O rap na tradição revolucionária musical Diego Braga Quem já foi a algum protesto, principalmente àqueles marcados por forte presença da juventude, sabe que dificilmente lhe faltam músicas que entoem os ideais que o animam. Música e revolução andam de mãos dadas pelas ruas do mundo, embalando, animando e consolando oprimidos e explorados onde quer que resistam ou avancem. A cultura viceja na revolução, muito embora via de regra predominem os ditames degradantes na cultura que circula majoritária, como mercadoria, à medida de sua submissão às garras tirânicas do capital. Sob o capitalismo, a única liberdade garantida é a de compra e venda. A criatividade tem como condição de fomento a possibilidade de gerar lucro. Capitalismo e viço cultural se converteram, na época imperialista, numa contradição em termos. Todas as manifestações genuínas e vigorosas de cultura viva, contra um sistema decadente que gera morte e propaga ilusões, são absorvidas e degeneradas na forma mercadoria ou esmagadas e extintas. Podem, ainda, resistir, transformando-se constantemente, como expressão libertadora dos anseios e interesses históricos dos explorados e oprimidos. Uma das últimas manifestações da dialética histórica desta dupla dinâmica – música e revolução – aconteceu no Egito, com o já consagrado músico e ator Mohamed Mounir, cujas músicas (que têm elementos de rap) Ezay (Como?) e Ali Sotak (Levante sua voz), por exemplo, foram compostas no espírito do período revolucionário que se abriu no Egito por conta da derrocada do ditador Hosni Mubarak pela força da classe trabalhadora e da juventude unidas na Praça Tahrir. Suas músicas foram censuradas nas rádios egípcias, mas o sistema não conseguiu evitar que se espalhassem como espécie de hino dos novos tempos entre a juventude. A música, hoje, segue provando que as revoluções sempre estão em pauta, e a juventude, apta a cantá-las de maneiras a todo tempo inovadoras. Apesar da acachapante modernidade que mistura batidas eletrônicas, rap e jazz a elementos de música árabe, referências a redes sociais e televisão, a tradição em que se inserem as canções revolucionárias ou de protesto como as de Mounir assinala, ao mesmo tempo, uma já antiga caminhada de luta pela liberdade e pela construção de uma sociedade mais justa. Música como tradição de liberdade e revolução Do Canto de Guerra para o Exército do Reno (que seria rebatizado como A Marselhesa) na revolução da burguesia francesa à Internacional cantada pelo proletariado na Comuna de Paris e retomada durante a Revolução Russa de 1917; da Warszawianka (Varsoviana) dos poloneses contra o império russo que por sua vez foi entoada pelos russos contra o seu próprio czar em 1905 (mais uma mostra do internacionalismo intrínseco aos interesses históricos do proletariado); da Lady Macbeth do distrito de Mtensk de Shostakovitch, gênio musical russo crítico ao stalinismo; e também da alegre espanhola La Cucaracha, que em solo revolucionário mexicano, com sua infinita variedade de letras, traz referências a Pancho Villa e satiriza o ditador Huerta; passando pelo belíssimo Vai Passar de Chico Buarque e Edu Lobo contra a ditadura no Brasil e pela imortal Grândola, Vila Morena de Zeca Afonso, estopim do levante de abril português, a tradição de músicas revolucionárias ou de protesto se configura tão rica quanto longa. As guerras civis russa e espanhola nos legaram um cancioneiro revolucionário profícuo, com hinos inesquecíveis como A las barricadas que, via versão russa, é uma recriação em língua espanhola da já mencionada Warszawianka. Só no século XX, a lista é grande demais para sequer ser mencionada em nomes aqui. Há, por exemplo, uma música cujo título virou slogan de esquerda, The Revolution Will Not Be Televised (A revolução não será televisionada), de Gil Scott-Heron, que incorpora o canto falado de protesto do rap a uma levada soul e instrumentação progressiva. Vale a pena ouvir a pegada rock de The Revolution Starts… now (A revolução começa… agora), de Steve Earle. Mas não nos enganemos com qualquer título: Revolution, dos garotos de Liverpool, trata-se de uma resposta irônica e cética à onda revolucionária que atingiu a juventude europeia em 68. Obviamente que, tendo parte desta onda referências em Mao Tse-tung, apresentava por conseguinte contradições enormes entre a liberdade que exigia e a referência burocrática e autoritária de direção que reivindicava, estando a resposta crítica dos Beatles ao menos parcialmente justificada. As próprias spirituals, músicas de teor religioso cristão cantadas pelos negros nos EUA, ao mesmo tempo em que são expressão de um processo de imposição cultural e ideológica violento e mistificador associado à realidade da escravidão, testemunham igualmente sobre a criatividade daqueles que se apropriaram do cristianismo e o manifestaram em música contagiante e única. Não bastasse, as spirituals serviram, simultaneamente, não raro como forma de comunicação entre escravos de distintas regiões. De modo mais elaborado, estas canções religiosas eram maneiras de passar mensagens em forma cifrada ou metafórica entre escravos, indicando rotas de fuga e pontos onde poderiam encontrar ajuda. Por exemplo, uma das rotas mais comuns atravessava os estados livres do norte dos EUA, rumo ao Canadá, pela chamada Ferrovia Subterrânea, linha férrea que levava muitos negros fugidos da escravidão para territórios onde esta prática era oficialmente condenada. Estes trens repletos de negros em busca da liberdade foram chamados de Gospel Trains, (Trens do Evangelho), na música The Gospel Train’s a Comin’ (Os Trens do Evangelho Estão Chegando). Ou seja, a própria ideologia mistificadora imposta pelos proprietários brancos aos escravos negros, que reservava a libertação para depois da morte, era transmutada por estes escravos em música cuja linguagem metafórica indicava os caminhos da liberdade em plena vida, a liberdade genuína e possível. Com o rap não é diferente, embora o caminho talvez seja o oposto. Um dos grandes símbolos da resistência e da consciência racial negra, de sua riqueza e criatividade, está também eivado de contradições. Esta forma musical, tornada sucesso mundial, foi apropriada pelo grande capital da indústria de cultura e transformada em canal ideológico predominantemente alienante e opressivo na vertente mais mercantil do rap atual. Não que estivesse isento de contradições desde suas origens, mas nos referimos aqui à vertente que faz uma apologia à mais alienante das mercadorias, o dinheiro[1], e retrata brutalmente as mulheres como objeto, por exemplo. Raízes africanas e americanas do Rap Apesar de hoje não ser utilizada exclusivamente por artistas negros, historicamente, a linguagem do rap moderno tem como antepassada a tradição africana de récita poética acompanhada por tambores e instrumentos melódicos, uma arte de contar histórias, transmitir e atualizar a sabedoria tribal. Esta arte era própria de poetas-cantores-sábios chamados griots[2], jali ou jeli, que atuavam em regiões da África Ocidental habitadas pelos Mandingas, os Fulas, os Hauçás e outros povos. Estes sábios cantores normalmente estavam a serviço de reis, como conselheiros, embora também atuassem entre o comum do povo, nos vilarejos. A arte dos griots continua viva e importante em diversas regiões da África ainda hoje. Foi através da barbárie da escravidão que milhões de negros, dentre os quais havia decerto inúmeros griots, foram trazidos agrilhoados em tumbeiros para as Américas. O apego dos negros à sua cultura, àquilo que os afirmava como seres humanos e não como mercadorias, constituiu uma das principais formas de resistência à disposição contra o flagelo da escravidão [3]. Nas plantations, as grandes plantações de algodão trabalhadas por escravos no sul dos EUA, os negros e negras cantavam para embalar o ritmo de trabalho. Não raro, este canto era imposto pelo próprio dono da plantação, como forma de dar ritmo ao trabalho, otimizando a produtividade. Ocorre que, historicamente, as classes e setores sociais oprimidos sempre foram capazes de transformar dialeticamente uma situação de opressão em contexto de libertação. Assim, por exemplo, ocorre quando os trabalhadores, levados pela burguesia à penúria, decidem lutar contra a miséria e se chocam inevitavelmente contra as bases da própria sociedade burguesa. A miséria que a própria burguesia exploradora cria pode ser uma força propulsora para lutas que tendem a destruir a própria sociedade burguesa. Da mesma forma, aquele canto de trabalho escravo muitas vezes estimulado pelo escravista era ao mesmo tempo coordenado pela técnica do chamado-e-resposta[4]: um cantor dentre os escravos trabalhando na plantation dirigia a cantoria, “puxando” uma estrofe ou verso, que por sua vez era respondida em coro pelos demais. Esta técnica da música negra trazida para as Américas por africanos está também na raiz de estilos de samba como o partido alto, por exemplo. Incorporando a música ao trabalho forçado, única atividade que lhes cabia na sociedade escravista, os negros mantiveram viva sua cultura ao adaptá-la às novas condições – brutais – e transformá-la numa forma de resistência à cruenta desumanização feita em prol da acumulação de capital. O rap, em suas raízes, traz consigo as origens em solo geográfico e cultural africano, mas também incorpora o lamento pelo suplício da escravidão após o traslado da raça negra às plantações, tecendo em suas estrofes a longa história de resistência contra este flagelo e suas reminiscências modernas. Afinal, esta luta continuou quando a escravidão em sentido estrito se transformou em escravidão assalariada, transformação que não alterou muito o complexo ideológico com o qual a exploração capitalista se abateu com maior intensidade sobre o povo negro: o racismo. A manutenção do racismo sob a igualdade formal da democracia burguesa serve à intensificação da exploração pela desigualdade salarial de que são vítimas os povos negros. No Brasil, esta desigualdade de facto disfarçada pela igualdade de jus é mascarada ainda pelo terrível mito da democracia racial brasileira, que procura impedir que os negros se organizem e lutem contra o racismo uma vez que este mito afirma que, por aqui, o racismo “não existe”. O rap, neste contexto, seguiu como expressão de afirmação de negritude por um lado, e de resistência contra o racismo e os males inerentes ao capitalismo por outro. Desde sua entrada no Brasil nos anos 80, uma das tarefas do que de melhor há no rap nacional tem sido justamente desmascarar a realidade com rimas e ritmos magistralmente adaptados à prosódia brasileira. Obviamente, como já dissemos, também o nosso rap está eivado de contradições, com diferenças de grau. Há muito machismo, muita homofobia, muita capitulação às ideologias burguesas que alimentam e refletem a própria violência social contra a qual se levantam as vozes mesmas do rap. Criatividade e tradição como voz da liberdade e da resistência Nascido com a juventude negra dos EUA como arte de rua nos anos 70, o rap foi desenvolvido inicialmente nas festas de comunidades em Nova Iorque, sobretudo na região sul do Bronx, predominantemente habitada por negros. Os DJs (disc jockeys, aqueles que “pilotam” os discos) começaram a isolar batidas de estilos diversos de música negra como funk, soul, etc, ou a estender determinada parte de uma música à vontade, pela repetição. Funcionava mais ou menos como aconteceu com o DJ Kook Herc, em 1973. Usando dois toca-discos, ambos com o clássico Give it up or turn it a loose, de James Brown, Kool Herc deixou que um dos toca-discos tocasse uma parte da música e depois, imediatamente, mudou para o outro toca-discos, já preparado para tocar a mesma parte da música. Ele pode assim ficar alternando entre os toca-discos, repetindo à vontade determinada parte da música. Assim se recriava, em linguagem de rap moderno, uma das principais características da música dos griots, a repetição de determinada passagem, só que agora modernizada, não mais pela técnica do chamado-resposta. O toca-discos, até então instrumento de mera reprodução de uma música gravada, foi como que reinventado por aqueles jovens negros como instrumento de produção de músicas sempre novas a partir das que já haviam sido feitas. A técnica hoje conhecida como looping ajudou a transformar a reprodutibilidade técnica da arte sob o capitalismo de que falou Walter Benjamin (1994) numa técnica de produção de novidade [5]. Não novidade como um fim em si, novidade mercantil, mas novidade a serviço de uma linguagem musical originalmente voltada para o protesto contra o racismo e as mazelas do capital. Com o rap, a juventude negra dos EUA criava um estilo musical a partir de suas bases africanas, apto a falar a voz da modernidade e que logo se espalharia pelo mundo. A repetição de determinada passagem musical gravada em disco pelo looping, contudo, ainda não era o rap propriamente dito, mas uma de suas bases, de seus aspectos decisivos. O canto falado tão característico do rap se desenvolveu em conjunto com outros de seus aspectos. Este também tem suas origens em tradições africanas, uma vez que deriva de técnicas de recital narrativo ritmado, uma técnica mnemônica para armazenar e transmitir informações numa cultura ágrafa. No entanto, o canto falado do rap moderno é fundamentalmente uma forma de arte contemporânea. Aquelas festas nas periferias do Bronx em que a juventude negra, oprimida e superexplorada se reunia eram ocasiões em que se trocavam experiências, se compartilhavam os dramas, realizavam-se disputas numa espécie de assembléia política ritmada, expunham-se as esperanças e a poesia nascida da vida comum daqueles jovens [6]. Assim, as festas onde nasceria o rap consistiam em importante espaço para intervenções ao microfone, inicialmente entre uma música e outra, mas logo as falas começaram a se incorporar nas próprias músicas. Desta feita consubstanciou-se em linguagem moderna a velha tradição da crônica musicada, a expressão da voz coletiva por meio do talento individualizado de um artista que se identificava fundamentalmente como artista daquela comunidade e não como um indivíduo especial, isolado e supostamente autônomo em relação à sociedade em que vive. A figura do MC (Master of Ceremony, ou seja, o Mestre de Cerimônias, aquele que, de posse do microfone, comanda a festa com seus discursos e versos) surge, então, no contexto destas festas, como parte fundamental do estilo que logo viria a ser denominado de rap. A aculturação brasileira do rap e a voz da mulher negra Muitos de nossos rappers incorporam ao ritmo estadunidense elementos específicos da linguagem musical brasileira, como melodias modais, instrumentação latina e síncopes próprias de ritmos afro-brasileiros, sem contar elementos mais vanguardistas como certo atonalismo que já fora explorado nos incomparáveis fraseados jazzísticos de um John Coltrane. Salvo exceções, a matriz africana do rap não nos deixa sentir grande estranhamento ao se fundir nossa música com este estilo importado dos EUA. Está longe de ser simplesmente uma imitação ou reprodução da cultura imperialista em solo brasileiro, e não menos pelo fato de que esta linha de força cultural seja de matriz negra. O nacionalismo, mesmo no caso de um país semicolonial como o Brasil, pode nos tornar vesgos se não for tomado dialeticamente. O rap é expressão musical de toda uma cultura urbana negra contemporânea de raiz estadunidense conhecida como cultura hip-hop, que inclui formas de vestimenta, de dança, de linguagem verbal e visual (o graffiti) e também uma determinada visão política que consiste, de modo bem amplo, em ser um canal cultural de expressão contra a exploração e a opressão racial, mas não apenas estas. Um dos mais felizes exemplos disto é que as mulheres negras de nosso país vêm fazendo o rap dar um passo à frente na sua longa história. Em matéria recente na revista R, que inclui entrevistas com as principais expoentes mulheres – a maioria negras – da nova geração do rap nacional, Janaína Oliveira e Shuellen Peixoto (2015: 17-21) mostram que este estilo, ainda dominado por homens, cada vez mais se torna expressão de uma voz que funde, na essência tradicional de suas letras de protesto, a voz do feminismo e do combate à opressão contra os LGBTs. Nesta entrevista, ficamos sabendo, por exemplo, como a rapper Luana Hansen põe sua música em unidade com sua luta pela emancipação feminina e LGBT, levantando pautas importantes – mas raramente enunciadas na nossa música – como a defesa da descriminalização do aborto na poderosa e ousada Ventre Livre, que já no título claramente faz referência à questão negra aliada à questão femininista. Os depoimentos das outras rappers entrevistadas, Preta Rara (cuja Audácia tem uma pegada rap clássica contagiante), Yzalú (vale ouvir Cabeça de Nego) e Lurdez da Luz (destaque para Levante), apontam em direções análogas. É uma entrevista que enche nosso coração de alegria, nossa vista de esperança, e oxigena as ideias acerca da real situação da música popular brasileira que, se a fôssemos julgar pelo que a TV mostra, deveríamos julgar degradada e angustiante. Não podemos ter uma atitude populista e demagógica para com a música popular, celebrando-a simplesmente, sem identificar nela também as marcas e reflexos da opressão, expressões da alienação, da carência de educação de qualidade, de tempo livre, dentre tantas outras coisas que serão superadas, enriquecendo ainda mais a música popular, com a construção de uma sociedade socialista, sem exploração e apta a nos levar a uma derrota definitiva a todas as formas de opressão. A visada demagógica pode servir para esconder a necessidade de elevação do nível cultural das massas como parte do processo revolucionário. Tal elevação significa que tal como é preciso expropriar as fábricas, bancos e terras, não para explorar trabalho, mas para libertá-lo, também é necessário que os trabalhadores se apropriem do rico legado da cultura burguesa, não para repeti-la servilmente. Antes, para criar pela primeira vez uma cultura universal sem limites de classe. De modo contrário, também é errônea a visada elitista, simplesmente condenadora, que vê na cultura popular apenas pobreza simplória, degradação cultural e expressão tosca. Trata-se, neste caso, de negar voz aos oprimidos e explorados, tratando a cultura como prerrogativa da burguesia e de seus servos mais ou menos conscientes. Em suma, é preciso olhar a cultura popular, em que o rap já se inclui, de frente, perceber o que esta forma de arte tem de mais valioso e que deve ser valorizado e desenvolvido. Da mesma forma, identificar o que nela grassa de violento, retrógrado e bárbaro, para que destes elementos possamos depurá-la. É isto o que as mulheres do rap brasileiro vêm fazendo, por notável exemplo. Ao mesmo tempo em que a grande mídia e o grande capital investido na cultura transformam o rap em veículo de culto à mercadoria e ao dinheiro, em linguagem de reificação machista do corpo da mulher, em expressão muda para os protestos de raça e de classe, de gênero e de sexualidade, por outro lado vemos o rap avançar, incorporando pautas feministas e LGBTs, sendo cada vez mais absorvido e transmutado em expressão musical brasileira e seguindo vivo na história[7]. Esta história se lê refletida neste embate que se verifica no seio da própria expressão musical do rap: de um lado, a reação a serviço da burguesia, girando as rodas do capital; de outro, a revolução, ainda que latente, expressa na voz dos oprimidos, força propulsora para a construção de uma nova etapa histórica. Tal é a mesma história que já fora definida há muito tempo por Marx e Engels como luta de classes. A luta de classes, portanto, também está presente no rap, o qual acentua sobretudo o viés de raça oprimida ao situar-se na trincheira da classe explorada. Também no rap cabe escolher um dos lados. A cultura, ao contrário do que prega a ideologia burguesa, não é um terreno livre de conflitos sociais. Não podemos deixar que a ideologia burguesa, cooptando artistas através das liberalíssimas imposições da ditadura do mercado, volte o cano que dispara as letras do rap contra nós. As principais vítimas destes disparos são sempre os negros, as mulheres negras e os LGBTs filhos da classe trabalhadora. Notas [1] “A venda é a prática da alienação. Assim como o homem – enquanto permanece sujeito às cadeias religiosas – só sabe expressar sua essência convertendo-a num ser fantástico, num ser estranho a ele, assim também só poderá conduzir-se praticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser estranho e conferindo-lhes o significado de uma essência estranha, do dinheiro.”. (MARX, s.d.) [2] “O escritor, historiador, etnólogo e um dos maiores especialista em tradições africana, Amadou Hampaté Bâ, no seu texto ―”A tradição viva”, nos informará detalhadamente quem seriam os ―”griots”, e em uma das partes do texto dedicado a estes, chamados de ― “Os animadores públicos ou ‘griots’ (‘dieli’ em bambara)”, começa assim: Se as ciências ocultas e esotéricas são privilégios dos ‘mestres da faca’ e dos chantres dos deuses, a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o pais ou estão ligados a uma família. Em seguida, classifica-os em 3 categorias: primeiro, ― “os griots músicos, [o qual nos interessa, particularmente, neste trabalho], que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são cantatores maravilhosos, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso compositores”. Segundo, ― “os griots ‘embaixadores‘ e cortesões, responsáveis pela mediação entre as grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única família.” Terceiro, ― “os griots genealogistas, historiadores ou poetas(ou os três ao mesmo tempo), em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família” (TORRES, 2009: 71) [3] “A vida familiar era decisiva para os escravos na criação de um espaço de afirmação dos elementos mais básicos de sua humanidade. Havia inúmeras outras formas. Rituais de todos os tipos eram importantes para os escravos em todo lugar. A celebração de nascimentos, casamentos, funerais, aniversários, festas religiosas e seculares como o Ano Novo eram tão importantes para as populações escravas como para os homens e mulheres livres. Os escravos insistiam em organizar e participar nestas e noutras celebrações coletivas em que usavam suas melhores, roupas, preparavam refeições elaboradas e tocavam música festiva, dançavam, bebiam e se alegravam como quaisquer seres humanos em celebrações.” (BERGAD, 2007:177 – tradução nossa) [4] A técnica do chamado-e-resposta própria das tradições musicais africanas que vieram para as Américas se diferencia do canto antifônico da música europeia por uma série de fatores complexos explicados minuciosamente por Waterman (1990) em linguagem razoavelmente acessível ao leigo em musicologia. Uma das diferenças mais claras é que o canto africano, tendo como base a “o sentido de metrônomo” (a noção de uma batida regular, mas ausente na execução instrumental, com que o músico trabalha na tradição africana, e da qual derivam, direta ou indiretamente, as principais peculiaridades das tradições distintas da música africana), sobrepõe o canto do chamado com o canto coral de resposta, uma vez que a base do canto é o ritmo, não a melodia (WATERMAN, 1990: 89-90). [5] Obviamente que as questões coirmãs da reprodutibilidade técnica e da cultura de massas são vistas por Benjamin, pensador radicalmente dialético, de uma maneira mais rica, mais total, mais contraditória. O fenômeno não é meramente identificado como um subproduto da degeneração cultural capitalista, como tende a ser visto por Adorno e Horkheimer. Benjamin argumenta que “Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN, 1994: 170), ao mesmo tempo em que reconhece os novos problemas que reprodução técnica coloca à cultura: “(…)Mas, enquanto o autêntico preserva toda a sua autoridade com relação à reprodução manual, em geral considerada uma falsificação, o mesmo não ocorre no que diz respeito à reprodução técnica, e isso por duas razões. Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica tem mais autonomia que a reprodução manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original, acessíveis à objetiva (…) mas não acessíveis ao olhar humano. (…) Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio do amador1; O coro, executado ao ar livre, pode ser ouvido num quarto. (…) elas [as cópias] desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora” (idem: 167-8). “(…) com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. (…) Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política” (idem: 171-2, grifos do autor).Neste sentido, o que afirmamos é que à cultura de resistência ou revolucionária cabe superar os aspectos negativos da contradição cultural debatida por Benjamin como traço da era da reprodução.Este processo, sem dúvida, deve ser constante. Uma tradição musical não será para sempre expressão de contestação e resistência simplesmente porque seus traços de origem rementem à revolução. [6] Trata-se de uma tradição musical fundada em uma matriz cultural pré-capitalista que foi transportada para dentro do capitalismo e a ele forçada a adaptar-se. Neste sentido, a separação alienante entre ética e estética não lhe é tão avassaladora (ao menos nas suas melhores partes), nem o critério de julgamento puramente individualizante e formal: “(…) entre músicos africanos um julgamento estético (isto soa bem) é necessariamente também um julgamento ético (isso é bom). A questão é o “equilíbrio”: “a qualidade das relações rítmicas” descreve a qualidade da vida social. “Neste sentido, o estilo é uma outra palavra para a percepção das relações”. Sem equilíbrio e “coolness” [termo em inglês que, especificamente no linguajar de músicos negros, designa certa qualidade de uma música ou passagem musical que comporta a totalidade dos valores essenciais pelos quais se a deve julgar ética-esteticamente], o músico africando perde seu domínio estético, e a música abdica de sua autoridade social, torandose tão somente vibrante [não equilibrada], intensa, limitada, pretensiosa, abertamente pessoal, enfadonha, irrelevante e em última instância alienante” (FRITH, 1996: 124 – tradução nossa) [7] Sobre expressão de grande citando o o caráter contraditório da cultura popular como de conformismo e de resistência, ao mesmo tempo, é valor a obra de Marilena Chauí (1986). Por exemplo, trabalho de Ruth B. L. Terra, Memórias de Lutas: Literatura de Folhetos do Nordeste, 1893-1930, analisa no cordel, dentre outros, dois temas. Na categoria das ‘queixas gerais’, o poeta contradiz o que o jornal – instrumento dos poderosos – diz que acontece, queixando-se contra a pobreza e problemas correlatos, bem como a opressão e exploração pelos ricos e poderosos, retratados de modo satírico. No caso do miserável, a pobreza aparece como ordem natual das coisas ou vontade de Deus. No caso dos trabalhadores rurais e seringueiros, como resultado da exploração. Em tom conservador também critica a vaidade feminina, o avanço tecnológico que não elimina a miséria, defendem a família contra o trabalho feminino assalariado, idealizando o passado. [CHAUÍ, 1986: 155-7]. O outro tema é o das ‘salvações’, que tratam do povo em armas, do banditismo e do cangaço em oposição à hierarquia do poder instituído, das oligarquias locais ao governo federal. O sertão e o nordeste não aparecem isolados, mas integrados à política do país. Contrapondo-se à disputa pelo poder político, própria dos poderosos, a ética aqui é a da sedição, o direito à rebelião coletiva. O passado, por meio de sua expressão literária como gesta e romance, instaura a ética da honra e da luta contra a opressão [idem: 157-8]. Há ainda inúmeros outros exemplos nesta obra, sob a luz de um conceito bem amplo de cultura, como por exemplo o uso da bandeira nacional como escudo contra a repressão pelos operários durante da ditadura. Referências Bibliográficas BEGARD, Laird. The Comparative Histories of Slavery in Brazil, Cuba and the United States. New York: Cambridge University Press, 2007. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, v. 1). São Paulo: Duas Cidades, 1994, 7a edição. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. FRITH, Simon. “Music and Identity”, in: HALL, Stuart; DU GAY, Paul (eds). 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Jackson: University Press of Mississippi, 1990. 30 anos do primeiro disco da Legião Urbana na visão de um Legionário Carlos Dias No começo de 1985 a vida sorria para os torcedores do Fluminense, o tricolor carioca era bicampeão estadual (numa época em que isso valia muita coisa) e campeão brasileiro, numa histórica final doméstica contra o Vasco. Um desses tricolores, Dado Villa-Lobos, guitarrista da Legião Urbana, iniciava a gravação do primeiro álbum da sua banda no Rio de Janeiro, após apenas sonhar com o Maracanã por anos em Brasília. Neste ano de 2015, aquele disco, batizado simplesmente de Legião Urbana e usualmente conhecido como “o primeiro”, completa 30 anos de seu lançamento. O Começo Mas nossa história começa um pouco antes disso, em 1983. Em março daquele ano a Legião Urbana iniciou uma série de shows semanais com outros grupos brasilienses na Associação Brasileira de Odontologia(!), localizada na 616 Sul. O Brasil vivia os últimos anos da ditadura militar e a banda tentava escapar do cerco dos censores com táticas de guerrilha: “antes de cada apresentação éramos obrigados a enviar para a instituição responsável pela censura a letra de cada canção”, lembra Dado. “Para ter as músicas liberadas trocávamos as palavras mais fortes por outras mais suaves no formulário que entregávamos para a censura”, conta o músico numa ensolarada tarde de verão carioca. A série de shows na ABO, aliada a várias outras apresentações que o grupo fez pela cidade, chamou a atenção do então diretor-artístico da EMI-Odeon, Jorge Davidson, que convidou os quatro rapazes para gravar um compacto (nunca lançado), que incluiria “Ainda é Cedo” e “Geração Coca-Cola”. Quando a Legião chegou à Cidade Maravilhosa, Davidson se deu conta do tesouro que tinha em mãos. Além das duas músicas citadas acima, o grupo já tinha prontas “O Reggae”, “Teorema” e “Baader-Meinhof Blues” (cujo nome é uma referência ao grupo guerrilheiro alemão dos anos 1970), pra citar apenas três clássicos. “Era um sonho pra gente, imagina, era a mesma gravadora dos Paralamas nos contratando. Por sinal, o Herbert Vianna, que já era nosso amigo, também deu bastante força”, diz o artista, que tinha apenas 18 anos na época. Só que não seria naquele momento que o sonho se tornaria realidade. O primeiro produtor escalado para acompanhar o grupo na gravação do álbum foi Marcelo Sussekind, excelente profissional, porém com uma pegada de rock’n’roll tradicional (basta lembrar que ele fazia parte do grupo de hard rock Herva Doce): não rolou… A segunda tentativa trouxe Rick Ferreira, fiel escudeiro de Raul Seixas. Mais uma vez, água; o choque de gerações foi mais forte. “O Davidson nos mostrou um LP do Bob Seger, que era como ele achava que nosso som poderia ser, na época éramos um pouco radicais, não era o que queríamos”, afirma Dado. Achando o Tom Os fracassos no estúdio levaram a banda de volta a Brasília. “O que nos salvou foi um papo que tivemos com o Mayrton Bahia (histórico produtor musical), foi empatia imediata, conversamos horas com ele, o Mayrton era mais antenado com o que acontecia na cena musical naquela época”. Além de Mayrton, surge outra figura-chave: o jornalista José Emílio Rondeau. Ao lado da também jornalista Ana Maria Bahiana, Rondeau editava a revista Pipoca Moderna, publicação aberta para a nova cena musical, que apresentava para o Brasil (naquela época não havia internet…) talentos como Gang of Four, Joy Division e Talking Heads, grupos que exerceram bastante influência na jovem Legião Urbana. Assim, sob a batuta de Rondeau e com a supervisão luxuosa de Mayrton, o grupo acha o tom e consegue avançar no estúdio. “Foi uma época muito bacana, estávamos num hotel em Copacabana e todo dia pegávamos o ônibus pra Botafogo, pra gravar na sede da EMI. “Por Enquanto” foi a última música a ficar pronta”, recorda o legionário. O som novo “lembro que fera, mas Gonzaguinha da banda causava alguma estranheza na gravadora: havia um engenheiro de produção, Amaro Moço, cara que estava acostumado a gravar Clara Nunes, e afins. Quando terminamos o disco, virei pra ele e perguntei, diz aí, Amaro, qual música você gostou mais? Lembro que fiquei surpreso quando ele respondeu ‘BaaderMeinhof Blues’”, recorda Dado. Curiosamente, a adição de violões e guitarras menos distorcidas e mais melódicas acabou dando razão a Davidson: “pois é, nosso primeiro LP até lembrava um pouco Bob Seger”, ri Dado. Rock in Censura Rio e a Volta da Um pouco antes do lançamento do disco, que aconteceu em março de 1985, o Rio de Janeiro recebeu o Rock in Rio, a Legião, ainda sem álbum na praça, não foi sondada para participar do festival. “Lembro que assisti ao RiR em Brasília, numa TV preto e branco de 14 polegadas. Mas o festival foi fundamental para institucionalizar o Rock no Brasil, de certa maneira ele abriu caminho para que nosso disco de estreia fosse bem recebido pelo público”. E como foi… Legião Urbana vendeu cem mil cópias em pouco tempo (disco de ouro), e já acumula mais de um milhão de unidade vendidas nesses trinta anos. Dado conta qual era sua expectativa: “a gente fez o que tinha que fazer, a banda deu o máximo, eram muitas músicas boas, mas lembro que minha grande dúvida na época era se as músicas tocariam no rádio”, recorda. Curiosamente, a Legião Urbana voltou a ter problemas com a censura em 1987, quando o país vivia sob o governo de José Sarney (eleito vice-presidente pelo colégio eleitoral na chapa de Tancredo Neves). O terceiro LP do grupo, Que País é este, teve censuradas as faixas “Conexão Amazônica” e “Faroeste Caboclo”. Ambas tiveram a execução pública proibida. Hoje Trinta anos e 20 milhões de cópias vendidas do trabalho da Legião depois, Dado faz parte da Panamericana, banda na qual está ao lado de Dé Palmeira, Charles Gavin e Toni Platão, e que tem como objetivo estreitar e fortalecer os vínculos culturais e musicais do Brasil com os países irmãos, divulgando, com versões em português, algumas das canções mais importantes do pop e do rock hispanoamericano. Além disso, tem um programa de 25 minutos no canal Bis, O Estúdio do Dado, onde recebe e canta com artistas com que tem uma relação forte, em seu estúdio localizado no bairro do Horto (Zona Sul do Rio de Janeiro). Em 2012 o artista – hoje com 49 anos – lançou seu segundo álbum solo O Passo do Colapso. Está previsto para abril deste ano de 2015 o lançamento de Dado Villa-Lobos: Memórias de um Legionário (Mauad/Ediouro), biografia escrita por Dado em parceria com Felipe Demier e Romulo Mattos. Já a suculenta coleção O Livro do Disco, editada pela carioca Cobogó, promete para breve livro sobre As Quatro Estações (quarto álbum da Legião Urbana), escrito por Mariano Marovatto. John Lennon: a trajetória política de um beatle de esquerda (parte 2) Romulo Mattos Encerramos o texto anterior com a afirmação de que, no início dos anos 1970, John Lennon viveu o seu período de maior radicalização política, o que pode ser constatado em suas canções e na entrevista concedida ao jornal trotskista Red Mole. Neste segundo artigo, abordaremos as suas composições mais expressivas, no que diz respeito ao ativismo de esquerda. Vimos que o pacifismo hippie ocupava um lugar importante no pensamento político do artista, na segunda metade dos anos 1960. Embora Lennon contestasse os valores da sociedade tradicional, a crença no ideal de não-violência o levava a pregar contra a revolução e o conflito, em músicas e frases de efeito dirigidas à grande imprensa. Em debate público com intelectuais da Nova Esquerda inglesa, o beatle chegou mesmo a menosprezar o conceito de luta de classes. O ídolo pop e os partidários da renovada esquerda britânica compartilhavam os anseios de transformação social, que atingiram níveis elevados em 1968; mas havia diferenças significativas, principalmente, no que diz respeito à forma como essas mudanças mais amplas seriam efetivadas. Seguindo a cartilha hippie, Lennon dava como superada a proposta de enfrentamento político, prezada por ativistas daquele grupo; acima de tudo, acreditava em que a transformação individual fosse um passo indispensável para a transformação coletiva. Vale lembrar que nos Estados Unidos também havia uma desconfiança mútua entre os estudantes ligados ao Free Speech Movement, o grupo da Universidade de Berkeley que tanto lutou pelos direitos civis, e a turma que ouvia rock e consumia drogas no território hippie de Haight-Ashbury, em São Francisco. Decerto, esses dois grupos que pretendiam criar uma nova América apresentavam estratégia de luta e filosofia diferentes. Mas “a agitação política […] de Berkeley, combinada com uma vida voltada para a criatividade, fora do regime de trabalho e dos objetivos comerciais da sociedade americana, seduzia a cada dia novos adeptos” (MERHEB, 2012, p. 139). Em Londres, embora John Hoyland, crítico musical identificado com a Nova Esquerda, houvesse ironizado o potencial político de “Revolution” (“Revolução”) – “tão revolucionária quanto uma novela de rádio” (ALI, 2008, pp. 371-2) –, o mesmo podia considerar Lennon um companheiro de luta, ao comentar a prisão desse último, por porte de drogas: “talvez agora você perceba o que está (estamos) enfrentando” (idem). No documentário The U.S. vs. John Lennon, de David Leaf e John Scheinfeld (2006), Tariq Ali, outro intelectual relacionado com a Nova Esquerda britânica, recordou com admiração a pregação antibelicista empreendida pelo cantor. A campanha mundial “War is over (if you want it)” – “A guerra acabou (se você quiser)” –, veiculada no natal de 1969, por exemplo, incluía cartazes e outdoors pagos pelo próprio cantor, que considerava o custo dessa operação “mais barato que a vida de uma pessoa” (idem). Para Ali, o protesto de Lennon contra a Guerra do Vietnã ia ao encontro dos objetivos da Nova Esquerda, que apreciava a originalidade dos métodos empregados pelo artista, verificada nos bed-ins promovidos em Amsterdã e Montreal. Em seu livro de memórias, Ali (2008, p. 348) não teve a pretensão de acreditar em que o seu pensamento tivesse influenciado de forma decisiva o músico na virada da década de 1960 para a de 1970. Embora esse último tenha ficado empolgado com as conversas travadas entre os dois, o primeiro demonstrou ter a consciência de que a época politizou Lennon. Mais amplamente, entre 1968 e 1972, é possível observar um ciclo de canções políticas em sua obra, iniciado com o single “Revolution” e encerrado com o disco Some Time in New York City. Dentro desse quadro, a sua palavra cantada começou a se radicalizar em 1970. “Working Class Hero” (“Herói da classe trabalhadora”) foi incluída no disco John Lennon/Plastic Ono Band, gravado em outubro de 1970 e lançado no mês seguinte. A composição mostra a influência do movimento político de esquerda e de seus pensadores. A expressão presente no título indica não um militante e sim uma pessoa que, nascida nas classes mais pobres, ascendeu socialmente. É muito usada para pop stars, jogadores de futebol, astros de cinema, entre outros. Por meio dessa canção, Lennon menosprezava a glória de ser um superastro, à medida que essa era a opção que o sistema permitia a um garoto da classe trabalhadora. Nesse sentido, via a si próprio como uma conveniente válvula de escape para o sistema burguês. O cantor primeiramente denuncia as regras da família e da escola, que diminuem o indivíduo: “Te machucam em casa e te batem na escola/ Te odeiam se você é esperto e desprezam os tolos/ Até você ficar tão pirado que não consegue seguir as regras deles/ Vale a pena ser um herói da classe trabalhadora” (“They hurt you at home and they hit you at school/ They hate you if you’re clever and they despise a fool/ Till you’re so fucking crazy you can’t follow their rules/ A working class hero is something to be”). Em seguida, ressalta o pensamento de que os trabalhadores podiam ser usados pelos estratos dominantes para construir a riqueza e permanecer sem consciência de classe: “Mantém você drogado com religião, sexo e TV/ E você se acha tão astuto, sem classe social e livre/ Mas ainda não passa de um peão, para mim/ Vale a pena ser um herói da classe trabalhadora” (Keep you doped with religion and sex and TV/ And you think you’re so clever and classless and free/ But you’re still fucking peasants as far as I can see/ A working class hero is something to be). Na entrevista concedida à revista Rolling Stone (que chamou a atenção de Ali), em 1970, Lennon afirmou: “Eu acho que é uma canção revolucionária […] Eu acho que é para as pessoas como eu, que são da classe trabalhadora, de quem se espera que sejam processados para a classe média ou para a indústria. É a minha experiência, e eu espero que seja apenas um aviso para as pessoas” (WENNER, 2000, p. 93). “Working class hero” contém apenas três acordes, sendo a voz acompanhada por um violão tocado de forma econômica. A mensagem política contida na letra é o elemento principal desse material artístico. Mas a interpretação vocal, melancólica, sugere o discurso de uma pessoa desiludida. O parentesco com estilo folk fez a crítica musical sugerir a ascendência de Bob Dylan sobre Lennon, que relativizou tal ideia (Ibid, p. 5). Vale lembrar que, nessa época, a obra dylaniana estava mais perto da reação do que do radicalismo. Se o álbum The times they are a-changin’, de 1963, descortina com profundidade as contradições do mundo capitalista – com o detalhe de que a canção homônima trata a transformação revolucionária como inevitável –, New Morning, de 1970, expressa a felicidade campestre de um homem casado, numa perspectiva autobiográfica. Não obstante, inclui uma composição como “Father of night”, um hino de louvor ao Deus Pai (ROLLASON, 1984, p. 58). Portanto, Lennon e Dylan viviam processos diametralmente opostos em tal contexto – e isso pode ajudar a explicar o porquê de o britânico ter negado a influência direta do americano sobre a sua música. Estranho às temáticas bucólicas e religiosas prezadas por Dylan, em 1970, Lennon revia o seu afastamento dos trabalhadores em “Working class hero”, o que é significativo para quem colocara a questão de classe em segundo plano, nos acalorados debates de 1968. Também do álbum John Lennon/Plastic Ono Band, “I Found Out” censura acidamente a ideia de religião. O arranjo cru da gravação – guitarra distorcida, baixo e bateria sem floreios e um vocal rascante – acentua a virulência da letra. O compositor anuncia estar livre da ilusão proporcionada pelos falsos ídolos que acumulou (e rejeitou) ao longo de sua vida: “Agora que eu lhe mostrei o que eu passei/ Não se fie naquilo que os outros lhe dizem que você pode fazer/ Não há nenhum Jesus caindo do céu/ Agora eu descobri, sei que posso chorar/ Eu, eu descobri!” (“Now that I showed you what I been through/ Don’t take nobody’s word what you can do/ There ain’t no Jesus gonna come from the sky/ now that I found out I know I can cry/ I, I found out!”). Mais especificamente, o seu envolvimento com o movimento Hare Krishna, na época dos Beatles, é tratado em termos negativos: “O velho Hare Krishna não conseguiu nada com você/ Só deixou você maluco sem nada para fazer/ Deixou você ocupado com as doçuras no céu/ Não existe guru que possa ver através de seus olhos/ Eu, eu descobri!” (“Old Hare Krishna got nothing on you/ Just keep you crazy with nothing to do/ Keep you occupied with pie in the sky/ There ain’t no guru who can see through your eyes/ I, I found out!”). Além dos gurus que passaram por sua vida, tendo sido Maharishi Mahesh Yogi o mais famoso deles – criticado em “Sex Sadie”, dos Beatles –, Lennon rejeita outras fontes percebidas de iluminação, como as drogas, utilizadas para meditação: “Não deixem que eles lhe enlouqueçam com tóxico e cocaína” (“Don’t let them fool you with dope and cocaine”). O autor ainda direciona as suas baterias para os seus pais – “Ouvi coisas sobre meu pai e minha mãe/ Eles não me queriam e por isso me fizeram uma estrela” (“I heard something about my ma and my pa/ They didn’t want me so they made me a star”) – e o seu antigo parceiro de composições nos Beatles – “Vejo a religião de Jesus a Paul(o)” (“I seen religion from Jesus to Paul”). Em entrevistas, Lennon dizia estar livre das “bobagens religiosas” devido à terapia feita com Janov (ALI, 2008, p. 378). Uma composição especialmente importante em sua trajetória política é “Power to the people” (“Poder para o povo”), de 1971. No dia seguinte à entrevista concedida ao jornal Red Mole, um animado Lennon telefonou para Ali: “Olhe, fiquei tão entusiasmado com o que conversamos que fiz uma música para o movimento, para vocês cantarem nas passeatas” (Idem). “Power to the people” mostra uma mudança significativa em relação a “Revolution”. Conforme foi escrito no texto anterior, nessa canção, o artista avisa aos revolucionários para não contarem com ele. Inversamente, em 1971, Lennon canta: “Diga que queremos uma revolução/ É melhor começar logo/ Se prepare/ E vá para as ruas” (“Say we want a revolution/ we better get on right away/ Well, you get on your feet/ And on the street”). A sua adesão aos movimentos revolucionários é ratificada em um verso como: “Nós temos de derrubar vocês/ Quando chegarmos à cidade” (“We got to put you down/ When we come into down”). As suas declarações no período vão no sentido de que o chamado Flower Power fracassara; por essa razão, era necessário começar novamente. Lennon dizia claramente: “Somos o começo da revolução […] Da América ela se espalhará pelo resto do mundo. Viva a revolução” (cf. LEAF, SCHEINFELD, 2006). O arranjo da música merece um rápido comentário. No início da gravação, lançada como single, a frase “Power to the people” é cantada em coro, sendo acompanhada por um provável som de palmas, simulando um protesto de rua. É interessante notar em “Power to the people” a manifestação do discurso feminista, uma influência de Yoko Ono: “Vou te perguntar, camarada e irmão/ Como é que você trata a sua própria mulher em casa/ Ela tem de ser ela mesma/ Para poder se entregar” (“I’m gonna ask you, comrade and brother/ How do you treat your own woman back home/ She got to be herself/ So she can give herself”). A promoção do feminismo pode ser vista como mais uma autocrítica realizada pelo artista, em seu período de radicalização política. Afinal, Lennon fora capaz de escrever “Run for your life”, presente no disco Rubber Soul, de 1965: “É melhor você correr pela sua vida se puder, garotinha/ Esconda sua cabeça na areia, garotinha/ Te pegar com outro homem/ É o fim, garotinha” (“You better run for your life if you can, little girl/ Hide your head in the sand little girl/ Catch you with another man/ That’s the end, little girl”). No mesmo álbum, “Norwegian Wood” (“Madeira Norueguesa”), que aborda nas entrelinhas os seus relacionamentos extraconjugais na época dos Beatles, conta a história de um homem que, ao acordar e não encontrar a mulher com quem passara a noite – porque a mesma saíra para trabalhar –, ateou fogo ao quarto de sua amante (revestido de madeira norueguesa), por vingança. A adesão de Lennon ao ideal feminista renderia uma música inteiramente dedicada ao tema: “Woman is the nigger of the wold” (“A mulher é o negro do mundo”), de 1972, título retirado de um artigo de Yoko. Vale ressaltar que, nos Estados Unidos, “nigger” é um termo pejorativo para se referir aos negros; logo, o seu emprego recrudesce a ideia de que as mulheres ocupavam um lugar marginal na sociedade. Lennon destacou a dominação masculina: “Nós a fazemos pintar seu rosto e dançar/ Se não quer ser uma escrava, dizemos que não nos ama/ Se for verdadeira que está tentando ser um homem/ Enquanto a derrubamos, fingimos que está acima de nós/ A mulher é o negro do mundo/ Se não acredita em mim, dê uma olhada na que está com você/ A mulher é a escrava dos escravos/ Ah, yeah, melhor gritar sobre isso…” (“We make her paint her face and dance/ If she won’t be slave, we say that she don’t love us/ If she’s real, we say she’s trying to be a man/ While putting her down we pretend that she’s above us/ Woman is the nigger of the world/ If you don’t belive me, take a look at the one you’re with/ Woman is the slave of the slaves/ Ah yeah… better screem about it”). Embora a afirmação “A mulher é a escrava dos escravos” possa parecer ingênua nos dias de hoje, ela não destoava do debate travado na época, uma vez que o gênero como categoria analítica ainda não se colocava teoricamente – e sim a ideia de patriarcado, de subordinação das mulheres aos homens. O recurso linguístico encontrado para denunciar a opressão à mulher foi a imagem da escravidão (justamente por ser a representação mais imediata da falta de liberdade e igualdade). Tal verso sugere que, na hierarquia das minorias, a mulher estava no patamar mais baixo. “Woman is the nigger of the wold” foi incluída no disco Some time in New York City, gravado em março de 1972 e lançado nos Estados Unidos em junho. Nesse álbum, há também Sunday Blody Sunday (“Domingo Sangrento”), uma referência ao dia 30 de janeiro do mesmo ano, em que militantes católicos enfrentaram soldados ingleses nas ruas de Londonderry, na Irlanda do Norte, com um saldo de treze mortos e dezessete feridos, todos irlandeses. Essa canção trata os garotos assassinados como “mártires” e critica a ação do exército inglês, em termos retóricos: “Nem sequer um soldado sangrava quando pregaram as tampas dos caixões!” (“Not a soldier boy was bleeding when they nailed the coffin lids!”). Além de versos exaltados contra a Grã-Bretanha – “Vocês porcos ingleses e escoceses mandados para colonizar o norte” (“You anglo pigs and scotties sent to colonize the north”) –, a letra apoia a causa do Exército Republicano Irlandês, o IRA, que lutava pela separação da Irlanda do Norte da Grã-Bretanha e posterior união com a República da Irlanda: “como é que vocês ousam manter como refém um povo orgulhoso e livre?/ Deixem a Irlanda para os irlandeses/ Botem os ingleses de volta ao mar!” (“How dare you hold to ransom a people proud and free/ Keep Ireland for the Irish/ Put the English back to sea!”). Gerry O’Hare, que atuava no setor de imprensa do IRA, confirmou que a liderança dessa organização levava Lennon bastante a sério e o via como um aliado útil. O astro chegou a se oferecer para fazer dois shows em benefício do grupo paramilitar – um em Dublin e um em Belfast. Documentos do Departamento Federal de Investigação (FBI) também comprovam a informação de que os serviços de segurança britânicos estavam espionando o cantor (que nessa época morava nos Estados Unidos), por causa do seu apoio ao republicanismo irlandês (cf. ROGAN, 2006). Não obstante, David Shayler, ex-agente do serviço secreto inglês, afirmou que Lennon teria colaborado financeiramente com o IRA. O antigo espião também teria visto uma documentação que atesta o apoio do artista ao Partido Revolucionário dos Trabalhadores, uma organização radical de esquerda. Indignada, Yoko – que tem investido fortemente na memória de Lennon como um pacifista inconteste, como será visto no próximo artigo –, declarou que o beatle enviou dinheiro à Irlanda do Norte, sim, mas apenas para ajudar crianças e a comunidade afetada pela violência política (VEJA, 2000). A simpatia do músico pelos republicanos irlandeses nunca foi segredo. O ano de 1972 foi realmente agitado para Lennon, no que diz respeito ao seu envolvimento com os movimentos sociais. O artista foi o destaque do evento John Sinclair Freedom Rally, um comício organizado por Jerry Rubin, pela liberdade de seu colega de ativismo político, condenado a dez anos de prisão por portar dois cigarros de maconha. A participação do beatle foi considerada fundamental para a conquista da opinião pública, tendo o Supremo Tribunal de Michigan retrocedido e permitido a liberação de Sinclair. Esse episódio levou o FBI a acompanhar com atenção a vida de Lennon nos Estados Unidos. Rubin e Abbie Hoffman chegaram a organizar um festival grátis de rock, com três dias de duração, do lado de fora da Convenção Nacional Republicana. Esses dois militantes ficaram tão entusiasmados com o sucesso de sua luta, que planejaram uma excursão de oposição, que seguiria o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, por todo o país, durante a sua campanha de 1972. E o nome de Lennon foi anunciado pela dupla. Logo, o FBI percebeu que o vencimento do visto do ídolo britânico seria uma contramedida estratégica. A vitoriosa (porém árdua) luta do artista pelo direito de permanecer na América se estendeu até o ano de 1976 (cf. LEAF, SCHEINFELD, 2006). Nixon, como se sabe, renunciou em 9 de agosto de 1974, em virtude do escândalo Watergate, pouco antes da votação pelo Congresso da cassação de seu mandato. A sarcástica “Gimmie some truth” (“Me dê uma verdade”), do disco Imagine, de 1971, cita o apelido “Tricky Dicky”, pelo qual o então presidente era conhecido, em referência aos truques sujos que costumava empregar para ganhar uma disputa. Essa canção ataca a hipocrisia dos líderes políticos: “Estou farto de ler coisas/ De políticos neuróticos/ psicóticos e bem-estabelecidos/ Tudo o que eu quero é a verdade agora/ Apenas me deem um pouco de verdade agora” (“I’ve had enough of reading things/ by neurotic, psychotic, pig-headed politicians/ All I want is the truth now/ Just gimme some truth now”). A gravação tem George Harrison na guitarra slide e um vocal com técnica de execução próxima ao staccato, com notas de curta duração. A frase do título é interpretada de forma enérgica, caracterizando uma exigência (e não um pedido) pela verdade. O referido álbum, gravado em junho de 1971 e lançado nos Estados Unidos três meses depois, reservou outros momentos memoráveis de crítica política. “I don’t wanna be a soldier mama i just don’t wanna die” (“Não quero ser um soldado, mamãe, eu não quero morrer”) deixa evidente em seu título a temática antibelicista. Mas o destaque foi mesmo o megassucesso que batizou o disco. “Imagine” é geralmente tratada como um hino à paz mundial e à harmonia, principalmente, em virtude de seu verso “Nada em nome do qual matar ou morrer” (“Nothing to kill or die for”) – que, isoladamente, pode contradizer “Power to the people”. No entanto, essa é uma letra antinacionalista – “Imagine que não existam países” (“Imagine there’s no countries”) –, antirreligiosa – “E também nenhuma religião” (“And no religion too”) –, anticonvencional – “Imagine todas as pessoas vivendo para o dia de hoje” (“Imagine all the people living for today”) –, e anticapitalista – “Imagine que não existam posses” (“Imagine no possessions”). Não seria exagero enxergar no refrão uma utopia socialista: “Você pode dizer que sou um sonhador/ mas não sou o único/ espero que um dia você se junte a nós/ e o mundo será como um só” (“You may say i’m a dreamer/ But I’m not the only one/ I hope some day you’ll join us/ And the world will be as one”). De forma significativa, Lennon pediu para os trotskistas Ali e Robin Blackburn participarem do vídeo de “Imagine” – um indício de que o artista não via nessa canção um retorno ao pacifismo hippie dos anos 1960. Os dois ativistas não só aceitaram prontamente o convite, como levaram o recémlibertado Régis Debray – o mais conhecido cronista europeu da Revolução Cubana, que fora preso e torturado na Bolívia – para acompanhá-los na visita ao astro. Ali (2008, p. 350), particularmente, recebeu o mencionado álbum como uma grata surpresa: “a qualidade artística era altíssima e, felizmente, a política não havia sufocado a arte […] A política e a música […] se uniam com a argamassa da necessidade política”. A questão é que Lennon experimentara em “Imagine” uma estratégia, no seu entender, vitoriosa: colocar um “pouco de mel” nas mensagens políticas (GILMORE, 2005, p. 62). Trata-se de uma balada conduzida pelo piano, adornada por um arranjo de cordas delicado, com baixo e bateria executados de forma contida. A interpretação do vocal é serena. Esse método foi aplicado novamente com sucesso em “Happy Xmas (war is over)” – “Feliz Natal (a guerra acabou)”, ainda em 1971. Em uma canção natalina melodiosa, com direito a coro infantil, o compositor protesta contra a Guerra do Vietnã e afirma que “o mundo está tão errado” (“the world is so wrong”). Tendo radicalizado a sua palavra cantada no início da década de 1970, Lennon não deixava por menos nas entrevistas concedidas no período. Na terceira e última parte deste texto, analisaremos a chamada “entrevista perdida”, publicada pelo jornal trotskista Red Mole, em 1971. Referências bibliográficas ALI, Tariq. O poder das barricadas. Uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008. GILMORE, Mikal. Lennon Lives Forever. Rolling Stone, 15 de Dezembro de 2005. LEAF, David, SHEINFELD, John. The U.S. vs. John Lennon. 2006. MERHEB, Rodrigo. O som da revolução: uma História Cultural do Rock (1965 – 1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. ROGGAN, Johnny. Lennon: The Albuns. London: Rogan House, 2010. ROLLASON, Christopher. Bob Dylan: do radicalismo à reacção. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 13, 1984. VEJA. Paz, amor e IRA. 1/3/2000. WENNER, Jann S. Lennon Remembers. London/ New York: Verso, 2000. John Lennon: a trajetória política de um beatle de esquerda (Parte 1) Romulo Mattos No início dos anos 1970, John Lennon acentuou a sua atuação política e impressionou integrantes da Nova Esquerda inglesa, até então reticentes em relação ao artista, que vacilara diante do panorama revolucionário de 1968. Chama atenção uma foto em que o compositor aparece lendo o jornal trotskista Red Mole, para o qual os historiadores e ativistas políticos Tariq Ali e Robin Blackburn o entrevistaram, em 1971. Antes de abordarmos essa entrevista, analisaremos a trajetória política de Lennon, que, longe de demonstrar linearidade, foi marcada por conflitos, inclusive, com partidários da renovada esquerda britânica. De início, cabe lembrar que Lennon sempre se apresentou como o beatle mais intelectualizado e disposto a falar sobre política e comportamento, sendo o dono dos “insights mais aprofundados” da banda (MERHEB, 2012, p. 71). Em 1963, quando os Beatles se apresentaram no Royal Variety Show, diante da Rainha da Inglaterra, o cantor declarou: “O pessoal da geral pode bater palmas. O resto, por favor, chacoalhe as joias” (SARMENTO, 2006, p. 60). Em 1965, quando a beatlemania se espalhara pelo planeta, o músico suscitou uma “guerra santa” contra o seu grupo ao afirmar: “O cristianismo vai acabar. Vai se dissipar, depois sucumbir. Nem preciso discutir isso. Estou certo e o tempo vai provar. Hoje somos mais populares do que Jesus Cristo. Não sei o que vem primeiro, o rock’n’roll ou o cristianismo. Jesus era legal, mas seus discípulos eram estúpidos e ordinários” (MERHEB, 2012, p. 71). A repercussão negativa desse episódio levou Lennon a se desculpar perante um batalhão de jornalistas. Em sua fase mais politizada, ele manifestaria o seu arrependimento por ter voltado atrás. O ícone pop também teve de se explicar em 1968, dessa vez para a esquerda, que viu na canção Revolution um retrocesso político, quando o mundo estava em ebulição. Movimentos de protesto e mobilização política pulularam naquele ano, que ficou marcado pelas manifestações nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã; pela Primavera de Praga; pelo maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses; pelo massacre de estudantes no México; pela alternativa pacifista dos hippies; pela contracultura; e pelos grupos de luta armada espalhados mundo afora (RIDENTI, 2008, p. 136). Revolution foi a primeira de uma série de canções em que Lennon trouxe o tema da política para o centro de sua produção. O artista iniciava essa letra com o verso “Você diz que quer uma revolução” (“You say you want a revolution”) e completava com uma recusa a participar: “Você já sabe que não pode contar comigo” (“Don’t you know you can count me out”). Luciana Sarmento (2006, p. 114), autora de uma dissertação de mestrado que enfoca o conflito entre consumo e contracultura nas letras dos Beatles, procurou situar Lennon no campo político do período: “Essa música […] fala da contracultura dividida: havia aqueles que partiam para a luta armada, matando e/ou machucando pessoas para abolir o establishment e aqueles que se colocavam ao lado dos movimentos pacifistas” (grifo nosso). Vemos também neste trecho que a pesquisadora parece concordar com o posicionamento adotado pelo beatle, ao deslegitimar implicitamente a opção pela luta armada, que foi uma realidade histórica da época. Ouça aqui a canção Revolution Lennon foi admoestado por John Hoyland, crítico musical da Black Dwarf, jornal da Nova Esquerda britânica. O intelectual escreveu uma “CARTA ABERTA A JOHN LENNON”, em 1969, procurando, entre outros assuntos, relativizar o ideário hippie, que girava em torno da paz e do amor, principalmente: “Essa música [Revolution] é tão revolucionária quanto uma novela de rádio. Para mudar o mundo, precisamos entender o que está errado nele. E, aí, destruir isso. Sem piedade. Isso não é crueldade nem loucura. É uma das formas mais apaixonadas de amor. Por que o que estamos combatendo é o sofrimento, a opressão, a humilhação, o custo imenso da infelicidade cobrado pelo capitalismo. E todo “amor” que não se posiciona contra essas coisas é piegas e irrelevante” (ALI, 2008, pp. 371-2). Essas palavras tinham endereço certo, uma vez que Lennon costumava dizer para os ativistas sociais Jerry Rubin e Abbie Hoffman: “Estou fora se for pela violência. Não me esperem nas barricadas, a menos que seja com flores” (ROYLANCE, 2001, p. 299). Mais uma frase de efeito da coleção do músico. Hoyland continuou a desconstruir o pacifismo hippie promulgado por Lennon, tentando lhe mostrar, didaticamente, a inviabilidade concreta de tal proposta, no que diz respeito às transformações mais amplas na sociedade: “Revolução bem-educada não existe. Isso não significa que a violência seja sempre o caminho certo, nem que você tenha necessariamente de comparecer à próxima manifestação. Há outras maneiras de desafiar o sistema. Mas elas exigem que se entenda que os privilegiados farão praticamente tudo – matarão, torturarão, destruirão, promoverão ignorância, apatia e egoísmo aqui e queimarão crianças lá fora – para não entregar o poder” (ALI, 2008, p. 372). O artista não perdeu tempo e elaborou uma “CARTA MUITO ABERTA DE JOHN LENNON A JOHN HOYLAND”. Reafirmando os seus princípios pacifistas, retrucou: “Obviamente você está numa viagem de destruição” (Ibid, p. 373). O beatle se mostrava particularmente preocupado com os rumos que a revolução poderia tomar, ou seja, com o tipo de sociedade que dela poderia se originar: “Que tipo de sistema você propõe e quem ficaria no controle?” (Idem). Esse tipo de apreensão aparecia em outro trecho, de forma mais veemente: “Me fale de uma de uma só revolução bem-sucedida. Quem fodeu o comunismo, o cristianismo, o capitalismo, o budismo etc.? Cabeças doentes e só” (Idem). Ao completar o seu pensamento, que resvalava em um ceticismo de cariz conservador, Lennon mostrava quão longe podia estar da Nova Esquerda. Isso porque o conceito de luta de classes era praticamente menosprezado em seu discurso: “Acha que todo inimigo usa insígnias capitalistas para você atirar nele? Isso é meio ingênuo, John. Parece que você acha que tudo não passa de uma guerra de classes” (Idem). Apesar dessa frase, o abastado astro do rock não negava inteiramente a divisão do mundo em classes sociais. Tanto que lembrou a época em que engrossava a fileira dos “estudantes humilhados da classe operária [que compravam] um casaco ou qualquer coisa assim razoavelmente barato e durável” (Idem). Mas a sua preocupação com a melhoria das condições de vida dos trabalhadores passava ao largo do conflito social, como reforça a última linha de sua carta: “PS.: Você estraçalha e eu construo em volta”. Este tipo de pregação, transformada em canção no caso de Revolution, contribuía para colocar os Beatles atrás dos Rolling Stones no julgamento dos partidários da esquerda britânica. Ali preferia a banda de Mick Jagger e Keith Richards por acreditar que ela transmitia melhor o espírito de 1968 (2008, p. 347). Hoyland tocou nesse assunto em sua carta endereçada a Lennon: “ultimamente a sua música vem perdendo força, numa época em que a música dos Stones só vem ganhando força” (Ibid, p. 372). Mas o beatle percebeu que o comentário político do jornalista podia estar contaminado por uma abordagem midiática vulgar, que tendia a alimentar a suposta disputa entre as bandas: “em vez de procurar pelo em ovo nessa história de Beatles e Stones, pense um pouco mais alto […]” (Ibid. 374). Recuando um pouco, em outubro de 1968, a já mencionada Black Dwarf tinha considerado Satisfaction e Play with fire, ambas escritas pela dupla Jagger e Richards, “clássicos do nosso tempo” e ainda “sementes da nova revolução cultural” (WIENER, 1984, p. 81). Além disso, afirmara que “Revolution” mostrava que os “Beatles foram deliberadamente salvaguardar o investimento capitalista” (Idem). Na edição subsequente, o jornal dera aos Stones status de radicais. Publicado pouco antes de uma nova marcha contra a embaixada americana, o editor fizera publicar a manchete “Marx, Engels, Mick Jagger“. Ao lado de um ensaio de Engels, sob o título “On Street Fighting“, aparecia a letra da canção “Street Fighting Man“, escrita de próprio punho por Jagger, que a enviara à redação para mostrar seu apoio à marcha (Ibid, p. 82). Em 1969, ao mesmo tempo que Lennon ratificava em carta aberta o pacifismo hippie presente em “Revolution”, as suas ações políticas se aguçavam. Quando o psiquiatra americano e papa do LSD, Timothy Leary, resolveu se candidatar ao governo da Califórnia (tendo como adversário Ronald Reagan!), o artista compôs Come Together, inspirado no slogan da campanha do Partido Psicodélico da Califórnia: “Chegue junto, junte-se à festa” (“Come Together, join the party”) – é interessante notar o trocadilho (em inglês) feito com a palavra party, que pode significar tanto “festa” quanto “partido” (LEARY, 1999, p. 366). Portanto, Come Together foi originalmente escrita como música de campanha de Leary, tendo sido mais tarde aperfeiçoada pelo beatle. O psiquiatra americano chegou a protestar em carta ao compositor por não ter sido incluído na autoria da música. Esse último se livrou de um possível embaraço jurídico de forma espirituosa – embora pouco coletivista. Disse que era um alfaiate e o candidato um cliente que havia encomendado um terno e nunca mais retornara. Então, ele o vendera para outra pessoa. Mesmo tratando de política, Lennon não perdia de vista a dimensão do mercado. Mas a colaboração entre os dois teve outros episódios interessantes. Leary, autor de artigos a favor da não-violência, participara da gravação de “Give peace a chance”, durante o famoso bed-in promovido por Lennon e Yoko Ono no hotel Queen Elizabeth, em Montreal, em março de 1969. O casal enviara sementes de carvalho para todos os presidentes e ditadores do mundo como um símbolo do movimento pela paz. Durante a estada no referido hotel, os recém-casados se mantiveram esparramados numa cama king-size. Eles também destinaram cerca de U$5000 ao entusiasta do LSD, quando esse esteve no exílio (iniciado em 1970), por meio dos advogados dos Weathermen – grupo de esquerda norte-americano, praticante da luta armada (Ibid, pp. 365-7, 372-3). Ainda em 1969, no mês de setembro, Lennon organizou o festival Sweet Toronto, para promover “a paz no mundo”. No fim do ano, devolveu ao Palácio de Buckingham a sua insígnia de Membro da Ordem do Império Britânico, em protesto contra o envolvimento da Grã-Bretanha na guerra Nigéria-Biafra, contra o apoio britânico à guerra do Vietnã e contra a queda nas paradas de sucesso da canção Cold Turkey (NOYER, 2010, p. 28). Vemos que, mais uma vez, o artista misturou protesto político e razões mercadológicas, ao tentar também promover um single malsucedido para os padrões de um integrante dos Beatles – grupo que, aliás, passara um período significativo sem dar declarações sobre a Guerra do Vietnã, para não atrapalhar a carreira e os negócios. Por essa época, Lennon começou a se aproximar de Ali – então editor da mesma Black Dwarf que criticara Revolution –, para o qual telefonava uma ou duas vezes por mês, com o objetivo de conversar sobre a situação do mundo. O início da nova década marcou a fase mais radical de sua carreira, registrada em canções como Working Class Hero, Power to the people e I Found Out. Além disso, o artista concordou em colaborar com o jornal trotskista Red Mole, surgido após uma cisão na esquerda inglesa, que levou Ali a abandonar aquela outra publicação. Assim, Lennon concedeu a esse último e a Blackburn uma entrevista em que o tema da política vinha em primeiro lugar. Referências bibliográficas ALI, Tariq. O poder das barricadas. Uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo, 2008. LEARY, Timothy. Flashbacks “surfando no caos”: autobiografia. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. uma MERHEB, Rodrigo. O som da revolução: uma história cultural do rock (1965 – 1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. NOYER, Paul Du. John Lennon: The Stories Behind Every Song 1970-1980. London: Carlton Books Ltd., 2010. RIDENTI, Marcelo. “1968: rebeliões e utopias”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge & ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX. V. 3. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ROYLANCE, Brian. Beatles – Antologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2001. SARMENTO, Luciana Villela de Moraes. Ticket to ride. As tensões entre consumo e contracultura nas letras de música dos Beatles. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. WIENER, Jon. Come Together: John Lennon in his time. Illini books ed. Urbana: University of Illinois Press, 1991. Notas sobre The Times They Are a-Changin’, de Bob Dylan Romulo Costa Mattos Em outubro de 1963, Bob Dylan gravou The Times They Are aChangin’, faixa título do disco lançado em janeiro de 1964, nos EUA. A intenção do compositor era fazer um hino para as transformações históricas quem vinham ocorrendo no mundo e, particularmente, nos EUA. Nesse país, o movimento pelos direitos civis dos negros ganhava intensidade até então inédita, ao qual aderiram os músicos ligados ao estilo folk, principalmente. Ao lado do referido cantor, artistas como Peter Seeger, Phil Ochs e Joan Baez eram bastante estimados pelo público jovem e marcadamente de esquerda. Mas, inegavelmente, a palavra cantada de Dylan tinha uma força maior do que a de seus colegas. No ano em que Dylan compôs The Times They Are a-Changin’, a sua carreira vinha em um crescendo. Em 13 de julho de 1963, Blowing’ in the Wind, gravada pelo trio Peter, Paul and Mary, alcançara o segundo lugar nas paradas da Billboard, com vendas que passaram de 1 milhão de cópias. Ainda nesse mês, no prestigiado Newport Folk Festival, o bardo tinha sido apresentado ao público como o artista folk mais importante dos EUA. No dia 26 de outubro, o cantor fez um show-solo com lotação esgotada no Carnegie Hall, confirmando o seu novo status de astro. A edição de 4 de novembro da Newsweek trazia um artigo sobre o artista, embora em termos pejorativos, tratando-o como um jovem vaidoso, que manipulava a verdade para se promover (SOUNES, 2002: 128, 134-5). Não é propriamente a ascendente carreira de Dylan que explica a gestação de uma canção como The Times They Are a-Changin’ e sim a sua capacidade para realizar as conexões existentes num contexto histórico raro – em que a crença no futuro se transformava em experiência coletiva. Nos anos imediatamente anteriores à referida gravação, foram vitoriosas ou estavam ocorrendo diversas revoluções de libertação nacional, como a revolução cubana de 1959, a independência da Argélia em 1962 e a Guerra do Vietnã. Essas guerras mostravam ao planeta a rebeldia de povos coloniais e semi-coloniais contra grande potências, em um possível prenúncio dos novos tempos. Essa noção é essencial para a compreensão das lutas e do ideal contestador da década de 1960, que atingiriam o seu auge no ano de 1968 (RIDENTI, 2008: 135). Nos EUA, boa parte dos ativistas da Nova Esquerda cresceu no já mencionado movimento pelos direitos civis e se misturou ao movimento estudantil nas universidades. Em 1962, criou-se no Michigan a SDS – Studantes for a Democratic Society –, que pregava uma nova política e manifestava a desilusão com a sociedade vigente. Em 1964, a insatisfação explodiu na Universidade da Califórnia, em Berkeley, tendo nascido dessa experiência o Movimento pela Livre Expressão, que denunciava o caráter impessoal da universidade e de suas políticas educacionais, tidas como corruptas e segracionistas. Em relação à luta pelos direitos civis, especificamente, organizações a princípio interraciais como a SNCC – Student Nonviolent Coordination Committee (1960) – e o CORE – Congress of Racial Equality (1961) – desenvolviam programas de educação ao cidadão e encorajavam a resistência e a afirmação dos direitos do negro. A SCLC – Southern Christian Leadership Conference (1957) – era liderada pelo pastor Martin Luther King, que organizou uma manifestação em Alabama, em abril de 1963, cujas cenas de violência contra os negros impactaram os lares americanos. Pouco depois, Medgar Evans, presidente da NAACP – National Association for the Advancement of Colored People (1909) –, foi assassinado no Mississipi e o governo federal foi obrigado a interferir. Em junho, John Kennedy enviou um conjunto de propostas legislativas que combatiam a segregação e a discriminação raciais, além de ter discursado sobre o assunto – embora a Lei dos Direitos Civis tenha virado realidade somente em 1965, durante o governo de Lyndon Johnson. Em agosto de 1963, ocorreu a famosa passeata em Washington, no Lincoln Memorial, quando 250 mil pessoas fizeram a maior demonstração pelos direitos civis até então (PAMPLONA, 1995: 83-6). Dylan estava a poucos metros de Luther King quando esse fez o seu discurso mais conhecido: “I have a dream…”. O artista cantou para a multidão, ao lado de Baez. Três meses depois, Kennedy seria assassinado. A morte do presidente dos EUA deprimiu Dylan, mas logo ele descobriu que podia ter empatia pelo suposto autor do crime, Lee Oswald. Em dezembro de 1963, o compositor foi homenageado pelo ECLC – Emergency Civil Liberties Comittee – com o conceituado prêmio Tom Paine, destinado a personalidades que lutassem em prol da justiça social. No jantar de arrecadação de fundos para a entidade, o cantor recebeu vaias e assobios após afirmar: “eu me vi um pouco nele [Oswald]”. Em entrevista subsequente, Dylan repetiu essa ideia e tentou se explicar melhor: “vi nele boa parte da época em que estamos vivendo” (SOUNES, 2002: 135-5). O ano de 1964 foi marcado pelo Freedom Summer, quando os militantes pelos direitos civis aumentaram as manifestações no Mississipi. Em reação ao assassinato de três líderes do movimento pela polícia, foi criado o MFDP – Mississipi Freedom Democratic Party –, saído das fileiras do Partido Democrata. (PAMPLONA, 1995: 86). The Times They Are a-Changin’ era um brado à juventude no momento em que os EUA passavam por mudanças cruciais. Influenciado por baladas escocesas e irlandesas, como Come All Ye Bold Highway Men e Come All Ye Tender Hearted Maidens (CROWE, 1985), Dylan convidava os pais a saírem do caminho se não fossem capazes de ajudar (“Your old road is/ Rapidly agin(g)’/ Please get out of the new one/ If you can’t lend your hand”), enquanto convocava senadores e congressistas para atender ao chamado (“Come senators, congressmen/ Please heed the call”). Virando a linguagem bíblica contra as classe dominantes, numa adaptação de uma frase do Sermão da Montanha (“And the first one now will later be last”), lembrou os jovens ouvintes de que eles seriam os herdeiros da terra. Em resumo, a transformação revolucionária é vista como inevitável. Vale mencionar que o álbum homônimo (que também foi sucesso comercial) é o trabalho político de Dylan, por excelência. As suas letras produzem uma análise penetrante da sociedade dos EUA, sendo capazes de comunicar política progressista através de um meio popular (ROLLASON, 1984: 48, 51). Dylan produziu outras canções duras de protesto no início dos anos 1960, como Masters of War, The Lonesome Death of Hattie Carroll e A Hard Rain’s A-Gonna Fall. Depois do disco The Times They Are a-Changin’, é possível notar o seu afastamento do movimento de protesto, tendo passado a rejeitar uma postura coletiva a favor de um posicionamento anarco-individualista e antissistema. Porta-voz da nova (e subversiva) cultura underground, para muitos, o compositor continuava a fazer política, na prática. Mas o fim da década de 1960 revelou uma viragem gradual de posições radicais para uma postura reacionária, que seria completada com a sua conversão, em 1978, à ideologia do movimento cristão “born-again”, afinado com o reaganismo e a direita-radical. No ano seguinte, o seu álbum Slow Train Coming apresentava uma ideologia raivosamente antimulher, pró-família, pró-censura e anticomunista. O cristianismo sob a forma autoritária substituía o conceito de classe em sua obra: o motor da história seria a luta entre crentes e não crentes. Até para cristãos esse dogmatismo fundamentalista pareceu indigesto (Cf. ROLLASON, 1984). Ao longo das décadas de 1990 e 2000, a canção The Times They Are A-Changin foi licenciada para uso publicitário em campanhas publicitárias de empresas de auditoria e contabilidade, de companhias de seguros e até de bancos canadenses (GRAY, 2006: 152), além de ter integrado a trilha sonora de superproduções hollywoodianas. Mas pode ser, nos dias de hoje, novamente apropriada segundo o seu sentido político original, tendo em vista os grandes protestos que unificam cada vez mais a luta dos trabalhadores europeus contra o capitalismo ortodoxo da Troika. Milhões de pessoas que insistem em negar, nas ruas, as verdades inexoráveis do neoliberalismo, segundo as quais mudar é sempre muito difícil, quando não impossível. Os tempos estão mudando. Referências bibliográficas DYLAN, Bob. Biograph. Columbia Records, 1985. Notas e textos por Cameron Crowe. GRAY, Michael. The Bob Dylan Encyclopedia. New York, London: Continuum International, 2006. PAMPLONA, Marco A. Revendo o sonho americano: 1890-1972. São Paulo: Atual, 1995. RIDENTI, Marcelo. “1968: rebeliões e utopias”. In: FILHO, Daniel Aarão Reis Filho, FERREIRA, Jorge, ZENHA, Celeste. O Século XX. O Tempo das Dúvidas. Do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. ROLLASON, Christopher. Bob Dylan: do radicalismo à reacção. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 13, 1984. SOUNES, Howard. Bob Dylan: a biografia. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.