, nos interpela a anunciá-lo aos nossos irmãos. A fé cristã, por essência, nunca é um dom para si. Essa constatação parece ser a mensagem das três impressionantes leituras de hoje. Num cenário de grandeza impressionante, nós vemos como o jovem Isaías, ainda imaturo e inseguro, é desafiado por Javé a testemunhá-lo diante do povo. Na primeira carta de Paulo aos Coríntios, apesar de ter perseguido a Igreja de Deus, Jesus vem até ele, como fizera com Pedro, com os apóstolos e quinhentos irmãos, e faz dele um vaso de eleição para anunciar o evangelho da salvação e a ressurreição a todos os pagãos. Jesus, em sua pregação às multidões no lago de Genesaré, convocava-os para avançarem para águas mais profundas e pedia que não se limitassem às águas rasas das margens. 457 2. Livro do Profeta Isaías 6, 1-2a.3-8 A experiência interior de Isaías, que certamente se deu no silêncio interno do seu coração, é descrita pelo profeta num cenário esplêndido, para dar conta da grandeza daquele acontecimento. A vocação de Isaías e sua mensagem são um marco importante na história da revelação, em que Javé não aparece mais como o maior de todos os deuses, mas como o único Deus verdadeiro. Não se tratava mais de um Deus sedento de sacrifícios de touros e de cordeiros, mas de um Deus para quem o maior sacrifício era um coração puro: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros, mas eu vi com meus olhos o rei, o Senhor dos exércitos”. Em que pese o seu pecado, Isaías confia no seu Deus e responde: “Aqui estou! Envia-me.” A experiência de Isaías não é apenas dele, mas de quem quiser tomar conhecimento dela. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 15, 1-11 A ressurreição de Jesus não era apenas para Paulo um acontecimento maravilhoso e extraordinário, mas era visto como um aval dado pelo Pai aos ensinamentos de Jesus que vieram dar um novo e definitivo sentido à tradição recebida por Israel e transmitida pela Bíblia. Paulo, inicialmente, recusava terminantemente os ensinamentos de Jesus, porque eram contrários às interpretações da tradição ensinada pelos fariseus e doutores da lei, com as quais Saulo de Tarso se enquadravam. Jesus discordava em pontos fundamentais da tradição farisaica, como a observância rígida do sábado, as leis da pureza legal, a prevalência 458 das obras sobre a fé, mas se Jesus foi ressuscitado pelo Pai, seus ensinamentos são verdadeiros. Era esse o evangelho de Paulo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 5, 1-11 Em uma das suas parábolas sobre o Reino de Deus, Jesus compara-o a uma rede que é lançada ao mar e recolhe peixes. Muitos peixes, grandes e pequenos, úteis e inúteis. Como as parábolas de Jesus nasciam de sua experiência vivida, podemos pensar que a parábola da rede lançada ao mar nasceu da sua experiência com seus discípulos que eram pescadores. Quando Jesus pedia aos seus amigos pescadores que avançassem para águas mais profundas, Jesus estava pensando em outras águas, as águas do Reino. Os discípulos, daí em diante, não seriam pescadores de peixes. Seriam pescadores de homens. Esse evangelho diz respeito a cada um de nós. Todos nós aqui somos profissionais de algum tipo, mas, além disso, somos chamados a ser também profissionais do Reino de Deus. 459 6º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A grande tentação da modernidade é negar a transcendência e viver como se tudo que fugisse aos olhos da nossa razão ou da nossa experiência dos sentidos fosse pura ilusão. As leituras de hoje nos abrem os olhos, para que possamos ver para além de onde nossa vista alcance, desvendando belas e ricas paisagens, além da linha do horizonte e nos permitam enxergar em plena noite. Como somos pessoas necessariamente limitadas, dificilmente poderemos ser felizes se não acreditarmos num poder mais alto que revigore a nossa fraqueza. A nossa fé nos garante que a nossa esperança não é ilusória. Se Cristo ressuscitou, nós também ressuscitaremos. O evangelho das bem-aventuranças nos indica o caminho da verdadeira felicidade, que está onde o homem moderno nem imaginaria que ela pudesse estar, porque ela não está num poder, nem no prazer e nem no dinheiro. Muito pelo contrário, está no serviço ao próximo, no dom de si e na partilha. 2. Livro do Profeta Jeremias 17, 5-8 Não é só nos tempos modernos que o homem é tentado a confiar mais nos homens do que em Deus. O profeta Jeremias, há bem mais de dois mil anos, já observava essa tendência entre seus contemporâneos. Confiar em Deus é a mesma coisa que acreditar n’Ele. E isso é uma graça que nos é oferecida pelo Pai. Nós, fazendo uso da nossa liberdade, a acolhemos ou não. A fé é 460 como uma pedra preciosa e vale a pena vender tudo que temos para comprá-la. Mas o que tem a ver a fé com a felicidade? Os crentes também não sofrem, não adoecem, não morrem? Mas os que têm fé não perdem a esperança, porque têm a certeza de que jamais serão abandonados pelo Pai. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 15, 12.16-20 A chave do evangelho de Paulo, da sua pregação, é a ressurreição de Jesus, que lhe permite vislumbrar os novos céus e a nova terra, onde os filhos de Deus viverão para sempre felizes. Se Cristo ressuscitou, ele que assumiu como Filho de Deus a carne humana, nós também ressuscitaremos. A recíproca também é verdadeira: se nós, que formamos com Cristo um só corpo místico, não ressuscitarmos, Cristo não ressuscitou. Nós não temos condição de imaginar como se dará concretamente a nossa ressurreição, basta-nos saber que por toda a eternidade guardaremos a nossa identidade perante nós mesmos, perante os nossos irmãos e perante Deus. Acreditar na ressurreição dos mortos não é acreditar num evento espantoso, é acreditar que o amor de Deus jamais nos abandonará. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 6, 17-20-26 As bem aventuranças aparecem nos três evangelhos sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas. Ainda que nos três evangelistas sejam contundentes, em Lucas as bem aventuranças chegam mesmo a ser chocantes quando elas opõe os pobres e os ricos: “Bemaventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus” e, 461 por outro lado, “Mas, ai de vós os ricos, porque já tendes a vossa consolação.” Esses dois versículos de alguma maneira resumem a pregação de Jesus que anunciava o evangelho num contexto de grandes contrastes sociais. Os ricos se apegavam à sua fortuna e acreditavam que nela estava a felicidade. Os pobres, por serem pobres, segundo o ensinamento dos fariseus e doutores da lei, se julgavam malditos de Deus. Jesus advertia os ricos e lhes dizia que a felicidade trazida pelo dinheiro era falha e aos pobres dizia que, longe de serem malditos, eram amados pelo Pai. 462 10º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As três leituras de hoje apontam para a continuidade entre o primeiro e o segundo testamento. O nexo entre a primeira leitura, tirada de 1 Reis e o evangelho de Lucas, é evidente, já que em ambos os casos se trata de um retorno à vida de um filho único de mãe viúva. Na epístola de Paulo ao Gálatas, ele se refere explicitamente às suas origens judaicas e à sua conversão ao evangelho de Jesus. Paulo não esquece as suas raízes, mas nem por isso deixa de seguir com convicção o evangelho de Jesus. Em nosso país e, principalmente, em nossa cidade, a colônia judaica assume um papel cada vez mais importante e muitos dos seus membros são religiosos. Assim como existe um diálogo ecumênico fecundo entre católicos e algumas denominações reformadas, esse mesmo diálogo deveria ser estendido aos nossos irmãos judeus. 2. Primeiro Livro dos Reis 17, 17-24 O profeta Elias é uma das figuras mais importantes do Antigo Testamento, em virtude de sua ação em defesa da tradição monoteísta da religião de Israel no Reino do Norte, então assediado pelos cultos pagãos e mesmo pelo Rei Acab e sua esposa Jezabel, então, autoridades estabelecidas. Perante autoridades desviantes, Elias defendia o verdadeiro Deus ao preço de perseguições. A sua imagem continuava viva ao tempo de Jesus, pois acreditava-se que, tendo subido ao céu num carro de fogo, 463 haveria de retornar nos tempos messiânicos. Tanto João Batista, como Jesus, foram confundidos ou tomados como o Elias esperado. A semelhança entre os dois milagres, o de Elias e o de Jesus, são flagrantes e expressam a crença num Deus da vida e num Deus compassivo, solidário com uma viúva que perde o seu único filho e arrimo. 3. Carta de São Paulo aos Gálatas 1, 11-19 Paulo, após ter evangelizado os gálatas e ter consolidado a igreja entre eles, segue viagem para outras partes, para anunciar o evangelho de Jesus. Essa mesma comunidade, na ausência de Paulo, passou a ser visitada por outros missionários judeus ou judaizantes que, saudosos da sinagoga ou das tradições dos antigos, queriam reconverter para o judaísmo os cristãos evangelizados por Paulo. O propósito primeiro da carta aos gálatas era o de combater o retorno às práticas judaicas, mais que todas, a da circuncisão – julgadas por Paulo como ultrapassadas, inúteis e prejudiciais, por insistirem no que não era essencial. Para fazer valer a sua autoridade e, ao mesmo tempo, a sua isenção, declara-se mais judeu do que os que mais o fossem e nem por isso era defensor das práticas judaicas para os convertidos ao evangelho. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 7, 11-17 O milagre da ressurreição do filho único da viúva de Naim é uma das páginas mais tocantes e reveladoras a respeito do Deus de Jesus Cristo. Havia uma categoria de pessoas em Israel que eram consideradas como as mais abandonadas e, que, nos 464 tempos messiânicos, seriam as primeiras a serem socorridas: as crianças, os enfermos, os estrangeiros e as viúvas. Entre as viúvas, a mais abandonada era aquela que perdia o seu último arrimo, o filho único. Era o caso da viúva de Naim. Jesus, o Messias, o filho do Deus da vida, faz o que ele não podia deixar de fazer: devolve à mãe viúva o seu filho, o seu único arrimo. Jesus estava diante de um caso extremo e exemplar, mas o seu gesto deve ser visto como normativo em casos menos graves: os seguidores de Jesus são sempre devedores daqueles que estão abandonados. 465 11º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O homem nunca se enganou a respeito de si mesmo, ainda que muitas vezes e em vão procure iludir-se. Os mitos de origem, tanto os gregos, como o de Prometeu – que roubou o fogo do céu para poder ser igual a Deus, como o de Adão e Eva no Paraíso –que queriam ser como Deus, todos eles denunciam a tendência do homem a violar os limites da sua condição humana em prejuízo de outrem. A igreja chama a si mesma, na liturgia, de santa e pecadora. O mesmo cada um de nós pode dizer de si. Em sã consciência, não podemos negar a nossa condição de pecadores, como não podiam, nem o Davi da primeira leitura, nem a mulher pecadora, que irrompeu em pleno banquete, ajoelhou-se aos pés de Jesus e o cobriu de beijos. Somos pecadores, mas não estamos condenados porque, sendo o amor de Deus infinito, podemos sempre converter-nos e, com isso, mudar de vida. Essa é a lição básica que podemos retirar das leituras de hoje. 2. Segundo Livro de Samuel 12, 7-10-13 Davi é uma das figuras mais importantes da História da Salvação, foi, de todos os reis de Israel, o maior, tendo, sob o seu comando, o Reino de Israel atingido o seu ponto mais alto. Nem o seu filho Salomão, o sábio, conseguiu ser maior do que ele. Tendo a dinastia davídica submergido com o exílio na Babilônia, 466 os profetas predisseram que um dos seus descendentes haveria de restaurá-la como o Messias prometido. Em que pese liderar a grandeza davídica, o rei Davi pecou miseravelmente. Por mão de terceiro, assassinou um amigo para ficar com sua esposa, de cuja união nasceu Salomão. Grande pecador, Davi também foi um grande penitente que, advertido pelo profeta Natá, arrependeu-se sinceramente da sua vilania. E Deus, como sempre, reconhece a sua conversão e o perdoa. O final da leitura deixa entender que a morte de Absalão, filho de Davi, será uma espécie de penitência imposta por Javé, em vista do pecado de Davi, mas o perdão de Jesus à mulher pecadora, no evangelho de hoje, nos diz que o perdão de Deus não deixa rastro. 3. Carta de São Paulo aos Gálatas 2, 16.19-21 A grande convicção de Paulo, que o fez passar do ultrafarisaísmo para o evangelho de Jesus, foi a descoberta, pela graça de Deus, de que o que salva não é o que fazemos, ainda que exigidos pela lei, mas o como fazemos, o espírito com que as fazemos, ou seja, com mais ou menos amor. Davi pecou gravemente, uma traição a um amigo, seguida de morte, mas Davi se arrependeu e deixou brotar em seu coração o amor que agradou a Javé que, por isso, o perdoou esquecendo seu pecado. Paulo tinha certeza de que seu pecado de ter perseguido os seguidores de Jesus tinha sido perdoado. 467 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 7, 36-8, 3 A suspeita maldosa do fariseu anfitrião e a abertura generosa de Jesus ao gesto da mulher conhecida na cidade como pecadora são emblemáticas de duas concepções antagônicas de Deus. Um Deus farisaico, moralista, não só justo, mas justíssimo e um Deus misericordioso, ou melhor, um Deus Amor, só Amor, puro Amor. Esse era o Deus cujo rosto Jesus assumiu como missão desvelar aos olhos de todos os homens e mulheres de todas as gerações, em todos os continentes. Um Deus que, com seu amor, seduz o pecador e o converte. Esse foi o caso de Davi, foi o caso da mulher pecadora e pode também ser o nosso caso. Amor e perdão são sinônimos, só que perdão se aplica ao ofensor. 468 12º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Não é raro que as leituras de uma mesma liturgia apresentem um tema comum à nossa meditação. Não parece ser esse o caso de hoje, em que, na primeira leitura se trata de uma chamada ao arrependimento do povo eleito, como um todo; na segunda, Paulo inaugura uma nova era para os humanos, ao declarar iguais, perante si mesmos e perante Deus, homens e mulheres, servos e senhores, pagãos e judeus; no evangelho de Lucas, Jesus indaga o que pensam dele o povo e os seus próprios discípulos. 2. Livro do Profeta Zacarias 12, 10-11; 13, 1 Uma das características do povo de Israel era uma consciência viva de que não eram uma coleção de indivíduos isolados, mas de que eram um povo, uma grande comunidade, uma grande família. As grandes festas que ritmavam as estações e reuniam o povo, a centralidade do Templo de Jerusalém e o ensino das Escrituras nas Sinagogas alimentavam essa consciência de serem um povo com uma vocação especial. Mas esse povo nem sempre agiu corretamente. Zacarias, na primeira leitura de hoje, lembra os povos que Israel, ao longo da sua história, ferira de morte. Em nome de Javé, Zacarias convoca-os como povo, e não como indivíduos, ao arrependimento: “Aos que eles feriram de morte, hão de chorá-lo como se chora a perda de um filho único e hão de sentir por ele a dor que se sente pela morte de 469 um primogênito.” A nossa formação individualista e o espírito de competição vigentes em nossa cultura nos afastam de uma consciência histórica. A história do nosso país não é uma história inocente, temos consciência desse fato? 3. Carta de São Pauo aos Gálatas 3, 26-29 A segunda leitura de hoje consta de apenas quatro breves versículos, do 26 ao 29, e é bom que assim seja, para melhor chamar a nossa atenção para o que eles têm de novo e de surpreendente. Paulo era judeu e, durante a sua juventude, o foi de estreita observância e, como tal, se julgava muito superior ao gentio; Paulo viveu num mundo escravista em que o senhor tinha direito de vida e de morte sobre os escravos; Paulo viveu num mundo patriarcal que prestigiava o homem em prejuízo da mulher e, no entanto, ele diz, com todas as letras: “O que vale não é mais ser judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo.” Podemos dizer, com toda a certeza, que Paulo, nesse versículo 28, antecipou em 20 séculos a Declaração pela ONU dos Direitos Humanos. Vale a pena aprofundar a nossa reflexão para perceber a profundidade dessas palavras de Paulo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 9, 18-24 As perguntas que Jesus dirige aos seus discípulos não são retóricas, mas importantíssimas, pois Jesus vivia um momento crucial no seu ministério. No início do seu ministério Jesus foi muito bem acolhido pelas multidões, mas, à medida que ele aprofundava a sua pregação, provocava uma reação negativa en470 tre os fariseus, doutores da Lei e sumos sacerdotes. Com um evangelho que privilegiava o espírito que salva, e não a letra que mata, Jesus entrava em conflito com as autoridades religiosas, sua vida corria risco. Ao interrogar os discípulos, Jesus os estava prevenindo de que, se o Mestre estava sendo perseguido, os seus discípulos também o seriam: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me.” Mas que o faça por amor como fez Jesus! 471 13º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje oscilam entre dois temas que muito têm a ver um com o outro. A primeira leitura, tirada do 2º livro dos Reis, fala-nos da vocação de Eliseu, interpelado pelo profeta Elias; Lucas, no evangelho de hoje, entre outras coisas, mostra o desejo de duas pessoas de seguirem Jesus; Paulo em sua carta aos Gálatas fala da liberdade com que Cristo nos libertou. Jesus tinha, como missão, anunciar a proximidade do Reino de Deus e convocar discípulos para implantá-lo ao longo dos séculos e das sucessivas gerações, nos quatro cantos do mundo. Ser discípulo de Jesus é ser vocacionado para anunciar o Reino de Deus. Como exercer essa vocação vai variar de acordo com os dons de cada um, mas podemos dizer que, dentro da Igreja, há três grandes tipos de vocação. O tipo mais comum é o do leigo casado que, através da procriação e educação amorosa dos filhos de Deus e, através da sua criatividade profissional, completa a obra criadora de Deus; o menos comum é o do celibatórico leigo ou religioso que, sem constituir família, dedica todo o seu tempo e toda a sua vida a servir os irmãos, normalmente aos mais desfavorecidos; o terceiro é a vocação sacerdotal, a dos padres e dos bispos, cuja função primeira é celebrar a eucaristia, distribuindo o pão eucarístico e o pão da Palavra, e estar sempre a serviço da comunidade cristã. 472 2. Primeiro Livro dos Reis 19, 16b.19-21 Entre as vocações no Antigo Testamento, uma das mais importantes e, por que não dizer, mais perigosa, era a de profeta, cuja missão era a de defender o culto ao verdadeiro Deus e o direito dos pobres contra os seus opressores. Elias foi um grande profeta e, por isso mesmo, pagou um alto preço, mas ele já estava velho e carecia de um substituto. Portanto, com um frasco de óleo santo, vai atrás de Eliseu, um camponês de corpo inteiro e o interpela, a queima roupa, lançando-lhe o seu manto, símbolo de sua missão profética. Eliseu não tergiversa, segura o manto, deixa ungir, vai correndo buscar sua mãe e seu pai e se faz, imediatamente, discípulo de Elias. Para dizer que rompera com o passado, imola a junta de bois e, com as brasas do carro de boi, assa a sua carne e a oferece aos seus serviçais. Eliseu não titubeou, atendeu ao seu chamado com prontidão. E nós, estamos prontos quando o Senhor nos chamar? 3. Carta de São Paulo aos Gálatas 5, 1-13-18 Sobre essa leitura preferi não fazer nenhum comentário a apenas ler os primeiros versículos, para não diluir a contundência das palavras de Paulo: “Irmãos é para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão. Sim, irmãos, fostes chamados para a liberdade. Porém, não façais dessa liberdade um pretexto para servirdes à carne.” 473 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 9, 51-62 Podemos perguntar-nos por que Jesus tomou a firme decisão de ir a Jerusalém? Jesus já havia caminhado bastante no seu ministério e ele percebia que a acolhida calorosa dos pobres e dos pequenos contrastava com a frieza e a hostilidade dos fariseus, dos saduceus e das autoridades do Templo. Em vez de acovardar-se diante deles, Jesus decide enfrentá-los lá onde eles eram mais fortes. A verdade, o seu evangelho de liberdade, como dirá Paulo, tinha que ser proclamado alto e em bom som, nas ruas de Jerusalém, no pátio do Templo e dentro do Templo. Quem quisesse seguí-lo, que o seguisse sabendo qu e ele não podia contar com um ninho, como os pássaros, nem com uma toca, como as raposas, já que dizia: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus.” 474 14º Domingo do Tempo Comum e Solenidade de São Pedro e São Paulo 1. Introdução Embora dentro das festejas juninas a figura do apóstolo Paulo esteja ausente, dentro da liturgia. Paulo é festejado no dia de hoje em pé de igualdade com Pedro. Pedro e Paulo, embora tão distantes um de outro, tanto na formação, no temperamento, quanto no carisma, são as duas colunas que sustentam a Igreja de Cristo. Pedro é o homem da instituição, o fundamento irremovível sobre o qual se sustenta a nossa Igreja. E Pedro revive em cada Papa que o sucede como Pastor do rebanho de Cristo. Pedro era um homem simples, trabalhava com suas mãos, como pescador do Mar da Galileia, sem maior instrução, e quase tudo que sabia o aprendeu da boca de Jesus. Paulo, ao contrário, era um homem culto, falava não somente o hebraico e o aramaico, mas também, e muito bem, o grego, a língua culta de então, falada até pelos imperadores romanos. Enquanto Pedro era o homem da Instituição, Paulo era o homem do carisma, da evangelização, da criatividade, da expansão e da doutrina. Podemos dizer e, para isso, basta ler os seus escritos, que Paulo foi o maior teólogo de todos os tempos, aquele que mais aprofundou os mistérios de Cristo. 475 2. Livro dos Atos dos Apóstolos 12, 1-11 O episódio de hoje tem o seu fundamento histórico, pois, de fato, Pedro foi perseguido e ameaçado de morte pelas autoridades judaicas – subservientes aos interesses do Império – mas conseguiu livrar-se delas. Já bem mais tarde, na década de sessenta, foi martirizado e crucificado em Roma, durante a perseguição de Nero; nas mesmas circunstâncias em que Paulo, também foi martirizado, não pela cruz, mas pela espada. Mais do que um fato histórico, a libertação de Pedro é um fato simbólico, ou seja, as forças do inferno não prevaleceriam jamais contra a rocha sobre a qual estava construída a Igreja. E essa rocha era Pedro. Pedro podia exclamar: “Agora sei de fato que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes...” E, poderíamos acrescentar, de todos os outros Herodes que o sucederam. 3. Segunda Carta de São Paulo a Timóteo 4, 6-8.17-18 Timóteo, filho de mãe judia e pai pagão, foi convertido por Paulo e, quando adulto, foi discípulo de Paulo e, como Paulo, fundador e animador de comunidades cristãs. Timóteo, como se vê pelo teor dessa segunda leitura, era confidente de Paulo. Paulo, nesta carta, expressa com confiança a sua esperança na misericórdia de Deus, sem falsa humildade. “Combati o bom combate, completei minha carreira, guardei a fé. Agora está reservada para mim a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, 476 me dará naquele dia.” Qual foi a fé que Paulo guardou? Não só a fé em Jesus, o Messias esperado e Filho de Deus, nascido de mulher, como ele dizia, mas também a fé na novidade do evangelho: não são as obras que salvam, mas a fé, ou seja, como fazemos as obras. O que nos comanda não é a lei, mas o amor. A letra mata e o espírito vivifica! 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16, 13-19 Jesus em Cesareia de Felipe estava vivendo um momento crucial, a sua vida estava em perigo porque a sua pregação ameaçava os poderosos do Tempo, os sumos sacerdotes e os seus acólitos, os fariseus, e os discípulos de Jesus não se davam conta disso. E Jesus, ao mesmo tempo em que se sentia em perigo, queria consolidar a sua obra, e a sua missão não terminava, mas estaria só começando com a sua morte. Como tudo terminaria? Os desígnios de Deus estavam sobre Pedro, apesar do seu temperamento fogoso, mas instável. Ele respondeu certo à pergunta de Jesus: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo!”. Estava plantada a semente da Igreja que, como uma pedra, enfrentaria para sempre o desgaste dos séculos e chegaria até nós, até essa comunidade que se reúne todos os domingos, para partir o pão da palavra e da Eucaristia. 477 15º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Podemos chamar este domingo que estamos vivendo hoje como o domingo do Bom Samaritano, tal é a centralidade dessa parábola no ensinamento de Jesus. Já houve quem dissesse, e com razão, que se os quatro evangelhos se perdessem, menos a Parábola do Bom Samaritano, o essencial dos evangelhos, se teria preservado. Pela parábola, podemos perceber com clareza o que devemos fazer para ganhar a vida eterna, ou seja, sermos devidamente recompensados ao final da nossa existência terrena. Para que isso aconteça tanto faz a raça à qual pertençamos, a nossa classe social, o nosso grau de cultura e também a religião que professamos. O que realmente importa é o cuidado que nós temos com o outro; a esse cuidado podemos chamar, conforme o caso, amor, carinho, misericórdia, compaixão... A verdadeira religião, diz Tiago, em sua epístola, “é cuidar do pobre e da viúva!” 2. Livro do Deuteronômio 30, 10-14 Quando Moisés fala da observância dos mandamentos, ele se refere aos dez mandamentos entregues a Moisés, no Monte Sinai, e gravados nas tábuas da Lei. Moisés insiste no fato de que são mandamentos simples, óbvios e fáceis de entender. Basta examiná-los levemente para perceber que, se não forem de alguma maneira observados, dificilmente a comunidade humana poderá viver em paz. O que está em jogo nos dez mandamentos é sempre o outro, seja com O maiúsculo, Deus Senhor e Criador, 478 seja com o minúsculo, o próximo. Os mandamentos da Lei de Deus não são instrumentos de opressão, mas, ao contrário, foram revelados aos homens como instrumentos da pedagogia divina, no sentido de fazê-los crescer intelectual e moralmente para chegarem à plena responsabilidade do homem e da mulher adultos. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 1, 15-20 Nesses seis versículos da carta de Paulo aos colossenses ele nos fala de Jesus, o Cristo, como o ápice da obra criadora de Deus: “Cristo é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criatura, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis... Tudo foi criado por meio dele e para ele.” Podemos perguntar-nos hoje qual é o nexo entre a parábola do bom samaritano e esse texto de exaltação à figura humano-divina de Jesus Cristo? Para responder poderíamos, talvez, dizer que, assim como um samaritano abastado se fez servo de um pobre homem caído à beira da estrada, assim também Jesus, sendo quem era – o Rei do Universo – fez-se homem e, mais do que isso, fez-se servo dos servos para devolver-lhes a dignidade de homem. Homem nenhum esteve mais próximo dos seus próximos do que Jesus. Ele nunca se omitia. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 10, 25-27 Dentro do contexto cultural da Palestina do tempo de Jesus, enquanto um sacerdote e, nas devidas proporções, um levita, ocupavam uma posição de prestígio social, um samaritano, na escala social, ocupava os últimos lugares. Os samaritanos eram uma meia raça nascida de Judeus da Samaria, que não 479 foram deportados para a Babilônia, com pagãos que emigraram de territórios vizinhos para a Samaria, território situado entre a Judeia e a Galileia. Os samaritanos se afastavam da ortodoxia judaica e não frequentavam o Templo e, por isso, eram discriminados. Os judeus nem sequer se dignavam dirigir-lhes a palavra. Ao narrar ao mestre da Lei a parábola do bom samaritano, Jesus estava a dizer-lhe que diante de Deus não importam títulos, cargos, religiões, nacionalidades; a única coisa que importa é usar de misericórdia com os caídos que encontrarmos pelo nosso caminho! 480 16º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O povo da Bíblia, nas suas origens, era um povo nômade que circulava pelo deserto em busca de água e relva para desalterar e alimentar o seu rebanho. Ora armava a sua tenda e descansava, ora a desarmava e seguia o seu caminho. Dentro desse contexto, a hospitalidade era fundamental. Como recusar um visitante inesperado se amanhã serei eu a bater à sua porta? A hospitalidade é uma virtude bíblica e a visita é a sua contrapartida. Visita, na Bíblia, se diz visitação e as mais conhecidas são, no Primeiro Testamento a de Javé, acompanhado de dois anjos, narrada na primeira leitura de hoje, e, no Segundo Testamento, a visitação de Maria à sua prima Santa Isabel, futura mãe de João Batista. No evangelho de hoje lembramos a visitação de Jesus às suas amigas Marta e Maria, irmãs de Lázaro, que ele ainda haveria de ressuscitar. A respeito do Senhor, elas continuam até hoje. São João evangelista nos diz, em uma de suas cartas e no Apocalipse, que o Senhor está sempre à nossa porta e bate. Se o atendermos Ele entrará e ceará conosco e nós com Ele. Ele nos visita e nós O hospedamos. Não estamos sós. 481 2. Livro do Gênesis 18, 1-10 Abraão, o arameu errante, era um homem do deserto e, como tal, um coração hospitaleiro, capaz de acolher generosamente os que lhe batiam à porta, mesmo porque, segundo a tradição, o passante poderia ser o próprio Javé. E foi assim que Abraão o recebeu: “Meu Senhor, se ganhei tua amizade, peço-te que não prossigas viagem sem parar junto a mim, seu servo”. E Abraão os recebeu generosamente com tudo que tinha de melhor: a melhor água, a melhor sombra, a melhor farinha, o melhor leite e o melhor bezerro. A visita de um verdadeiro amigo nunca é uma só, ela se repete. Eles voltarão, no ano seguinte, para conhecer Isaac, o filho da promessa! 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 1, 24-28 Isaac foi o filho da promessa e da sua descendência surgiu um povo mais numeroso do que as areias da praia e as estrelas do céu. Paulo de Tarso era uma das estrelas desse céu. Quando, no caminho de Damasco, foi visitado exatamente por aquele que ele perseguia, Paulo acolheu-o bem e tomou o rumo que o seu visitante indicava: “A ele eu sirvo, exercendo o cargo que Deus me confiou de vos transmitir a palavra de Deus em sua plenitude”. O que aconteceu para Paulo, que Deus escolhera como o seu vaso de eleição, embora em outra escala, também acontece com cada um de nós. Basta olhar para o nosso entorno pessoal ou profissional para perceber a que missão nos convida aquele que nos visita todos os domingos, quando nos reunimos para ouvir a palavra e partir o pão. 482 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 10, 38-42 Há muitas maneiras de se receber uma visita, podemos valorizar ou relativizar a formalidade, podemos banalizar o encontro, ou fazer dele um verdadeiro encontro de amigos. Marta e Maria vivenciaram de modo distinto a visitação do amigo Jesus. Enquanto Marta se atarefava e quase não dava conta do recado, Maria escutava a sua palavra. Escutar a palavra, no seu significado bíblico, significava deixar-se transformar por ela. O que era visita para Marta, se fazia Visitação para Maria. Podia-se esperar que Jesus viesse em socorro de Marta e repreendesse Maria, aparentemente ociosa, mas Jesus faz exatamente o contrário. Ele aprova o comportamento de Maria e faz restrições ao de Marta: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada.” Que parte é essa? Tentemos responder a essa pergunta! 483 17º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Todas as leituras de hoje nos levam a refletir sobre os limites da condição humana. Quanto aos limites físicos que se impõem pelas enfermidades e pelo avanço da idade, vamos deixá-los de lado. Vamos deter-nos em nossos limites morais. Ao mesmo tempo em que nos sentimos moralmente responsáveis pelos nossos atos perante Deus, perante a sociedade e, mais do que tudo, perante nós mesmos, também nos sentimos inclinados a romper os nossos compromissos morais por um amor desregrado ao prazer, ao dinheiro e ao poder. Desde que o homem é homem, desde que a mulher é mulher, é esse o grande drama humano. Trata-se de um drama e não de uma tragédia, porque esse enredo tem solução. Vemos, pela leitura de hoje que a solução não depende do homem. Só depende, basicamente da misericórdia de Deus e do nosso empenho, como expressão da nossa liberdade interior, sem a qual o poder de Deus se faz impotente. 2. Livro do Gênesis 18, 20-32 Sodoma e Gomorra são cidades símbolo do pecado, que pode não ser parte da história real e oficial de um povo, mas, com certeza é parte da História da humanidade em geral. O homem é pecador e esse pecado já destruiu não só duas cidades, mas muitas nações e mesmo muitos impérios. Quem tem hoje 80 anos, um pouco mais ou mesmo menos, já assistiu à derrocada de impérios e nações, sem contar Nagazaki e Hiroshima. E nem por isso o mundo se acabou. Ao contrário, apesar dos pesares, a humanidade avança e os índices de desenvolvimento 484 social demonstram que, como um todo, a qualidade de vida da humanidade melhora, embora não esteja livre de grandes riscos. O diálogo insistente de Abraão e o Senhor nos diz que, enquanto houver entre nós alguns justos, os pecadores serão poupados. Ou seja, a misericórdia de Deus é maior do que a sua justiça. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 2, 12-14 De acordo com a nossa fé bíblica, confirmada pela experiência humana de Jesus, o que distingue Deus criador das suas criaturas, inclusive de nós mesmos, é que Deus é eterno e nós somos mortais por natureza. Mas, por outro lado, o que já se esperava no Primeiro Testamento foi confirmado no Segundo: “vós estáveis mortos por causa dos vossos pecados... até que Deus nos trouxe para a vida junto com Cristo e a todos nós perdoou os pecados.” Esta é a diferença entre nós, cristãos, e os ateus: nós acreditamos que Deus nos resgatará de nossos pecados e da nossa destruição eterna e eles não! 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 11, 1-13 Antes de falarmos da importância do Pai Nosso como oração fundamental, vamos comentar o vers. 9: “... quem pede, recebe; quem procura, encontra; e para quem bate se abrirá”. Se a experiência corriqueira nos faz ver que a interpretação óbvia não pode ser a verdadeira, já que muitas vezes procuramos sem nada encontrar e pedimos sem nada receber, qual seria a verdadeira interpretação? A interpretação certa está no vers.13: “o Pai do céu dará o Espírito Santo aos que pedirem”. Em outras palavras, o que devemos pedir, seja para nós, ou para os nossos irmãos, não é nem cura, nem dinheiro, nem uma vida mais longa – só Deus sabe o que é melhor para nós, humanos. Devemos pedir o Espírito Santo, ou seja, fazer a Vontade sempre benfazeja e 485 amorosa de Deus! A importância da oração que o Senhor nos ensinou e que rezamos juntos, depois de ouvir a Palavra e antes de partir o pão, é que ela nos coloca inteiramente nas mãos de um Deus que é Pai amoroso, que nos dá o pão de cada dia, perdoa os nossos pecados e nos faz perdoar os nossos irmãos! 486 18º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Aparentemente desconexas, se olhadas com mais atenção, as leituras de hoje se completam por oposição e nos ensinam a descobrir o sentido da vida. Onde o Eclesiastes vê um grande vazio: “Vaidade das vaidades tudo é vaidade”; o apóstolo Paulo, pelo contrário, vê a plenitude: “Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vos aparecereis também com ele, revestidos de glória”. No evangelho deste domingo Jesus nos conta a história pífia de um rico fazendeiro, cuja terra produziu uma grande colheita que lhe fugiu das mãos quando ele menos esperava. O Eclesiastes morria de tédio porque ele não conseguia ver, com os seus olhos carnais, a belíssima paisagem que se estendia para além da linha do horizonte. O fazendeiro rico morreu antes de desfrutar os frutos da sua ambição. Paulo, ao contrário, que aspirou as coisas do alto e não as de baixo, ressuscitou com Cristo. 2. Livro do Eclesiastes 1, 2; 2.21-23 O desencanto do Eclesiastes “Vaidade das vaidades, vaidade das vaidades, tudo é vaidade” causa estranheza no leitor da Bíblia, que busca na Palavra de Deus a chama da esperança. Como explicá-lo? O leitor informado sabe que até o III sec. a.C., a crença na vida após a morte era muito obscura em Israel. Tudo girava em torno da vida, deste o nascimento até a morte. Daí a importância de uma vida longa e de uma des487 cendência numerosa, tão numerosa como os grãos de areia na praia e as estrelas no céu. Depois da morte, acreditava-se no “scheol”, uma espécie de limbo em que os mortos vegetavam e agonizavam, onde não podiam cantar salmos ao Senhor. Diante de uma perspectiva tão inóspita não é de admirar o desencanto do Eclesiaste. Foi somente no sec. III a.C., ao tempo dos Macabeus, que começaram a surgir as primeiras expressões de fé numa sobrevida plena e feliz. O ateísmo moderno volta a conviver com uma esperança impossível. 3. Carta de São Paulo aos Colossenses 3, 1-5.9-11 No extremo oposto do Eclesiastes temos a figura do Apóstolo Paulo, o apóstolo da ressurreição do Senhor e da nossa ressurreição. Paulo estabeleceu um nexo vital entre a nossa ressurreição e a ressurreição do Senhor. Se o Senhor ressuscitou, nós também ressuscitamos! Se o Senhor não ressuscitou a nossa fé é vã. E Paulo nos lembra, no texto de hoje, que a crença na ressurreição nos deve levar a cultivar os valores eternos e não os terrenos: “fazei morrer o que em vós pertence à Terra: imoralidade, impureza, paixões, maus desejos e a cobiça que é idolatria.” A ressurreição, a qual todo homem se destina, a todos os homens faz irmãos. “Aí não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto e selvagem e escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos”. Para Paulo, portanto, nem tudo é vaidade, muito pelo contrário. 488 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 12, 13-21 O evangelho de hoje vem confirmar que conforme nos diz o Eclesiastes, tudo pode tornar-se vaidade, embora não o seja. Todas as vezes que absolutizamos o que é relativo, nós caímos no vazio. O homem tem uma dimensão carnal evidente que não pode ser esquecida, não só, mas principalmente, quando se tratar da carne do outro: “Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos, a mim o fareis”. Essa dimensão carnal para o homem moderno, que já não é mais homo faber, mas homo oeconomicus, tende a tornar-se a única dimensão importante. Tudo, então, é vaidade, se desprezarmos o que permanece e valorizarmos o provisório: “Mas Deus lhe disse: louco! Ainda esta noite pedirão de volta a tua vida”. 489 19º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Nos manuais de Teologia, as virtudes cristãs são estudadas esquematicamente. As virtudes teologais – fé, esperança e caridade – são estudadas uma a uma em oposição às virtudes morais – justiça, prudência, temperança e fortaleza. As leituras de hoje envolvem todas essas virtudes sem, contudo, isolá-las uma das outras. Tanto o livro da Sabedoria, como o autor da carta aos hebreus e Lucas, no seu evangelho, nos pedem que a vivamos solidariamente. A primeira leitura nos lembra a libertação do povo da escravidão do Egito, obra da misericórdia de Deus e de uma fé nutrida de esperança. A segunda leitura nos fala, no mesmo sentido de Abraão, Sara e seus descendentes. Jesus, no evangelho de Lucas, oferece ao pequeno rebanho o Reino de Deus, mas o estimula a receber o reino com um coração de pobre e os rins cingidos. 2. Livro da Sabedoria 18, 6-9 O livro da Sabedoria é, ao que tudo indica, do ponto de vista cronológico, o último livro do Primeiro Testamento. Foi escrito em grego por alguém que era membro da comunidade judaica de Alexandria, no Egito, que formava com Atenas, na Grécia, e Antioquia, na Síria, uma das três capitais da cultura grega na Antiguidade. Imerso numa cultura pagã, o sábio relembra a experiência sofrida e vitoriosa do povo eleito no Egito: a escravidão vencida, a passagem pelo Mar Vermelho a 490 pé enxuto, conduzida por Moisés pela mão de Javé, que não só acreditou no braço forte de Javé, mas lutou corajosamente. O sábio, ao mesmo tempo em que relembra o passado, o vê com uma promessa para o futuro da sua frágil comunidade judaica de Alexandria. 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 11, 1-2.8-19 A carta aos hebreus, dirigida a cristãos vindos do judaísmo, brota de um coração que, ao mesmo tempo em que crê, espera no Senhor e se empenha. Diz ele: “Irmãos, a fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca da realidade que não se vê”. Falando de Abraão, o pai de todos os crentes, ele não fala de uma pessoa passiva, mas de alguém que responde plenamente a um chamado: “Foi pela fé que Abraão residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas com Isaac e Jacó, os co-herdeiros da mesma promessa”. Assim como a fé, nutrida de esperança, motivou o empenho de Abraão a deixar a sua terra e, correndo todos os perigos, fundar uma nova nação baseada no direito e na justiça, também nós devemos imitá-lo, confiantes na graça de um Deus que nos amou primeiro. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 12, 32-48 O evangelho de hoje, relativamente longo, pode ser dividido em três partes. Na primeira, Jesus nos estimula a acolher o reino: “não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino... fazei bolsas que não se estraguem... porque onde está o vosso tesouro aí estará também o vosso coração”. 491 Na segunda parte, de acordo com o que já dissemos antes, não basta acreditar, é preciso também agir coerentemente com o que acreditamos: “que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas”. Por último, o evangelho nos chama à responsabilidade e à vigilância “mormente àqueles que respondem pela comunidade.” Lembremo-nos que todos nós, adultos, somos, de alguma maneira, responsáveis pela comunidade a qual pertencemos! 492 20º Domingo do Tempo Comum e Assunção de Nossa Senhora 1. Introdução No dia 15 de agosto, ou no domingo mais próximo dessa data, a Igreja celebra a festa solene da Assunção de Maria aos céus. Maria, filha de Ana e Joaquim e mãe de Jesus, o Filho de Deus, foi assumida pelo Pai, em corpo e alma, ou seja, sem perder a sua identidade pessoal. A mesma Maria que gerou Jesus na terra foi acolhida pelo Pai nos céus, como vanguarda dos filhos de Deus, como primícia do Gênero humano. A Maria seguirão todos os filhos de Deus. Assim o cremos em nossa fé que, como diz o autor da Carta do hebreus: “a fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem.” Por isso mesmo não nos é possível, pela razão humana, saber como se deu a assunção a Maria em corpo e alma. Não temos conceitos, nem palavras, capazes de explicar esse mistério que transcende a nossa humana razão. 2. Livro do Apocalipse 11, 19a; 12, 1-3-6a.101b A aparição no céu de uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de doze estrelas é um dos cenários mais fulgurantes do Apocalipse. Esse cenário sempre recebeu dos exegetas pelo menos duas interpretações. A primeira o concebe como símbolo da Igreja, a comunidade cristã em luta com o dragão cor de fogo, que quer devorá-la. 493 A segunda interpretação vê nessa mesma mulher a imagem de Maria, mãe de Jesus, que como uma nova Eva, ao invés de confabular com a serpente tentadora, esmaga-lhe a cabeça com os pés. O pano de fundo cultural dessa visão apocalíptica é o conceito de um mundo como palco de uma luta entre o bem e o mal. O dragão cor de fogo é o princípio do mal e a mulher, vestida de sol, é o princípio do bem, que deu à luz um filho de homem – Jesus – que veio para governar todas as nações com cetro de ferro. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Corintios 15, 20-27 São Paulo, como já vimos tantas vezes, é o grande apóstolo da ressurreição, primeiro do Senhor e, como consequência dela, da nossa ressurreição. Diz Paulo, em outra parte, que, sem a ressurreição de Jesus, a nossa fé seria vã, porque nós também não ressuscitaríamos e tudo terminaria na escuridão de um túmulo. A escolha dessa passagem de Paulo para a festa da Assunção de Maria é óbvia, porque a Assunção de Maria não é nada menos do que a ressurreição de Maria. A mesma Maria que esteve aos pés da cruz do Senhor, após a sua morte (ou, como belamente se diz, após a dormição de Maria) foi assumida pelo Pai com a sublime missão de preparar para nós um lugar entre os eleitos Dele. 494 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 1, 39-56 Esses versículos do evangelho de Lucas são os mais densamente mariais do Segundo Testamento ao lado do evangelho da Anunciação. Na primeira parte temos a narrativa da viagem de Maria da Galileia para a Judeia para visitar a sua prima Isabel, já entrada em anos, mas, pela graça de Deus, grávida de João Batista. Trata-se de um gesto perfeitamente adequado para a vocação de Maria: ajudar o próximo, visitar os necessitados. A assunção de Maria aos céus, ao mesmo tempo em que a liberta do constrangimento do tempo e do espaço, a faz mais próxima de todos nós, para visitar-nos com o mesmo empenho com que visitou sua prima Isabel. A segunda parte do evangelho de hoje nos traz o hino marial por excelência, que é o Magnificat, impossível de comentar numa homilia – tal é a sua riqueza – mas fácil de ser recitado em forma de oração. 495 21º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A História da Salvação se desenvolve até hoje numa linha de progressiva continuidade, mas ela apresenta, ao longo de sua trajetória, momentos de graça muito especiais, que marcam para melhor a caminhada da nossa humanidade. Entre esses momentos, temos a pregação de Isaías, que nos revela que o Deus de Israel não é um Deus de um só povo, mas é o único Deus de todos os povos. O autor da carta aos Hebreus nos mostra, não a caminhada de toda a humanidade, mas sim a caminhada de cada homem e de cada mulher em particular. No evangelho de Lucas aborda-se o inquietante problema, formulado na angustiante pergunta: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” O livro do Apocalipse de João nos fala de miríades de milhões que rodeiam o Trono do Cordeiro. 2. Livro do Profeta Isaías 66, 18-21 A essência da mensagem de Isaías está no versículo 19: “Porei no meio deles um sinal e enviarei dentre os que foram salvos, mensageiros para os povos de Tarsis, Fut, Lud, Mosoc, Ros, Tubale Java, para as terras distantes e para aquelas que nunca ouviram falar em mim e não viram a minha glória.” O que importa nesse anúncio não é o aspecto quantitativo, mas qualitativo. O Deus verdadeiro, por ser Deus verdadeiro, só pode 496 ser único, por um lado e, por outro, os povos que o adoram merecem dele a mesma consideração e, mais do que isso, o mesmo amor. Desde Isaías, Israel percebe que não é apenas um povo escolhido, mas, por vocação, deve ser um povo testemunho. A sua vocação não era um privilégio, mas uma missão. A missão de anunciar que o Deus de Israel é o Deus de todos os homens, irmãos entre si. Isaías pavimenta o caminho de Paulo, que vai proclamar, com todas as letras, o fim de todos os preconceitos: “Já não se distinguem judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, pois em Cristo Jesus sois todos um só.” 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 12, 5-7, 11-13 Esse processo de amadurecimento dos povos que ocorre no plano da salvação da humanidade, como um todo, também ocorre no plano de cada pessoa em particular. O autor da carta diz aos seus leitores, em particular: “Meu filho, não despreze a educação do Senhor, não desanimes quando ele te repreende: pois o senhor corrige quem ele ama e castiga a quem aceita como filho.” O que está em jogo nessa leitura é o conceito ou a virtude da docilidade, que nada tem a ver com doçura, mas com a capacidade de aprender. Dócil é aquele que quer aprender, que sente prazer em aprender e docente é aquele que quer ensinar, que gosta de ensinar. 497 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, 13, 22-30 Não é de hoje que os homens se preocupam com o seu destino eterno. Já no tempo de Jesus, alguém que o viu passar, lhe perguntou: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” Jesus não deu uma resposta cabal, mas deixou entender que o destino de cada um é fruto do seu desempenho na terra, por um lado e, por outro, as regras do jogo favorecem os humildes e não os orgulhosos. Quando falamos sobre o nosso destino eterno, ocorre-nos, sempre, o medo ou o pavor do Inferno que, desde a infância, queima a nossa imaginação. Diante desse imaginário aterrorizante, devemos dosá-lo sempre com a certeza de que Deus nunca foi, não é e não será nunca um torturador, e sim alguém – como nos dizem os salmos – que é clemente e misericordioso. Em vez de temermos a justiça inflexível de Deus, deixemo-nos seduzir ou converter pela sua infinita misericórdia. 498 22º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Há duas vertentes nas Sagradas Escrituras que se cruzam e, ao mesmo tempo, se completam. A mais notória é a tendência profética com que alguns homens se sentem forçados a levantar a voz contra os idólatras que mancham a aliança do povo com Javé e, também, contra os ricos e poderosos que oprimem os pobres. A segunda grande tendência é a dos sábios que ensinam o povo a viver baseado na sabedoria gerada dentro dos lares, ao longo dos séculos: como educar os filhos, como obedecer aos mandamentos da lei, como seguir a tradição e honrá-la através de um bom comportamento, como se preparar para enfrentar as surpresas do futuro. 2. Livro do Eclesiástico 3.19-21.30-31 Nessa primeira leitura da liturgia de hoje, contrariando aquele que aposta na arrogância, o sábio aconselha o leitor a optar pela mansidão e pela humildade: “Filho realiza teus trabalhos com mansidão e serás amado mais que o homem grandioso. Na medida em que fores grande deverás praticar a humildade e assim acharás graça diante do Senhor”. Estas palavras do sábio encontram eco no discurso de Jesus, como podemos ver em: “Vinde a mim, vós que andais cansados e curvados e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo e aprendei de mim que sou manso e humilde e vos sentireis aliviados”. Um reparo, todavia: hoje em dia fala-se muito da auto-estima, que deve sempre ser preservada 499 e isso é verdade. Mas também é verdade que auto-estima nada tem a ver com a arrogância, mas, sim, com a consciência clara dos nossos próprios limites, como, aliás, Santo Tomás, em alguma parte da sua obra, assim definiu a virtude da humildade. 3. Carta de São Paulo aos Hebreus 12, 18-19.22.24a O autor da carta dessa segunda leitura, dirige-se a judeus convertidos ao evangelho de Jesus que conheciam os relatos retumbantes das aparições de Javé entre relâmpagos e trovões, no Sinai, a um povo maravilhoso e, até certo ponto, aterrorizado. Diante disso, o autor da carta sugere uma mudança de tom com Jesus, que é o novo mediador. A sua presença modifica o relacionamento do homem com Deus, que assume a figura humana em Jesus, o mediador da nova Aliança. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 14, 1.7-14 No evangelho de hoje, Jesus não aparece como o maior dos profetas, mas com o sábio dos sábios, que tenta desmistificar a falsa sabedoria dos fariseus. Estes se diziam grandes conhecedores da Bíblia, mas não tinham bebido na fonte a sabedoria que elas destilam: “Aconteceu, num dia de sábado, que Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus... Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares”. A ânsia pelos primeiros lugares é um dos sinais mais evidentes da insensatez humana e é a causa de muitas desavenças entre os humanos e de 500 guerras entre as nações. Um dos aspectos mais importantes do ensinamento de Jesus aos seus discípulos, que custou para ser assimilado, era este: No Reino de Deus, ou seja, no novo mundo que eu venho anunciar, aquele que quiser ser o primeiro, seja o último e o servo de todos. Os evangelhos nos contam que Jesus, pouco antes de chegar a Jerusalém, ao ouvir mal uma conversa entre seus discípulos, perguntou-lhes sobre o que estavam conversando. Os discípulos não responderam à sua indagação porque eles estavam discutindo sobre quem seria o maior no Reino de Deus! O mundo tão competitivo em que vivemos não nos leva também a fazer a mesma discussão? 501 23º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As três leituras de hoje, à primeira vista, abordam problemas distintos que, no entanto, têm um denominador comum que não poderia ser outro: o amor. Da primeira até a terceira, passando pela segunda, esse “amor” vai assumindo um rosto mais concreto. O livro da Sabedoria faz as perguntas fundamentais: quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos? E o sábio responde sabiamente a essas perguntas, não brandindo argumentos racionais, mas, sem ofender a razão, apela para o Espírito que ele sente latejar dentro de si. Na carta a Filêmon, Paulo, ao recomendar ao seu amigo que receba o seu ex-escravo Onésimo, como um irmão e não como um escravo, anuncia um homem novo, transfigurado pelo amor. O evangelho nos fala da cruz, não de qualquer cruz, mas da cruz de Jesus Cristo, que por ele foi assumida por amor e exclusivamente por amor. 2. Livro da Sabedoria 9, 13-18 Desde que o homem é homem ele se pergunta “Qual é o homem que pode conhecer o desígnio de Deus?” Antes de fazer essa pergunta ele já se questionava: “Deus existe? E se existe, quem é Ele?” Até hoje, e isso lemos frequentemente na grande mídia, grandes nomes das ciências ou da filosofia afirmam ou negam a existência de Deus. Quanto a nós, cristãos, dentro da tradição bíblica, acreditamos – e a isso chamamos “fé” – que Deus se comunica conosco e se nos revela como criador, pai, 502 salvador e amigo. As Sagradas Escrituras, a primeira e a segunda, registram nestes três últimos milênios, essa experiência de fé. E o que é fé? Sem usar uma terminologia teológica, podemos dizer que a fé é uma certeza subjetiva de que Deus, nosso Pai, se comunica conosco através dos sábios e profetas do Primeiro Testamento e, de modo definitivo, em Jesus Cristo, que está sempre ao nosso lado como Palavra, como Pão e companheiro, ou seja, aquele que conosco come do mesmo pão. 3. Carta de São Paulo a Filêmon 9b-10.12-17 Em sua carta a Filêmon, Paulo, que o convertera no Evangelho, tenta convencê-lo a receber o seu antigo escravo fugido, não como escravo arrependido, mas como irmão. Para entender o alcance do pedido de Paulo, é preciso lembrar que esses tempos eram tempos escravistas, em que o senhor tinha todos os direitos sobre o escravo, inclusive o de vida e de morte. Desde a conversão, Paulo não podia tomar outra posição, ainda que corresse o risco de ser condenado por ignorar os direitos legais dos senhores de escravo. Não podia porque, desde Jesus, que morreu numa cruz – suplício de bandidos e de escravos – não há mais nem senhores, nem escravos, mas são todos para sempre iguais em Jesus Cristo. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 14, 25-33 Jesus, consciente da sua vocação messiânica, sabia que não bastava anunciar a proximidade do reino de Deus às multidões. Era preciso formar discípulos que o substituíssem na pregação do evangelho às futuras gerações. Mas Jesus, desde o início da 503 sua pregação, percebera que, se de um lado, a sua pregação agradava aos pobres, aos enfermos e, aos assim chamados, pecadores, de outro lado e, com a mesma intensidade, desagradava aos herodianos, sumos sacerdotes, saduceus e fariseus. Diante disso, não porque visse no sofrimento em si mesmo algum valor, mas para prevení-los contra o preço que teriam de pagar, dizia aos seus discípulos: “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim não pode ser nem discípulo”. 504 24º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Todas as leituras de hoje nos levam, diretamente, ao núcleo central de toda a revelação bíblica: Deus existe e, mais ainda, esse Deus que existe é amor e, quando necessário, se faz perdão. Esse Deus não é uma entidade etérea, não é uma energia difusa, não é o cosmo. Esse Deus é uma pessoa, tem um ego: Ele, embora infinitamente maior do que nós, dialoga conosco, como dialogou com Moisés, e com Paulo – convertendo-o da dureza de seu coração. Como o Pai misericordioso da parábola, dialogou com seus dois filhos – o pródigo e o enciumado – e dialoga ou dialogará conosco, se assim o desejarmos. As leituras de hoje iluminam o que há de mais profundo e precioso na nossa fé, que herdamos de nossos pais e que somos chamados a conservar, aprofundar e legar aos nosso filhos e filhas. 2. Livro do Êxodo 32, 7-11.13-14 Com certeza, esse conhecidíssimo episódio narrado no livro de Êxodo não é, como tal, histórico, mas sim uma metáfora ou uma parábola. E é bom que assim o seja e que assim seja entendido e assimilado porque, como parábola, não esgotará jamais o seu prazo de validade. Ele é atualíssimo até hoje. Não é verdade que, na nossa cultura pós-moderna, a economia e, mais concretamente, o dinheiro, real ou virtual, estão ocupando o lugar de um ídolo, um bezerro de ouro, um novo deus? É claro que a nossa condição carnal obriga-nos a cuidar de nossos bens mate505 riais, mas é bom lembrar que, se Deus nos criou à sua imagem e semelhança, é para que nós não criemos outro deus à nossa imagem e semelhança. 3. Primeira Carta de São Paulo a Timóteo 1, 12-17 Paulo escreve a Timóteo, filho de mãe judia e pai pagão, discípulo de Paulo e seu substituto nas comunidades. Nessa carta percebe-se que Paulo percorreu o caminho oposto ao de Israel no deserto: ele abandonou um ídolo e aderiu ao verdadeiro Deus, ao Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, alguém que ele perseguira com ferocidade. O Deus que Paulo adorava, dentro da tradição farisaica, haverá adquirido os traços rígidos de um Deus legalista e farisaico e Paulo, ao ser desafiado por Jesus Cristo no caminho de Damasco, converteu-se ao verdadeiro Deus, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e Pai de todos nós, que enviou o seu Filho Único salvar a todos nós. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 15,1-32 O evangelho de hoje é conhecido como a parábola do Filho Pródigo, com certeza pela importância que essa personagem tem nessa página do Evangelho de Lucas. Mas, melhor teria sido se ela fosse lembrada como a Parábola do Pai misericordioso. Durante quase 2000 anos os patriarcas, os sábios e os profetas tentaram desvelar o rosto de Deus ao povo escolhido, para que ele pudesse dar testemunho desse Deus verdadeiro, tão distinto dos ídolos das nações pagãs, ao mundo todo. Desde Isaías II, quando o Templo já tinha sido destruído e o povo estava exilado na Babilônia, Javé passou a ser adorado no recesso dos lares. 506 Juntos, pai, mãe e filhos rezavam unidos em família. Dentro desse contexto, Javé assumira, perante os filhos, um rosto paterno e materno. Como Filho de Deus, Jesus apropriou-se dessa tradição e chamava a Deus, Abba, Pai. Todos os deuses que não tiverem o rosto do Pai, são ídolos e não deuses! 507 25º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Há algumas décadas, um monge beneditino norte-americano, Thomas Merton, escreveu um livro, belo pelo seu conteúdo e pelo título, “Homem algum é uma ilha”. Na verdade, somos todos seres solidários, éticos que vivemos sob o juízo de Deus, nosso criador e Pai, sob o juízo da nossa consciência pessoal e, também, do nosso próximo, seja como indivíduo seja como sociedade. Esses três juízes, Deus, a nossa consciência e a sociedade, não são autônomos e independentes entre si, mas mutuamente convergentes. Em que pese essa convergência, as leituras de hoje insistem mais no desafio moral que cobra, às nossas consciências, a nossa inserção na sociedade. Desde sempre e em todos os contextos sociais, o homem foi tentado a tirar todo o proveito da sociedade em que está imerso. As leituras de hoje, todas elas, nos estimulam a fazer exatamente o contrário, ou seja, trabalhar para a sociedade como um todo, ainda que ao preço de algumas vantagens pessoais. 2. Livro do Profeta Amós 8, 4-7 A bandeira dos profetas sempre foi dupla, primeiro, em defesa dos direitos de Javé, o verdadeiro Deus a quem competirá o verdadeiro culto de adoração e ação de graças. Em segundo lugar, mas não com menor ênfase, o direito dos pobres. O despre- 508 zo do pobre implica no desprezo de Deus. O que era verdade no passado continua e, com maior força ainda, no presente, depois de Jesus, que se identificou com o pobre, com o enfermo, com o prisioneiro, com o faminto e o sedento. Amós coloca na boca de Javé estas palavras contundentes: “Nunca mais esquecerei o que eles fizeram.” Javé não se esquecerá do que fizeram contra os pobres, pois tudo que fizeram contra os pobres foi contra Ele. O mesmo dirá Jesus ao contar, no evangelho de Mateus, a parábola do juízo final: tudo que fizerdes ao menor dos meus irmãos, a mim o fareis. 3. Carta de São Paulo a Timóteo 2, 1-8 Timóteo, jovem convertido do judaísmo por Paulo, foi colaborador dele e seu substituto durante as suas viagens, prisões e enfermidades. Embora Timóteo tivesse responsabilidade apenas pela comunidade cristã sob sua guarda, Paulo lembrava-o de que a sua pequena comunidade não era uma ilha dentro da sociedade pagã, mas era uma parte dela e, com ela, deveria solidarizar-se. O bem da sociedade, como um todo, era mais importante do que o bem da sociedade cristã isoladamente; daí a necessidade de orar por ela como um todo, inclusive pelas autoridades civis, ainda que pagãs. O bem social é uma grandeza que vale por si mesmo e, para o bem de todos, não é bom confundir o religioso com o bem comum da sociedade. 509 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 16, 1-13 Na parábola de hoje, o administrador infiel, vale-se de uma conduta imoral para amenizar a sua situação, após perder o emprego por causa de sua péssima administração: reduzir a dívida dos devedores para obter favores no futuro. Apesar da desonestidade, Jesus parece aplaudir a sua conduta: “E o Senhor elogiou o administrador desonesto porque ele agiu com esperteza”. Queria dizer, Jesus, que os fins justificam os meios? Certamente não, porque contraria tudo o que Jesus ensinou ao longo de seu ministério. Jesus jamais usou ardil algum para evitar a sua crucificação e morte, ao contrário, sustentou a sua palavra até o fim. O que a parábola do mau administrador quer nos ensinar está na parte final do versículo 8: “Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos que os filhos da luz.” Em outras palavras, critica os seus seguidores, por serem mais lentos e menos criativos do que seus adversários, pois é mais fácil servir ao dinheiro do que a Deus! 510 26º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução O Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo não é um Deus fechado em si mesmo, mas é um Deus que se comunica com seus filhos e faz deles os seus colaboradores na obra da salvação. É, portanto, um Deus que dialoga com os homens, não só dialoga, mas tem a iniciativa desse diálogo. Esse diálogo se reinicia a cada geração, através das Escrituras Sagradas, a Bíblia, cujo dia festivo estamos celebrando hoje. Esse diálogo entre Deus e os homens encontra-se consubstanciado na Bíblia, que registra a experiência religiosa dos sábios e dos profetas do Antigo Testamento e dos apóstolos, evangelistas e seguidores de Jesus das primeiras comunidades cristãs. Esses textos que nasceram da realidade vivida no passado iluminam a nossa realidade hoje, a qual, por sua vez, ajuda-nos a entender a Bíblia. O tema central das leituras de hoje é a misericórdia para com os pobres da terra, vista como a pedra de toque do verdadeiro amor a Deus, da verdadeira religião. 2. Livro do Profeta Amós 6, 1a.4-7 Amós, classificado entre os pequenos profetas em função da exiguidade do seu texto – apenas nove capítulos – é uma das vozes proféticas mais eloquentes do Antigo Testamento. “Ai dos que vivem despreocupadamente em Sião, os que se sentem seguros nas alturas da Samaria”, “Por isso, eles irão agora para 511 o desterro, na primeira fila, e o bando de gozadores será desfeito.” O profeta Amós viveu num tempo de prosperidade econômica e, como acontece muitas vezes nesses tempos acirra-se a desigualdade social. Enquanto, de um lado, a elite se regozija no consumo exagerado, a massa dos assalariados vive sob o jugo da miséria. Para o profeta, de nada valeria a pertença ao povo de Deus, se não se restabelecesse a justiça, pois o direito dos pobres é tão importante quanto o direito de Deus. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 15, 19-31 A parábola do rico Epulião e do pobre Lázaro, junto com a do filho pródigo e do juízo final, no evangelho de Mateus, podem ser considerados como o núcleo duro do evangelho. Se Deus se mostra infinitamente misericordioso na parábola do filho pródigo, também se mostra, na parábola de hoje, um defensor radical do pobre, contra a insensibilidade dos ricos. Nós não sabemos o que levou Lázaro a tamanha pobreza, se foi a preguiça, o despreparo ou a falta de oportunidade, pela doença. A parábola apenas nos diz que ele era muito pobre, chagado e faminto e por isso era digno de misericórdia. Perante o pobre, não devemos ser juízes, pois Lázaro não foi julgado, mas premiado na eternidade para compensar os seus sofrimentos na terra. Oxalá pudéssemos, também nós, ao depararmos com irmãos caídos na beira da estrada, jamais julgá-los com severidade, mas tratá-los com carinho e misericórdia. Oxalá também pudéssemos fazer tudo ao nosso alcance para evitar que um dos nossos irmãos caia na beira da estrada. 512 4. Carta de São Paulo a Timóteo 6, 11-16 São Paulo era alguém que se caracterizava pela sua coerência, vivia de acordo com aquilo em que acreditava. Por isso, dizia ao jovem Timóteo, que convertera à fé cristã: “combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e pela qual fizeste sua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas”. Embora não vivamos tempos de perseguição, a metáfora do combate ainda é adequada. Temos de combater a nossa inércia e a nossa indiferença em construir um mundo mais justo e mais misericordioso. 513 27º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As palavras de Paulo ao seu discípulo Timóteo apontam para o núcleo da mensagem que atravessa as três leituras de hoje: “Caríssimo exorto-te a reavivar a chama do dom de Deus... pois Deus não nos deu um espírito de covardia, mas de fortaleza. De amor e sobriedade.” Muitos outros trechos das escrituras nos oferecem a vida na terra como um tempo de provação, que exige de nós muita energia para vencê-la. Jó alertava os seus amigos que a vida do homem sobre a terra é uma batalha. No evangelho de Lucas 9,62, diz Jesus: – ‘Quem põe a mão ao arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus”. Mais clara ainda é a fala do anjo do Apocalipse à igreja da Laudiceia: “Conheço as tuas obras, não és nenhum frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente, mas visto que és mesmo, nem frio nem quente, vou te vomitar da minha boca”. O que Deus nos pede é a coragem para lutar, mas, ao mesmo tempo, não nos deixa sós na luta: “Vinde a mim vós que andais e curados e eu vos aliviarei”. 2. Livro do Profeta Habacuc 1, 2-3; 2.2-4 Habacuc viveu no século VII AC, viveu tempos de opressão sobre Israel, tanto da parte da Assíria quanto da Babilônia, tanto ao sul, em Judá, quanto no reino do Norte. Nas suas orações, interpelava Javé: “Por que me fazes ver crimes e me mostras a injustiça, pois diante de mim violências e destruição e a esperança: o ânimo ambicioso malogrará e o ino514 cente, por confiar, viverá”. A oração interpeladora do profeta antecipa a de Jesus no alto da cruz: “Senhor, Senhor, por que me abandonaste?” Nós sabemos que os conflitos e as dificuldades são o nosso lote, em meio à nossa convivência com os homens, e não poderia ser de outro modo porque os bens que buscamos são escassos. A vitória não virá da ambição, nos diz o profeta, mas sim da nossa confiança em Deus. 3. Carta de São Paulo a Timóteo 1, 6-8.13-14 Paulo sabia muito bem que a vida de Timóteo não era um mar de rosas e que, para exercer a função a que fora chamado, deveria vestir-se de grande coragem. Deveria guardar intacto o depósito da fé que lhe fora confiado pelo Espírito Santo. Por um lado, havia os judaizantes que não aceitavam Jesus e o combatiam com violência até o desforço físico e, de outro, os pagãos que zombavam dessa nova fé, tida como insensatez. Diante da adversidade, viesse de onde viesse, Timóteo devia manter a fé e dar testemunho do amor, pedra de toque do evangelho do Senhor. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 17, 5-10 O evangelho de hoje nos garante que a nossa segurança, como seguidores de Jesus, é a nossa fé no poder de Deus, quaisquer que sejam as dificuldades pelas quais passemos. Ainda que a nossa fé seja pequena, como um grão de mostarda, será suficiente para fazer-nos vencer os maiores obstáculos. A parábola do servo que trabalha no campo pode parecer-nos estranha, porque Jesus aparenta aceitar o regime escravo ou de servidão em que o empregado não merece nenhum salário e só pode con515 tar com a sua mera sobrevivência e continuar servindo o patrão. Nós sabemos, por todo o resto do evangelho, que no Reino de Deus ninguém é servo ou escravo de ninguém, mas todos são irmãos. O que então Jesus quis dizer com a frase: “Somos servos inúteis. Fizemos o que deveríamos fazer?” Jesus quis colocar que a grande marca do Pai, do seu amor por nós, é a gratuidade, portanto, o nosso amor também deve ser gratuito. O verdadeiro amor só pode ser gratuito. 516 28º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Como o mês de outubro é o mês das Missões, seria interessante, antes de comentar as leituras da Missa de hoje, refletirmos, juntos, sobre como devemos ver a missão da Igreja hoje, já que todos nós, desde o nosso Batismo e, mais ainda, desde a nossa Confirmação ou Crisma, somos chamados a ser missionários. Ao longo dos séculos, a experiência missionária da Igreja foi vivida diferentemente. Nos primeiros séculos, a missão se exercia através da pregação da palavra, da fração do pão e da partilha dos bens materiais. Com o reconhecimento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, a missão da Igreja se fazia com a ajuda do braço secular. Nos tempos modernos, a difusão do catolicismo se deu paralelamente ao domínio do Ocidente sobre os velhos continentes e os recém descobertos. Essa aliança da Igreja com o poder civil se, de um lado, ajudava a sua expansão, de outro lado, criava ambiguidade e confusão entre política e religião. Hoje, com a separação entre o político e o religioso, a Igreja e a Missão têm a possibilidade de apresentar-se aos nossos contemporâneos numa troca sem ambiguidades. A Missão, hoje, se traduz no diálogo inter-religioso, em que o diálogo sincero já é o inicio da evangelização. Não podemos mais entender evangelização sem diálogo. Isso quer dizer que o cristão não quer apenas evangelizar, mas quer também ser evangelizado. Esse colocar-se em pé de igualdade com o outro é a pedra de toque da missão da 517 Igreja hoje. Só assim ela poderá, não só crescer como Igreja, mas, mais do que isso, tornar mais próximo o Reino de Deus para todos os homens. 2. Segundo Livro dos Reis 5, 14-17 O episódio de cura de Naamã, o sírio, pelo profeta Eliseu, ilustra perfeitamente bem o que dizíamos sobre o diálogo interreligioso. Tanto o militar sírio Naamã deixou de lado a sua força e seu poder, quanto Eliseu deixou de lado o seu orgulho de ser profeta do único e verdadeiro Deus e ambos dialogaram sinceramente entre si e saíram desse dialogo mais perto de Deus. 3. Segunda Carta de São Paulo a Timóteo 2, 8-13 Paulo foi um missionário por excelência. As suas cartas às comunidades e, na liturgia de hoje, a segunda carta a Timóteo, são a prova disso. Paulo, não apenas despejava doutrina sobre os seus seguidores, mas tentava dialogar com eles a partir de sua experiência pessoal, levando em conta as dificuldades vividas pelas comunidades que fundara. Se Paulo estava preso e algemado, a palavra de Deus não podia ser algemada. Paulo não temia as consequências negativas, para ele, das palavras de vida que pronunciava. O diálogo inter-religioso nem sempre é fácil. Então, quando falamos em missão como diálogo, não queremos dizer que estejamos facilitando a missão ao preço da verdade. 518 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 17, 11-19 A atitude de Jesus perante o samaritano, que entre os curados da lepra foi o único que voltou para agradecer, é exemplar para quem deseja ser missionário, através do diálogo inter-religioso. Nós sabemos que a atitude dos judeus em relação aos samaritanos era de arrogância. Os judeus nem sequer dirigiam a palavra aos samaritanos, considerados judeus infiéis, de segunda categoria ou mesmo pagãos. Jesus não leva em conta esses preconceitos e elogia a fé do samaritano, o único a agradecer-lhe a graça recebida. Os samaritanos, considerados hereges pelos judeus, têm a sua fé elogiada por Jesus. Oxalá quando dialogarmos com os não católicos, possamos agir com a mesma grandeza de alma de Jesus. 519 29º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução As leituras de hoje nos remetem ao tema da oração: o livro do Êxodo na figura de Moisés com os braços erguidos até a exaustão, implorando a proteção de Javé pelo seu povo contra os amalecitas; o evangelho de Lucas na figura insistente da viúva que não dá descanso ao juiz entediado; na segunda carta a Timóteo, Paulo nos fala da Palavra de Deus, que é o alimento da nossa oração. Quero chamar a atenção para o fato de que a oração não é nem poderia ser objeto de um dos dez mandamentos. É tão impossível obrigar alguém a rezar como é impossível obrigar alguém a amar, pelo simples fato de que a oração é um ato de amor. Quem ama a Deus reza automaticamente, porque quem ama se comunica, ou seja, dialoga, expressa o seu carinho, o seu amor. Jesus nos previne no evangelho de Mateus: “quando rezardes, não sejais faladores como os pagãos que pensam que a força de palavras serão ouvidos. Não os imiteis, pois vosso Pai sabe do que necessitais antes que o peçais”. 2. Livro do Êxodo 17, 8-13 Mais do que uma narrativa histórica, esse episódio tem um valor simbólico. O povo de Deus tem a proteção de Javé contra os seus inimigos, no caso, os amalecitas, que impediam a entrada de Israel na Terra Prometida. Mas a proteção de Javé não é automática, é fruto de uma parceria que se concretiza através da oração de Moisés, Aarão e Ur. Essa oração é fruto de um 520 grande esforço não só de Moisés, mas também dos seus companheiros. Por aí vemos que se a oração, fruto do amor, nasce espontaneamente do coração, nem por isso deixa de exigir muito esforço interior para ser autêntica e pura. 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 18, 1-8 É ousada a parábola da viúva insistente e do juiz relapso, que só a custo decide fazer justiça, porque nela se ousa comparar a Deus, juiz supremo, com um juiz lento para fazer justiça. Na tradição bíblica, Javé é o defensor dos pobres, do estrangeiro, do menor e da viúva, vítima preferencial dos inescrupulosos por ser mulher e por não ter mais o marido para defendê-la. A tradição dos profetas que, em nome de Deus, defendia o pobre e a viúva foi assumida por Jesus. O evangelista Lucas no seu evangelho exalta o amor preferencial de Jesus pelos pobres, como podemos verificar ao meditarmos sobre as parábolas do pobre Lázaro e do rico Epulão, e do Filho Pródigo, também chamada a parábola do Pai misericordioso. Esse traço marcante do evangelho de Lucas é uma característica essencial da pregação de Jesus e deve ser uma preocupação pessoal nossa, se quisermos ser verdadeiros discípulos de Jesus. Francisco de Assis, padroeiro da nossa paróquia e desta nossa bela capela, deve ser um exemplo para nós. Na nossa tradição cultural, os ricos conseguem advogados que os defendam de tudo, até do indefensável, e os pobres, ao contrário, ninguém os defende. É esse um sinal evidente de que o Reino de Deus ainda não chegou até nós. Em nossas orações peçamos insistentemente a Deus que faça justiça, até por meio de nós, aos pequeninos. 521 4. Segunda Carta de São Paulo a Timóteo 3, 14-4.2 Nesse trecho da Segunda Carta de Paulo ao seu discípulo Timóteo, ele não aborda diretamente o tema da oração, mas das Escrituras, fonte de sabedoria e de salvação. As sagradas escrituras em suas vertentes históricas, proféticas e sapienciais nos educam para a verdadeira oração porque nos fazem conhecer o verdadeiro rosto de Deus e a Ele nos levam as Sagradas Escrituras e, de modo particular, o evangelho que tem o poder de comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo. 522 30º Domingo do Tempo Comum e Solenidade de Todos os Santos e Santas 1. Introdução A celebração de hoje convida-nos a olhar para a frente e para o alto; um pouco como o apóstolo João, na ilha de Patmos. João, olhando para os lados, não só em Patmos, mas por quase todas as cidades e províncias do Império Romano, só via perseguições e derramamento de sangue pelas ruas das cidades e vilas da Ásia e da Europa, quando não nos estádios onde os cristãos eram o pasto das feras. Diante do sangue derramado, João desvelava, para os mártires, o esplendor da glória futura, onde miríades de milhões de homens e mulheres revestidas com vestes alvejadas com o sangue do cordeiro e, com palmas na mão, cantavam a vitória do cordeiro imolado sobre o dragão cor de fogo. Hoje é o dia em que celebramos a igreja triunfante, aquela que passou pela prova e foi considerada digna de ser acolhida pelo Pai. 2. Livro do Apocalipse de João 7, 2-4, 9-14 Jesus, durante o seu ministério, conforme nos narra o evangelista Lucas, foi interrogado por alguém se era verdade que somente uns poucos seriam salvos e que muitos seriam condenados. Jesus não respondeu diretamente à questão, mas deixou entender que a salvação estava aberta a todos e não apenas ao 523 povo eleito, aos filhos de Abraão. Muitos que se consideravam os últimos seriam os primeiros, e muitos que se consideravam os primeiros seriam os últimos. A leitura do Apocalipse, que estamos realizando hoje, nos revela que a multidão dos eleitos, vindos dos quatro cantos do mundo, é incontável. E quem são os homens e as mulheres que compõem essa multidão? Conforme diz o ancião: “Esses são aqueles que vieram da grande tribulação.” Ou seja, em primeiro lugar são os mártires que deram a vida pela fé no evangelho, mas, ao lado deles, estão todos aqueles que amaram os seus irmãos mais do que a si mesmos. 3. Primeira Carta de São João 3, 1-3 As cartas de João são cartas breves, mas que exprimem o mais profundo da sua experiência de Deus. Foi nessas cartas que ele, em três palavras, resume todo o ministério de Deus e dá sentido à vida de todos os humanos, homens e mulheres: “Deus é amor.” O trecho da carta de hoje deixa entender que, após a nossa morte, no gozo eterno da visão de Deus, tomaremos cada vez mais consciência de que Deus é só amor e infinito amor. Desde já, somos e sabemos que somos filhos de Deus, mas o que isso significa para nós teremos toda a eternidade para aprofundar. Quando a Bíblia nos fala que somos filhos de Deus, ela quer dizer que fomos criados livres e, por isso, o que marca a nossa relação com ele não é uma relação de dependência e servidão, mas uma relação amorosa que nos torna cada vez mais reciprocamente semelhantes, por isso, João pode dizer: “se o mundo não nos conhece é porque não conhece a Deus.” 524 3. Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 5, 1-12 A uma primeira e superficial leitura as bem-aventuranças nos parecem paradoxais. Como podemos afirmar, sem ofendermos o bom senso, que os pobres, os aflitos, os humildes, os sedentos de justiça, os perseguidos são bem-aventurados ou felizes? Para entendermos o significado e a verdade das bemaventuranças, temos de mudar o nosso olhar pelo olhar de Francisco de Assis. Quando entendermos porque vale mais dar que receber, porque são felizes os que choram e não os que riem, entendermos porque felizes são os pobres e não os ricos. 525 32º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução A ressurreição do Senhor, após a sua morte e sepultamento, é o mistério mais alto da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dizemos mistério, porque a realidade que ele envolve está acima da nossa humana capacidade de compreendê-la plenamente, como se fosse um fenômeno puramente humano. Entendemos facilmente que Jesus tenha sido ressuscitado pelo Pai, cujo amor jamais aceitaria que seu Filho, na sua humanidade, retornasse ao nada. O amor fidelíssimo do Pai pelo Filho jamais consentiria em abandoná-lo. Acreditamos, pois, que Jesus ressuscitou, mas enquanto vivermos no tempo e no espaço, aqui na terra, jamais poderemos explicar como Jesus ressuscitou e como ele vive fora do tempo e do espaço, na eternidade da outra vida. Isso nem seria importante; o que importa é que Jesus continua vivo, ao nosso lado, aqui na terra e nos céus, à direita do Pai. Temos certeza de que o amor de Jesus jamais nos abandonará. 2. Livro dos Macabeus 7, 1-2.9-14 Nas alturas do séc. II a.C, antes também da chegada dos romanos, o antigo reino de Judá estava sob os reis pagãos de Antioquia, de cultura grega. Esses reis tentavam seduzir os judeus e atraí-los para a religião pagã. Faziam de tudo para aliciá-los, forçando-os a esquecerem as suas tradições, entre elas a circuncisão e a recusa de comerem alimentos considerados impuros, como a carne de porco. Essa campanha antijudaica começava 526 pela sedução, ao acenarem para os costumes pagãos mais fáceis, e terminavam pela perseguição física até a morte, para os mais radicais. Esse impasse levou ambos os lados a um conflito armado e à prática da tortura contra os judeus mais resistentes, como vemos pela primeira leitura de hoje. Os sete irmãos e a mãe do clã macabeu são os representantes máximos da resistência judaica contra seus perseguidores. O que lhes dava força para resistirem era a fé na ressurreição após a morte, pelo menos para os que se mantivessem fiéis às tradições judaicas. Javé, o Deus fiel a Israel, não poderia abandonar aqueles que tombaram para não traí-lo. 3. Segunda Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 2, 16, 3-5 Se lermos atentamente o trecho da carta de Paulo aos tessalonicenses, podemos sentir que a confiança que Paulo deposita neles vem do fato de que eles alimentam a firme esperança de uma consolação eterna – que outra coisa não é, senão a ressurreição. É isso que os anima a rezar uns pelos outros, na certeza de que o Deus de Jesus Cristo é fiel. Esse tesouro, que é a esperança na fidelidade eterna do Deus de Jesus Cristo, é um bem e uma riqueza tão grande que não pode ser guardada só para si, mas deve ser propagada para todos. 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 20, 27-38 Para entendermos o estranho diálogo de Jesus com os saduceus será preciso conhecer a lei do levirato e a polêmica acerba que havia entre os fariseus e os saduceus. A lei do levirato, o versículo 28 explica: “se alguém tiver um irmão casado e ele 527 morrer sem filho, esse alguém deverá casar-se com a viúva a fim de garantir uma descendência para o seu irmão”. A ausência de descendentes era considerada uma maldição. A polêmica entre saduceus e fariseus envolvia a crença na ressurreição por parte dos fariseus e a descrença nela por parte dos saduceus. Os saduceus, tão inimigos de Jesus como os fariseus, queriam desmoralizar Jesus e os fariseus, por meio do ridículo. Encontraram, em Jesus, uma resposta adequada. Diz Jesus, em outras palavras: uma coisa é a vida na terra, submetida às categorias do tempo e do espaço, do nascimento e da morte, outra coisa é a vida eterna, onde tudo já estará consumado e não haverá mais espaço, nem para o nascimento e nem para a morte. Como diz Paulo, nos céus nos despiremos de nossos corpos mortais e nos revestiremos de nossos corpos celestiais. 528 33º Domingo do Tempo Comum 1. Introdução Faz parte do que há de mais nuclear na experiência bíblica a ideia de que, apesar da sua fragilidade, o homem é um ser ético, que tem de prestar contas a Deus pelos seus atos, não só como indivíduo, mas também como povo. Ao lado disso, o homem bíblico tem a certeza de que a vida terrena terminará um dia, tanto no plano individual como social; o destino terreno da humanidade também não é eterno. No fim do mundo se dará o Juízo Final ou o fim do mundo equivalerá ao Juízo Final. Esse tema está muito presente nos dois primeiros domingos do Advento, que se inicia daqui a quinze dias, mas ele já ocorre nestes dois últimos domingos do Tempo Comum. Embora não seja um assunto dos mais leves e agradáveis, vale a pena enfrentá-lo, porque nós, um dia, teremos de dar conta da nossa administração. Com a ressalva, porém, de que os textos de hoje, exceto a carta de Paulo, estão vazados em estilo apocalíptico, e, como tais, devem ser interpretados e não acolhidos ao pé da letra. 2. Livro do Profeta Malaquias 3, 19-20a O livro de Malaquias é, pela ordem, o último do Antigo Testamento, mas não é o mais recente. Malaquias é de meados do séc. V a.C. Durante o seu ministério, o povo já estava de volta do exílio e, mais do que isso, o Templo de Jerusalém já estava concluído e o culto restaurado. O povo, apesar disso, estava insatisfeito, pois Judá continuava sob o domínio estrangeiro e a 529 dinastia davídica não havia sido restaurada. O povo estava desanimado e descrente. Diante dessa mormidão religiosa, o profeta Malaquias lembra, com palavras ardentes, o povo que deve despertar, pois: “Eis que virá o dia abrasador como fornalha em que todos os soberbos serão como palha.” João Batista, quatro séculos mais tarde, retomará o mesmo discurso: “O machado já está posto à raiz da árvore; a árvore que não der fruto será cortada e lançada ao fogo.” 3. Segunda Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 3, 7-12 A advertência de Paulo sobre a vida preguiçosa dos tessalonicenses pode parecer estranha para quem está acostumado com as mensagens de Paulo, sempre tão profundas e teológicas. A preocupação de Paulo tinha muita razão de ser, porque a despreocupação dos tessalonicenses estava ligada à crença de que a Parusia, ou seja, o retorno do Senhor, estava próximo. O mundo logo acabaria e não adiantava mais fazer nada. O importante era esperar… Paulo não negava o retorno do Senhor, que ele também esperava para breve, mas essa espectativa não devia interferir na vida quotidiana. O momento exato, como dissera Jesus, era e é segredo do Pai. 530 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 21, 5-19 Não é fácil de interpretar o texto de hoje porque, ao mesmo tempo em que ele se refere à destruição de Jerusalém que se deu nos anos 70 d.C., ela também a transcende. De fato, quando Lucas escreveu esse texto, a destruição de Jerusalém por Tito já tinha ocorrido. A perseguição aos cristãos em geral, não era coisa do passado, mas ainda estava em curso, não só na Judeia, mas se estendia pelas províncias do Império. Em outras palavras, o que se diz sobre a história de Jerusalém deve ser estendida a toda a História. A Igreja, portadora do Reino de Deus, deverá estar sempre atenta, mas confiante no Espírito, porque estará sempre sob o assédio dos seus inimigos. A descrição não aponta para a pequena história da destruição de Jerusalém, mas para a grande História, como tal, com H maiúsculo. Para terminar como o evangelho de hoje, é permanecendo firmes que ganharemos a vida! 531 34º Domingo do Tempo Comum e Solenidade de Cristo, Rei do Universo 1. Introdução Ao longo do ano litúrgico, várias celebrações litúrgicas aludem à realeza de Jesus e cada uma delas nos diz algo diferente sobre que tipo de rei é Jesus. Podemos lembrar algumas delas e assim enriquecer o nosso conhecimento e alimentar a nossa fé na realeza de Jesus. A primeira alusão à realeza de Jesus se faz na festa da Epifania de Jesus, quando, convocado pela estrela guia, os reis magos vieram do oriente para adorar, o menino Jesus e oferecer-lhe o ouro, já que era rei, o incenso, já que era Deus e a mirra, já que era homem; uma segunda alusão podemos ver no batismo do senhor quando o céu se abre, o pai se revela e Jesus é ungido pelo espírito; essa cena quase se repete quando Jesus, no final do seu ministério, se transfigura diante dos seus discípulos e se entretém com Moisés e Elias, representantes da lei e dos profetas; pouco antes da sua paixão, Jesus sobe a Jerusalém e, proclamado filho de Davi, é aclamado como Rei e Messias a cavalgar um jumentinho e não um fogoso corcel como o faraó do Egito. Finalmente, como vimos no evangelho de hoje, Jesus é ridicularizado como rei pelos seus inimigos e algozes. 532 2. Livro do Profeta Samuel 5, 1-3 Davi, fundador de uma dinastia, da qual Jesus seria um dos continuadores, não foi o primeiro de Israel, mas foi o mais importante por ter transformado Israel numa grande nação e reunido as doze tribos. A unificação das tribos numa só nação tem um sabor simbólico, antecipa a unificação de todos os redis num só rebanho. 3. Primeira Carta de São Paulo aos Colossenses 1, 12-20 São Paulo nesse trecho tenta nos transmitir, sem dar a Jesus o título de Rei, tudo que ele fez por nós, com certeza, muito mais do que o rei mais poderoso poderia fazer por alguém: ele nos tornou capazes de participar da luz, que é a herança dos santos, nos libertar do poder das trevas e nos receber no reino do Pai. Ele é a imagem visível do Deus invisível. Através dos seus atos e palavras nos indicou o caminho da salvação. Assim como o rei é a cabeça do seu povo, Ele, Jesus, rei do universo, é a cabeça do corpo que é a Igreja. Essa Igreja que é chamada a ser a semente geradora do reino de Deus, cujos frutos são amor, a justiça, a paz e o perdão. 533 4. Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 23, 35-43 O evangelho de hoje nos leva a reviver a cena cruel da Paixão do Senhor em que o Rei Jesus é objeto da zombaria dos chefes do povo. Os mesmos chefes do povo que adulavam os sacerdotes, o Sinédrio, Pilatos, o representante de César, ridicularizavam a Jesus, e nem por isso Jesus deixou de ser rei, ao contrário, demonstrou de modo insofismável que tipo de Rei ele era. Não orgulhoso, mas humilde; não poderoso, mas frágil; não para si, mas para o outro; não egoísta, mas solidário; não rico, mas pobre. Este é o Rei dos judeus, flagelado, coroado de espinho, desnudado, cuspido. Tudo isso por amor. Pois era essa a sua missão de rei: mostrar que o Amor é de todos os valores o mais valioso, já que o Pai é amor e, como tal, é perdão. Em verdade vos digo, ainda hoje estarás comigo no paraíso. 534 Anexos 50 Anos de Formatura dos Alunos Fundadores do Colégio Santa Cruz (dezembro – 2008) Esta celebração de hoje nesta capela foi uma bela surpresa entre outras que nos últimos tempos nos têm, a nós que amamos este Colégio, surpreendido positivamente. O êxito dos festejos dos 50 anos da fundação do Colégio, a criação da associação Ex-Santa com todas as suas atividades entre elas as festas dos esportes sob o modelo tradicional criado por Claude Parent em 1957, ano da mudança da Av. Higienópolis, 890, para o Alto de Pinheiros, o brilho sempre crescente das festas beneficientes do Colégio, como as Festas Juninas e a Feijoada da Primavera. Tudo isso nos alegra porque nos faz pensar que, apesar de todas as transformações que vêem afetando a vida e a estrutura do Colégio, a nossa querida escola não perdeu a sua alma. Outra razão de alegrar-nos é a presença de Gilles Beaulieu e Martin, seu filho, entre nós, para celebrar o jubileu de ouro de formatura dos nossos queridos alunos fundadores. Gilles Beaulieu foi cofundador deste colégio, ao lado do Pe. Lionel Corbeil e Georges Pecard, diretor durante cinco anos e sempre acompanhou a sua já longa trajetória, participando do seu Jubileu de Prata, de Ouro e agora desta formatura. A distância a percorrer para chegar até aqui nunca o esmoreceu. Gilles Beaulieu vai com certeza 537 reconhecer o seu Colégio, mas vai também surpreender-se com as suas transformações, como não poderia deixar de ser. Gilles Beaulieu vai reconhecer as intuições iniciais que marcaram a feição original do Colégio: a formação integral da alma, do coração e do corpo, a educação para a liberdade responsável e a preocupação com a justiça social. Estas continuam sendo as linhas mestras da pedagogia do Santa Cruz ou do Santa, simplesmente, como se diz nos dias que correm. Ao lado destas constantes houve muita evolução, que acredito positivas, como, aliás, não poderia deixar de ser em qualquer país, quanto mais no nosso, que não só mudou, mas cresceu exponencialmente e se modernizou. Não somos mais o país, apenas levemente urbanizado dos anos 50. A população cresceu quatro vezes no país e na Grande São Paulo, muito mais. Tudo mudou, complexizou-se e, por isso mesmo, o Colégio teve de mudar e o fez, acredito eu, com criatividade. Não temer o futuro e enfrenta-lo sempre foi uma postura consciente do Colégio. Mas... no que mudou o Colégio? A mudança mais óbvia é que o Colégio cresceu, hoje conta com 2.900 alunos, quando em 58 eram pouco mais de 300 alunos. Os padres, quase todos, se foram e ficaram os leigos... na direção, na administração, na docência, na catequese, na orientação pedagógica e nada se perdeu em qualidade. O Colégio continua sempre nos primeiros lugares nas listas de excelência acadêmica. Mudou a filiação religiosa dos alunos. Antes os alunos eram quase cem por cento católicos e o Colégio levava isso em conta; hoje a maioria ainda é católica, mas há uma forte minoria que segue 538 outras religiões e o Colégio também leva isso em conta. Há um ensino religioso ecumênico para todos e uma catequese para os católicos que a desejam. O Religioso tem uma grande importância para o Colégio, mas não há proselitismo e, sim, diálogo religioso e se promove o testemunho cristão através do testemunho pessoal e das celebrações litúrgicas. O Colégio era um colégio masculino, hoje é misto e ninguém pensa em voltar atrás. O caráter coeducativo humanizou o Colégio. Foram criados os cursos de Educação infantil, o curso Fundamental 1, equivalente ao Primário antigo. E mais que tudo foi criado o Curso Supletivo noturno e gratuito para 500 alunos com atraso escolar. O Colégio sempre conviveu com a pecha de ser um Colégio de ricos. Esse já era um problema mesmo antes da sua fundação, havia religiosos dentro da Congregação de Santa Cruz que não queriam a fundação do Colégio por acharem que o Colégio não atenderia aos mais necessitados. Os padres favoráveis à fundação achavam que mesmo que o Colégio não pudesse atender a população mais carente poderia formar uma elite de cidadãos responsáveis que indiretamente beneficiariam os pobres. Temos certeza de que essa previsão se realizou. O Colégio já forneceu à sociedade brasileira quadros importantes na administração pública, nas finanças, na indústria, nas artes etc. Mas como o nosso Colégio tem convivido com esse problema de nascença? O Colégio continua sendo de caráter particular sem verbas públicas, portanto dependente das anuidades dos alunos para sobreviver, mas nem por isso o Colégio se sente desobrigado em 539 relação aos mais carentes. O Colégio alimenta em todos os seus níveis um senso agudo do social e tenta contribuir para que haja em nosso país mais justiça, isso não só através do ensino religioso e catequético, das disciplinas de Ética e Cidadania no Curso Médio, mas também através da Ação comunitária em Creches e Instituições de Caridade. Além disso, através do SAN, que todos conhecem, o Colégio viabiliza na Vila Nova Jaguaré várias creches, centros de juventude, ensino profissionalizante, Assistência Familiar e outros meios assistenciais e educativos, o atendimento de perto de mil crianças e centenas de famílias através do Programa Ação Família. Cálculos realistas nos permitem pensar que, através dos ramos sociais que o Colégio Santa Cruz gerou, ele atende muito mais pessoas carentes do que afortunadas. Antes de terminar, porém, eu queria dizer algumas palavras que saem do fundo do coração aos nossos queridos alunos fundadores, que eu tive o prazer e a honra de conhecer em Higienópolis muitos ainda ou quase todos de calças curtas. Eu ainda era jovem, 10 anos a mais que vocês, e acabava de ser ordenado padre para servir ao povo de Deus. Alguns de vocês ajudaram como coroinhas na liturgia da minha Ordenação pelo então Cardeal de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta. Não cheguei a dar aula para vocês, eu era muito jovem e vocês já estavam na 4a série do Ginásio! Lembro-me apenas de terlhes feito uma palestra sobre um assunto de que não me lembro mais... com certeza para preencher um vazio no horário. O desejo de vocês de festejar o jubileu de ouro de formatura no Colégio só pode ser interpretado como um ato de amor. E eu 540 acho que não só mas também os padres de então estão na raiz desse desejo e eu gostaria de nomeá-los: do Gilles já falamos, mas eu lembro o Corbeil, o Paulo, o Georges, o Cláudio e o padre Leo que nos parecia então tão velho, mas na realidade nem chegara ainda aos sessenta anos e o próprio que lhes fala! Vocês, ex-alunos fundadores, esposas, filhos e netos são as joias da nossa coroa. Que Deus e a Virgem de Santa Cruz os abençoe! Pe. José de Almeida Prado, csc 541 Ciência e Fé (para os alunos de 8a série em 2009) A palestra magistral que nos introduziu ao tema central desse nosso encontro colocou em evidência a natureza da ciência e a evolução do método científico desde Galileu até os dias de hoje. Galileu emergiu para a história num mundo ainda fortemente marcado pela fé religiosa e, também pelo poder religioso, já que o poder civil, em processo lento de evolução, não havia adquirido ainda a sua plena autonomia que só aconteceria muito mais tarde, após as revoluções francesa e americana com a institucionalização da democracia através do voto popular e, em nível administrativo, da consolidação da separação dos três poderes, o judiciário, o legislativo e o executivo de um lado e a separação do Estado em relação às Igrejas de outro lado. Essas indefinições institucionais tanto na área civil como na área religiosa eram causas de conflitos – inquisição, guerras religiosas, colonialismo, escravismo – e continuam sendo até hoje, como se viu de modo clamoroso no ataque às Torres Gêmeas no famoso 11 de setembro. O famoso conflito civilizacional entre o Ocidente e o os povos islâmicos não nos deixa mentir. Não podemos negar, portanto, que a fé religiosa, quando extrapola do seu leito natural, ou seja, dos direitos humanos, pode ser fonte de conflito. Durante muito tempo a Igreja teve dificuldades em admitir as suas falhas humanas, demasiadamente humanas, embora, católicos, possamos hoje reconhecêlas com serenidade, sabendo que a história não é apenas um 542 tribunal, mas também uma escola e principalmente uma escola. Falando da Igreja em uma das suas encíclicas, o papa João XXIll, o papa do Concílio Vaticano 11 que proclamou alto e bom som a liberdade religiosa como um direito do Homem, a chamou de “Mater et Magistra”, ou seja “Mãe e Mestra”. O mesmo ele poderia ter dito da História Dentro do nosso projeto de estudo, que tem como figura central Galileu Galilei, eu gostaria de mencionar brevemente o conflito desse sábio que revolucionou as ciências, a cultura e, literalmente a visão do mundo, com a Igreja Católica. Vamos apenas mencioná-lo superficialmente porque, a aprofundá-lo, teríamos muito pano para manga e o nosso objetivo é outro. Tratase apenas de um ponto de partida para tratarmos do problema mais amplo das relações que existem entre a ciência e a fé. Nesse conflito, Galileu, baseado no método científico, defendia com razão o heliocentrismo e a Igreja, supostamente baseada na tradição e na inerrância, mal entendida da Bíblia, defendia o geocentrismo. Galileu foi condenado e obrigado a se desdizer em nome da fé, como ela era entendida na época. Em síntese, podemos afirmar como católicos que nesse caso, como se diz na linguagem coloquial, a Igreja extrapolou, ou seja, avançou para além dos seus limites. Num mundo ainda pré-científico, a Igreja não tinha consciência de que ela não tinha jurisdição nenhuma sobre o método científico. O âmbito da fé e o âmbito das ciências são distintos e não podem ser confundidos. Não vamos falar do âmbito da ciência, há muita gente aqui com muito mais competência, vamos falar do âmbito da fé. 543 A Fé A fé, ou seja, esse sentimento interior ou mesmo esse certeza relativa ao mundo da transcendência, não se baseia no método científico, mas na certeza subjetiva de que Deus, por amor, se comunica com o homem, ou seja, se faz PALAVRA para ele. Como diz o evangelista João no início do seu evangelho: No começo a palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus e a Palavra era Deus. Jo, l,l. Essa crença gratuita num Deus amor está para a fé como o método científico está para a ciência. Assim como não podemos provar por a mais b que um quadro é belo, mas podemos apreciálo como tal, desfrutar a sua beleza, assim também não podemos provar cabalmente que Ele, Deus, existe ou mesmo que Ele seja Amor, podemos, sim, senti-lo como tal, como o fizeram santos tais como Francisco de Assis, os místicos São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila ou, num outro diapasão, Madre Teresa de Calcutá e São Vicente de Paula. Dentro da tradição do judeu-cristianismo, acreditamos que Deus, além de se comunicar conosco na oração, nos pobres, mormente nos caídos à beira da estrada, nas crianças, nos idosos, se comunicou conosco nos dois testamentos, o velho e o novo, na chamada Bíblia Sagrada, mas continua ainda comunicando-se conosco nos sinais dos tempos, na sabedoria dos povos e na cultura de modo geral, mas particularmente no sentido antropológico, que é para o homem, como se diz, uma segunda natureza. Nós, católicos, acreditamos que Deus nos fala através da Igreja, mas não só através dela, mas através das outras 544 igrejas e também através das ciências. A Igreja, ao tempo de Galileu não percebeu esse aspecto. Como a Bíblia, para nós, judeus e cristãos, tem um estatuto especial no processo da comunicação de Deus com os humanos, vale a pena deterrnos um pouco mais nela. Em primeiro lugar, diga-se, com ênfase, que a Bíblia não é um livro científico, mas sapiencial. A Bíblia é um livro histórico, ou seja, toda ela reflete a história do povo hebreu e das primeiras comunidades cristãs, mas não é um livro histórico no sentido moderno da palavra, ou seja, baseado nos princípios da historiografia científica moderna. Trata-se de uma história mais sapiencial do que historiográfica. A sabedoria bíblica serve de exemplo e, mais do que exemplo, serve de inspiração para que o homem de todas os séculos, cada um dentro da sua cultura e do seu tempo, possa viver a sua fé, modelada pela figura de Jesus, Filho de Deus. Essa expressão Jesus, Filho de Deus sirva-nos para refletir um pouco sobre a linguagem da fé ou da teologia que tem de lidar com conceitos que transcendem a nossa experiência sensível e nos remete muitas vezes para fora do tempo e do espaço, por exemplo, quando nos referimos a Deus, à vida eterna, à ressurreição, etc. Enquanto a linguagem da ciência pode ser chamada de unívoca, ou seja, ela estabelece uma correspondência objetiva entre a palavra e o conceito, por exemplo a palavra “mulher” corresponde plenamente ao conceito de um ser humano do sexo feminino. Quando designamos Jesus como “Filho de Deus” estamos fazendo uma analogia da filiação de Jesus com a filiação entre os homens, ou seja estamos dizendo que entre o homem Jesus e Deus existe uma relação análoga 545 à relação que existe entre um pai humano e o seu filho, e não uma relação igual. A linguagem da Bíblia sobre Deus também só pode ser de cunho analógico e não unívoco como acontece nas ciências. É por isso que Paulo nos diz na sua segunda carta aos coríntios que nesta vida nós vemos a Deus como num espelho, só na outra vida o veremos como Ele é. Fé e modernidade No início desta conversa dizíamos que os dois Testamentos não encerraram a Revelação de Deus aos homens, mas que Ele continua revelando-se ao longo da História nos sinais dos tempos que marcam de modo distinto cada época da História. Podemos dizer que a época de Galileu Galilei foi marcada pela descoberta do método científico e a Igreja como um todo não se deu conta disso... Tendo isso em vista, devemos perguntarnos quais são os sinais do tempos hoje que podemos chamar de pós-modernos? Como se vê hoje o homem perante a sua própria consciência, perante a sociedade e perante Deus? Somos homens modernos, ou seja, temos consciência de que a n ossa condição humana nos faz livres, com autonomia moral para decidir sobre o bem ou o mal que escolhermos. 1. Podemos estar abertos ao transcendente ou não; em outras palavras, nascemos leigos e nos tornamos crentes por opção pessoal; 2. Estar aberto ao transcendente implica em acreditar que Deus entra em contacto conosco e toma a iniciativa de se relacionar conosco, ou seja, Ele se nos revela, atra- 546 vés da experiência pessoal, da cultura e do diálogo. Na tradição judaico-cristã essa revelação consubstancia-se na Bíblia e na tradição das Igrejas e da Sinagoga. Tudo isso em plena modernidade ou pós-modernidade. 3. Podemos elencar como características mais importantes dos tempos modernos em que vivemos hoje: 1)a autonomia moral da pessoa humana, 2)liberdade de consciência como um direito inalienável, 3)a irracionalidade é incompatível com a dignidade da pessoa humana, 4)as realidades terrestres são autônomas em relação às sobrenaturais, ou seja, as realidades terrestres são governadas pelas suas próprias leis, 5)as realidades terrestres, ainda que criadas por Deus, têm necessariamente os seus limites, por exemplo, são mortais ou efêmeras. O chamado problema do mal é consequência dos limites que afetam todos os seres criados, mas podem ser agravados pela má conduta do homem, como, por exemplo, a degradação ambiental. 6)o diálogo religioso se ligitima na medida em que é um verdadeiro diálogo, ou seja, não há imposição de nenhuma das partes; 7)na Igreja Católica, conforme definição do Concílio Vaticano 11, o diálogo é parte da evangelização sem o qual não se pode falar em evangelização. 547 Discernimento e Consciência Moral (para os professores em 2009) 1. Nós, humanos, somos como os animais, seres gregários, ou seja, somos chamados a viver em grupos formando comunidade, desde a familiar até a grande sociedade. 2. Contrariamente aos animais que são guiados pelo instinto, nós, humanos, embora também sejamos dotados de instintos que nos ajudam, desde a primeira infância, a resolver problemas básicos de sobrevivência, temos, além deles, as luzes da razão, que nos ajudam a resolver problemas mais complexos que nos dizem respeito como pessoas. 3. O que distingue o humano como pessoa e o animal como indivíduo é que o humano é responsável pelos seus atos e o animal, mero indivíduo, não o é. 4. Como responsável pelos seus atos o homem está sob o juízo da sociedade, da própria consciência e, se ele acreditar em Deus, está também sob o juízo de Deus. Todos os nossos atos, por mais simples que sejam, sempre têm uma repercussão social, seja boa, seja má, dificilmente ela é totalmente neutra. Em virtude disso a sociedade tem o direito de cobrar das pessoas a conta dos seus atos. 5. É por isso que toda sociedade minimamente desenvolvida tem os seus códigos de leis e os tribunais segundo as quais e pelos quais os cidadãos são julgados culpados ou inocentes. 548 6. É por isso também que em comunidades menores, como famílias, colégios e clubes existem regulamentos que abrem ou fecham espaços para os seus membros para que o bem comum seja preservado e não atropelado. 7. Isso tudo foi lembrado para chegarmos ao ponto central do nosso encontro de hoje: todos esses códigos e regulamentos seriam apenas leis repressivas, portanto, indignas do homem, se não houvesse dentro de nós um código interior, fruto do nosso próprio discernimento, que chamamos CONSCIÊNCIA MORAL. 8. É nela que reside a nossa capacidade de decidir o que para nós é justo e bom por que chegamos a essa conclusão depois de ter ponderado todos os prós e os contras de uma eventual decisão tomada, tendo em vista não os nossos interesses pessoais, mas exclusivamente a justiça e o bem comum. 9. Essa decisão não dispensa a lei escrita, a opinião dos mais velhos, a tradição, mas o que confere dignidade à minha decisão é a minha escolha pessoal, por que é como pessoa que eu respondo pela moralidade dos meus atos perante a minha pessoa e perante a sociedade. Se eu acreditar em Deus não será pelas leis da Igreja que eu responderei a Ele pelos meus atos, mas pela decisão que eu tomei perante a minha consciência. 10.Dentro da tradição bíblica acreditamos que Deus de alguma maneira se comunica conosco através da nossa consciência profunda e de lá nos interpela a agir segundo a justiça, a caridade e a verdade. 549 11.A justiça, a caridade e a verdade são diferentes expressões do AMOR que é o valor supremo do ensinamento de Jesus. 12.Quando estamos diante de uma decisão a tomar o critério maior para a tomada de uma decisão moral é saber se ela concorre ou não para a prática do amor a Deus ou ao próximo. Para sabermos se a decisão concorre para o amor a Deus é preciso ver se ela concorre para o amor ao homem. 13.E importante saber que dentro da tradição cristã, onde a consciência pessoal profunda é a última instância moral, Deus não nos pede necessariamente a decisão objetivamente correta, mas sim a que depois de um detido exame de consciência julgamos ser a mais correta ainda que objetivamente não o seja. Isso, porém, de maneira nenhuma nos dispensa de uma busca exaustiva da solução correta. 550 Entrega da Bíblia (para os pais e alunos da Catequese 2010) O que é a Bíblia A nossa fé religiosa baseia-se na crença de que Deus, que nos ama e porque nos ama, comunica-se conosco na nossa intimidade mais profunda e através dos nossos irmãos, mas também o faz através da história e da cultura. Na nossa tradição judeo-cristã os dois Testamentos são a expressão escrita dessa intimidade de Deus com o seu povo, o judeu e o cristão, que foram escolhidos como povos testemunhos perante as nações. A Bíblia é, pois, um livro que espelha essa comunicação de Deus ao narrar a história do povo judeu, o ministério e a vida de Jesus, bem como a história da Igreja primitiva do I século da era cristã. É bom lembrar que a Bíblia é um livro histórico, mas não o é no sentido moderno da palavra. Trata-se de uma história mais sapiencial do que historiográfica. Vale acrescentar que a Bíblia não é nem poderia ser um livro científico, já que as ciências propriamente ditas são um fenômeno da modernidade. A Bíblia, em resumo, fala-nos de um Deus que se nos revela através da experiência dos homens. Como ler a Bíblia? A Bíblia pode ser lida por um historiador, por um antropólogo, por um literato e também por um homem de fé. Cada um terá o seu enfoque especial. Como o nosso encontro de hoje diz respeito à catequese, podemos perguntar-nos como nós, como cada um de nós, pais, mães, alunos, catequistas devemos ler a Bíblia? O 551 denominador comum que nos une é a nossa fé em Jesus, Filho de Deus e de Maria, o protagonista maior da Bíblia, já no Primeiro Testamento, e muito mais ainda no Segundo Testamento. Ao lermos a Bíblia, saibamos que toda ela, direta ou indiretamente fala-nos de Jesus e da sua mensagem de Amor. Jesus é nela a referência maior e é Jesus que lhe dá sentido. Nada na Bíblia pode contrariar a sua mensagem maior: Deus é Amor e a nossa vida deve refletir esse amor. Como estabelecer um nexo entre esse Deus que é amor e a nossa vida de cristãos que também deve ser amor? Para estabelecer esse nexo ajuda conhecer um pouco o contexto histórico em que viveu Jesus há 2.000 anos na Palestina. Mas isso não basta. É preciso ler a Bíblia referindo-a ao nosso contexto de hoje. Por exemplo, quando lemos a parábola do Bom Samaritano não basta saber que o samaritano era um homem discriminado no tempo de Jesus, é preciso saber quem são os discriminados hoje. Mas ainda isso não é tudo, para bem entender a mensagem do texto da Bíblia que eu estou lendo é preciso levar em conta o meu contexto pessoal de vida que eu estou vivendo no momento da leitura. Estou eu vivendo um momento de euforia, de tristeza, de discernimento, de dúvida? Para resumir, quando eu leio a Bíblia como cristão eu não estou apenas lendo a Bíblia, não estou apenas aprofundando uma ideia, eu estou buscando uma resposta de um Deus que é Amor. Ler a Bíblia, dentro do processo catequético, é orar. O exemplar que nós estamos recebendo hoje não é apenas um presente, uma lembrança, um símbolo, é um livro de oração. Nele estão as respostas de Deus às nossas perguntas, às nossas angústias, às nossas dúvidas. Às nossas e às dos nossos irmãos por quem estivermos rezando. 552 O Deus de Jesus Cristo (para os crismandos – 2010) Há dois caminhos para se chegar a Deus, 1. através da razão, como fizeram os filósofos gregos, como Aristóteles que, através de uma cadeia de causas causadas chega a uma primeira causa não causada, Deus, ou através de movimentos movidos chega a um motor imóvel que é Deus e 2. através da fé que descobre a ação de Deus na história com H, ou seja na grande história, ou na nossa pequena história com h, da nossa vida pessoal. Esses tipos de experiências é que deram origem às grandes tradições religiosas como a tradição bíblica do judeu cristianismo, do hinduismo, do budismo, do islamismo, dos cultos à fertilidade e mesmo do animismo. Embora respeitemos todas as grandes tradições religiosas, vamos deter-nos na tradição judaico-cristã consignada no Primeiro Testamento, também chamado de Antigo, e no Segundo Testamento, também chamado de Novo. Primeiro Testamento O Deus do Gênesis • Criador do firmamento, da terra, do mar, da fauna, da flora: Deus criador do bom, do útil e do belo, •Criador do homem e da mulher, portanto um Deus não solitário, mas voltado para o outro, •O homem e a mulher, companheiros de Deus, são pessoas livres que podem escolher o seu destino moral, 553 •Deus é solidário com o amor do homem pela mulher e vice-versa, •Deus é solidário com o homem vítima (Abel), mas é generoso com o agressor (Caim) O Deus de Abraão •Um Deus voltado para o futuro, para a criatividade e para a justiça •Ur, cidade de Abraão, era uma cidade cruel. Abraão foi convidado para fundar uma cidade onde reinasse o direito e a justiça, •O Deus de Abraão era o Deus da vida e não um ídolo da morte. Não aceitou o sacrifício de Isaac. Um salto qualitativo na experiência de Deus O Deus de José do Egito •O Deus que sacia os famintos partilhando o pão e anunciando o mistério da Eucaristia e a utopia da comensal idade no Reino de Deus, quando todos os homens e mulheres se sentarão à mesma mesa e comerão do mesmo pão e beberão do mesmo vinho, O Deus de José do Egito • Javé: “eu sou Aquele que é para o homem” • Ao salvar Moisés da perseguição do Faraó, Javé se faz solidário com o oprimido, • Javé não é apenas solidário moralmente com o oprimido, é libertador e promete a Moises e a seu povo uma pátria, 554 • Javé entrega a Moisés as taboas de Lei que, se observada e livremente aceita, possibilitará uma vida social organizada e justa, O Deus dos “Cânticos dos cânticos” • O Deus da Paixão amorosa • Não só um Deus entre muitos deuses, mas um só Deus, • Não uma religião ritualística, mas a religião do coração, • Um Deus libertador de todas as opressões, • Não um ídolo, capaz de aceitar sacrifícios humanos, mas um Deus salvador, • Um Deus de todos e não só de Israel, • A aliança de Deus com o seu povo tem como modelo a aliança conjugal entre o homem e a mulher, • Deus fala ao povo pela boca dos profetas, • Um Deus com rosto materno: “pode uma mãe esquecer-se do seu bebê, deixar de querer o filho das suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não esquecerei”. Isaías,49,15 Segundo Testamento • É um Deus com rosto humano • Assumiu a fragilidade humana desde o seu nascimento até a sua morte: nasceu numa estrebaria, foi carpinteiro, filho de carpinteiro; foi pregador ambulante, não tinha onde reclinar a cabeça; pregava o Reino de Deus para os 555 pobres e para os pecadores e não para os que se diziam justos; exorcizava os loucos, curava os enfermos, purificava os leprosos; era como o bom samaritano e como o pai do filho pródigo; era um bom pastor que ia em busca da centésima ovelha perdida, multiplicava o pão para os famintos; enfrentava os poderosos; foi preso, julgado, torturado, coroado de espinhos, carregou a sua própria cruz, foi crucificado, morto, sepultado, mas ressuscitou dos mortos no terceiro dia, conforme as Escrituras. • O Deus de Jesus Cristo, uno e trino, ao mesmo tempo que nos habita se deixa habitar por nós. Ele armou a sua tenda entre nós. Conclusão Se nos perguntarem um dia “Como é o Deus de Jesus Cristo?”, podemos responder: Ele é como Jesus, o filho de Deus e de Maria. Em outras palavras: DEUS É AMOR E SÓ AMOR. Se não fosse assim, não seria Deus, mas um ídolo. 1 Jo 4,8: “Quem não ama não conhecerá a Deus, porque Deus é amor.” 556 Reflexão sobre a Catequese no Ano Catequético em 26/08/2009 (para as professoras de catequese) A catequese, por definição, é parte do processo da iniciação cristã que, no nosso caso, trata-se de iniciação de crianças ou adolescentes e está ligada à preparação dos sacramentos da Eucaristia e da Confirmação. Nessa preparação, está implicada a instrução da doutrina cristã, a prática da oração, a iniciação à liturgia, o cuidado com os pobres etc. Todo esse trabalho visa a preparar o catequizando a assumir quando adulto uma posição de fé, já agora em caráter profundamente pessoal. Seria o momento do que hoje, em teologia moral se chama opção fundamental, ou seja, na definição de Itamar Carlos Gremon, SJ, é a atitude humana primordial (eu diria seminal) na qual a pessoa, assumindo toda a sua história pessoal, elege aquilo que é um Bem Absoluto para ela e se determina a direcionar todos os seus atos e ações para esse Bem Absoluto. Dessa forma, é este Bem Absoluto que dá sentido à sua vida e que se torna o critério fundamental a partir do qual realiza todas as suas escolhas e ações. Por exemplo, a pessoa escolhe ser advogado porque elegeu a justiça como bem absoluto, mas também poderá ser advogado porque elegeu o dinheiro como bem absoluto, mas é o porquê, o Bem Absoluto que dá sentido a tudo que ela faz: justiça, poder, amor, dinheiro etc. 557 Todo o esforço do trabalho catequético deve estar orientado no sentido de preparar esse compromisso adulto do catequizando de hoje. É por isso que o trabalho do catequista, mais do que um trabalho de professor, que conhece muito bem os segredos da didática, deve ser o de um testemunho de vida cristã, ou seja, de uma vida pautada pelo evangelho de Jesus. Ele deve trazer para a sala de aula um pouco da presença de Jesus quando ele reunia os seus discípulos ou as multidões para anunciar a proximidade do Reino de Deus: convertei-vos e crede no evangelho, o Reino de Deus está próximo! É importante dizer, todavia, que a necessidade de dar um testemunho convincente em nada deve diminuir a urgência de um esmero especial no desempenho didático que podemos admirar na prática de Jesus, quando falava às multidões ou quando se dirigia aos seus discípulos em particular. As parábolas, em que Jesus era mestre, nos provam a importância que ele dava não só ao conteúdo dos seus ensinamentos, mas também à maneira como ele ensinava. Em vez de despejar conteúdos sobre os seus ouvintes, procurava torná-los agentes do seu próprio aprendizado. Quanto mais ativos forem os alunos no próprio processo de aprendizado, mais preparados estarão para, na vida adulta, assumirem um compromisso perante Deus, antes de tudo, perante a própria consciência, mas também perante a família e a sociedade como um todo. Há alguns meses li em alguma parte e pela primeira vez uma ideia que me parece muito fecunda: a ideia de que nascemos leigos, ou seja, como se estivéssemos sozinhos no mundo e poderíamos permanecer assim por toda a vida. E assim seria 558 inapelavelmente se o Deus que criou o céu e a terra e também nos criou não fosse o Deus de Jesus Cristo, que nos amou a ponto de nos enviar o seu próprio Filho para estabelecer conosco um vinculo pessoal de amor eterno. A catequese oportuniza esse encontro com o Deus de Jesus Cristo e prepara a criança ou o adolescente para assumir um compromisso de fé adulta quando chegar o momento e se for essa a sua opção. Esse Deus, desde que o homem é homem, nos falou através das grandes religiões, através dos patriarcas e profetas, mas no tempo propício nos falou pela boca, pela vida e pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o crucificado que ressuscitou dos mortos no terceiro dia. Em Jesus Deus nos falou definitivamente. Jesus, seja em atos, seja em palavras, nos comunicou muitas coisas. Os evangelhos recolheram não todas as palavras de Jesus, mas com certeza as mais importantes e fundamentais. Tudo o que Jesus disse e fez de importante foram de alguma maneira antecipados no Antigo Testamento. Daí a importância insubstituível das Sagradas Escrituras para a catequese cristã. E devemos dar graças a Deus de vivermos nos dias de hoje quando as ciências exegéticas progrediram tanto que ousamos dizer que, atualmente, podemos entender mais facilmente as sagradas escrituras do que nos primeiros séculos da era cristã. Jesus, durante a sua experiência terrena, nos disse muitas coisas, mas uma delas resume todo o resto e isso no-lo repetiu o apóstolo João, o discípulo amado: DEUS É AMOR. Essa é a revelação fundamental de Jesus a todos os homens e passou a ser o critério de verdade para toda a afirmação sobre Deus. Se alguma afirmação teológica ou filosófica contrariar de al559 guma maneira essa verdade fundamental, essa afirmação pode ser dada como enganosa. Se alguma crença religiosa ou alguma prática da mesma natureza ou algum ensinamento contrariarem essa verdade fundamental, deve ser dada também como enganosa. A certeza de que o Deus de Jesus é Amor e só Amor deve balizar toda a nossa linguagem, toda a nossa doutrina, toda a nossa didática, toda a nossa vida porque dela e só dela depende a salvação do mundo e dos homens de todas as gerações. O Reino de Deus que Jesus veio para anunciar é a tradução prática da definição joanina da natureza de Deus. Sendo Deus quem é, o Reino de Deus não poderia ser diferente: os cegos vão ver, os coxos vão andar, os mudos vão falar, os surdos vão ouvir, os leprosos vão ser purificados e os pobres vão ser evangelizados. o amor é necessariamente concreto, quando ele se esvazia, ele evapora. É essa visão de Deus como Amor que nos permite ver como provisória a figura deste mundo onde prevalece a tríplice concupiscência, a do poder, a do prazer e a do dinheiro. Essas três concupiscências são expressões de ódio ou de egoísmo, são, pois, incompatíveis com o Deus de Jesus Cristo. A catequese deve também preparar os catequizandos para transformar o mundo através da prática das virtudes morais da prudência, da justiça, da fortaleza e da temperança, que são hábitos contrários à tríplice concupiscência e que, portanto, constroem o Reino de Deus. É através da prática das virtudes morais que os jovens poderão viver a liberdade interior dos filhos de Deus sem a qual não poderão viver no amor, mas serão escravos de si mesmos ou deste mundo que passa. 560