NÃO EXISTE POLÍGONO UNIESTÁVEL Eduardo Colli (IMEUSP) Introdução. No final da década de 50, o matemático inglês Richard Guy ([1]) descobriu a seguinte curiosidade: existem poliedros, sólidos, convexos e homogêneos, que se equilibram estavelmente em apenas uma de suas faces! Se esses poliedros fossem dados em que o resultado de um lançamento é a face que ficou voltada para o chão, então a face estável teria probabilidade um e todas as demais teriam probabilidade zero! Esses poliedros foram chamados de uniestáveis, por razões óbvias. A Matemateca (coleção de objetos do IME-USP voltada para a divulgação da Matemática, veja [2]) tem um exemplar físico de um poliedro uniestável entre suas peças, como mostra a foto abaixo. No que tange a este texto, entretanto, o objetivo será olhar para o mesmo problema em duas dimensões. Em duas dimensões, trataremos de polígonos, ao invés de poliedros, num plano perpendicular ao chão. O plano perpendicular ao chão é para que exista um campo gravitacional constante e vertical atuando sobre as figuras (mesmo no contexto bidimensional é possível fazer experimentos usando prismas “deitados”, isto é, com as bases perpendiculares ao plano do chão). Assumiremos sempre que os polígonos são cheios e uniformes, isto é, sua massa está homogeneamente distribuída na parte interna a seu contorno. Meu objetivo neste artigo é convencer o leitor de que não existem polígonos convexos uniestáveis. Isto significa que qualquer polígono convexo sempre terá pelo menos duas arestas em que pode se apoiar estavelmente. Em outras palavras, duas dimensões não são suficientes para a existência do fenômeno de uniestabilidade. Antes de passar à prova propriamente dita, discutiremos propriedades da convexidade e do baricentro que serão usadas na demonstração. Depois, definiremos matematicamente a estabilidade de uma aresta, com base nos princípios da Mecânica Clássica. Passaremos então pelo caso específico dos triângulos, em que o problema é mais simples e não requer todo o aparato montado para a demonstração geral. Em seguida, mostraremos que todo polígono convexo tem que ter pelo menos uma aresta estável e, finalmente, mostraremos que a inexistência de outra leva a uma contradição. Convexidade e conseqüências. Neste texto deve-se entender “polígono” como a figura cheia, contendo seu contorno (a união de suas arestas) e a região que o contorno delimita. O interior do polígono é o conjunto de seus pontos que não estão no contorno. Definição 1. Um polígono C é convexo se, para todo par de pontos P e Q pertencentes a C, valer que o segmento PQ está inteiramente contido em C. Recomendo [3] para uma ótima discussão sobre a convexidade de polígonos, embora nem todas as propriedades que se seguem estejam explicitadas nessa referência. Para não me delongar demais no assunto, apresentarei algumas delas sem demonstração ou sem detalhes, esperando que elas sejam razoavelmente intuitivas a ponto de não influenciar a boa vontade do leitor para com este texto. Assim como em [3], usarei o conceito de margens de uma reta, no seguinte sentido. Toda reta l divide o plano na união disjunta de l com dois semi-planos S1 e S2, tais que: se P e Q pertencem ao mesmo semi-plano, então o segmento PQ não intersecta l; se P e Q estão em semi-planos distintos, então PQ cruza l. Os semi-planos S1 e S2 são chamados de margens da reta l. Quando dois pontos estiverem no mesmo semi-plano, diremos que estão na mesma margem de l, e se estiverem em semi-planos diferentes diremos que estão em margens opostas de l. Saliento que, neste texto, as margens de l são disjuntas de l. Com essas definições, podemos enunciar as seguintes propriedades. Propriedade 1. Sejam C um polígono convexo e A uma aresta de C, l a reta que contém A e S1 , S2 as margens de l. Então C está contido inteiramente na união de l com S1 ou então inteiramente contido na união de l com S2. Além disso, a intersecção de C com l é exatamente a aresta A . Propriedade 2. Todos os ângulos internos de um polígono convexo são estritamente menores do que 180º. Propriedade 3. Seja O um ponto interior de um polígono convexo C. Então cada semi-reta de origem em O intersecta o contorno de C em um e apenas um ponto. Além disso, se P e Q são vértices de uma mesma aresta A, então o triângulo POQ está inteiramente contido em C. Mais ainda, dois triângulos como este se intersectam apenas em um de seus vértices ou em uma de suas arestas, e a união de todos eles dá o polígono C. Para esta última propriedade, recomendo também a leitura de [4]. Se um ponto interior O de um polígono convexo C for fixado, então para cada semi-reta u com origem em O podemos associar um raio r(u), que é a distância de O para o (único) ponto de cruzamento de u com o contorno de C. A seguinte propriedade parece um pouco técnica e estranha neste ponto da exposição, mas nos ajudará a deixar mais leve a demonstração principal, no final deste texto. Propriedade 4. Seja C um polígono convexo, O um ponto de seu interior, l uma reta que passa por O e S1 , S2 as margens de l. Suponha ainda que vale a seguinte propriedade: para toda semi-reta u contida em S1 , à qual está associado o raio r(u), a semi-reta u' que é simétrica a u em relação a l (isto é, l bissecta o ângulo formado por u e u' ) tem raio associado r(u') > r(u). Com essas hipóteses, podemos decompor C na união de dois polígonos C' e C'', não necessariamente convexos, com as seguintes propriedades: (1) os interiores de C' e C'' não se intersectam; (2) C' é simétrico em relação à reta l; (3) C'' está inteiramente contido na união de S2 com l (vide Figura 1). FIGURA 1 Baricentro. Como o baricentro de polígonos foi tratado recentemente na RPM (veja [5]), vou me restringir apenas a enunciar as suas propriedades que nos interessarão adiante. Propriedade 5. Sejam l uma reta, S1 , S2 suas margens e C um polígono contido na união de S1 com l. Então o baricentro de C está contido em S1. Propriedade 6. O baricentro de um polígono convexo está em seu interior. Propriedade 7. Se l é uma reta e C é um polígono simétrico em relação a l então o baricentro de C está em l. Propriedade 8. Sejam l uma reta, S1 , S2 suas margens e C um polígono formado pela união de polígonos C' e C'' (com interiores disjuntos), de tal forma que C' é simétrico em relação a l e C'' está contido na união de S2 com l (ver a mesma Figura 1, que ilustra a Propriedade 4). Então o baricentro de C está contido em S2, em particular fora de l. Estabilidade de arestas. A estabilidade do apoio de um polígono sobre uma de suas arestas está relacionada com a posição do seu baricentro em relação a essa aresta. Para não introduzir complicações, definiremos a noção de estabilidade de arestas apenas para polígonos convexos. Definição 2. Seja A uma aresta de um polígono convexo C, seja l a reta que contém a aresta A, seja r a reta perpendicular a l que passa pelo baricentro O do polígono e seja P o ponto de interseção de r com l. A aresta A é dita instável se P está ou fora de A ou em um dos dois vértices de A (Figuras 2(a) e 2(b)). Caso contrário, A é dita estável (Figura 2(c)). FIGURA 2 É imediato da Definição 2 que A é instável se e somente se o triângulo de base A e vértice oposto no baricentro tiver um ângulo reto ou obtuso em um dos vértices de A. No caso específico dos triângulos... Embora logo abaixo eu apresente uma demonstração da inexistência de qualquer polígono convexo uniestável, é interessante dar uma olhadela rápida no caso especial de triângulos. Deixarei para o leitor, no entanto, os detalhes formais de alguns dos argumentos. Um triângulo só poderá ter aresta instável se tiver um ângulo obtuso, e neste caso a aresta oposta ao ângulo obtuso tem que ser estável. A Figura 3 ilustra o triângulo obtuso PRQ, onde o ângulo PRQ é obtuso e a aresta PQ é estável. Se ele fosse uniestável então ambas as arestas PR e RQ seriam instáveis. Será que isso é possível? FIGURA 3 Para tentar responder, tomemos as retas r1 e r2 que passam por R e são perpendiculares às arestas RQ e RP, respectivamente, e sejam R1, R2 os pontos de cruzamento dessas retas com a aresta PQ. O fato de o ângulo PRQ ser obtuso garante que R1 e R2 estão de fato entre P e Q e que os segmentos PR1 e QR2 são disjuntos, implicando que os triângulos PRR1 e QRR2 se intersectam apenas no ponto R. A instabilidade da aresta RQ implicaria que o baricentro estaria no primeiro desses dois triângulos, e a instabilidade da aresta RP implicaria que o baricentro estaria no outro. Disso concluiríamos que o baricentro seria o ponto R, mas isso é impossível porque o baricentro tem que estar no interior do triângulo (Propriedade 6). Sempre existe pelo menos uma aresta estável. O primeiro fato a ser estabelecido é que um polígono convexo sempre tem uma aresta estável. Este fato é intuitivo, mas é interessante ter uma demonstração geométrica baseada apenas na definição de estabilidade. Para começar, a cada aresta podemos associar a altura do baricentro do polígono quando o polígono se apóia sobre ela. Se o polígono tiver n arestas, serão então n alturas, e dentre essas alturas, uma delas tem que ser menor ou igual a todas as outras (é claro que pode haver mais do que uma nessa mesma situação, mas isso não atrapalha o raciocínio). Em seguida tomamos uma aresta A cuja altura associada seja menor ou igual a todas as outras e afirmamos que essa aresta tem que ser estável. Mostraremos a afirmação por contradição. Assumiremos que A é instável e concluiremos que uma de suas arestas adjacentes (a qual chamamos de A') tem altura associada menor do que a altura associada à aresta A. Isto contradiz a escolha de A como aquela com menor altura associada. Em detalhes, o argumento é o seguinte. Se ela é instável, então temos os seguintes elementos (ver Figura 4): o baricentro O, a aresta A, a reta l que contém A, a reta r perpendicular à reta l que passa por O e o ponto P de cruzamento das retas r e l. Como A é instável, o ponto P ou é um dos vértices de A ou está fora de A. Seja V o vértice de A que está mais próximo de P (pode acontecer de termos P=V). Seja também a aresta A' que concorre em V junto com A, a reta l' que contém a aresta A', a reta r' perpendicular a l' que passa por O e o ponto P' de cruzamento entre as retas r' e l'. FIGURA 4 Vamos primeiro mostrar que, ou P=V ou P e O estão em margens opostas da reta l'. Se P não coincide com o vértice V, então P não está em l', pois P está em l e V é o único ponto de interseção entre l e l'. Seja S2 a margem de l' que contém P e S1 a outra margem. Como l cruza l' em V, e V é o vértice de A mais próximo de P, então a aresta A está contida na união de S1 com l'. Como o polígono é convexo, a Propriedade 1 diz que ele todo está contido nessa mesma união. Em particular, pela Propriedade 5, o baricentro O está em S1 , logo em posição oposta a P em relação a l. Da afirmação do parágrafo anterior, segue que existe um ponto Q no segmento OP que pertence à reta l'. Esse ponto é o próprio P se P=V. A altura associada à aresta A é o comprimento do segmento OP, enquanto que a altura associada à aresta A' é o comprimento do segmento OP'. Mas o triângulo OP'Q é triângulo-retângulo, onde OQ é a hipotenusa, logo OP' < OQ. Como OQ já é menor ou igual a OP, então OP' < OP, que é a contradição almejada. Não existe polígono convexo uniestável. Mostraremos a inexistência de um polígono convexo uniestável assumindo que ele existe e chegando a uma contradição. Então seja C um tal polígono. Como C é convexo, por hipótese, a Propriedade 6 diz que seu baricentro O está em seu interior e, pela Propriedade 3, podemos triangular C com triângulos que têm O como vértice e uma das arestas de C como aresta oposta ao vértice O . Seja A a aresta estável de C. Por ser estável, existe um ponto Q0 na aresta A (que não é nenhum dos vértices de A) tal que OQ0 é perpendicular a A. Percorrendo o polígono no sentido anti-horário, encontramos o primeiro vértice Q1 , que é vértice de A, e depois os vértices Q2 , ... , Qn, este último sendo o outro vértice de A (ver Figura 5). Então particionamos C em n+1 triângulos T0=Q0Q1O, T1=Q1Q2O, ..., Tn-1=Qn-1QnO, Tn=QnQ0O . O primeiro e o último desta lista são triângulos-retângulos. Quanto aos outros, pela observação que se segue à Definição 2, têm um ângulo reto ou obtuso em um dos dois vértices que compartilham com C. Para facilitar a notação, denotaremos Q0 também por Qn+1 . Assim, pelo parágrafo anterior, para cada i=0,...,n, um dos ângulos QiQi+1O ou Qi+1QiO é maior ou igual a 90º, mas nunca os dois simultaneamente podem ocorrer, senão a soma dos ângulos internos do triângulo Ti seria maior do que 180º. Diremos então que o triângulo Ti é dextrógiro, associando o símbolo D, se o ângulo maior ou igual a 90º for Qi+1QiO , e levógiro, associando o símbolo L, caso contrário. Pela construção, já sabemos que T0 é dextrógiro (D) e Tn é levógiro (L). Então conseguimos associar ao polígono uma seqüência de letras D e L que começa em D e termina em L. Vejamos agora que é impossível uma ocorrência do tipo ...LD... nessa seqüência, isto é, uma situação em que, para algum i entre 2 e n-1, Ti-1 é levógiro e Ti é dextrógiro. Neste caso, os ângulos Qi-1QiO e Qi+1QiO têm que ser ambos maiores ou iguais a 90º, o que daria um ângulo Qi-1QiQi+1 maior ou igual a 180º, contradizendo a Propriedade 2. Já que não pode ocorrer ...LD..., e como a seqüência começa em D e termina em L, a única possibilidade é que seja da forma DD.....DLL.....L. Sendo assim, fixemos o inteiro i tal que Qi pertence ao último triângulo dextrógiro e ao primeiro triângulo levógiro (necessariamente i está entre 1 e n). Percebamos também que, se percorrermos o contorno do polígono, indo de Q0 a Qi , tanto no sentido horário quanto no sentido anti-horário, a distância dos pontos do contorno a O aumenta, pois em cada aresta estamos sempre nos afastando do ponto mais próximo a O dentro da reta que contém essa aresta. Com i fixado como no parágrafo anterior, seja agora l a reta que bissecta o ângulo Q0OQi e sejam S1 , S2 as margens de l, onde S1 é aquela à qual Q0 pertence e S2 é aquela à qual Qi pertence. Assim, a semireta u0 com origem em O passando por Q0 é simétrica, em relação a l, à semi-reta ui com origem em O passando por Qi . Essas duas semi-retas dividem o plano em dois setores. Agora a reflexão de qualquer semi-reta u com origem em O que não seja uma dessas duas é uma semi-reta u' situada no mesmo setor que u está. Então as hipóteses da Propriedade 4 ficam garantidas: se u é uma semi-reta em S1 saindo de O e u' é sua reflexão por l então r(u') > r(u), pelo que foi dito no parágrafo anterior. Já a Propriedade 4 garante a decomposição de C em dois polígonos C' e C'', de forma a satisfazer também as hipóteses da Propriedade 8 com a mesma reta l. Mas a Propriedade 8 implica que, nessas condições, o baricentro de C não está em l. Isto é uma contradição, pois pela construção o baricentro de C é o ponto O e a reta l passa por O, por definição. Isto conclui a demonstração. Referências. [1] Croft, H. T.; Falconer, K. J.; and Guy, R. K. Problem B12 in Unsolved Problems in Geometry. New York: Springer-Verlag, p. 61, 1991. [2] http://matemateca.ime.usp.br/ . [3] Elon L. Lima, Qual é mesmo a definição do polígono convexo?, RPM 21, 27-32 [4] Elon L. Lima, Qual é a soma dos ângulos (internos ou externos) de um polígono (convexo ou não)?, RPM 19, 31-38 [5] Deborah M. Raphael, Experiências com o baricentro, RPM 63, 33-37