HOSPITAL SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA GRAVE ASSOCIADA À ESCLERODERMIA: RELATO DE CASO E REVISÃO DE LITERATURA LYGIA SILVEIRA D’OLIVEIRA São Paulo 2015 1 LYGIA SILVEIRA D’OLIVEIRA INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA GRAVE ASSOCIADA À ESCLERODERMIA: RELATO DE CASO E REVISÃO DE LITERATURA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Comissão de Residência Médica do Hospital do Servidor Público Municipal, para obter o título de Residência Médica Área: Clínica Médica Orientador: Dra. Mary Carla Esteves Diz São Paulo 2015 2 FICHA CATALOGRÁFICA D’oliveira, Lygia Silveira Insuficiência renal aguda grave associada à esclerodermia: relato de caso e revisão de literatura / Lygia Silveira D’Oliveira. São Paulo: HSPM, 2015. 29 f.: il. Orientadora: Drª. Mary Carla Esteves Diz. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Comissão de Residência Médica do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo, para obter o título de Residência Médica, na área de Clínica Médica. 1. Esclerodermia sistêmica 2. Crise renal esclerodérmica 3. Proteinúria maciça 4. Inibidores da enzima conversora de angiotensina I. Hospital do Servidor Público Municipal II. Título. 3 AUTORIZO A INCLUSÃO INTEGRAL DESTE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO NA BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. ____________________________________ Lygia Silveira D’Oliveira Residente de Clínica Médica 4 Lygia Silveira D’Oliveira Insuficiência renal aguda grave associada à Esclerodermia: Relato de caso e revisão de literatura Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Hospital do Servidor Público Municipal para obtenção do título de Residência Médica. Área: Clínica Médica Comissão Examinadora Dra Christiane M. V. Boas Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo Dr Eduardo Benedito Kedhe Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo Dra Pérola G. Lerner Hospital do Servidor Público Municpal de São Paulo Data de Aprovação: ___/___/___ 5 RESUMO A esclerodermia (esclerose sistêmica) é uma doença sistêmica crônica que tem como alvo a pele, pulmões, coração, vias gastrointestinais, rins e sistema músculoesquelético. Este distúrbio é marcado por três características: fibrose tecidual, vasculopatia de pequenos vasos sanguíneos e uma resposta autoimune específica associada a autoanticorpos. Devido o espessamento da pele ser a característica clínica mais proeminente, esclerodermia (“pele dura”) tornou-se o nome mais popular para esta doença. É uma doença rara, com incidência de aproximadamente 20 por 1 milhão de pessoas por ano e prevalência de 100 a 300 por 1 milhão de pessoas. A média de idade de início é entre 30 e 50 anos, mais comum entre as mulheres. São determinantes importantes da mortalidade o acometimento cardíaco, pulmonar e renal, e a presença de alguns autoanticorpos. O presente estudo se propõe a relatar retrospectivamente um caso de Esclerodermia em paciente idosa com rim único. Paciente diagnosticada com esclerodermia cutânea em 2013 pela Dermatologia, sendo tratada apenas com pomada tópica, apresentava função renal normal até abril de 2014, quando iniciou quadro de anasarca e mal estar, sendo internada em junho de 2014 por alteração de função renal e investigação de proteinúria maciça. Apresentou diagnóstico de rim compatível com Esclerodermia por meio de biópsia percutânea em outubro de 2014. 6 Ao levantarmos casos na literatura evidenciamos a raridade de acometimentos semelhantes evoluindo para crise renal esclerodérmica, e iniciamos pesquisa para discussão sobre abordagem terapêutica do caso, evitando perda da função renal completa da paciente e necessidade permanente de terapia renal substitutiva. PALAVRAS CHAVES: esclerodermia sistêmica; crise renal esclerodérmica; proteinúria maciça; inibidores da enzima conversora de angiotensina 7 ABSTRACT Scleroderma (systemic sclerosis) is a chronic systemic disease that targets the skin, lungs, heart, gastrointestinal tract, kidneys and musculoskeletal system. This disorder is characterized by three features: tissue fibrosis, vascular disease of small blood vessels and a specific autoantibodies associated with autoimmune response. Due thickening of the skin is the most prominent clinical feature, scleroderma (“hard skin”) has become the most popular name for this disease. It is a rare disease with an incidence of about 20 per 1 million people a year and prevalence 100-300 per 1 million people. The average age of onset is between 30 and 50 years, more common among women. Are important determinants of mortality cardiac involvement, lung and kidney, and the presence of certain autoantibodies. This study aims to retrospectively report a case of scleroderma in a elderly pacient with a solitary kidney. Patient diagnosed with cutaneous scleroderma in 2013 by Dermatology, being treated only with topical ointment, had normal renal function until April 2014, when it began anasarca frame and sick and was hospitalized in June 2014 due to change in renal function and investigation of solid proteinuria. Presented diagnosis compatible kidney with scleroderma through percutaneous biopsy in October 2014. When we raise cases in the literature noted the rarity of similar bouts evolving to scleroderma renal crisis, and started research on therapeutic approach for discussion of the case, avoiding loss of complete kidney function and continued need for renal replacement therapy. WORDS: KEY systemic sclerosis; scleroderma renal crisis; solid proteinuria; angiotensin-converting enzyme inhibitors 8 SUMÁRIO 1. Introdução ............................................................................................ 10 2. Objetivo ................................................................................................ 13 3. Relato do Caso .....................................................................................14 4. Discussão ............................................................................................ 19 5. Bibliografia .......................................................................................... 26 Lengenda: CRE: Crise renal esclerodérmica IECA: Inibidores da enzima conversora de angiotensina 9 1. INTRODUÇÃO Esclerodermia, modernamente chamada de esclerose sistêmica, segue sendo dentre as doenças reumáticas, a mais terrível desde que foi reconhecida pelos sábios da Medicina Helênica, dentre eles, Hipócrates, 460 a.C. Séculos mais tarde, William Osler (1892) teria dito que a enfermidade tinha um prognóstico sombrio. Tratava-se de uma moléstia crônica de longa duração, onde os doentes sucumbiam de complicações pulmonares ou renais. Estudioso da esclerodermia, Osler considerou-a como a mais temível de todas as doenças do homem por sua complexidade clínica tão grande, e não poupando sequer um único sistema ou órgão. [1] Esclerose sistêmica é uma doença complexa na qual fibrose extensa, alterações vasculares, e presença de autoanticorpos estão entre as principais características. Existem dois grandes subgrupos na classificação aceita da esclerodermia: esclerodermia cutânea limitada e esclerodermia cutânea difusa. Na forma cutâneo limitada, a fibrose é restrita às mãos, braços e face. A forma cutâneo difusa é uma doença rapidamente progressiva que afeta uma grande superfície da pele comprometendo também um ou mais órgãos internos. Esclerodermia pode levar a grave disfunção e falência em praticamente qualquer órgão interno, sendo que esse envolvimento é um fator maior para determinar prognóstico. Rins, esôfago, coração e pulmões são os alvos mais frequentes. Os dados disponíveis indicam uma taxa de prevalência de 50 a 300 casos por 1 milhão de pessoas e uma incidência de 2.3 a 22.8 casos por 1 10 milhão de pessoas por ano. Mulheres apresentam maior risco comparadas aos homens, com proporção de 3:1. História familiar da doença, alta frequência de outras doenças autoimunes nos familiares, e diferenças nos fenótipos entre as raças e grupos étnicos, sugere que fatores genéticos contribuem para esclerodermia. Esses dados enfatizam que esclerodermia não é uma doença claramente definida, e sim, uma síndrome que abrange vários fenótipos. Injúria vascular é um evento precoce na Esclerodermia. Precede fibrose e envolve pequenos vasos, principalmente as arteríolas. Consiste em grandes espaços entre células endoteliais, perda da integridade da linha endotelial, e vacuolização dos citoplasmas da célula endotelial. A escassez notável de pequenos vasos sanguíneos é um achado característico em fases tardias da esclerodermia. Fibrose gradualmente substitui a fase vascular inflamatória da Esclerodermia e destrói a arquitetura do tecido afetado, sendo causadora dos principais sintomas da doença. Ocorre concomitante à perda da microcirculação, redução dos apêndices e perda da estrutura reticular e cristas epiteliais. A patologia é associada com presença de autoanticorpos, sendo alguns desses importantes marcadores diagnósticos. Testes para anticorpos anti topoisomerase I (Scl-70), proteínas centrômero associadas, anticorpos anti RNA polimerase e antígenos nucleolares podem ser facilitadores do diagnóstico e formuladores prognósticos. Mesmo que a correlação entre gravidade da doença e risco de complicação de órgãos específicos esteja ligada aos autoanticorpos, sua relevância patogenética permanece incerta. 11 Muitos aspectos sobre a patogenia da esclerodermia ainda aguardam elucidação nos dias atuais. [2, 3, 4, 5, 6, 7,8,9] 12 2. OBJETIVO 1. Relatar um caso de Insuficiência renal aguda grave associada à Esclerodermia diagnosticado no Hospital do Servidor Público Municipal; 2. Realizar uma revisão de literatura acerca de Crise renal esclerodérmica e relacionar com o caso apresentado. 13 3. RELATO DO CASO J.J.C., sexo feminino, 69 anos, em acompanhamento ambulatorial prévio irregular com a Nefrologia no Hospital do Servidor Público Municipal desde 1989 por apresentar rim único à esquerda, posteriormente visualizado que o rim direito era atrófico. Apresentando até o ano de 2013, função renal normal com Creatinina 0,9 e proteinúria negativa (outubro). No ano de 2013 iniciou acompanhamento com a Dermatologia por apresentar lesões em placas, hipocrômicas, descamativas, pruriginosas, com certa rigidez, em abdome, dorso, vagina. Foi realizada biópsia cutânea (maio de 2013) que revelou diagnóstico de Esclerodermia, sendo classificada à princípio como Esclerodermia cutânea limitada e realizado tratamento com Topison creme tópico (mometasona), creme de Lactato de Amônio, Clobetasol creme e Loratadina 10mg/dia pelo prurido. Em abril de 2014 iniciou quadro súbito com anasarca, náuseas e vômitos, epigastralgia, mal estar, inapetência, negava alterações urinárias. Em maio de 2014 foi observado pela Endocrinologia importante grau de Dislipidemia e Trigliceridemia (colesterol total= 878, LDL= 750, triglicérides= 351), sendo aumentada dose prescrita de Sinvastatina para 60mg/dia. Retornou ao ambulatório de Nefrologia em 18/06/2014 com a mesma sintomática descrita, foi submetida à internação hospitalar para investigação do quadro. Apresentava história pregressa de hipertensão arterial há dois anos e meio, diabetes mellitus, dislipidemia e trigliceridemia, esclerodermia cutânea, rim único à esquerda com atrofia do rim direito. Referia como hábitos ser extabagista de 20 anos/maço, tendo cessado há oito anos. Negava etilismo e drogadição. Fazia uso de Hidroclorotiazida 25mg/dia, Metformina 500mg/dia, 14 Sinvastatina 60mg/dia. Nos antecedentes familiares constava histórico de acidente vascular encefálico em familiares de primeiro grau. Ao exame físico de entrada apresentava-se em regular estado geral, anasarcada, pesando 68 quilos e meio, hipocorada, ausculta cardiorrespiratória e pulmonar sem alterações, exame abdominal com dor discreta difusa à palpação, presença de lesões em abdome e dorso compatíveis com esclerodermia cutânea. Exames laboratoriais iniciais denotaram: alteração da função renal (uréia: 51; creatinina: 3,24; Clearance de Creatinina estimado pela fórmula de Cockcroft-Gault de 18 ml/min), hipocalemia (potássio: 2,9), normonatremia (sódio: 134), hemograma normal com Hb: 12,1; e Urina I com 10.000 leucócitos, 32.000 hemácias e 3+ de proteínas. À princípio, foi aventada hipótese diagnóstica de Síndrome Nefrótica a esclarecer, sendo iniciado tratamento com restrição hídrica, reposição de albumina endovenosa, espironolactona 100mg, hidroclorotiazida 25mg, sintomáticos. Iniciada investigação do quadro de insuficiência renal de instalação súbita. Portanto, realizou ultrassom de rins e vias urinárias que não identificou o rim direito, e no rim esquerdo mostrava ecotextura normal com diferenciação córtico medular preservada, sem sinais de dilatação pielocalicinal e sem cálculos, parênquima com diâmetro longitudinal normal. Foi coletada urina de 24hs com volume urinário de 2000ml e proteinúria de 33,54g. Coletados albumina: 2,0 (hipoalbuminemia); anticorpos anti núcleo: não reagentes; anticorpos anti DNA: não reagentes; sorologias para Hepatites B e C, sífilis e 15 anti HIV: negativos. Função renal manteve-se com creatinina ao redor de 3 e ureia ao redor de 40; hipocalemia, Hb 12, leucograma não infeccioso. Apresentava- se com redução do volume urinário concomitante à perda ponderal e reversão da anasarca. Foi adicionado na prescrição furosemida para tentativa de melhora de função renal e regressão do edema. Feito Ecocardiograma transtorácico que evidenciou fração de ejeção normal (61%), hipertrofia concêntrica moderada do ventrículo esquerdo e função diastólica do ventrículo esquerdo grau I, sendo alterações compatíveis com o quadro de hipertensão arterial. Realizado exame de fundo de olho que demonstrou retinopatia hipertensiva leve. Com as hipóteses de Sindrome Nefrótica à esclarecer, Glomerulonefrite rapidamente progressiva, Rim da esclerodermia, Hiperfiltração renal, seguiu-se a investigação diagnóstica com a realização de biópsia renal pela equipe da Radiologia Intervencionista. Realizou em 03/07/14 biópsia renal percutânea guiada por tomografia computadorizada, sem intercorrências, fez uso de antibiótico profilático Cefalotina 500mg endovenoso 4x/dia por dois dias. Em 06/07/14 recebeu alta hospitalar com função renal ainda alterada (uréia de 54; creatinina: 3,55; Clearance de Creatinina estimado pela fórmula de Cockcroft-Gault de 15ml/min), melhora dos edemas, diurese presente, perda ponderal de 6kg (62,5kg), com retorno no ambulatório de Nefrologia agendado. Foi re-internada por outras duas vezes para compensação do edema e pela intolerância medicamentosa à Espironolactona e IECA. Retorna ao ambulatório da Nefrologia em 22/10/2014 com resultado da biópsia. Exame anatomopatológico demonstra ao exame microscópico: 33 16 glomérulos sem alterações; túbulos focalmente atróficos, com espessamento da membrana basal; interstício alargado por moderada proliferação fibroblásticas nas áreas de atrofia tubular; vasos evidenciando arteríolas com acentuado espessamento fibroso concêntrico da íntima, sem delaminação da limitante elástica interna, artérias arqueadas. Ao exame por imunofluorescência: foi tratado com os seguintes soros anti proteínas humanas: IgA, IgG, IgM, C1q, C3, fibrinogênio e albumina, que resultaram negativos. Tendo como diagnóstico: tecido renal com alterações vasculares consistentes com envolvimento renal na esclerodermia. Dado o diagnóstico de Rim da Esclerodermia, foi iniciada terapia medicamentosa com inibidor da enzima conversora da angiotensina I, no caso Enalapril 10mg/dia. Discutido caso com Reumatologia que orientou iniciar pulsoterapia com Ciclofosfamida para Esclerose sistêmica. Mantido prescrição de Furosemida 80mg, Espironolactona 100mg, Hidroclorotiazida 25mg, Enalapril 5mg. Paciente foi submetida à pulsoterapia com Ciclofosfamida, sendo o primeiro em 23/10/2014; segundo em 27/11/2014; terceiro em 27/12/2014. Na consulta ambulatorial em janeiro de 2015 paciente refere que não tolera uso de diurético Espironolactona, apresentando mal estar, êmese, inapetência; resistente ao uso de Enalapril, referindo hipotensão. As lesões de pele da Esclerodermia apresentaram melhoras, edema em membros inferiores até terço médio tibial. Função renal mantém-se alterada com proteinúria de 9,9g, clearance de creatinina 13ml/min, creatinina 4,3, uréia 69. Coletado anticorpos 17 anti scl 70: negativo. Realizado quarto pulso com Ciclofosfamida 1,0g em 27/01/2015 e quinto pulso em 03/03/2015, sexto pulso em 07/04/2015. Há melhora do edema e do quadro emético, piora progressiva da função renal, mantendo inapetência, cãimbras e perda de peso. Em uso de Espironolactona, hidroclorotiazida, furosemida, enalapril dose baixa. Encaminhada à Cirurgia Vascular para avaliação de possível confecção de fístula artério venosa para futura necessidade de terapia renal substitutiva, com hemodiálise. Devido quadro de Crise Renal Esclerodérmica (CRE) com piora importante e progressiva de função renal, não tolerância à dose correta de Inibidor da ECA, foi discutido novamente o caso com Reumatologia que solicita coleta de anticorpo anti RNA polimerase, no Hospital das Clínicas, visto que esse anticorpo confirma diagnóstico de crise renal esclerodérmica. No caso da paciente, a intolerância à droga enalapril, confere pior prognóstico da doença. Tentado então medicação Captopril, porém paciente também não tolera seu uso. Tendo em vista a piora rapidamente progressiva da função renal, a confecção de fístula artério venosa braquiocefálica com bom frêmito e pérvia ao exame ultrassom Doppler, a paciente foi inscrita no programa estadual de terapia renal substitutiva (“disk diálise”). 18 4. DISCUSSÃO O envolvimento renal ocorre quase que exclusivamente em pacientes com a forma de esclerose sistêmica difusa e se caracteriza tipicamente por um estado hiperreninêmico. O quadro clínico principal é caracterizado por: instalação de hipertensão moderada/grave, tipicamente associada ao aumento da atividade de renina plasmática, a qual geralmente está acompanhada de manifestações de hipertensão maligna como retinopatia hipertensiva (hemorragias e exsudatos) e encefalopatia hipertensiva; insuficiência renal aguda; análise de urina normal ou revelando proteinúria discreta, sendo proteinúria nefrótica um achado incomum. Outros achados podem ser encontrados: anemia hemolítica microangiopática, insuficiência cardíaca, hipertensão pulmonar, cefaleia. Este conjunto sintomático tem sido denominado “crise renal esclerodérmica” (CRE), que tem grave implicação prognóstica se não for rapidamente reconhecido e agressivamente tratado. [14] Estimativas de prevalência do envolvimento renal na esclerose sistêmica são muito variáveis, dependendo dos marcadores de nefropatia considerados e se a casuística analisada se refere a pacientes ambulatoriais, internados, ou a casos necropsiados. Quando o critério utilizado é a presença de insuficiência renal grave, a prevalência aproximada de nefropatia é de 10%. Quando são considerados outros marcadores, tais como proteinúria, redução da filtração glomerular ou hipertensão, a frequência sobe para 50%. Alterações histológicas renais encontradas durante autópsia estão presentes em até 80% dos casos. Durante a avaliação de 210 pacientes, Cannon et al encontraram 19 proteinúria em 36%, hipertensão em 21%, uremia em 19% e hipertensão maligna (crise renal esclerodérmica) em 7%. De um modo geral, o prognóstico de pacientes que apresentam proteinúria associada à hipertensão ou disfunção renal é pior do que daqueles com proteinúria isolada. [15] Em alguns pacientes com esclerodermia, a elevação dos níveis pressóricos pode ser discreta e não estar associada ao declínio rápido da função renal. Embora em alguns destes pacientes a pressão arterial elevada possa ser devido à hipertensão essencial coexistente, alterações histológicas renais e o aumento da renina plasmática sugerem fortemente a relação causal entre a vasculopatia intrarrenal e o quadro de hipertensão. Muitos pacientes com hipertensão leve permanecem estáveis por longos períodos e outros, por sua vez, desenvolvem hipertensão mais grave e insuficiência renal, frequentemente após um evento clínico como cirurgias, desidratação, insuficiência cardíaca ou derrame pericárdico. [14] Embora não se conheça o evento etiológico ou deflagrador das formas primárias da esclerose sistêmica, é possível que substâncias químicas inaladas (como sílica), ou ingeridas (triptofano contaminado), ao lado de certas viroses (como citomegalovírus), possam ser fatores ambientais envolvidos com os mecanismos da suscetibilidade para eclosão da patologia. O sistema imunológico ativado pode ser, precocemente, um fator estimulante na formação de fibrose e nas injúrias vasculares da esclerose sistêmica. Esta participação é facilitada por maior expressão de moléculas de adesão (integrinas, por exemplo), na membrana celular de linfócitos, de fibroblastos e de células endoteliais. Parece que os elementos iniciais 20 patogênicos são linfócitos t-ativados, os quais determinam especificidade à resposta imune e regulam funções de outras células. Os principais alvos dos fármacos neste mecanismo imune-mediado são: infiltrados mononucleares, produção de autoanticorpos e a estimulação de fibroblastos por citocinas e fatores de crescimento, entre estes, o fator transformador do crescimento-b (tgf-b) e o fator de crescimento derivado de plaquetas (pdgf). A imunossupressão, no entanto, não parece ser muito eficiente no controle da doença. Entre algumas opções possíveis está a Ciclosporina, potente imunomodulador celular, que tem mostrado certa eficácia, podendo inibir ações de cd4 reduzindo Il-2, diminuindo a síntese do colágeno. Porém seu uso é limitado devido sua toxicidade renal. Entre os agentes alquilantes, a Ciclofosfamida parece ter maior eficácia e, nos últimos anos, vem sendo avaliada na forma de pulsoterapia endovenosa, em quadros cutâneos e pulmonares, muitas vezes associadas à corticosteroides. No estudo de Marques Neto e cols. foi concluído que pulsos endovenosos mensais se mostraram eficientes no tratamento de esclerose sistêmica rapidamente progressiva, embora a eficácia na terapêutica da CRE ainda necessite ser melhor estabelecida. Os corticosteroides não mostraram diminuir progressão da ES, e no caso de crise renal não devem ser utilizados por piorar a insuficiência renal. A eficácia do Metotrexate não está bem definida, em quatro estudos publicados, foi apenas observada melhora com relação ao quadro cutâneo. [10,11,12,13] A presença de autoanticorpos séricos, como anti RNA polimerase, é preditora de risco para CRE. A prevalência destes anticorpos nos pacientes em 21 que a doença está progredindo para insuficiência renal, é pelo menos cinco vezes maior que nos pacientes que não apresentam progressão da doença. Caso este teste não estiver disponível, a presença de anticorpos antinúcleo pode sugerir a doença. Entretanto, a forma diagnóstica comprobatória é a biópsia renal, que não apenas confirma o diagnóstico de CRE, como também pode predizer o prognóstico e afasta outras patologias. [24,25] Os achados histopatológicos mais frequentes no tecido renal são a proliferação subintimal com obliteração da luz de vasos de pequeno e médio calibres e hipertrofia concêntrica (“anéis de cebola”); as artérias interlobulares e arqueadas podem mostrar edema da íntima e proliferação endotelial. O acúmulo de substância mucóide, composto de glicoproteínas e mucopolissacarídeos, contribui para separar o endotélio da lâmina elástica interna. A lesão mais característica dos vasos de pequeno calibre (ex. arteríola aferente) é a necrose fibrinóide. Um aspecto interessante relacionado a estas alterações microvasculares é que elas podem ser vistas em pacientes não hipertensos e sem o quadro típico da crise renal da esclerodermia. Os glomérulos geralmente mostram alterações isquêmicas traduzidas por espessamento da membrana basal, obliteração e colapso capilar, que podem evoluir para glomérulo esclerose. [16,17,18,19,20,21,22,23,31] No nosso caso relatado pudemos perceber algumas características que não são tão comuns de serem encontradas na maioria dos pacientes pesquisados, como idade avançada no momento diagnóstico, presença de proteinúria maciça no exame de urina de 24hs. O fato da paciente apresentar 22 rim único e ser idosa, pode explicar a gravidade da lesão renal associada ao fator de piora da CRE nesses casos. Infelizmente, não encontramos na literatura outro relato com as mesmas características do presente apresentado, para que pudéssemos comparar as evoluções. Na parte diagnóstica encontramos semelhantes características com o descrito na literatura, como a piora rápida progressiva da função renal, e os achados característicos visualizados na biópsia renal da paciente. Apenas não dispomos no nosso serviço da dosagem do anticorpo anti RNA polimerase, que é utilizado para confirmação laboratorial da patologia e também preditor de gravidade. [26] O tratamento da crise renal esclerodérmica deve ser realizado com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA), preferencialmente o Captopril. Deve ser iniciado tão logo seja diagnosticada a CRE, sendo a medida mais importante para preservação da função renal. No passado, sem a utilização destas drogas, a sobrevida de um ano se situava ao redor de 20%; com os IECA, as séries estudadas nos últimos anos chegam até a 75% de sobrevida. Estas drogas devem ser mantidas mesmo que ocorra elevação da creatinina sérica e mesmo que a piora da função atinja níveis dialíticos, uma vez que estas drogas provavelmente representem uma das poucas alternativas para o controle deste quadro tão grave. Não existem evidências que seu uso aja como efeito preventivo para a instalação da doença. Um estudo avaliou que o uso de IECA não impede as manifestações vasculares da doença, como fenômeno de Raynaud ou úlceras digitais isquêmicas. Diuréticos devem ser evitados pelo risco de provocar hipovolemia e estimular a secreção de renina, 23 enquanto Beta bloqueadores são usualmente contra indicados pelo risco teórico de piorar o vasoespasmo. [1,14,27,28,29,32] A CRE é uma complicação bastante grave desta doença, que costuma ocorrer durante os primeiros cinco anos após o diagnóstico da esclerose sistêmica. Quando não tratada, a crise renal esclerodérmica pode progredir para doença renal em estágio terminal (20 a 50 por cento dos pacientes), em um período de um a dois meses, com mortalidade em aproximadamente um ano. Antes do advento da diálise e dos inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), a CRE era invariavelmente fatal. O seu prognóstico melhorou com o uso dos IECA que, controlando os altos níveis de renina sérica, levam a uma progressiva melhora da função renal, de modo que muitas vezes a terapia renal substitutiva (diálise) pode ser evitada ou suspensa. Porém, o sucesso com terapêutica anti hipertensiva depende do seu início antes de ocorrer dano renal irreversível. Aproximadamente 60 por cento dos pacientes em diálise, conseguem ficar livres deste procedimento num prazo de 5 a 18 meses, se forem mantidos com IECA. É importante ressaltar que mesmo com piora da função renal, deve ser mantida a medicação, pois é o único tratamento efetivo para controle da CRE. Pacientes do sexo masculino acima de 50 anos, demora no controle pressórico, presença de insuficiência cardíaca e início dos IECA com creatinina sérica acima de 3mg/dL, constituem fatores de mau prognóstico para a reversibilidade da insuficiência renal e das outras graves consequências da vasculopatia sistêmica. [14,27,28,29,30,31,32] 24 Conforme levantamento bibliográfico, nem todos os pacientes com crise renal apresentam quadro de hipertensão arterial. Quando comparados aos hipertensos, os pacientes normotensos apresentam mais frequentemente anemia hemolítica microangiopática e plaquetopenia. O fluxo sanguíneo renal e a taxa de filtração glomerular estão reduzidos, a uremia progride rapidamente e o sedimento urinário apresenta proteinúria, hematúria microscópica e cilindros granulares. Níveis plasmáticos de renina estão constantemente elevados, embora não esteja claro se tal elevação constitua um fenômeno primário ou seria secundário à isquemia renal. O diagnóstico da crise renal torna-se relativamente fácil quando um quadro de hipertensão maligna, anemia hemolítica e insuficiência renal são detectados em um paciente com esclerose cutânea difusa. No entanto, deve ser ressaltado que muitos pacientes não têm anemia hemolítica, que a função renal pode estar limítrofe no início da crise e que, em 11% dos casos, a pressão arterial pode permanecer na faixa dos valores normais. Nesta situação, aparentemente estável, o surgimento de queixas como cefaleia constante, fadiga inexplicável, alterações visuais e dispnéia podem sugerir a fase inicial do envolvimento renal. [1,14] Após revisão dos casos estudados, percebemos a singularidade nas características da nossa paciente e a gravidade do seu quadro. A intolerância ao uso recomendado de IECA, a piora rapidamente progressiva da função renal agravada pelo fato de apresentar rim único, são fatores determinantes para pior prognóstico do caso, sendo difícil a descontinuidade do tratamento dialítico. 25 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. SAMARA, A. M. Esclerose sistêmica. Revista Brasileira de Reumatologia, Campinas.v.44, p. 9-10, 2004. 2. MEDSGER, T.A. Systemic sclerosis (scleroderma): clinical aspects. Arthritis and allies conditions:a textbook of rheumatology, Philadelphia p. 1433-1465, 1997. 3. MAYES, M.D., LACEY, J.V., BEEB-DIMMER, J., et al. Prevalence, incidence, survival, and disease characteristics of systemic sclerosis in a large US po pulation. Arthritis Rheum, v. 48, p. 2446-2455, 2003. 4. REVEILLE, J.D. Ethinicity and race in systemic sclerosis: how it affects susceptibility, severity, antibody genetics, and clinical manifestations. Curr Rheumatol rep, v.5; p. 160-167, 2003. 5. 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