MORTE, MITO E LINGUAGEM NO HORIZONTE DA - HCTE

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MORTE, MITO E LINGUAGEM NO HORIZONTE DA ESSÊNCIA
André Lira
Doutorando HCTE/UFRJ
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RESUMO: A interdisciplinaridade vem se tornando popular em diversos eixos e
espaços de produção do conhecimento. Particularmente, ela vem revitalizando a
área de História das Ciências, sendo o caminho preferido por muitos pesquisadores
para lidar com a complexidade dos objetos estudados. Viemos constatando,
contudo, que a interdisciplinaridade apenas soma teorias, resultados e hipóteses
distintas (ou seja, maneja perspectivas), sem que haja densidade ou questionamento
de seus princípios. Tal abordagem, que veio de uma reação mais ou menos
intencional ao fundamento metafísico, agrega em termos de informação, mas
dificulta pensar num horizonte essencial. Para fazer um ensaio de privilegiar a
essência como algo a ser pensado (e apontar essa urgência), trabalharemos com a
morte, o mito e a linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade; Poética; Conhecimento.
Sim, isto se trata de um caminho de pensamento. Não olhem para esse
caminho pela aversão à filosofia, dita im-produtiva, com a má interpretação de Marx
nas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo
de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo”. 1 O pensamento e o diálogo
podem mudar o mundo; mas devemos discutir o que é mundo. Se for algo estático,
em que navegamos e alteramos (com a prática), então as discussões serão
secundárias. Contudo, se o mundo for suspenso de fatos e resultados, o pensar
pode surgir como
um modo de ação, e que, por isso mesmo, fundamentalmente não pode ser
um entrave à ação. Opor-se o âmbito das ações ao pensar é compreender a
realidade de um modo parcial no qual dela participassem apenas ações que
se configurassem realizações. A realidade não é apenas composta pelo que
é realizado, dela participa igualmente o irrealizado, o por realizar, do mesmo
modo que aquilo que jamais se realizará. É por isso que, à constituição da
realidade, é imprescindível o pensar (JARDIM: 2003).
1
Dizemos “má interpretação” porque se costuma esquecer que o pensamento de Marx está
embasado numa construção filosófica delongada, de cuja terminologia as próprias Teses fornecem
um exemplo.
Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248
O pensar, por si só, poderá desdobrar realidade, ser “um agir que está em
diálogo com o destino do mundo” (HEIDEGGER apud JARDIM: 2003). Talvez por o
pensar não gerar nem terminar na materialidade ele possa atravessá-la e mostrar
outras facetas.
Não proponho aqui um novo sistema ou crítica para modificar a realidade em
uma direção e não em outra. Isso não quer dizer, por outro lado, que defenderei um
pensar “neutro”, conciliador. Buscarei pôr em questão o que o pensamento conceder
ser posto, e mesmo com todas suas falhas e inconsistências o chamarei de próprio.
Não sendo necessariamente motivado por ideologia, não é por isso que não vá ter
força, orientação, vigor, sentido.2
O procedimento científico parte de teoria prévia e hipóteses para se
movimentar – e, em última instância, retornar a elas. Muito se discute sobre bases e
maneiras de se fazer ciência, tornando problemático falar em apenas uma ciência.
Postergaremos tal discussão, pondo por enquanto que os cientistas não colocaram
suficientemente em questão o modo de ser da ciência, de forma que ainda se possa
remeter ao conjunto de seus fazeres como uma unidade.
Vale dizer que tal procedimento diferente radicalmente do meu. Não construo
nem quero construir sobre uma fortuna crítica a respeito de determinado tema. As
obras convidadas tensionarão o pensamento, nunca para embasá-lo, dar-lhe ares de
autoridade, ou se conformar a uma construção serial de conhecimento, sendo
escolhidas pela potência de pensamento e afeição que suscitam. Sendo assim, uma
miríade de autores ditos indispensáveis poderá ser dispensada sem piedade.
Não há resultado a ser atingido, hipóteses a serem confirmadas ou refeitas.
Tenho um caminho próprio, co-laborado por muitos. Ele se coloca no ser e pensar
como uma tarefa de criação e interpretação. Cada um que se colocar diante das
mesmas questões com o mesmo horizonte percorrerá vias completamente
diferentes. No essencial, uma preocupação: pôr em questão a morte, o mito e a
linguagem – o desafio de liberar os conceitos que vêm atrelados a essas questões.
Não há esperança alguma de objetividade ou distanciamento (e de
subjetividade, já que toda objetividade impõe uma subjetividade). Tanto quanto os
outros seres humanos, estou inteiramente costurado e misturado com a morte, o
2
Cf. LEÃO: 2013, p. 13: “A ideologia construiu a pior das prisões. Abstrata e entranhada, é de uma
violência essencial. Afasta o homem da grandeza de sua dignidade: autonomia de ser e realizar-se a
si mesmo. É que toda ideologia é sempre uma prisão abstrata”.
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mito e a linguagem. Ninguém pode prescindir de tais dimensões para ser o que é.
Por isso, elas requerem um pensamento originário 3, visto que dizem respeito à
emergência do modo de ser do homem. Nesse sentido, não há subjetividade, nem
objetividade, mas unidade e diferença – em cujo jogo pode desabrochar, em cada
ser humano, a mesma dinâmica essencial.
Meu caminho para um pensamento originário se distingue da posição
pós-moderna frequente nas teorias artísticas e ciências humanas: o relativismo total,
de que tanto faz e tudo vale, o importante é fazer; de que pensar o todo e a essência
é atrelar-se a uma verdade, uma “metanarrativa” (Lyotard); de que só é possível
tratar da particularidade, dos “fragmentos”, e que os eventos do século XX negaram
qualquer outra possibilidade. Se falar em essencialidade fere os ouvidos
pós-modernos como algo antiquado e autoritário, não é porque a prática
pós-moderna faça diferente. Ao negar o fundamento e transformar o pensamento em
prática discursiva, faz do vazio de fundamento o seu fundamento, refogando as
diferenças
num
grande
caldo
indistinto,
anulando-as.
Haverá
algo
mais
fundamentado do que um sistema não-sistemático cujos tentáculos alcançam todos
os seus elementos e configurações possíveis, sem que se possa questioná-lo?
Uma
das
bandeiras
transdisciplinaridades.
Não
da
é
pós-modernidade
uma
proposta
mal
são
as
vinda,
inter,
uma
multi
vez
e
que,
progressivamente, vínhamos conhecendo por disciplinas incomunicantes. O
cruzamento adveio das complexidades de cada disciplina. Se tal ida e vinda entre
uma concepção mais universalista e uma mais particularista do conhecimento não é
novidade, confirma um passo forte rumo a um conhecer totalizante, em que se perde
o que motivou o surgimento de cada disciplina. Tomar determinada questão
aprofundadamente é indesejável, já que se pretende observar como conhecimentos
de áreas diferentes possuem aplicações e inter-relações não previstas por cada área
de origem. Assim, quem pormenoriza uma obra de Platão é criticado por hermetismo
e alienação, em nome de juízos apressados, acessíveis pelo acadêmico médio.
O problema não tem origem nas disciplinas (cujas fronteiras, na realidade,
são definidas cientificamente há poucos séculos), mas na concepção do saber. O
3
Cf. A introdução de Os pensadores originários. Anaximandro, Heráclito, Parmênides. Introd.
Emmanuel Carneiro Leão. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Bragança
Paulista/SP: Editora Universitária São Francisco, 2005.
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saber pode ter mudado de forma na pós-modernidade, porém continua
profundamente metafísico, e cada vez mais quando uma posição humanista
empreende largos passos para dominar as frestas do real pela funcionalidade,
eficiência e utilidade. Numa aparente tentativa de realizar o ideal sofista de saber na
pós-modernidade, todos têm opiniões e ninguém sabe de nada. Aí vem o risco da
transdisciplina, que, em nome de acabar com as fronteiras entre disciplinas, cria uma
única grande disciplina (que pode muito bem já ser a própria História, não à toa a
emergência da História das Ciências) para passar o trator no saber. Tal discurso vem
suprir a carência de respostas que dissemos acima. Porém, a derrubada de
fronteiras nunca foi necessária, desde que se procurasse pensar, já que este articula
desde o princípio as posteriores separações e atribuições entre as disciplinas. Os
limites são necessários, basta saber transitar neles. Não se confundem, então,
identidade de mundos com identidade de temas. Sempre se pôde pensar fora das
disciplinas; aliás, só podemos pensar fora delas – isto é, buscando questionar. Cada
área está repleta de exemplos, quanto mais recuarmos da pós-modernidade. O risco
da transdisciplina, portanto, é o de encaixar as disciplinas pelos temas, supondo
assim uma identidade de mundos. As discussões de um historiador e de um filósofo
sobre o tempo constroem mundos distintos. Não significa, ao contrário, que se deva
abraçar a especialização ad infinitum, mas que, justamente, mantenhamos o
pensamento na essência, contemplando assim do mais geral ao mais particular.4
Lanço mão de uma distinção de Manuel Antonio de Castro entre essência e
essencialismo. A crítica pós-moderna é uma resposta ao essencialismo que marcava
a filosofia; e por essencialismo se entende a doutrina do fundamento, em que se
busca compreender o real a partir da procura de seu fundamento e seus acidentes.
Enquanto negação do essencialismo, a pós-modernidade ainda se encerra, sem
saber, no essencialismo, pois a negação do fundamento ainda o reconhece como tal
– e daí, também, falar em pós-modernidade ainda é se situar na órbita da
modernidade. Não se pensa a essência porque a tomam como dada e não
conhecível, cabendo ao pensamento captar suas formas e manifestações. O ser é
4
Ressalvo que é possível fazer trans, inter ou multidisciplinar com densidade de pensamento.
Convivi com alguns pensadores cuja sólida formação em áreas diferentes não ensejava mero
eruditismo, mas mobilizava, pelas convergências e divergências dessas diferenças, outros caminhos.
Isso, porém, é raro. A transdisciplinaridade, tanto quanto a disciplinaridade, enquanto métodos, não
são o problema; mais uma vez, é a concepção de saber, que permanece pouco pensada.
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assim entendido como um “que” distante e inapreensível que, dessa forma, é
tornado ente, e varrido para debaixo do tapete. Atualizamos essa compreensão
kantiana de muitas formas, porém continuamos bem debaixo de seu nariz.
A essência é a questão das questões. Todo ente é, e o ser se doa no ente,
mas também se resguarda. Dessa forma, para pensarmos uma estrela, pensamos
como ela vem a ser o que é – e como também deixa de ser, não vem a ser. A
astronomia moderna é uma tentativa de conhecer o que é a estrela, sem pensar em
sua essência, portanto, pois a encerram num ente (um corpo celeste) dentro de um
sistema explicativo (a ciência moderna). Por mais que se busque fugir do termo
“essência”, ainda há que se endereçar a questão do ser. Pois tudo é e não é! A
maneira (pós-)moderna tem sido a de articular conceitos em cima de conceitos, sem
pensar seus princípios. Por exemplo: a educação. Muito se fala em educação, e não
faltam novos métodos, ideias e propostas para renovar a educação. Mas o que é a
educação para que seja renovada? Para que a renovar? Ela deve ser renovada?
Destruída? Esquecida? Salva? Como se manifesta a educação? Qual a articulação
essencial da educação com o modo de ser do homem (se houver)? Será apenas
uma instituição epocal de moralização e controle?
O ser, a constituição de tudo que experienciamos como real. Nada mais do
que a disputa de kháos e kósmos, diz Heráclito: “O mundo, o mesmo em todos,
nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo
sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando” (OS
PENSADORES ORIGINÁRIOS: 2005, 67, frg. 30). Não há sistema heraclítico (a não
ser nos manuais de filosofia), e não é por ter escrito em fragmentos. Em Heráclito, o
mundo (entendido como a configuração do ser sendo) aparece pensado
diversamente, seja quando se reporta aos deuses, aos animais, ao ser humano, às
leis, à morte, ao movimento. É o mundo movimento, sendo o homem também esse
movimento; seus conhecimentos e potencialidades, porém, são restritos, pois em
todo conhecer se dá um não-conhecer e em todo poder se dá um não-poder. É isso
o que dizem os fragmentos 18 (“Se não se espera, não se encontra o inesperado,
sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”, p. 63) e 45 (“Não encontraria
a caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos, tão
profundo é o Logos que possui”), entre muitos outros. No jogo de ser e não-ser, o
homem, um ser qualquer, se perfaz tanto quanto os outros seres.
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É certo que não podemos mais pensar como Heráclito, nem haveria sentido
querer. Mas diante do estranhamento com sua obra, há de se ter dois compromissos
básicos: não solapá-la com nossa leitura moderna, a julgar suas falhas e lacunas e
traduzindo seu pensamento para os conceitos de nossa conveniência; inversamente,
escutá-la e tentar compreender o que diz – não só “em sua conjuntura”, como
manda o cacoete de historiador5, mas em todas as conjunturas, (em sua essência).
Tal perguntar pelo ser, chamado de pensamento originário, envolve mover
uma série de tijolos que encapsularam o entendimento de há muito. O ser pensado
pelo pensamento essencial não é o ser entificado metafísico, mas o próprio
mover-se, ser e deixar de ser, verdade e encobrimento. Não se identifica a essência,
e sim o essencialismo, com a “raiz” e o “tronco” buscados pela filosofia, que Deleuze
critica, contrapondo a ele o pensamento rizomático, entrelaçamento sem início nem
fim. O ser, entretanto, não é início nem origem, é princípio e originário; por isso ser
princípio e originário de tudo, inclusive do rizoma; também ele é e não é. Da mais
metafísica, ôntica e determinista compreensão do real até a mais poética, mítica ou
mesmo a cotidiana despretensiosa, nenhuma se faz sem que antes o ser se ponha e
se coloque como questão. Se essa colocação, esse convite, será aceito, se nos
aconchegaremos nessa questão ou não, é outra coisa.
O que é a morte? Tudo morre um dia. Todo dia morre toda coisa. Coisa bicho,
coisa homem, coisa pedra também? Sim, coisa pedra tem histórias para contar. E se
têm histórias para contar, é tempo. As janelas das casas, que vão sumindo nas
cidades, têm histórias; a poeira nas estantes tem histórias; os ratos têm histórias; os
assassinos e os assassinados têm histórias. Não se diz que se mata a poeira nas
estantes, mas se diz que se mata o rato.
Por que se diz isso, se tudo morre um dia? O que pode morrer e o que não
pode? Dizem que algumas coisas são vivas: coisa bicho, coisa homem. Já coisa
pedra não; as janelas das casas, que vão sumindo nas cidades, não; a poeira nas
estantes, não. Coitado do rato, que pode morrer! Ou terá sorte, por ter história? Uma
invenção arbitrária e despropositada, não é? Isso de dizer quem pode ou quem não
pode morrer... Por que, se tudo não é no tempo, deixa de ser no tempo? Exijo a
5
Para um aprofundamento do que seria esse cacoete, cf. LIRA, A. “História e mito”. Mimeo, 2014. O
ensaio será apresentado no 14º Seminário Nacional de História da Ciência e Tecnologia, em Belo
Horizonte, em 2014, e posteriormente publicado nos anais do evento.
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história das janelas, pois elas abrem o fora do céu para todos os enamorados, todos
os filósofos, todos os poetas e todos os cientistas!
Dizem também que morrer é feio, algo que se faz quase às escondidas.
Ninguém quer morrer, o suicida não quer morrer, só não quer mais contar história.
Não se deseja morrer a ninguém. Por quê? O morto é vivo. O vivo é morto. Só não é
mais. Morto vivo, vivo morto, viver é tão bom quanto morrer, morrer é viver, viver é
morrer. Viver é morrer? Não há uma coisa só que seja uma e não a outra. Eu sou tão
vivo quanto William Blake. Tão morto quanto ele também. Mas ainda não terminei de
morrer, escrevo. Meu escrever é um ato do sopro da simples ilusão de que sou algo
e de que duro, só há eternidade. “Penso nas amadas vivas e mortas,/ penso em
suas filhas/ que são um pouco minhas filhas.// [...] Os planetas vão se aproximando,/
alguém volta para o céu:/ o universo é um só.” (“Orfeu”. MENDES: 2002, p.85).
Assim, continuo sentenciado a não ser nada e a ser tudo.
O que é o mito? O mito é mistério. Certamente, não mera narrativa de origem.
Aí é mito-logia. Para qualquer um que o ouça, ele diz: o mundo está aí. Fazem-se
luz, sombra e todas as distinções. Estar no mito, condição para vivimorrer. Totalidade
enigmática. Mito é pensar, é sentir, é enveredar. Não saber, maravilhamento. Todo
homem é mítico porque é todos os homens e nenhum homem. Porque desentranha
o que é abrindo as coisas.
Até o historiador é mítico, suas datas, linhas, relações, processos e
conjunturas são míticos. O mito é uma praga, tanto mais se tenta livrar dele, mais ele
volta com mais força, porque não dá para deixar de ser homem. Não dá para deixar
de ser mito. Mito é olhar e ser olhado próximo. Sustento de sonho real: só temos
sonhos reais, os que temos acordados e desacordados, sempre cordados
.
O
mito sacrifica, a poesia sacrifica. Poesia é mito. Só há um poeta cantando o mesmo
mito, são todos um e o mesmo. Como de Hades, riqueza é epíteto do mito. Mito
pega o mundo pelos chifres. Mas os homens se empobreceram de mito, os nomes
de seus deuses esquecidos, apenas um criado e lembrado, o mais vil tornado
senhor: Conhecimento. Deus fraco, claudicante, porque não sacrificam a ele,
esqueceram como sacrificar. Talvez ele morra na volta do parafuso, e renasça junto
com os outros deuses. Persistência da espiral, antes será, agora foi, depois, quem
sabe, tudo. “Homens, irmãos de todos os tempos e países/ formamos juntos um
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vasto Corpo/ estendido na história através das gerações” (“Cântico”. MENDES:
2002, p.58).
Assim, continuo sentenciado a não ser nada e a ser tudo.
O que é a linguagem? É o que deixa aparecer, transaparecência. Nem
inventada, nem conquistada, nem descoberta, muito menos ferramenta. Unidade,
unidade, unidade, ela diz três vezes. Linguagem diz. Diz o ser do pássaro ao
homem, a que ele gentilmente retruca, em língua: “Pássaro! Bird! Vogel!”. Na
linguagem, a poesia diz a presença que ela é numa língua. Por isso não se traduz
presença. Verdade. Sem linguagem não se diz nada. E não é o homem que diz, é a
linguagem que nele diz; não é o homem que morre, é a morte que nele habita e age;
não é o homem que canta os mitos, são os mitos que cantam nele e como ele. Na
linguagem, podemos com-partilhar da riqueza poética que o mito nos abre enquanto
mortais.
Linguagem apresenta sentido, não comunica; a língua e o significado
comunicam. Um beijar instala um beijo, mas só a língua pode querer perguntar “por
quê?” enquanto quer mais beijo ou quer distância. O sentido que o beijo impõe
dispensa falação. “As palavras que eu não disse/ Ficaram./ Ficou o amor dentro de
mim/ Me interrogando, me assimilando,/ Depois renascendo de mim/ E eu dele.”
(“Antecipação”. MENDES: 2002, 135). E poeta nenhum anda com “detector de
poesia” por aí, embora muitos gostem de dar diretrizes para encontrá-la. A poesia o
chama e seduz para ser gerada. Na linguagem, o homem colhe seus pedaços de
mundo, prepara seu alimento, divide a carne. Dignifica. A tal lugar, chama casa. Em
todo outro lugar que reconhecer o sentido da casa, diz: casa. Casar, casa de
passarinho, casa de boneca, casa decimal, casa de penhor, casa noturna. Primordial
e sempre, o sentido, linguagem. Moramos no útero sem ter o “significado” linguístico
de casa, porém enquanto humanos o sentido de morar e demorar é inteiramente
nosso. Até para os nômades!
Assim, continuo sentenciado a não ser nada e a ser tudo.
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REFERÊNCIAS
JARDIM, A. Pensar música hoje. O Marrare (Online). Rio de Janeiro, 13, 2010.
Disponível em <www.omarrare.uerj.br/numero13/antonio.html>. Último acesso em
15/01/2014.
LEÃO, E. C. Filosofia contemporânea. Teresópolis/RJ: Daimon Editora, 2013.
MENDES, M. As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002.
OS PENSADORES ORIGINÁRIOS. ANAXIMANDRO, HERÁCLITO, PARMÊNIDES.
Introd. Emmanuel Carneiro Leão. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio
Wrublewski. Bragança Paulista/SP: Editora Universitária São Francisco, 2005.
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