POLÍTICA URBANA E DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO Giselle Viegas Dantas Rodrigues1 Ercilia Oliveira dos Santos2 Resumo O presente artigo objetiva discutir a política urbana brasileira no contexto do capitalismo contemporâneo através da análise do modelo de planejamento urbano executado pela ação conjunta dos poderes público e privado, enfatizando os efeitos do deslocamento compulsório em populações atingidas por projetos urbanísticos. Baseia-se em pesquisa bibliográfica e é produto de resultados parciais de pesquisa e produção acadêmica, desenvolvido no período estágio supervisionado vinculado ao Programa de Apoio à Reforma Urbana da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará. Palavras-chave: Política Urbana; Capitalismo Contemporâneo; Deslocamento Compulsório. Abstract This article is proposed to discuss the Brazilian urban policy in the context of contemporary capitalism through the urban design planning model implemented by the joint action of public and private, emphasizing the effects of compulsory relocation in populations affected by urban projects. It is based on a bibliographic research, and also is a partial result of an academic survey and production, developed in the period of supervised training linked to the Program of Support to Urban Reform of the Social Work School at the Federal University of Para. Key-words: Urban Policy; Contemporary Capitalism; Compulsory Relocation. 1 Estudante. Universidade Federal do Pará – UFPA. [email protected] 2 Estudante. Universidade Federal do Pará – UFPA. [email protected] INTRODUÇÃO Nos últimos anos, a busca por melhores condições de vida nos grandes centros urbanos se intensificou. Nesse contexto de crescimento demográfico e espacial, a urbanização possui papel importante no que diz respeito à organização territorial e a reprodução do trabalho. O Estado se faz presente nesse processo, pois possui interferência direta na produção do espaço urbano. As políticas públicas acompanham a estrutura governamental, e no vigente modo de produção e reprodução a cada crise econômica o Estado se redimensiona, e é nesse contexto de reestruturação produtiva que o capitalismo contemporâneo se consolidou. (NETTO, 2008). Este é marcado pelo agravamento das expressões da questão social, dentre elas a urbana. A política urbana brasileira no contexto do capitalismo contemporâneo está vinculada a ideologia neoliberal e pautada em uma concepção de embelezamento das cidades a partir de um planejamento urbano que privilegia os interesses econômicos em detrimento do humano. Conforme as terras vão sendo urbanizadas e, portanto, valorizadas, a população economicamente desfavorecida - residente no eixo de intervenção dos projetos urbanísticos - é deslocada para áreas cada vez mais afastadas e desprovidas de infraestrutura. Embora o deslocamento compulsório em área urbana venha sendo historicamente naturalizado por entidades públicas e privadas, se faz necessário estudar seus impactos e desenvolver uma política específica a fim de regulamentar as diretrizes de implementação do deslocamento de populações para execução de obras urbanísticas. 1. POLÍTICA URBANA NO BRASIL SOB A ÉGIDE DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO A questão urbana é uma das expressões da questão social3, cuja manifestação mais evidente se refere à precariedade nas condições de moradia, saneamento e 3 Categoria marxista que, segundo Iamamoto (2008:125) “(...) expressa a subversão do humano própria da sociedade capitalista contemporânea, que se materializa na naturalização das desigualdades sociais e na submissão das necessidades humanas ao poder das coisas sociais”. degradação ambiental. De acordo com os princípios da Reforma Urbana4, a cidade deve ser planejada a partir do diagnóstico das desigualdades e dos direitos sociais, onde os conflitos urbanos são vistos como uma expressão política das condições gerais da estrutura socioeconômica. A cidade é caracterizada por Lefebvre (2001) como um cenário decorado pelo conflito de classes e pela desigualdade social; um espaço de socialização da reprodução social, resultado do intenso processo de urbanização desigual, injusto e insustentável. Nela há maior concentração de bens e serviços. É o contraste do belo e do feio, onde a beleza geralmente se concentra no centro da cidade, à periferia fica reservado o feio, sem infraestrutura. Os movimentos de luta e resistência como o Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU) tiveram papel essencial para a consolidação da Política Urbana brasileira, pois através de suas reivindicações, conquistou-se um marco regulatório da maior importância para a discussão da questão urbana. Propôs-se a reformulação da legislação através da Emenda Popular da Reforma Urbana, encaminhada ao Congresso Constituinte pelo MNRU. Esta articulação popular resultou na conquista da inclusão de uma pauta acerca da Política Urbana na forma de 2 artigos (182 e 183) na Constituição Federal de 1988. Há de se ressaltar que o capitalismo contemporâneo é configurado pela “exponenciação da questão social”, ou seja, o aumento expressivo da pauperização, da precarização e informatização das relações de trabalho, e também pela concentração de poder político naqueles atores que concentram poder econômico (NETTO, 2008). Nos últimos anos, além das características já mencionadas, o modelo de planejamento urbano brasileiro vem seguindo uma lógica de planejamento tecnocrático, que prioriza a infraestrutura urbana por meio de intervenções pautadas na eficiência e eficácia. A experiência do Banco Nacional de Habitação (BNH)5, no período de regime militar, embora tenha ocasionado efeitos significativos na produção e na política habitacional, estabeleceu um recorte privatista de acesso a moradia, pois não atingia a população abaixo de 3 salários mínimos. Este tipo de política reforça a 4 O movimento da Reforma Urbana, segundo Moura (1999), pode ser entendido como processo de luta e reinvindicações pela democratização da cidade, rompendo com as formas tradicionais de organização do espaço urbano. Tendo como princípios fundamentais a função social da cidade, a redistribuição de renda e a gestão democrática da cidade. 5 Instituição pública criada em 1964, que geria os recursos da poupança compulsória do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), objetivava o financiamento e à produção de empreendimentos imobiliários. segregação socioespacial e a fragmentação do espaço urbano. Com a crise do Sistema Financeiro de Habitação (SNH) e a extinção do BNH em 1986, e a descentralização administrativa pós-constituição de 88, a atribuição de financiamento dos empreendimentos imobiliários é conferida a Caixa Econômica Federal. Sobre a discussão de políticas de atendimento habitacional no Brasil, podem-se acrescentar as palavras de João Ferreira: O governo federal manteve um sistema centralizado, com linhas de crédito sob seu controle, sem uma política definida para incentivar e articular as ações dos estados e municípios no setor de habitação. O que se observa nesse período é a desarticulação institucional ou até mesmo a extinção de várias Companhias de Habitação (COHAB) estaduais e a dependência quase completa dos recursos federais pelos governos para o enfrentamento dos problemas habitacionais, verificando-se, inclusive, quase ou nenhuma priorização por parte de muitos estados à questão habitacional (Ministério das Cidades, 2009). No entanto, essa política vem sendo repensada através da proposta de promoção da participação e do controle social, a partir da criação do Ministério das Cidades em 2003. Por fim, diante do agravamento da questão urbana estão sendo elaborados e executados planos de desenvolvimento econômico pelo poder público (Estado) e o privado (instituições multilaterais de crédito). Estes se apresentam em função da melhoria da qualidade de vida da população urbana pauperizada, contudo, percebe-se que seus preceitos estão intrinsecamente ligados a assuntos econômicos em função do mercado. Haja vista que a partir da análise a documentos do Banco Mundial, de acordo com Mejía (1996) os moradores de favelas são considerados como “cidadãos de terceira”, essa visão equivocada permite tratar apenas os efeitos e não as causas da questão urbana. Todavia, é essencial entender que motivos conduzem essas famílias a se fixarem em situações inadequadas de moradia. 2. DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO EM ÁREA URBANA A partir da década de 70 as instituições multilaterais de crédito aumentam os investimentos nos países economicamente fragilizados (SANTANA, 2006). A possibilidade de intervenção externa na economia local se dá pelo processo de mundialização, onde a concepção de atraso econômico justifica a liberdade de atuação nas mais variadas esferas. Assim, os países desenvolvidos se beneficiam pela criação de condições financeiras favoráveis para o consumo e para o mercado mundial. Os governos locais, persuadidos pelo discurso desenvolvimentista, consentiram interferências mundializadas em suas economias, bem como em intervenções urbanísticas de infraestrutura e saneamento básico. O deslocamento compulsório em área urbana ainda é pouco discutido, entretanto seus efeitos são cada vez mais evidentes. Esta expulsão provocada pelo acelerado processo de “desenvolvimento econômico” vem causando sequelas irreversíveis para as famílias atingidas. O fato é que tais empreendimentos geralmente afetam substancialmente o modo de viver das famílias residentes no raio de interferência das obras. Evidentemente a lógica econômica é o elemento norteador das intervenções que - em contrapartida ao desenvolvimento econômico - provocam o deslocamento de populações sem consulta prévia a suas opiniões; além de causarem graves impactos socioambientais. Sobre o assunto Vainer discorre: São empreendimentos que consolidam o processo de apropriação de recursos naturais e humanos em determinados pontos do território, sob a lógica estritamente econômica, respondendo a decisões e definições configuradas em espaços relacionais exógenos aos das populações/regiões das proximidades dos empreendimentos (1992:34). O termo deslocamento compulsório foi utilizado primordialmente para definir uma consequência dos grandes projetos em povos indígenas e/ou populações rural residentes em áreas afetadas pelos mesmos. Conforme a definição de Almeida, deslocamento compulsório é: O conjunto de realidades factuais em que pessoas, grupos domésticos, segmentos sociais e/ou etnias são obrigados a deixar suas moradias habituais, seus lugares históricos de ocupação imemorial ou datada, mediante constrangimentos, inclusive físicos, sem qualquer opção de se contrapor e reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses circunstancialmente mais poderosos (1996:30). Tal fato, ainda de acordo com Almeida (1996), ocasiona uma polêmica acerca da eficácia do investimento das agências multilaterais diante das situações de conflito social gerados por elas, pois atuam através de mecanismos coercitivos, impondo seus “planos de desenvolvimento” apresentados como imprescindíveis ao “progresso e modernização”. Em conjunto, os centros de poder em nível nacional e os organismos multilaterais, legalizam estas intervenções justificando que os danos infligidos seriam passíveis de serem reparados monetariamente ainda que, na visão do autor, conduza a problemas de ordem ambiental, moral e a redefinições de identidade social, que são considerados de certo modo aspectos irreparáveis. Desta maneira, os projetos de infraestrutura são postos em prática através do deslocamento forçado6 de “alguns”, justificado por supostamente proporcionar o “bem-estar de todos”. Os efeitos do “inevitável” processo de deslocamento provocam manifestações de resistência através das organizações civis (entidades e associações). As famílias atingidas por barragens, por exemplo, vêm passando por um processo organizativo, promovendo mobilizações e visibilidade pela causa defendida - a exemplo o Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB. Já na área urbana não se vê movimentos de resistência ao deslocamento compulsório em si, apenas a existência de alguns movimentos que discutem as políticas de desenvolvimento urbano, assim como o da Reforma Urbana, onde o deslocamento de populações ainda não faz parte da pauta de discussões. Tal fato pode ser justificado por se tratar de uma abordagem recente, caracterizada por uma visão realista e desnaturalizada. Diante do adensamento urbano, é necessário aumentar a infraestrutura e viabilizar o acesso aos serviços públicos de saneamento (abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo) e de iluminação pública, que somados são fatores fundamentais para o bem-estar dos moradores de uma cidade. Por outro lado, o deslocamento das famílias realizado para a efetivação das obras não tem levado em consideração as demandas dos usuários, causando uma série de impactos econômicos, sociais e culturais que precarizam, sobremaneira, a vida de homens e mulheres. Além disso, a mudança do local da antiga moradia para a área urbanizada desconsidera os laços de vizinhança (a sociabilidade entre os vizinhos), que são fundamentais na dinâmica de sobrevivência das famílias. CONCLUSÃO A especulação fundiária e o avanço do mercado imobiliário sobre o espaço urbano instigam a elaboração de projetos urbanísticos que necessariamente ocasionam a segregação socioespacial, pois a partir de sua implementação famílias que não podem arcar com esta nova realidade são deslocadas para áreas cada vez mais afastadas e sem infraestrutura. 6 Sinônimo de deslocamento compulsório. A questão habitacional é apenas uma das consequências da questão social. As políticas urbanas se voltam para eliminação de áreas de ocupação precária, renovando a habitação e infraestrutura, sem, contudo intervir na gênese do problema. Não é novidade que as ações governamentais focalizam a amenização das expressões da questão social, conferindo a fragmentos de sua manifestação enfoque principal. As políticas públicas para alcançarem maior qualidade devem considerar a totalidade do processo de mundialização que, de acordo com Iamamoto (2008:114), “(...) é da maior importância para compreender a gênese da (re)produção da questão social, que se esconde por detrás de suas múltiplas expressões específicas, que condensam uma unidade de diversidades. Aquelas expressões aparecem sob a forma de ‘fragmentos’ e ‘diferenciações’, independentes entre si, traduzidas em autônomas ‘questões sociais’”. Segundo Abelém (1989:23) medidas paliativas são reflexo da contradição estrutural do Estado que apesar de se apresentar em função da igualdade entre todos, é fundamentalmente classicista, atuando em favor do capital. Populações atingidas pelo deslocamento compulsório em área urbana são submetidas a alterações espaciais e estruturais tendo como principal consequência a não adaptação financeira ao aumento de custo de vida. Trata-se de uma cidadania permitida para saírem da condição de cidadãos de terceira são obrigados a pagar pelos serviços. Ou seja, a cidadania é proporcional ao poder econômico de cada “cidadão”. Ao eliminar o aspecto feio da cidade (favelas, baixadas, alagados) criam condições habitacionais melhores, mas que a população alvo continuará impedida de usufruir, por não possuir condições financeiras de permanecer na área renovada em função do aumento do custo de vida. Compreende-se que o capitalismo contemporâneo se manifesta de maneira cruel, pois não impede apenas o indivíduo de opinar acerca de sua condição habitacional, mas também sobre o trabalho, a saúde, a educação, etc. Tendo que se adaptar/submeter forçosamente as mais variadas formas de uma cidadania permitida e limitada. A falta de uma política habitacional para regulamentar o deslocamento em área urbana, permite que cada instituição planeje a partir de sua percepção como aplicar o deslocamento em área urbana. Entendemos, contudo, que se faz necessário estabelecer diretrizes específicas acerca dessa questão para então oferecer bases e limites legais ao deslocamento, além de subsidiar amparo jurídico as famílias atingidas. REFERÊNCIAS ABELÉM, Auriléa Gomes. Urbanização e remoção: por que e para quem? Belém: UFPA, 1989, 165p. (Coleção Igarapé). ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Refugiados do desenvolvimento: os deslocamentos compulsórios de índios e camponeses e a ideologia da modernização. In: Travessia. maio/agosto, 1996. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. O tempo dos primeiros encontros. In Tempo e Presença. Edição especial – n° 244/245. Agosto/Setembro, 1989. BRAZ, Marcelo e NETTO, José Paulo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2008. 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