da Silva Freitas et al. RELATO DE CASO Epignatus ou fissura 0-14 de Tessier: interrelação entre deformidades da linha média Epignathus or Tessier number 0-14 cleft: interrelation among medial line deformities Renato da Silva Freitas1, Nivaldo Alonso2, Thais de Freitas Azzolinni3, Giovana Gianini Romano4, Luciano Busato5, César Vinicius Grande6, Gilvani Azor de Oliveira e Cruz7 RESUMO SUMMARY Introdução: Epignatus é um teratoma raro que contém histologicamente o tecido de todas as camadas germinativas. Os pacientes apresentam uma massa recoberta por pele e mucosa originada na base do crânio e que protrui através da boca, obstruindo a via aérea. Esta massa parece ser originada de células-tronco pluripotenciais vindas da região da bolsa de Ratske. Ao nascimento, seu tratamento consiste em assegurar imediatamente a permeabilidade da via aérea por meio de intubação orotraqueal ou, se necessário, traqueostomia. A ressonância magnética e a tomografia computadorizada devem ser solicitadas anteriormente à intervenção, para afastar encefalocele ou extensão intracraniana da lesão. Uma vez que a dimensão da massa é identificada, o tumor pode ser excisado através da cavidade oral. O propósito deste estudo é apresentar dois casos de teratomas originados na base do crânio e associados à fissura palatina. Relato dos casos: Ambos os casos apresentavam características de fissuras 0-14, como nariz bífido, duplo septo e fissura alveolar mediana. Nós sugerimos que o epignatus pode ser uma forma diferente de apresentação da fissura 0-14. Introduction: Epignathus is a rare teratoma which histologically contains tissue of all three germ layers. Patients usually present at birth with a mass covered with skin and mucosa that protrudes through the mouth, arising from the cranial bases and compromises the airway by fills the oral cavity. This mass is thought to arise from pluripotential stem cells from the Rathke´s pouch region. Management involves emergently securing an airway by intubation or formal tracheostomy, when it is necessary. An MRI or CT scan is required prior to surgical intervention to rule out an encephalocele or intracranial extension of the lesion. Once the extent of the mass is adequately determined, the tumor can be excised through the oral cavity. The aim of this study is to present two cases treated last year, who had a mass arising from the cranial basis associated a cleft palate. Case reports: Both of them had characteristics of cleft n° 0-14, as bifid nose, double septum and median alveolar cleft. We have suggested that epignathus could be a different form of presentation of cleft n° 0-14. Descritores: Fissura palatina. Anormalidades craniofaciais/cirurgia. Face/anormalidades. Neoplasias nasofaríngeas. Teratoma. Descriptors: Cleft palate. Craniofacial abnormalities/ surgery. Face/abnormalities. Nasopharyngeal neoplasms. Teratoma. 1. Professor Adjunto III da Disciplina de Cirurgia Plástica e Reconstrutora do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPr). Cirurgião Crânio-facial do Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Labiopalatal (CAIF). 2. Professor livre-docente, Chefe do Serviço de Cirurgia Craniomaxilofacial da Divisão de Cirurgia Plástica e Queimaduras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). 3. Acadêmica de Medicina da Faculdade Evangélica do Paraná. 4. Médica Residente de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva da UFPr. 5. Cirurgião Plástico do CAIF. 6. Neurocirurgião do CAIF. 7. Professor Associado e Coordenador da Disciplina de Cirurgia Plástica e Reconstrutora do Hospital de Clínicas e do Hospital do Trabalhador da UFPr. Chefe do Setor de Cirurgia Crânio-maxilo-facial do Hospital Universitário Cajuru da PUC-Pr. Responsável pela Cirurgia Crânio-maxilo-facial do Hospital Pequeno Príncipe. Correspondência: Renato da Silva Freitas Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rua General Carneiro, 181 – 9° andar – Cirurgia Plástica e Reparadora – Curitiba, PR, Brasil – CEP 80060-900. E-mail: [email protected] Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2009; 12(4): 178-83 178 Epignatus ou fissura 0-14 de Tessier: interrelação entre deformidades da linha média Durante dois anos, a criança teve cinco episódios de pneumonia. Quando retornou aos nossos cuidados, o hipertelorismo estava mais evidenciado, com presença de seis dentes incisivos superiores, seis dentes incisivos inferiores, duplo frênulo labial e nariz bífido (Figuras 2 e 3). Os exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética demonstraram uma massa originada na face rostral do esfenóide, protruindo sobre a cavidade nasal e oral, estando inclusa no seu pedículo uma estrutura óssea, a qual se assemelhava a um septo bífido. Havia uma pequena comunicação com a base do crânio na região esfenoidal (Figuras 4 a 6). Aos 24 meses de idade, a massa palatal foi excisada com o tecido normal adjacente, sob anestesia geral. A língua bífida não foi tratada, assim como a fissura palatina. Histologicamente, a massa palatina era recoberta de pele queratinizada, folículos pilosos e estruturas epidermóides (Figura 7), associados a tecido gorduroso maduro e brotos dentários, posteriormente diagnosticada como epignatus. A criança foi mantida por cinco dias sob cuidados em unidade de terapia intensiva e recebeu alta hospitalar no décimo dia pós-operatório. A palatoplastia foi realizada um mês após a primeira cirurgia e associada à ressecção do tecido na linha média da língua, que demonstrou ser um hamartoma. INTRODUÇÃO Epignatus é um tipo raro de teratoma nasofaríngeo congênito derivado das três camadas germinativas e que usualmente contém órgãos identificáveis1,2. O termo “epignatus” é puramente topográfico, referindo-se a todos os tipos de tumor originários da maxila, palato ou osso esfenóide – região da Bolsa de Ratske3. Lesões relacionadas a este tumor não dispõem de qualquer apresentação histopatológica específica e são frequentemente difíceis de distinguir de gêmeos incompletos, reduplicação e teratoma4. Existem diversas teorias sobre a etiologia: implantação traumática de tecidos, falha na fusão de região somática durante a embriogênese ou implantação de células pluripotenciais que desorganizam o crescimento no tecido5. O tumor protrui pela boca e pode levar à morte do recémnato em decorrência de obstrução significativa da via aérea. Dessa forma, o cuidadoso planejamento antes e após o nascimento é necessário para assegurar a permeabilidade da via aérea1. Pode estar associado a outras anomalias do palato, maxila e mandíbula, sequência de Pierre Robin, cistos branquial e doenças cardíacas congênitas1,4,6. Apenas 10% dos teratomas ocorrem na região da cabeça e pescoço, predominantemente nas regiões cervical e nasofaringeas, fazendo dos teratomas nasofaríngeos entidades extremamente raras2. Teratomas ocorrem em média um caso a cada 35.000 a 200.000 nascidos-vivos, demonstrando preponderância em mulheres7,8. Não há casos relatados de anomalias genéticas ou incidência familiar3,6. O propósito deste estudo é apresentar dois casos de teratomas tratados, com massa saindo a partir da base do crânio associada à fissura palatina. Figura 1 – Paciente 1: dois dias de vida, com massa protuindo através da boca. RELATO DOS CASOS Os achados clínicos, radiológicos e laboratoriais de dois pacientes tratados no Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Lábio Palatal, portadores de epignatus foram revisados. Realizouse revisão extensa da literatura sobre o tema, e se discutiu a etiopatogenia e tratamento dessa malformação. Propõe-se que epignatus pode ser uma forma de apresentação da fissura craniofacial 0-14. Caso 1 Criança do sexo feminino, nasceu após 38 semanas de gestação, pesando 2,880 gramas, com Apgar de 9 ao primeiro minuto e 10 aos cinco minutos, sem dificuldades respiratórias. Foi encaminhada ao nosso serviço no seu segundo dia de vida para investigação clínica, por apresentar massa de grandes dimensões no palato e malformação da língua (Figura 1). Não havia intercorrências em sua história pré-natal, e a história familiar também foi negativa. Ao exame clínico, uma lesão de dimensões aproximadas às da língua era visível no palato duro, o qual se apresentava fissurado. A massa era recoberta por pele e pêlos finos, evidenciando hipertelorismo. A língua era larga, bífida e com uma pequena proeminência sobre a superfície do dorso. Não foram encontradas outras anomalias no exame físico. O diagnóstico clínico foi de epignatus combinado com fissura palatina e língua lobulada com tumor lingual. A paciente teve um episódio de pneumonia, sendo internada em outro hospital e submetida a traqueostomia e biópsia, com diagnóstico de teratoma. Figura 2 – Paciente 1: dois anos de idade, préoperatório com traqueostomia. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2009; 12(4): 178-83 179 da Silva Freitas et al. Figura 3 – Visão oclusal, demonstrando seis dentes superiores e seis dentes inferiores. Figura 6 – Tomografia tridimensional demonstrando o tumor intra-oral, com pedículo ósseo. Figura 4 – Visão lateral de teratoma na ressonância nuclear magnética, com pequeno orifício no esfenóide. Figura 7 - Análise microscópica com tecidos epidérmicos. Figura 5 – Teratoma. Caso 2 Paciente do sexo masculino, nasceu de parto cesariana, após 39 semanas de gestação, pesando 3490 gramas (Figura 8). O escore de Apgar foi de 9 ao primeiro minuto e 9 aos cinco minutos. Seus pais eram saudáveis e não apresentavam relação de consaguinidade. Sua mãe era primigesta e primípara. O recém-nascido teve dificuldades respiratórias e alimentares nos primeiros dias, sem necessidade de intubação, traqueostomia ou suporte ventilatório. O exame da cavidade oral revelou um tumor de 4 cm na sua maior dimensão, com cobertura cutânea e finos pêlos saindo através de uma ampla fissura palatina (Figura 9). Hipertelorismo estava presente e a língua apresentava suas dimensões e posição normais. A criança foi alimentada com Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2009; 12(4): 178-83 180 Epignatus ou fissura 0-14 de Tessier: interrelação entre deformidades da linha média auxílio de sonda nasoenteral até o dia da cirurgia. O exame de tomografia computadorizada revelou um tumor intranasal e intra-oral associado à duplicação do septo, sendo que o pedículo estava localizado na face anterior dos ossos esfenóide e etmóide (Figuras 10 e 11). Não foi evidenciada extensão intracraniana do tumor. A cirurgia foi realizada sob anestesia geral, quando o paciente estava com 29 dias de vida e pesando 4300 gramas. Durante a cirurgia, foi observada protrusão do tumor na cavidade bucal através de uma grande fissura no palato. Estava localizado na parede anterior do corpo dos ossos esfenóide e etmóide. O teratoma foi dissecado de suas adesões e facilmente ressecado com eletrocautério. A peça cirúrgica tinha as dimensões de 4,5 cm de comprimento, 3 cm de largura e 1,2 cm de espessura; possuía aparência externa homogênea e cobertura cutânea com pêlos finos, sendo preenchida por tecido mucoso. Também foi observada presença de germes dentários no conteúdo do tumor (Figura 12). A análise microscópica revelou a presença de epiderme e tecido conectivo maduros, associados à hiperplasia mucosa sem atipias (Figura 13). O período após a cirurgia transcorreu bem e a criança recebeu alta no terceiro dia pós-operatório, recebendo alimentação via oral. A reparação da fissura palatina foi realizada sem intercorrências aos 12 meses de vida (Figura 14). Figura 8 – Paciente 2: menino com 20 dias de vida, com teratoma e mordida aberta anterior. Figura 10 – Tomografia axial demonstrando duplicação septal. Figura 9 – Visão intra-operatória, demonstrando a base tumoral na região esfeno-etmoidal. Figura 11 – Visão coronal, septo duplo. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2009; 12(4): 178-83 181 da Silva Freitas et al. Figura 12 – Peça tumoral, presença de germes dentários dentro do tumor. Figura 14 – Dois meses de pós-operatório. Figura 13 – À microscopia, tecido epidérmico e gordura maduros. aérea. Também tem sido associado à sequência de Pierre Robin. Foi observado que a asfixia secundária à obstrução de via aérea pode levar a alto índice de mortalidade nesses pacientes no momento de seu nascimento ou no período perinatal. O primeiro recém-nato sobrevivente com epignatus foi relatado por Ochsner e Ayers10, em 1951. Até 1984 apenas oito pacientes haviam sobrevivido após abordagem cirúrgica3,11,12. Os recémnatos analisados nos nossos dois casos não sofreram qualquer distúrbio de oxigenação. Os diagnósticos diferenciais desse tumor incluem retinoblastoma, encefalocele etmoidal, rabdomiosarcoma congênito, linfangioma, glioma nasal, tireóide heterotópica e epulis gigante6. A patogênese do epignatus é incerta; embora haja uma série de teorias sobre sua etiologia, como: implantação traumática no tecido, falha de regiões somáticas ao fundir durante a embriogênese, ou implantação de células pluripotenciais com crescimento desorganizado do tecido5. Alguns autores acreditam que a falha na fusão das estruturas na linha média durante a embriogênese leva ao teratoma nasofaríngeo de linha média e fissura palatina. Por outro lado, outros autores acreditam que as células pluripotenciais primordiais são implantadas ectopicamente e crescem sem a influência da organização de células e fatores ao redor. A fissura palatina é frequentemente relatada em associação com epignatus, e é causada pela formação do tumor num estágio muito precoce da vida fetal, entre 8 e 12 semanas, antes da união DISCUSSÃO Teratomas da cavidade oral e nasofaringe em recém-nascido são raros. Embora esses tumores possam variar em estrutura e grau de diferenciação, três camadas são evidenciadas (ectodérmica, mesodérmica e endodérmica)7. O termo epignatus referese ao tumor que sai do palato e nasofaringe, protruindo através da boca. Yoshimura et al.9 advogaram a seguinte classificação patológica: tipo I - pele e tecido gorduroso derivado de duas camadas germinativas; tipo II - teratoma tecido representando todas as três camadas germinativas, com osso, dentes, sistema nervoso e trato gastrointestinal; e tipo III - gêmeo parasita com órgãos diferenciados e extremidades. Os dois casos analisados foram classificados como tipo II. O epignatus pode causar asfixia logo após o nascimento, devido à presença de um grande tumor, o que resulta em necessidade de suporte de vida em decorrência de obstrução da via Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2009; 12(4): 178-83 182 Epignatus ou fissura 0-14 de Tessier: interrelação entre deformidades da linha média normal das lâminas palatais bilaterais4. De qualquer forma, quando nós reavaliamos nossos pacientes, especificamente com tomografia computadorizada, foi possível sugerir que esses pacientes fossem portadores de fissura nasal 0-14. No caso 1, havia septo duplo, com hipertelorismo, nariz bífido, palato largo com 6 dentes incisivos superiores e inferiores e duplo frênulo labial. No caso 2, havia duplo septo, e também foi evidenciado hipertelorismo. O tumor poderia ser um excesso de tecido embriológico que migrou da base do crânio pela fissura craniofacial. O tratamento do epignatus depende da extensão e localização da lesão. Alguns investigadores advogam que o cordão umbilical e a circulação fetoplacentária devem ser mantidos por algum tempo após o nascimento para maximizar a oxigenação do feto, permitindo o rápido exame, e traqueostomia, se necessária 7 . Dohlman e Sjovall 11 advogaram tratamento em vários estágios, com imediata ressecção do tumor, reavaliação do tumor residual durante as primeiras semanas de vida e reparo da fissura palatina com 14 meses de idade. Outros autores realizaram o reparo do palato entre 2 e 5 meses após a ressecção tumoral5. Nós decidimos reparar o palato mais tarde, por volta de 1 ano de idade, e neste tempo também tratar a língua bífida, de forma a proporcionar melhor relação entre a cavidade oral e a língua após a palatoplastia. Entre as malformações associadas ao tumor epignatus estão as línguas bífidas. O espaço mediano entre as duas metades da língua representa a não-fusão das três lâminas embriológicas que formam a língua. Bifidismo e glossoptose indicam um precoce desenvolvimento do tumor, que impede a fusão dos brotos primitivos da língua e leva a um posicionamento anteriorizado desta. Provavelmente esta é a razão pela qual o epignatus e os distúrbios de fusão da língua estão relacionados8. Nós encontramos apenas 3 casos de epignatus associados à língua lobulada reportados na literatura. O caso 1 possuía língua larga, com algumas proeminências no dorso, e decidimos tratar este aspecto num segundo tempo, por ocasião de melhores condições clínicas do paciente. REFERÊNCIAS 1.Oliveira-Filho AG, Carvalho MH, Bustorff-Silva JM, Sbragia-Neto L, Miyabara S, Oliveira ER. Epignathus: report of a case with successful outcome. J Pediatr Surg. 1998;33(3):520-1. 2.Demajumdar R, Bhat N. Epignathus: a germ-cell tumour presenting as neonatal respiratory distress. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 1999;47(1):87-90. 3.Goraib JA, Cabral JAO, Nogueira ARR, Barbosa CN, Bordallo F, Carvalho M, et al. 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