RPCV (2015) 110 (595-596) 144-149 Validade da eletrocardiografia convencional em cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito em cão – Relato de caso Validity of conventional electrocardiography in arrhytmogenic right ventricular cardiomyopathy in dog – Case report Monique A. Lázaro*, Felipp da S. Ferreira Universidade Vila Velha. Rua Viana s/n, Boa Vista, Vila Velha, ES, Brazil Resumo: O eletrocardiograma é o exame que registra os campos elétricos gerados pelo coração a partir da superfície corpórea. Existem variadas indicações para a realização de eletrocardiografia, como detecção de arritmias ao exame físico, histórico de síncope ou fraqueza, acompanhamento da evolução e do tratamento de cardiopatias. Uma das cardiopatias capazes de gerar distúrbio de ritmo é a cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito que é uma doença primária do miocárdio que acomete principalmente cães da raça Boxer. Essa cardiomiopatia se resume em uma cardiopatia em que seus principais achados são as arritmias. Dessa forma o eletrocardiograma pode ser considerado um exame fundamental, pois é considerado o “padrão ouro” para o diagnóstico das alterações de ritmo cardíaco. Porém esse exame é feito em um curto período de tempo, sendo necessária a realização do holter. Esse trabalho relata um caso, no qual o eletrocardiograma foi fundamental para o diagnóstico presuntivo de cardiomiopatia arritmogênica de ventrículo direito. Ao exame físico o animal apresentava intolerância ao exercício, dispneia e não conseguia manter-se em estação. Foram observadas variadas arritmias como extrassístoles ventriculares, taquicardia ventricular e fibrilação atrial. Devido a não realização do exame necessário para o diagnóstico definitivo, optou-se pela terapia paliativa para as arritmias e prevenção da insuficiência cardíaca congestiva. Conclui-se que o eletrocardiograma constitui um exame válido para a detecção da cardiomiopatia arritmogênica e que o tempo de monitoração eletrocardiográfica é importante para o diagnóstico das cardiopatias decorrentes de distúrbio de ritmo. Summary: The electrocardiogram is the test that records the electrical fields generated by the heart from the body surface. There are various indications for electrocardiography as arrhythmia detection on physical examination, history of syncope or weakness, monitoring progress and treatment of heart disease. One of the diseases that generate the rhythm disturbance is arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy, that is a primary myocardial disease that mainly affects Boxer dogs. This cardiomyopathy is summarized in a disease in which its main findings are arrhythmias. Thus, the ECG may be considered a fundamental examination as it is considered the “gold standard” for the diagnosis of disturbances of cardiac rhythm. However, this test is done in a short period of time, achieving the holter is required. This paper reports a case in which the electrocardiogram was essential for the presumptive diagnosis of arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy. On physical examination the animal showed exercise intolerance, dyspnea, and could not keep up sta*Correspondência: [email protected] 144 tion. Various arrhythmias such as ventricular premature beats, ventricular tachycardia and atrial fibrillation were observed. Due to non-completion of the examination required for definitive diagnosis, we opted for palliative therapy for arrhythmias and prevention of congestive heart failure. We conclude that electrocardiography represents a valid test for diagnosis of arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy and that time electrocardiographic monitoring is important factor for the diagnosis of heart diseases derived from rhythm disturbance. Introdução Em 1887, Augustus Waaler realizou as primeiras aferições da atividade elétrica cardíaca, utilizando-se o cão como modelo experimental. Porém as medidas quantitativas exatas da atividade elétrica cardíaca só começaram a ser realizadas em 1902 através do galvanômetro de Einthoven. A partir dessa data, Waller e Einthoven registraram os primeiros traçados eletrocardiográficos em cães (Ferreira et al., 2008). Por definição, o eletrocardiograma é o exame que registra os campos elétricos gerados pelo coração a partir da superfície corpórea. Essa atividade elétrica é registrada sob forma de ondas que representam a despolarização e repolarização do miocárdio (Tilley, 1992; Ferreira et al., 2008; Tilley et al., 2008). Existem variadas indicações para a realização de eletrocardiografia, como a identificação de arritmias durante o exame físico (incluindo bradicardia, taquicardia ou irregularidade no ritmo cardíaco), histórico de síncope ou fraqueza, acompanhamento da evolução e tratamento de cardiopatias, entre outras. O eletrocardiograma pode evidenciar efusão pericárdica, sugerir sobrecarga de câmaras, trazer alterações compatíveis com hipo e hipertireoidismo, porém sua principal função é detectar e classificar as arritmias cardíacas sejam estas primárias ou secundárias às cardiopatias (cardiomiopatias) (Tilley, 1992; Tilley et al., 2008; Wolf et al., 2000). Uma das cardiopatias capazes de gerar distúrbio de ritmo é a cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo Lázaro M. et al. direito que é uma doença primária do miocárdio que acomete principalmente cães da raça Boxer. Ela foi primeiramente descrita em humanos e caracteriza-se principalmente pela substituição progressiva do miocárdio ventricular por tecido gorduroso, fibroso ou fibro-gorduroso que prejudica a condução do impulso elétrico pelo ventrículo, levando à insuficiência ventricular direita (Basso et al., 2004; Caro-Vadillo et al., 2013). Apesar das teorias acerca de degeneração ou inflamação serem as principais suspeitas, a etiologia e patogenia ainda são obscuras (Boujon e Amberger, 2003). Foi proposta ainda a teoria da apoptose e uma alta incidência familial foi demonstrada (Möhr e Kirberger, 2000). Inicialmente ocorre um envolvimento regional e posteriormente global do ventrículo direito. O ventrículo e o átrio esquerdo geralmente não são afetados, o que ajuda a diferenciar de cardiomiopatia dilatada (Möhr e Kirberger, 2000). Boujon e Amberger (2003) ressaltam que essa enfermidade em humanos apresenta elevado grau de morbidade e alto risco de morte súbita, principalmente em pessoas jovens. Essa doença pode se apresentar de três formas, sendo a primeira e mais comum chamada de forma oculta, na qual o cão é assintomático, porém à monitoração eletrocardiográfica apresenta complexos ventriculares prematuros. A segunda forma é a ostensiva, caracterizada por taquiarritmias, intolerância ao exercício ou síncopes. O terceiro grupo (menos diagnosticado) é caracterizado pelo animal que possui disfunção sistólica e em muitas vezes insuficiência cardíaca congestiva (Meurs, 2004). Um dos principais problemas na cardiomiopatia arritmogênica de ventrículo direito é a dificuldade no seu diagnóstico precoce, uma vez que ela pode causar morte súbita em pacientes aparentemente saudáveis. Dessa forma, é muito importante que se leve em consideração o histórico do animal, sinais clínicos e a realização de exames complementares como a radiografia torácica, ecocardiograma, eletrocardiograma e Holter. Faz-se necessário também a realização de exames de rotina como hemograma, função renal e hepática para descarte de outras possíveis doenças (Silva et al., 2014) Sabidamente, a cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito se resume em uma cardiopatia em que seus principais achados são as arritmias, principalmente as extrassístoles ventriculares, com formato de bloqueio de ramo esquerdo, pois se origina do ventrículo direito. Ainda podem estar presentes as taquiarritmias, extrassístoles atriais, fibrilação atrial, e bloqueios isolados de ramo direito ou esquerdo em casos mais avançados envolvendo insuficiência cardíaca congestiva e disfunção sistólica. Dessa forma o eletrocardiograma, pode ser considerado um exame fundamental, pois é considerado o “padrão ouro” para o diagnóstico das alterações de ritmo cardíaco. Porém esse exame só dura de 2 a 3 minutos, representando um período muito pequeno das 24 horas de um dia, limi- RPCV (2015) 110 (595-596) 145-149 tando o diagnóstico. Por essa razão, o Holter torna-se a melhor escolha para avaliar o paciente acometido por essa doença (Meurs, 2004; Silva et al., 2014). Tais arritmias ocorrem devido a alterações estruturais nos cardiomiócitos e à proliferação de tecido fibroso e/ou gorduroso que resulta na modificação da atividade elétrica e mecânica da célula. A presença de variadas arritmias pode ser decorrente de uma evolução da doença. A arritmia é o principal problema em cães acometidos por essa enfermidade, e a progressão leva à insuficiência cardíaca congestiva apesar do tratamento (Möhr e Kirberger, 2000; Boujon e Amberger, 2003; Meurs, 2004; Silva et al., 2014). O objetivo principal do tratamento é o controle das arritmias cardíacas, além de reduzir a sintomatologia da insuficiência cardíaca quando presente, visando melhorar a qualidade de vida do animal e reduzir os riscos de morte súbita. O protocolo varia bastante de acordo com cada profissional, porém deve ser ajustado de acordo com os sinais clínicos que o paciente apresenta. Podem-se utilizar antiarrítmicos da classe III (bloqueadores dos canais de potássio), entre outras medicações dependendo do estágio da doença (Silva et al., 2014). O objetivo do presente trabalho foi promover uma abordagem descritiva sobre o papel do eletrocardiograma na cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito, identificando as arritmias cardíacas envolvidas, bem como sua evolução e função do acompanhamento terapêutico nesta enfermidade. Caso clínico O presente caso foi relatado sob consentimento irrestrito do proprietário e responsável pelo animal. Atendeu-se no Hospital Veterinário Professor Ricardo Alexandre Hippler, em Vila Velha -ES, um canino fêmea, da raça Boxer, 11 anos de idade e 20,6 kg. O animal fora trazido ao serviço veterinário pela proprietária, pois estava sendo tratado para erliquiose, porém encontrava-se muito cansado, com intolerância ao exercício e não conseguia manter-se em estação tendo em vista que seus membros pélvicos estavam fracos. Na anamnese a proprietária relatou que inicialmente notou colúria, apatia, prostração e fraqueza em membros pélvicos. Ao ser questionada acerca dos irmãos de ninhada, a mesma comentou que sua irmã já havia apresentado síncope em uma única vez quanto tinha 3 anos de idade, porém como nunca mais apresentou nenhuma alteração, preferiu não investigar. Ela relatou que levou o animal em um veterinário que realizou exame ultrassonográfico, hemograma, bioquímica sérica (ALT, AST, uréia, creatinina e fosfatase alcalina) e urinálise. Não foram encontradas alterações ao exame ultrassonográfico. No hemograma, a única alteração digna de nota foi trombocitopenia (125 mil/mm3 plaquetas). Na bioquímica sérica, não foram encontradas alterações. 145 Lázaro M. et al. Na urinálise, foi detectado apenas proteinúria (+++). O veterinário responsável prescreveu doxiciclina na dose de 10 mg/Kg, BID durante 7 dias e SID durante 21 dias. Além disso, o mesmo prescreveu ranitidina na dose de 2 mg/Kg, BID, e um antinflamatório no qual a proprietária do animal não se lembrava o nome. Apesar de estar realizando o tratamento corretamente e ter notado melhora na coloração da urina, o animal ainda apresentava-se com intolerância ao exercício, fraqueza e não conseguia manter-se em estação. Por essa razão trouxe o animal ao serviço de emergência do Hospital. Ao exame físico, o animal apresentava-se dispneico, com mucosa oral levemente pálida, taquicardia (180 bpm), normotermia (37,8°C), escore de condição corporal (3/9) de acordo com os critérios estabelecidos por Laflamme (1997) e bulhas normofonéticas. Foram observadas taquipnéia, e falta de sincronia entre os batimentos cardíacos e o pulso. O animal não apresentava dor à palpação abdominal, sopro cardíaco ou crepitação pulmonar. Por meio das informações obtidas e dos achados clínicos suspeitou-se de alguma cardiopatia e por essa razão o animal ficou sob monitoração eletrocardiográfica por 120 minutos (figura 1), utilizando-se o padrão descrito por Tilley (1992), registrando-se as derivações bipolares e unipolares, em 25mm/s e 1mV. Foram detectados: taquicardia sinusal (190 bpm) (figura 2a), extrassístoles ventriculares multifocais com morfologia de ventrículo direito (figura 2b), extrassístoles ventriculares isoladas com morfologia de ventrículo direito e em salva (figura 2c), taquicardia ventricular não sustentada (figura 2d) e fibrilação atrial (figura 2e). Foi realizada também uma radiografia torácica para avaliação cardíaca e pulmonar que não evidenciou alterações (figura 3). Além do eletrocardiograma e do raio X, repetiu-se o hemograma que evidenciou uma anemia normocítica normocrômica (VG: 34,7%) e trombocitopenia (128 mil/µL) e foi realizada uma sorologia para erliquiose que teve resultado positivo (titulação de IgG de 1:320 a 1:640). Diante desse resultado, dosou-se CK (creatinaquinase) que estava dentro dos limites de normalidade (56,6 UI/dL) na tentativa de investigar uma possível miocardite. Por fim, foram solicitados exames de ecodopplercardiograma e Holter. Figura 1 - Canino, da raça boxer, 11 anos de idade recebendo monitoração eletrocardiográfica. Fonte: Arquivo pessoal, 2014. 146 RPCV (2015) 110 (595-596) 146-149 Figura 2 - Traçado eletrocardiográfico de um canino, da raça boxer, 11 anos de idade, em derivação DII, 25mm/s e 1mV. Em A: Taquicardia sinusal (190 bpm). Em B: Extrassístoles ventriculares multifocais com morfologia de Ventrículo direito (setas indicam complexos de diferentes tamanhos). Em C: Extrassístoles ventriculares isoladas com morfologia de ventrículo direito (setas pretas) e extrassístoles ventriculares em salva (quadro vermelho). Em D: Taquicardia ventricular não sustentada. Em E: Fibrilação atrial, ausência de onda P, tremor de linha de base e taquicardia (250 bpm). Fonte: Arquivo pessoal, 2014. A B Figura 3 - Radiografia torácica de um canino, da raça boxer, 11 anos de idade. Em A e B: ausência de alterações dignas de nota. VHS = 10,5v. Arquivo: Serviço de Diagnóstico por Imagem do Hospital Veterinário Professor Ricardo Alexandre Hippler, 2014. A proprietária optou apenas pela realização do ecodopplercardiograma que revelou hipocinesia difusa do ventrículo esquerdo (figura 4a), insuficiência valvar mitral importante (figura 4b), anormalidade de relaxamento miocárdio do ventrículo esquerdo (figura 4c), aumento do diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo (figura 4d) e diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo normal. Além disso, nesse exame foram observadas espessuras de septo interventricular e parede livre normais. Lázaro M. et al. Figura fico de de um canino da raça Figura 44 -- Exame Exameecodopplercardiogr‡ ecodopplercardiográfico boxer, 11 anos de idade. Em A: Hipocinesia difusa do ventrículo esquerdo. Em B: Insuficiência de válvula mitral. Em C: Anormalidade de relaxamento de ventrículo esquerdo. Em D: Aumento de volume sistólico do ventrículo esquerdo. Fonte: Spalenza, 2014. Diante do exposto, optou-se pela terapia paliativa para as arritmias apresentadas e insuficiência cardíaca congestiva com Sotalol (1mg/Kg, BID), benazepril com espironolactona (0,25 mg/Kg, BID) e digoxina (0,23 mg/Kg). Quatro dias posteriores à realização do ecodopplercardiograma e o início do tratamento, após observar que a cadela não havia melhorado, a proprietária optou pela realização do Holter, porém o animal veio à óbito na noite anterior ao dia do exame. Diante dos achados clínicos e dos exames complementares presumiu-se pelo diagnóstico de cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito, embora os exames complementares que permitiriam o diagnóstico definitivo desta enfermidade não tenham sido realizados a tempo. Discussão O presente relato apresenta um caso de arritmias cardíacas na qual o diagnóstico presuntivo, foi de cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito em um cão da raça Boxer. Essa é uma raça predisposta a essa enfermidade e muitas vezes o próprio nome da doença é atribuído a essa raça, sendo por muitos, chamada de “Cardiomiopatia do Boxer” (Palermo et al., 2011). De acordo com Oyama et al. (2008), boxers possuem essa afecção de forma natural, ou seja, uma alta incidência em exemplares da raça. Essa enfermidade apresenta caráter hereditário (Botas, 2009), o que corrobora com o caso aqui descrito tendo em vista que a cadela tinha uma irmã de ninhada que em um momento da vida apresentou síncope. Por se tratar de um cão da raça boxer, um diagnóstico diferencial importante analisado foi o de cardiomiopatia dilatada, que segundo Fox et al., (1999) é uma doença muito frequente em cães desta raça. Por essa razão, solicitou-se um exame ecodopplercardiográfico. RPCV (2015) 110 (595-596) 147-149 Boon (2011) cita que na cardiomiopatia dilatada, as funções sistólica e diastólica estão aumentadas, diferentemente do observado no exame do cão analisado neste trabalho, no qual apenas a função sistólica estava aumentada. Além disso, nessa doença as paredes do septo interventricular e livre estão tipicamente finas, ao contrário do que se observou nesse animal, onde a espessura dessas estruturas encontrava-se normal. As alterações encontradas no ecodopplercardiograma do canino em evidência revelaram alterações cardíacas no lado esquerdo do coração, como insuficiência de válvula mitral. Esse fato pode ser justificado, pois alguns autores citam que as arritmias causam disfunção sistólica e com isso ocorre aumento da pressão intraventricular, levando à insuficiência de mitral e todas as outras alterações encontradas no ecodopplercardiograma desse cão (Schwantes e Oliveira, 2006; Silva et al., 2014). Um exame realizado e muito importante para descartar a cardiomiopatia dilatada, foi a radiografia torácica. Fox et al. (1999) explicam que nessa cardiomiopatia, observa-se na maioria das vezes, cardiomegalia evidente. Essa alteração não foi observada no exame do animal aqui relatado, fortalecendo a suspeita de cardiomiopatia arritmogênica. O exame radiográfico não apresentou qualquer alteração corroborando com Silva et al. (2014) que citam que esse exame não é muito sensível para cardiomiopatia arritmogênica visto que mesmo em animais sintomáticos ela não apresenta qualquer alteração. Outro diferencial a ser considerado neste caso seria a miocardite infecciosa secundária ao quando de erliquiose (Hilderbrandt et al., 1973) apresentado pelo animal. Entretanto os achados clínicos e o resultado de CK não tenham demonstrado uma lesão muscular intensa a ponto de justificar a disfunção sistólica apresentada pelo animal, mesmo que sabidamente a enzima CK não represente um biomarcador altamente sensível para o miocárdio em medicina veterinária (Freitas et al., 2013). Excluindo-se os diferenciais supracitados e somando-se os achados do presente caso, inferiu-se o diagnóstico de cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito apesar da não realização do Holter e da biópsia de miocárdio conforme descrito pela literatura (Meurs, 2004). A cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito pode ser classificada em três fases. Na primeira, chamada de oculta, os animais são assintomáticos, porém apresentam extrassístoles. Na segunda, denominada evidente (ou ostensiva), os afetados demonstram cansaço fácil, dispneia ou síncopes. Na última, nomeada de disfunção sistólica, os acometidos podem apresentar sinais claros de insuficiência cardíaca congestiva. Tendo em vista que o animal apresentava-se com intolerância ao exercício e dispneia, que são dois sinais clínicos presentes no segundo estágio da doença (Sil147 Lázaro M. et al. va et al., 2014), optou-se pela realização de um exame eletrocardiográfico que de acordo com Pereira et al. (2013) é um método não invasivo e pode direcionar o diagnóstico de cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito (Silva et al., 2014). Entretanto sabe-se que geralmente a exploração eletrocardiográfica dura um curto período de tempo, podendo não evidenciar certas arritmias cardíacas, tornando-se um exame de baixa sensibilidade para a cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito (Smith et al., 2007). Por tal motivo, e pela impossibilidade momentânea da proprietária em realizar o exame, optou-se pela internação do animal para que fosse realizado um monitoramento da atividade elétrica cardíaca durante um maior período de tempo (120 minutos). Durante todo o período de monitoramento, foram observadas fibrilação atrial, extrassístoles ventriculares e taquicardia ventricular, que são arritmias que já foram observadas nessa doença em casos relatados por Möhr e Kirberger (2000) e Basso et al. (2004). Silva et al. (2014) citam que a principal alteração funcional que ocorre na cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito é a presença de alguns tipos de arritmias cardíacas, como as citadas acima. Nesses casos, frequentemente o ritmo fica irregular e com alta frequência, diminuindo o tempo diastólico e consequentemente o débito cardíaco, reduzindo a perfusão periférica. Com essa queda na perfusão, ocorre déficit na irrigação do sistema nervoso central trazendo como um dos principais sinais clínicos, a síncope. Porém no caso em questão o animal não apresentava esse sinal. A fibrilação atrial corresponde a um ritmo totalmente irregular, na qual a onda P é substituída por uma linha de base irregular (ondas “f ”) e não é observada. Nessa arritmia, a frequência cardíaca do animal geralmente encontra-se elevada. O complexo “QRS”, na maioria das vezes apresenta sua morfologia normal, porém o batimento ventricular é totalmente irregular devido à junção atrioventricular permitir que apenas um limitado número de ondas sejam conduzidas para os ventrículos (Tilley, 1992; Fox et al., 1999). A segunda arritmia observada nesse caso é a extrassístole ventricular, que também pode ser chamada de complexo ventricular prematuro. Nela, os batimentos cardíacos são usualmente normais, porém o ritmo é irregular, pois ocorrem complexos “bizarros” que interrompem o ritmo ventricular normal. Se a maior deflexão no complexo prematuro for negativa na derivação DII do eletrocardiograma, o foco ectópico é no ventrículo esquerdo. O contrário também é verdadeiro. Os complexos prematuros não são associados à onda P (Tilley, 1992; Fox et al., 1999). Outra arritmia observada na eletrocardiografia deste animal foi a taquicardia ventricular que é caracterizada por uma série contínua de complexos ventriculares prematuros. Ela pode ser intermitente ou persistente. A taquicardia ventricular pode ser considerada a taquiarritmia mais séria, porém nem sempre implica em 148 RPCV (2015) 110 (595-596) 148-149 risco de vida. A frequência se mantém acima de 100 bpm. Nessa alteração, os complexos QRS são grandes e “bizarros” e na maioria das vezes as ondas P não são observadas (Tilley, 1992; Fox et al., 1999). A escolha da terapia foi com base nas arritmias apresentadas pelo animal na eletrocardiografia. Por se tratarem de arritmias ventriculares, optou-se pelo uso da Digoxina (digitálico) e do Sotalol (β-bloqueador) que de acordo com Silva et al. (2014) são os mais indicados para essas arritmias. Na tentativa de evitar a evolução da insuficiência cardíaca congestiva, iniciouse também o uso do Benazepril (inibidor da enzima conversora de angiotensina) e da espironolactona, devido ao seu efeito cardioprotetor ao inibir receptores da aldosterona (Fox et al., 1999; Tilley et al., 2008). Apesar da realização de todo o tratamento indicado pela literatura, o animal veio à óbito e por opção da proprietária, não foi realizada a necropsia que por meio de biopsia permitiria o diagnóstico definitivo. Conclusão Conclui-se que a cardiomiopatia arritmogênica é uma doença que muitas vezes é silenciosa e não deve ser esquecida em animais que apresentam apenas intolerância ao exercício como sinal clínico, visto que essa sintomatologia está associada às arritmias cardíacas, potencialmente fatais. Embora haja recomendação para a realização do Holter para o diagnóstico da cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito, o eletrocardiograma mostrou-se como uma ferramenta válida quando realizado por um maior período de tempo, permitindo o diagnóstico da enfermidade e a tomada de decisão para a instituição da terapêutica adequada. Bibliografia Basso C, Fox PR, Meurs KM, Jeffrey AT, Spier AW, Calabrese F, Maron BJ, Thiene G (2004). Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy causing sudden cardiac death in Boxer dog: a new animal model of human disease. Circulation, 109, 1180-1185. Boujon CE, Amberger CN (2003). Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy (ARVC) in a Boxer. 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