Universidade de São Paulo Jornalismo História do Plano Real Danilo Bueno Ipolito Precedente: O “novo liberalismo” O fenômeno político e ideológico denominado “neoliberalismo”, popularizado a partir da década de 70 e alcançando a maior parte dos governos de países capitalistas no mundo, assumiu a condição de hegemonia cultural, com influência decisiva na economia e também nas ações cotidianas dos indivíduos, ocupando os espaços antes dominados pelo Estado que era considerado o responsável por determinar os rumos do país através do controle dos setores estratégicos. A denominação “neoliberalismo” pressupõe diferenças com relação ao conceito de “liberalismo”, amplamente difundido no século XII e XIX, principalmente a partir das observações de Adam Smith, autor de “Riquezas das Nações”, que influenciou profundamente as políticas econômicas até a queda da Bolsa de Nova York em 1929. A crise mundial fez com que os governos questionassem o poder de autorregulação do mercado e voltassem a promover investimentos em setores estratégicos, bem como criar políticas de combate ao desemprego e inflação. O liberalismo ganhou espaço com o desenvolvimento do capitalismo e a ascensão da ordem burguesa, que se contrapunha diretamente ao Estado absolutista, principal dirigente durante os primórdios da acumulação primitiva do capital que impulsionou a Revolução Industrial. A economia liberal exigia como dois de seus princípios básicos a “liberdade contratual” e a “livre circulação do capital”. Smith popularizou o conceito da “mão invisível”, que se incumbiria de compatibilizar e harmonizar as ações e os comportamentos individuais a partir da “livre concorrência”, tendo como resultado final a preservação do interesse geral. No plano internacional, o liberalismo econômico deu espaço à doutrina das “vantagens comparativas”, que fundamentava a necessidade de total liberdade comercial entre as nações, materializando os interesses comerciais da Inglaterra. O neoliberalismo, surgido no pós-Segunda Guerra foi uma reação ao keynesismo europeu e norte-americano, que se intensificou a partir da crise de 1929 e estimulou a aplicação do New Deal nos Estados Unidos, e de políticas de “Bem Estar Social” na Europa. Assim como no liberalismo, sua crítica era dirigida, mais uma vez, à intervenção estatal na economia, principalmente contra o cerceamento da “liberdade de mercado”. De acordo com a corrente neoliberal, o objetivo maior da política econômica deve ser o de defender a moeda, assegurando a estabilidade dos preços e garantir o cumprimento dos contratos e da livre concorrência. No plano internacional, estes conceitos se materializam na mobilidade de capitais e mercadorias e no fim das barreiras comerciais e de capital financeiro. Em todas as instâncias – social, política e econômica – o neoliberalismo preza pela supremacia do “indivíduo”, sendo o capitalismo formado pelo conjunto de ações individuais. Implementação das políticas neoliberais No Brasil, a força dos movimentos sociais e trabalhistas, que foi crescente durante a década de 80, e a permanência do governo militar, que tinha práticas intervencionistas e nacionalistas na direção da economia, impediram que o país aplicasse o neoliberalismo ao mesmo tempo que outros países que iniciaram o processo no final da década de 70, como os Estados Unidos com o governo Regan e a Inglaterra com Margaret Tatcher. A crise deflagrada com o fim da conversibilidade do dólar e do choque do petróleo foram os principais estímulos para o reforço nas medidas liberais dos países naquela época. Desafios do Plano Real No início dos anos 80 a partir da crise cambial no México, em 1982, começava a “crise da dívida externa”, relacionada à evidência da fragilidade dos balanços de pagamento dos países da periferia do capitalismo. Na década anterior, frente à grande liquidez de capital no mercado financeiro internacional, estes países contraíram inúmeras dívidas, sob taxas de juros muito baixas que, com o segundo choque do petróleo e com o aumento da taxa de juros norte-americana, que atingiu 19% em 1983, passaram a sofrer fortes pressões cambiais. Decidido a atacar a inflação, o governo Sarney lançou, em 1986, o Plano Cruzado, que propunha um “choque heterodoxo” na economia, criando uma nova moeda e decretando o congelamento total de preços, conseguindo aplicar um forte impacto positivo em um primeiro momento, com a redução da inflação, o crescimento da demanda e o aumento da produção e do emprego, além de uma reorganização do mercado financeiro que viu-se incapacitado de lucrar com a especulação financeira baseada na inflação. No entanto, em 11 meses a inflação voltou no nível anterior, atingindo 21% em abril do ano seguinte. Em seguida, outras duas tentativas de combate à inflação foram feitas, o Plano Bresser (1987) e o Plano Verão (1989), que tiveram o mesmo fim do Plano Cruzado e levaram ao total descrédito outras tentativas heterodoxas, principalmente o combate à inflação através de congelamento de preços. Com o governo Collor, o país assistiu à primeira iniciativa de longo prazo para conter a inflação, que foi além da simples política de estabilização, com um programa extremamente neoliberal, articulando o combate ao aumento de preços com a implementação de reformas estruturais e abertura econômica. O plano foi eficaz no combate à inflação, mas teve como consequência uma queda de 4% no PIB em 1990. O confisco das poupanças, uma das medidas do Plano Collor II mais impopulares entre a população, entre outros motivos, acarretou no impeachment e na destituição do presidente. Fundamentos teóricos O Plano Real teve como base teórica pelo menos duas vertentes: o Consenso de Washington, que deu as direções que deveriam ser tomadas e o Plano Cruzado e as discussões relativas à sua criação, tomados como um exemplo dos erros que não deveriam ser repetidos. Em novembro de 1989, em congresso convocado pelo Instituto de Economia Internacional, reuniram-se em Washington funcionários do governo dos EUA, FMI, BIRD, BID e economistas latino-americanos para debater o seguinte tema: “Ajustamento latino-americano, o que tem ocorrido?”. O congresso afirmou a excelência das medidas neoliberais que vinham sendo adotadas pelos países latinoamericanos até então, com exceção do Brasil e do Peru. A conferência apontou a importância do combate à inflação através da dolarização da economia, valorização das moedas nacionais, ajuste fiscal, aceleração das privatizações, mudanças na seguridade social, desregulamentação dos mercados e liberalização comercial e financeira. A segunda referência importante, a experiência do Plano Cruzado, forneceu um aporte teórico relacionado ao debate entre as propostas entre uma “moeda indexada” e um “choque heterodoxo”. Devido à inoperância do Plano Cruzado, que foi identificado como um “choque heterodoxo”, a outra sugestão ganhou força no desenvolvimento do Plano Real. A ideia de uma “moeda indexada” ao dólar e a outra moeda nacional paralela, ganhou força durante o desenvolvimento do Plano Cruzado e influenciou fortemente o Plano Real. Controle da inflação e estabilização econômica no Brasil, Argentina e México Os três países, Brasil, Argentina e México enfrentaram vários desafios comuns no final da década de 80 e início da década de 90, os principais deles eram a inflação que implicava em sérios problemas sociais e a necessidade de reorganização das economias e alinhamento às mudanças internacionais nestes países que ainda estavam vinculados aos programas de desenvolvimentos fortemente estatais que, no Brasil, foram implementados pelo governo militar a partir de 1964 e, sobretudo, na década de 70. O processo de desenvolvimento da uma economia liberal no México, entre 1988 e 1994, assim como no Brasil, teve como objetivo diminuir a participação do Estado na economia e avançar na liberalização do comércio externo, com destaque para as relações comerciais com os Estados Unidos e o Canadá que foram favorecidas com a entrada do país no Nafta (North American Free Trade Agreement). O processo de reformas no início da década de 90 contribui para o crescimento da economia baseado nas exportações e apoiado por uma política de desvalorização do Peso. No entanto, o crescimento foi quebrado por uma crise cambial motivada pela desconfiança do capital internacional, provocando uma instabilidade que se refletiu na saída maciça de capital e na queda abrupta das reservas do país. Na Argentina, durante o governo do presidente Carlos Menem, o Ministro da Economia Domingo Cavallo apresentou seu plano para combater a inflação, que se reverteu na Lei da Convertibilidade, que tinha como uma de suas bases o câmbio fixo, atrelado ao dólar, o que restringia a emissão de moeda ao aumento do Tesouro Nacional. Em um primeiro momento, a medida proporcionou uma estabilidade econômica sem inflação significativa que favoreceu o ingresso de capitais estrangeiros produzindo um forte crescimento do PIB. No entanto, uma recessão que teve início em 1998 e chegou ao seu auge em 2001, em parte relacionada às crises internacionais e, em parte, resultado da política de câmbio fixo, terminou por provocar o fim da Lei de Convertibilidade com altas sequelas para o país, nos níveis político, social e econômico. A economia brasileira repetiria a trajetória mexicana e argentina em alguns pontos importantes, combinando sucesso inicial no combate à inflação com elevados déficits externos e forte dependência de fluxos voláteis de capital internacional. Algumas diferenças entre os três planos são claras: o Plano Real era mais flexível e cauteloso com relação ao câmbio do que a lei de conversibilidade argentina; o plano mexicano recorreu intensamente a políticas de preços e salários que dependeu de negociações com os representantes das classes trabalhistas, diferente do que aconteceu com os planos argentino e brasileiro. No caso do Plano Real, a criação da URV (Unidade Real de Valor), que funcionou por quatro meses, foi uma medida original para evitar medidas de choque como confiscos e congelamentos, possibilitando a estabilização da moeda. No entanto, as diferenças não superam as convergências entre os três planos que buscavam a estabilização da economia e sua inserção nos padrões internacionais do neoliberalismo, que passava a ditar as novas normas do capitalismo mundial. Nas semelhanças entre os planos estão: o uso da taxa de câmbio como instrumento de combate à inflação, de acordo com o conceito de monetary standard approach que considera a importância da harmonização das políticas monetárias como uma forma de combate à inflação; a abertura da economia às importações, por meio da drástica redução das barreiras tarifárias e não-tarifárias; a abertura financeira externa, com o estímulo à entrada de capitais de curto prazo e medidas de desindexação da economia. Implantação do Plano Real O Plano Fernando Henrique Cardoso, que era ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, consistia em três fases: o ajuste fiscal, o estabelecimento da URV (Unidade de Referência de Valor) e a instituição de uma nova moeda, o Real. De acordo com os autores do plano, as reformas liberais do Estado, que estavam em andamento naquele período seriam fundamentais para efetividade do plano. A primeira fase, o “ajuste fiscal” procurava criar condições fiscais adequadas para diminuir o desequilíbrio orçamentário do Estado, principalmente sua fragilidade com financiamento, que seria um dos principais problemas relacionados à inflação. A criação do FSE (Fundo Social de Emergência), que tinha por finalidade diminuir os custos sociais derivados da execução do plano e dos cortes de impostos, foi uma das principais iniciativas do governo. A URV, o embrião da nova moeda, que terminou quando o Real começou a funcionar em 1º de julho de 1994, era um índice de inflação formado por outros três índices: O IGP-M, da Fundação Getúlio Vargas, o IPCA do IBGE e o IPC da FIPE/USP. O objetivo do governo era amarrar o URV ao dólar, preparando o caminho para a “âncora cambial” da moeda e também evitar o caráter abrupto dos outros planos, com esta ferramenta transitória. Dessa forma, ao contrário da proposta de “moeda indexada” e da criação de duas moedas, apenas separaram-se duas funções da mesma moeda, pois o URV servia como uma “unidade de conta”. A terceira fase do plano consistiu na implementação da nova moeda, que substituiria o Cruzeiro de acordo com a cotação da URV que, naquele momento, valia CR$ 2.750,00. O governo instituiu que este valor corresponderia a R$ 1,00 que, por sua vez, foi fixada pelo Banco Central em US$ 1,00, com a garantia das reservas em dólar acumuladas desde 1993. No entanto, apesar de amarrar a moeda ao dólar, o Governo não garantiu a conversibilidade das duas moedas, como ocorreu na Argentina. Dessa forma, o Real conseguiu corresponder de uma forma mais adequada às turbulências desencadeadas pela crise do México, que começou a se intensificar no final de 1994. A política de juros altos, que promoveu a entrada de capitais de curto prazo, e a abertura do país aos produtos estrangeiros, com a queda do Imposto de Importação, foram fundamentais para complementar a introdução da nova moeda e para combater a inflação e elevar os níveis de emprego. Reformas do Estado Considerada uma quarta fase da reforma econômica proposta pelo Plano Real, as reformas no Estado propiciaram o habitat ideal para a moeda criada em sintonia com o conceito de neoliberalismo, ao contrário do Estado que, como visto anteriormente, ainda carregava fortes resquícios do modelo pré-crise do petróleo, caracterizado pela regulamentação do mercado, a instituição de monopólios estatais e o forte investimento em infra-estrutura. Desta forma, os defensores do Plano Real insistiram na necessidade das reformas das áreas econômicas como a quebra dos monopólios estatais, tratamento igualitário entre empresas nacionais e estrangeiras e desregulamentação das atividades e mercados considerados até então estratégicos ou de segurança nacional. Além disso, foram empreendidas reformas tributárias, administrativas e previdenciárias. A importância destas reformas para a estabilização do país e a inserção internacional brasileira era ressaltada e abrandada nos períodos mais estáveis da economia nacional. As mudanças de ordem econômica foram aprovadas com relativa facilidade no Congresso Nacional, sendo extintos o monopólio estatal na área de prospecção, exploração e refino de petróleo e na distribuição, transmissão e geração de energia. As reformulações nas estruturas do Estado foram mais complicadas. A reforma fiscal só começou a ser discutida no Congresso com a crise cambial em janeiro de 1999. Na reforma administrativa, aprovou-se a possibilidade de demissão de funcionários públicos por excesso de quadros (quando os salários ultrapassarem 60% das receitas), e por ineficiência. As privatizações, que já estavam encaminhadas desde o governo Collor, com o PND (Programa Nacional de Desestatização), foram ampliadas e aceleradas. Nesse sentido, pode-se perceber a importância do Plano Real para a implementação do projeto liberal no Brasil e como, de fato, não foi apenas um plano solitário de estabilização monetária e sim um conjunto de medidas para impulsionar a internacionalização da economia brasileira. A Euforia do Consumo A queda da inflação de 46,60% em junho para 3,34% em agosto e a manutenção desta abaixo desse valor nos meses seguintes provocou um aumento imediato no poder aquisitivo da população de mais baixa renda, conduzindo uma explosão dos níveis de consumo que resultou em um crescimento de 5,4% no PIB de 1994. Colaborou para isso o aumento das compras a prazo e a baixa remuneração nominal das aplicações financeiras com a realocação dos recursos para o consumo. As crises Mexicana, Asiática e Russa A partir de dezembro de 1994 eclodiu a crise cambial mexicana, e a saída de capital especulativo relacionada à queda da cotação do dólar nos mercados internacionais começou a colocar em xeque a estabilização da economia nacional e o Plano Real, que dependia em grande parte do capital estrangeiro. A crise mostrou que a política de contenção da inflação com a valorização das moedas nacionais frente ao dólar não poderia ser sustentável no longo prazo. Negando sempre a similaridade entre o Brasil e o México e a Argentina, o governo passou a desacelerar a atividade econômica e a frear a abertura internacional com a elevação da taxa de juros, aumento das restrições às importações e com estímulos à exportação. Com a necessidade de opor a situação econômica brasileira à mexicana, como um sinal ao capital especulativo, o governo quis mostrar que corrigiria a trajetória de sua balança comercial, atingindo saldo positivo. Após retomada do crescimento entre abril de 1996 e junho de 1997, a crise dos “Tigres Asiáticos”, que começou com a desvalorização da moeda da Tailândia, se alastrou para Indonésia, Malásia, Filipinas e Hong Kong e acabou por atingir Nova York e os mercados financeiros mundiais. A crise obrigou o governo a elevar novamente as taxas de juros e decretar um novo ajuste fiscal. Novamente a fuga de capitais voltou a assolar a economia brasileira e o Plano Real. A conseqüência foi a demissão de 33 mil funcionários públicos não estáveis da União, suspensão do reajuste salarial do funcionalismo público, redução em 15% dos gastos em atividades e corte de 6% no valor dos projetos de investimento para 1998, o que resultou em uma diminuição de 0,12% do PIB naquele ano. A crise se intensificou em agosto com o aumento da instabilidade financeira na Rússia, com a desvalorização do rublo e a decretação da moratória por parte do governo. A resposta brasileira foi a mesma de sempre, a elevação da taxa de juros básica para até 49% e um novo pacote fiscal para o período 1999/2001. No entanto, diferentemente das outras duas crises, o governo recorreu ao FMI em dezembro de 1998, com quem obteve cerca de US$ 41,5 bilhões, comprometendo-se a manter o mesmo regime cambial, desvalorizando gradativamente o Real, acelerar as privatizações e as reformas liberais, realizar o pacote fiscal e assumir metas com relação ao superávit primário. O fim da âncora cambial Nos primeiros dias do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, em janeiro de 1999, a repercussão da crise cambial russa chegou ao seu limite no Brasil. As elevadas taxas de juros começavam a perder força como ferramenta de manutenção do capital externo na economia brasileira e um novo déficit recorde na conta de transações correntes obrigou o governo a mudar a banda cambial, que foi ampliada para R$ 1,32. Logo no primeiro dia, o Real atingiu o limite máximo da banda, sendo desvalorizado em 8,2%, o que influenciou na queda do valor dos títulos brasileiros no exterior e das bolsas de valores do mundo todo. O Banco Central tentou defender o valor da moeda, vendendo dólares, mas a saída de capitais continuou ameaçando se aproximar do limite de 20 bilhões, que foi acordado com o FMI no ano anterior. Nesse momento, o governo não teve outra escolha senão deixar o câmbio flutuar livremente, alcançando a cotação de R$ 1,98 em 13 dias. Conclusão O Plano Real efetivamente conseguiu inserir a economia brasileira no liberalismo abrindo diversas portas ao capital e aos produtos estrangeiros além de estabilizar a inflação e estimular o crescimento econômico, ainda que às custas das reservas nacionais e do crescente endividamento interno. O abandono da âncora cambial, apesar de quase acabar com as reservas do país, evitou um desastre ainda maior, como ocorreria com a Argentina alguns anos mais tarde, quando foi obrigada a abandonar a paridade com o dólar. BIBLIOGRAFIA MATTOS FILGUEIRAS, Luiz Antônio – História do Plano Real – Boitempo Editorial. 3ª edição, São Paulo, 2006 NOGUEIRA BATISTA, Paulo - O Plano Real à luz da experiência mexicana e argentina - Estud. av. vol.10 no.28 São Paulo Sept./Dec. 1996