A descontinuidade da positivação da liberdade de reunião no Direito francês (1789-1868) Ivo Miguel Barroso* SUMÁRIO: 1. Primeiros meses da Revolução francesa. 1.1. As dúvidas acerca da inclusão da liberdade de reunião no núcleo dos direitos do homem e do cidadão. 1.1.1. Correntes filiadas no pensamento de ROUSSEAU. 1.1.1.1. A possibilidade de desvios à vontade geral. 1.1.2. Individualismo. 2. Consagração da liberdade de reunião (Dezembro de 1789 — 1793). 3. O reconhecimento unilateral das liberdades de reunião e de associação no período do «grande Terror» jacobino. 3.1. Constituição do ano I (1793). 4. A ausência geral de positivação no período entre 1794 e 1868. 4.1. Termidor e Directório. 4.1.1. Constituição do ano III. 4.2. Constitucionalismo napoleónico. 4.3. Monarquia constitucional. 4.3.1. Os regimes preventivos em relação a associações. 4.3.2. Aberturas do ordenamento à liberdade de reunião. 5. O período intercalar de uma parcela da II República (1848-1849). 6. O reconhecimento da liberdade de reunião, a partir de 1868. Conclusões “A (…) História constitucional [da França], mais do que qualquer outra, corresponde à imagem de um «laboratório» em que se podem estudar as origens, a evolução, o termo e a sucessão dos regimes” Publicado in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. No centenário do seu nascimento, volume I, coord. de JORGE MIRANDA, secretariado de EDUARDO VERA-CRUZ PINTO, FDUL, Coimbra Editora, 2006, pgs. 537-582. * Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 1 MARCELLO CAETANO* Tendo estado ligada de modo estreito à História constitucional e à História política1 (supra), a positivação da liberdade de reunião2 no Direito francês não foi estável, mas antes descontínua, intermitente. Esse percurso sinuoso do reconhecimento normativo interliga-se com a problemática dos perigos advenientes dos clubs e sociedades populares — grupos políticos, situados a meio caminho entre as associações e as reuniões3. A análise do período entre 1789 e 1881, para além de ser adequada ao tema da liberdade de reunião em especial, é largamente correspondente ao primeiro período em que a História do constitucionalismo francês é susceptível de ser dividida4-5. * In Manual de Ciência Política…, I, 6.ª ed., pg. 117. Cfr. JEAN-JACQUES ISRAEL, Droit des libertés fondamentales, pg. 492. 2 Uma vez que, neste ordenamento, a manifestação é considerada uma realidade distinta da reunião. 3 Neste sentido, JEAN MORANGE, Droits de l’homme, 5.ª ed., pg. 245; cfr. CHARLES DEBBASCH / JACQUES BOURDON, Les associations, 8.ª ed., pg. 34. 4 Seguindo a opinião de JORGE MIRANDA (in Teoria do Estado…, pg. 148), que detecta as diferenças entre o período compreendido entre 1789 e 1871 (em que se seguiram regimes e sistemas muito diversos) e o período subsequente (em sentido diverso do entendimento de MAURICE HAURIOU, que distinguiu ciclos revolucionários). 5 Sobre a liberdade de reunião na História constitucional francesa, após a Revolução e ao longo do século XIX, v. Associations illicites, in Répertoires méthodique et alphabétique de législation, de doctrine et de jurisprudence. En matière de droit civil, commercial, criminel, administratif, de droit des gens et de droit public, nouvelle édition, par M. D. DALLOZ, avec la collaboration de M. ARMAND DALLOZ et celle de plusieurs jurisconsultes, tome cinquième, Bureau de la Jurisprudence Générale du Royaume, Paris, 1847, pgs. 279-310; Attroupement, in ibidem, pgs. 442-456; Réunion, in Grand Dictionnaire Universel du XIXe. siècle, par PIERRE LAROUSSE, tome treizième, Administration du Grand Dictionnaire Universel, Paris, s.d., pgs. 1089-1090; Réunions publiques, in Répertoires méthodique et alphabétique de législation, de doctrine et de jurisprudence. En matière de droit civil, commercial, criminel, administratif, de droit des gens et de droit public, nouvelle édition, par M. D. DALLOZ, avec la collaboration de M. ARMAND DALLOZ et celle de plusieurs jurisconsultes, tome trente-neuvième, Bureau de la Jurisprudence Générale du Royaume, Paris, 1858 (quota da BFDUL: I-02-34/PP), pgs. 474476; Réunion (droit de), in Jurisprudence du XIX.e siècle. Table décennale. Alphabétique et chronologique du Recueil général des lois et des arrêts, (1861 a 1870), par J. RUBEN DE 1 2 1. Primeiros meses da Revolução francesa COUDER, Bureau de l’Administration, Paris, 1872, pg. 563; Association illicite, in Jurisprudence du XIX.e siècle. 3.e Table décennale. Alphabétique et chronologique du Recueil général des lois et des arrêts (1871 a 1880), par ED. FUZIER-HERMAN, Bureau du Recueil Général des lois et der arrêts, Paris, 1882, pg. 51; Réunion (droit de), in Jurisprudence du XIX.e siècle. 3.e Table décennale. Alphabétique et chronologique du Recueil général des lois et des arrêts (1871 a 1880), par ED. FUZIER-HERMAN, Bureau du Recueil Général des lois et der arrêts, Paris, 1882, pg. 601; FRANCESCO CONTUZZI, Assembramento, pgs. 371-385; FÉLIX BERRIAT-SAINT-PRIX, Théorie du Droit Constitutionnel français. Esprit de la Constitution de 1848. Précédé d’un essai sur le pouvoir constituant et d’un précis historique des Constitutions françaises, Videcoq Fils Ainé, Éditeur, Paris, 1851 (quota da BFDUL: C-5562), pgs. 250-256; ATTILIO BRUNIALTI, Associazioni e riunioni (diritto di), pgs. 18-20; Association illicite, in Jurisprudence du XIX.e siècle. 4.e Table décennale. Alphabétique et chronologique du Recueil général des lois et des arrêts (1871 a 1880), par ED. FUZIERHERMAN / TH. GRIFFOND, Librairie du Recueil Général des lois et des arrêts et du Journal du Palais, L. Larose, Éditeur, Paris, 1894, pg. 81; Attroupement, in Jurisprudence du XIX.e siècle. 4.e Table décennale. Alphabétique et chronologique du Recueil général des lois et des arrêts (1871 a 1880), par ED. FUZIERHERMAN / TH. GRIFFOND, Librairie du Recueil Général des lois et des arrêts et du Journal du Palais, L. Larose, Éditeur, Paris, 1894, pg. 116; LÉON DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, V, pgs. 340-347; JEAN FOURNIERPONCELET, La liberté de réunion…; MAURICE HAURIOU, Précis de Droit Constitutionnel, 2.ª ed., pgs. 666-667 (nota 26); MARCEL MOYE, Précis élémentaire de Droit public français. À l’usage des étudiants en Droit, Librairie de la Société du Recueil Sirey, Paris, 1911, pgs. 161164; ARANGIO RUIZ, Associazione (diritto di), pgs. 289-290. Na Doutrina mais recente, cfr. ARLETTE HEYMANN-DOAT, Libertés publiques et droits de l’homme, 3.ª ed., LGDJ, Paris, 1994, pgs. 43-44; JACQUES GODECHOT, Les institutions de la France sous la Révolution et l’Empire, 5.ª ed. (1.ª ed. de 1951), Presses Universitaires de France, Paris, 1998, pgs. 65-71, 326, 333-337, 482-488; IDEM, La Révolution française et la liberté, in Grund- und Freiheitsrechte im Wandel von Gesellschaft und Geschichte. Beträge zur Geschichte der Grund- und Freiheitsrechte vom Ausgang des Mittelalters bis zur Revolution von 1848, herausgegeben von GÜNTHER BIRTSCH, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1981, pgs. 247-248; GILLES LEBRETON, Libertés publiques et droits de l’Homme, 4.ª ed., Armand Colin, Paris, pgs. 476-477, 487; JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pgs. 56, 62; RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789. Tome 1 (1789-1848), nouvelle edition augmentée d’une preface inedited, Armand Colin, Paris, 2005, pgs. 189 ss.; ULRICH SCHWÄBLE, Das Grundrecht der Versammlungsfreiheit, pgs. 20-25. 3 A liberdade de reunião não foi das primeiras a constar das grandes Declarações do século XVIII6, nomeadamente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nos trabalhos preparatórios desta, a liberdade de reunião não foi incluída na maioria dos projectos de Declaração, designadamente no projecto da sexta comissão (o único aprovado na generalidade). Assim, cumpre indagar por que razões aquela liberdade não viria a constar da versão final. 1.1. As dúvidas acerca da inclusão da liberdade de reunião no núcleo dos direitos do homem e do cidadão No intuito de averiguar se a liberdade de reunião deveria ser um direito susceptível de constar da Declaração de 1789, no âmbito da difusão de ideias iluministas, será necessário convocar as correntes filosóficas sobre os direitos naturais, após a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade (nomeadamente as defendidas por LOCKE e por ROUSSEAU). Influenciados por estas teorias, os Constituintes de 1789 consideravam que, após a qualificação ou reconhecimento dos direitos, seria necessária a sua declaração (se os direitos naturais preexistiam à sociedade, esta não os poderia conferir7.); em segundo lugar, haveria a garantia dos direitos8. 6 Assim, JORGE MIRANDA, Manual…, IV, 3.ª ed., pg. 486; IDEM, Reunião (direito de), pg. 294. 7 JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 40. Por isso, na redacção final da Declaração de 1789, se refere que “[o] fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem” (art.º 2.º). | já tenho isto na Parte I – sociedade; por isso, talvez tirar daqui| Se a DDHC não pretendia ser um acto criador (JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 39), no entanto, os direitos haviam sido esquecidos ou ignorados, pelo que se tornava necessário colocá-los em evidência, dá-los a 4 Será que a liberdade de reunião seria parte integrante dos direitos naturais? Havia essencialmente duas correntes que analisaremos de seguida: a) Algumas, de pendor moderado, respondiam afirmativamente; b) Outras, designadamente com influência de ROUSSEAU, tinham reservas quanto à inclusão. As primeiras correntes estão em sintonia, de algum modo, com os antecedentes sociológicos relativos às reuniões de círculos de intelectuais no Antigo Regime. Estes círculos intelectuais — que começaram a existir como tais nesse século XVIII e que encorajavam a difusão da sociabilidade e das ideias, o que facilitaria o sucesso das Luzes9 — defendiam naturalmente a liberdade de reunião de que beneficiavam. Por outro lado, os constituintes defensores da liberdade de reunião estavam também em harmonia com a existência clubs, nas vésperas da eclosão da Revolução e nos seus primeiros passos. Assim, o Projecto de Declaração do “Comité dos cinco” qualificou a liberdade de reunião como direito natural10 (infra). conhecer ao público (era o carácter pedagógico da Declaração) (cfr. RICARDO GARCÍA 232). 8 JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 39. Cfr. Preâmbulo do Projecto do Comité dos cinco (Projet de Déclaration des droits de l’homme en société, 17 de Ago. de 1789, in Les déclarations des droits de l’homme de 1789. Textes réunis et présentés par Christine Fauré, Payot, col. Bibliothèque historique Payot, Paris, 1988, pg. 249). Os Constituintes consideravam que a Declaração dos direitos não era suficiente para assegurar o respeito destes (JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 39). A Declaração indicava que a organização da garantia dos direitos incumbiria à Constituição, segundo a fórmula do art.º 16.º (note-se que, na altura, a «Constituição» deveria ser elaborada posteriormente, estando separada da «Declaração dos direitos»). 9 ALAIN-SERGE MESCHERIAKOFF / MARC FRANGI / MONCEF KDHIR, Droit des associations, pg. 26. 10 Uma vez que, no preâmbulo, se veiculava a pretensão de “restabelecer, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem; (...) a fim de que as MANRIQUE, Sentido y contenido de la Declaración de 1789..., pg. 5 I. A liberdade de reunião foi prevista em projectos de Declaração anteriores aos Estados gerais: a) O art.º 4.º do projecto de Declaração do CONDE DE MIRABEAU (17491791), inserido na “Carta aos Batavos” (de 1788), influenciado pelas declarações de direitos da Pensilvânia, da Carolina setentrional e do Massachussetts (supra), preceituava: “O Povo tem o direito de se reunir, para se aconselhar com vista ao bem comum. Ele tem o direito de dar instruções aos seus representantes, e de requerer do corpo legislativo, através de mensagens e reclamações, a reparação dos danos que lhe foram infligidos, e o alívio dos males de que sofre.”11; b) Um Projecto anónimo parisiense enunciava, no primeiro parágrafo do art.º 4.º, “[o] direito de se reunir tanto para os assuntos públicos e privados, como para gozar de todos os prazeres da vida”12; c) O Projecto de BRISSOT de Warwille13, no art.º 2.º, relativo à “Declaração dos direitos”, referia: todos os homens “são livres, e, consequentemente, podem reunir-se quando lhes aprouver”; d) O Projecto de declaração dos direitos contido no caderno de queixas do Terceiro Estado do prebostado e viscondado de Paris fora de muros14 pedia que fosse reivindicações dos cidadãos, fundadas doravante em princípios simples e incontestáveis, tenham sempre como objectivo a conservação da Constituição e a felicidade de todos”. 11 Un Provençal parle aux Bataves: le projet de déclaration de Mirabeau, Abr. de 1788 (original: MIRABEAU, Aux Bataves sur le Stathoudérat, 1788, p. 198), in La déclaration des droits de l’homme et du citoyen, présentée par STÉPHANE RIALS, Hachette, Paris, 1988, pg. 519. 12 Déclaration des droits à faire, et pouvoirs à donner par le peuple français pour les États-généraux, dans les soixante assemblées indiquées à Paris, le mardi 21 avril 1789, Un projet anonyme parisien (fonte: Biblioteca Nacional francesa B.N. 8.º Lb. 39, 1518), in La déclaration des droits de l’homme et du citoyen, présentée par STÉPHANE RIALS, pg. 559. No quinto parágrafo, a liberdade de reunião era confundida com a assembleia dos Estados gerais (“[o direito de] se reunir para os seus assuntos públicos todos os anos em dia a fixar pela Constituição social, no lugar que a assembleia indicar (…)”). | PUS NO CONCEITO 13 Projet de déclaration de Brissot de Warville (Précis adressé à l’Assemblée-Générale dês Electeurs de Paris, pour servir à la rédaction du Cahier de doléances de cette ville), Paris, 1 de Maio de 1789 (fonte: Biblioteca Nacional francesa: B.N. 8.º Lb. 39, 7164), in La déclaration des droits de l’homme et du citoyen, présentée par STÉPHANE RIALS, pg. 563. 6 “aprovado em lei fundamental e constitucional”: que seria “um direito essencial de todos os cidadãos de poder reunir-se, de fazer exposições e petições, e de nomear os delegados para dar seguimento a essas petições, tanto junto dos Estados gerais como junto do poder executivo” (XXVII)15 II. Após a proclamação dos Estados Gerais como Assembleia Constituinte, nos trabalhos preparatórios da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão —, entre os múltiplos projectos apresentados16, três viriam a prever a liberdade de reunião: e) O Projecto de declaração dos direitos do homem, elaborado por JERÔME PÉTION (de Villeneuve) (1756-1794)17, no último artigo (19.º), referia: “O povo tem o direito incontestável de se reunir para a salvação comum, quando lhe aprouver (...)”18. f) O último artigo (8.º, n.º 73) da proposta de FRANÇOIS-LOUIS LEGRAND DE BOISLANDRY (1750-1834)19, intitulada “Diversos artigos propostos para entrar na Declaração dos direitos”, consignava: “Todos os cidadãos têm o direito de se reunir de forma pacífica, de fazer representações, de apresentar petições, quer ao poder legislativo quer ao poder executivo, e de nomear delegados para esse efeito.”20 14 Projet de déclaration dês droits contenu dans le cahier de doléances du Tiers état de la prévôte et cicomté de Paris hors les murs, de início de Maio de 1789, in La déclaration des droits de l’homme et du citoyen, présentée par STÉPHANE RIALS, pg. 566. 15 Curiosamente, a liberdade de reunião era integrada no título relativo à “Propriedade”, não no concernente à “Liberdade”. 16 Os projectos eram, na sua maioria, individuais (alguns dos quais elaborados por pessoas que não eram membros). 17 PÉTION era advogado em Chartres; tendo sido eleito Deputado do Terceiro Estado, foi um dos mais populares na ala progressista da Assembleia Constituinte (cfr. STÉPHANE RIALS, La déclaration des droits de l’homme et du citoyen, pg. 187); participou no primeiro comité da Constituição. 18 Em interligação com a vertente política, acrescentava em seguida: “de sancionar e de responsabilizar o que os seus representantes” tivessem feito em nome do povo (Déclaration des droits de l’homme. Remise dans les Bureaux de l’Assemblée nationale par M. PÉTION DE VILLENEUVE, député de Chartres, 1789 (data concreta de publicação não conhecida), in Les déclarations des droits de l’homme de 1789, pg. 90). 19 Deputado parisiense do Terceiro Estado. 7 g) Como se aludiu, o projecto colectivo do Comité dos cinco — provavelmente por influência de MIRABEAU, um dos seus membros21, (v. supra, a sua “Carta aos Batavos”) — consagrava no art.º 10.º: “Não se poderá, sem atentar contra os direitos dos cidadãos, privá-los da faculdade de se reunir na forma legal, para consultar a respeito da coisa pública, para dar instruções aos seus mandatários, ou para solicitar a reparação dos seus prejuízos.”22 Nos debates de 22 e 23 de Agosto sobre o art.º 10.º, MIRABEAU mencionou as liberdades de reunião e de associação: “É-nos permitido a todos formar as assembleias, círculos, clubs, lojas de franco-mações, de sociedades de qualquer tipo. A preocupação da polícia é impedir que essas assembleias não perturbem a ordem pública; mas, se se pode, por certo, pretender que essas assembleias não perturbem a ordem pública, cair-se-ia em erro proibi-las”23. Comment [MSOffice1]: melh orar isto 1.1.1. Correntes filiadas no pensamento de ROUSSEAU 20 Divers articles proposés pour entrer dans la Déclaration des droits. Par M. DE BOISLANDRY (fonte: Archives parlamentaires, 21 de Ago. de 1789), in Les déclarations des droits de l’homme de 1789, pg. 269) 21 Para além do CONDE DE MIRABEAU, o comité dos cinco era formado por JEANNICOLAS DÉMEUNIER (1751-1814), CÉSAR-GUILLAUME DE LA LUZERNE (Bispo de Langres) (1738-1821), CLAUDE REDON (1738-1820) e FRANÇOIS-DENIS TRONCHET (1726-1806). 22 Projet de Déclaration des droits de l’homme en société, 17 de Ago. de 1789, in Les déclarations des droits de l’homme de 1789, pg. 250. 23 MIRABEAU, sessão de 23 de Agosto de 1789, in Archives parlamentaires, p. 477. 8 Em contraposição com as anteriores, as correntes adversárias da liberdade de reunião eram tributárias da desconfiança originária em relação aos direitos de acção colectiva, inspirada no pensamento de JEANJACQUES ROUSSEAU. “[A]penas a vontade geral” (expressão mágica que resume a originalidade da construção rousseauniana24), poderia “dirigir as forças do Estado”25. Analisaremos primeiramente os elementos da vontade geral26, em comparação com a vontade particular. I. Uma vez que a soberania residiria “essencialmente em todos os membros do corpo”27, o primeiro requisito da vontade geral seria o aspecto quantitativo da maioria do número de votos. Este primeiro elemento não era suficiente, pois poderia também existir na vontade particular; assim, ROUSSEAU aduzia outras características distintivas. II. Ao nível substantivo, a vontade geral teria um conteúdo material, versando sobre um objecto geral e de interesse comum: a) Devido à sua natureza, não poderia incidir sobre um objecto particular28, pois perderia “a sua rectidão natural”29. 24 Neste sentido, CHEVALLIER, Jean-Jacques Rousseau, pg. 27. JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. I, 1.º par.. ROUSSEAU esforçou-se por restaurar, através de uma noção complexa, obscura, misteriosa (CHEVALLIER, Jean-Jacques Rousseau, pg. 12), desse mito inédito da «vontade geral», a antiga, simples e clara noção de “bem comum” (IDEM, ibidem, pg. 13), distanciandose do individualismo de LOCKE. 26 Após a celebração do pacto social, “[i]mediatamente, em lugar da pessoa particular de cada contratante”, o “acto de associação produz um corpo moral e colectivo, composto de tantos membros como os que a assembleia tem de votos” (JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro I, Cap. VI, 9.º par.). No artigo sobre “Economia política” (publicado na Enciclopédia, em 1755), ROUSSEAU erigia a vontade geral e no “primeiro princípio” do Direito público, na “regra fundamental do Governo”. As características da soberania — infalibilidade, inalienabilidade, indivisibilidade, absolutismo — eram precisamente as da vontade geral (CHEVALLIER, Jean-Jacques Rousseau, pg. 16). Sobre significado destas características, cfr. IDEM, ibidem, pgs. 16 ss.. 27 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Lettres écrites de la montagne, Primeira Parte, sexta carta, 18.º par.. 28 Cfr. JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Lettres écrites de la montagne, Primeira Parte, sexta carta, 22.º par.. “[A] vontade geral (…) muda de natureza tendo um objecto particular, e 25 9 b) O que havia de comum, nos diferentes interesses dos indivíduos congregados na assembleia, formava “as relações sociais”; seria “unicamente na base desse interesse comum que a sociedade” deveria “ser governada”30. A consulta geral do povo tinha a esplendorosa virtude de gerar a tendência para o bem comum, que existiria no fundo de cada um dos homens, embora ocultada pelas paixões31. III. A vontade geral seria apenas uma; ao passo que as vontades particulares seriam plúrimas32. Embora não fosse “impossível que” as segundas se pusessem “de acordo, sobre algum aspecto, com a vontade geral”, seria “impossível, pelo menos, que esse acordo” fosse “durável e constante; pois a vontade particular tende (...) para preferências”33. Por outro lado, não haveria uma coincidência inelutável entre a vontade geral e a vontade de todos, mas, muitas vezes, uma “grande diferença”34: a) a primeira apenas tem em conta o interesse comum; b) ao invés, a vontade de todos apenas considera o interesse privado, e consiste tão-só numa soma de vontades particulares35. não pode, como geral, pronunciar-se nem sobre um homem nem sobre um facto” (JEANJACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. VI, 6.º par.). 29 Cfr. JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. IV, 5.º par.. Conforme escreve o Autor, “esse objecto particular encontra-se ou no Estado ou fora deste. Se se encontra fora do Estado, uma vontade que lhe é estranha não é decerto geral em relação a ele; e, se se encontra no Estado, dele faz parte: então forma-se entre o todo e a parte uma relação que faz com que ambos sejam seres separados (...)” (in Du contrat social, Livro II, Cap. VI, 4.º par.); então, “julgando o que nos é estranho, não” teríamos “nenhum verdadeiro princípio de equidade que nos” guiasse (ibidem, 5.º par.), “por falta de um interesse comum”, sendo a regra do juiz identificada com a da parte (7.º par.). 30 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. I, 1.º par.. 31 CHEVALLIER, Jean-Jacques Rousseau, pgs. 12-13, seguindo a análise de B. DE JOUVENEL, Essai sur la politique de Rousseau. Homens na mesma condição de natureza — ou seja, não pervertidos, não corrompidos, não dominados por interesses egoístas, não dominados por interesses regionais ou locais, não escravizados pelo medo ou por esperanças vãs, não intimidados, não desviados da sua verdadeira natureza pela perversidade de outros (Rousseau, pgs. 63-64) —, seguiriam inelutavelmente a única solução correcta, ditada pela razão, não os sentimentos, que conduziriam ao erro (cfr. ISAIAH BERLIN, Rousseau, pgs. 50, 51). 32 Num jogo de palavras, ROUSSEAU diferencia “a vontade geral” e “uma vontade particular”. 33 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. I, 3.º par.. Seria “uma vontade estranha, (...) sustentada (...) injustamente e sujeita a erro” (JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. IV, 6.º par.). 34 IDEM, ibidem, 2.º par.. “[O] que generaliza a vontade geral é menos o número de vozes que a expressam do que o interesse comum que as une (...)” (ibidem, 7.º par.). 35 IDEM, ibidem. 10 Consequentemente, quer a “vontade particular” quer a mera “vontade de todos” eram tidas pela teorização rousseauniana como “bestas negras36, fenómenos de elevada perigosidade. 1.1.1.1. A possibilidade de desvios à vontade geral A vontade geral propendia “sempre para a utilidade pública”37. Não obstante, nem sempre “as deliberações do povo” teriam “a mesma rectidão”38, designadamente quando inexistisse o segundo elemento do objecto e essência comum; o povo poderia ser seduzido (v. g., por interesses particulares, por eloquentes demagogos, por hábeis combinações parciais, por cisões |secretas): “Quer-se sempre o seu bem, mas nem sempre se vê correctamente onde ele está: nunca se corrompe o povo, mas podese, muitas vezes, enganá-lo, e somente nessas ocasiões parece desejar o que é mau.”39 Seria obtido então obtida uma adulteração, uma mera corruptela da vontade geral, que, desta, apenas teria a aparência. I. Para que a vontade geral fosse correctamente revelada, deveria existir um correcto processo de apuramento: 36 CHEVALLIER, Jean-Jacques Rousseau, pg. 12. “Nada é mais perigoso do que a influência dos interesses privados nos negócios públicos”; a “corrupção do legislador, consequência inelutável das visões [vontades] particulares”, seria o pior dos males (JEANJACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro III, Cap. IV, 2.º par.). 37 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. III, 1.º par.. 38 IDEM, ibidem. 39 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. III, 1.º par.. 11 i) “Se, quando o povo, suficientemente informado, delibera, os cidadãos não tivessem qualquer comunicação entre si, a vontade geral resultaria sempre do grande número de pequenas divergências, e a deliberação seria sempre boa. Todavia, quando existem manobras facciosas, quando surgem associações parciais à custa da grande associação, a vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação aos seus membros, e particular em relação ao Estado”40: “assim, (...) não há tantos votantes quantos os homens, mas apenas quantas as associações. As divergências tornam-se menos numerosas e conduzem a um resultado menos geral.”41; ii) “Por fim, quando uma dessas associações é tão grande a ponto de vencer as outras”, o resultado agravar-se-ia, pois seria não “a soma de pequenas diferenças, mas uma única diferença; então, a vontade geral já não” existiria, “e a opinião” prevalecente seria “apenas de carácter particular”42. II. Com o fito de evitar este perigo, de o povo ser enganado pelas “sociedades parciais”, e “para que a expressão da vontade geral” fosse “obtida correctamente”, depurada de imperfeições, a terapia de ROUSSEAU requeria duas condições: i) uma negativa - a inexistência de “quaisquer sociedades parciais no seio do Estado”43; 40 IDEM, ibidem, 3.º par. (opinião também expendida no artigo De l’economie, inserido na Enciclopédia). 41 IDEM, ibidem, Livro II, Cap. III, 3.º par.. 42 IDEM, ibidem. 43 Esboçando uma possível explicação de carácter psicologista para a rejeição das “associações parciais”, v. ISAIAH BERLIN, Rousseau, pg. 64 (em nossa opinião, algo 12 Comment [MSOffice2]: “Mas quando o nó social começa a deslaçar-se e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares se começam a fazer sentir e as pequenas sociedades a influenciar a grande, então o interesse comum altera-se e encontra-se oposições; não se verifica mais a unanimidade nas votações; a vontade geral deixa de ser a vontade d de todos; elevamse contradições, debates, e o melhor conselho já não passa sem grandes disputas” (Livro IV, 1 (DIOGO FREITAS DO AMARAL, História das Ideias Políticas (Apontamentos), II, pg. 247 ii) “cada cidadão” deveria opinar “apenas segundo o seu próprio entendimento”44. Excepcionalmente, como remedeio de “ultima ratio” perante a inevitabilidade da existência de sociedades parciais45, ROUSSEAU defendia uma inversão da “terapia”, ou seja, essas sociedades deveriam ser fraccionadas46. | O conceito de facção assombrou o processo genético de aparecimento dos partidos políticos em sentido moderno. A ideia de facção antecedeu os partidos. (VITALINO CANAS, Partidos políticos: um balanço do estudo do tema, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, (I), Coimbra Ed., 2003, pg. 443). 1.1.2.2. As ideias dos “philosophes” foram difundidas, ainda que indirectamente47; entre os Autores de língua francesa, ROUSSEAU ocupou o primeiro lugar (à frente de MONTESQUIEU e de VOLTAIRE). A partir da sua obra, foi gerada uma ideologia48 que exagerada); consequentemente, a ideia de ROUSSEAU “de um homem natural” seria “o oposto idealizado do tipo de pessoas por quem ele nutria particular aversão e antipatia” (IDEM, ibidem). Condenava não só os ricos e poderosos, mas também (sendo nisso pioneiro) um conjunto muito diferente de pessoas — ROUSSEAU “nutre um ressentimento profundo em relação (…) a círculos restritos, a grupos”; “acima de tudo, sofre do ressentimento profundo dos intelectuais, daqueles que sentem orgulho na inteligência, de peritos e de especialistas que se colocam acima do povo.” (IDEM, ibidem). O homem natural era, para ROUSSEAU, alguém na posse de uma sabedoria instintiva profunda, muito diferente da sofisticação corrompida das cidades (intencionalmente vertido pelo libretista SCHIKANEDER na personagem PAPAGENO, na ópera Flauta mágica (Die Zauberflöte), de MOZART (MARIA DO SAMEIRO BARROSO, Os mistérios em palco na Flauta Mágica de Mozart (no prelo)). ROUSSEAU terá sido “o maior militante anti-intelectual da História”, segundo ISAIAH BERLIN (in Rousseau, pg. 65). 44 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro II, Cap. III, 4.º par. (ênfase original). 45 A este propósito, ROUSSEAU cita MAQUIAVEL (Historia Fiorentina, 1.VII) em nota: “É verdade que há divisões prejudiciais e divisões úteis às Repúblicas; são prejudiciais as que se fazem acompanhar de setas e combatentes (...)” 46 “[S]e houver sociedades parciais, é necessário que existam tantas quanto seja possível, e evitar que sejam desiguais, como fizeram Sólon, Numa, Sérvio. Estas precauções são as únicas eficazes para que a vontade geral seja sempre elucidada, e para que o povo não se engane” (in Du contrat social, Livro II, Cap. III, 4.º par.). 47 Uma vez que os revolucionários, de acordo com modernas investigações, não terão lido tanto quanto anteriormente se pensava (VIRIATO SOROMENHO-MARQUES, Direitos humanos e Revolução. Temas do pensamento político setecentista, Colibri, Lisboa, 1991, pg. 58). 48 Do ponto de vista analítico, as ideologias são compostas por três elementos: 13 Comment [MSOffice3]: pela positiva, impregnou certos constituintes franceses, na Assembleia Constituinte de 1789, proscrevendo as liberdades de acção colectiva. 1.1.2. Individualismo Considerando o indivíduo através da abstracção de ser em si, sempre idêntico a si mesmo, como a encarnação parcial de uma comum natureza humana49, o individualismo ocupava um lugar essencial na DDHC50. Para além de afectar a visão de conjunto da sociedade (supra), afectava o sujeito dos direitos e o seu objecto51: todas as liberdades reconhecidas tinham como característica comum poderem ser executadas pela vontade de um único titular52-53. a) Elementos racionais — as ideologias são ideias sistematizadas, marcadas pela teleologia, com a presença residual das ideias dos pensadores; b) Elementos emotivos — as ideologias destinam-se a obter a adesão emocional dos indivíduos, o que as distingue das puras ideias (ADRIANO MOREIRA, Ciência Política, 6.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2001, pg. 263); c) Elementos míticos, através de mito-intuições e esperanças colectivas (JOSÉ ADELINO MALTEZ (Ideologia in Repertório Português de Ciência Política (fonte: http://maltez.info/)); as ideologias assumem-se então como factos com peso objectivamente verificável na vida social, a “versão do imaginário social que tende para a conservação, a justificação e a idealização da instituição existente” (PAUL RICOEUR); tornam-se então “sistemas de ideias que já não são pensadas por ninguém” (WEIDLE), vulgarizações, acompanhadas por símbolos, separando-se da «ideia» originária do criador. Cfr. também KARL LOEWENSTEIN, Les systèmes, les idéologies, les institutions politiques et le problème de leur diffusion, in Revue française de science politique, III, Out.Dez. de 1953, n.º 4, pgs. 679 ss.. 49 Neste sentido, GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, 3.ª ed., VII, pg. 288. A tradição de 1789 era fundamentalmente individualista. 50 Conforme escreve ORTEGA Y GASSET, “o liberalismo individualista pertence à flora do século XVIII, inspira, em parte, a legislação da Revolução Francesa” (in A rebelião das massas (original: La rebelión de las masas), Relógio d’Água, Lisboa, s.d., pg. 21). Todavia, o termo “individualismo” apenas em 1836 apareceria no Dicionário da Academia Francesa; como notava TOCQUEVILLE, foi uma “uma palavra recente gerada por uma nova ideia” (in Da Democracia na América, Vol. II, Segunda Parte, Cap. II, pg. 591). 51 JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 45. 52 IDEM, ibidem. 53 Todavia, não é de olvidar a defesa, entre os rousseaunianos, nos trabalhos preparatórios da Declaração de 1789, de “medias vias”, separando os direitos invariáveis dos direitos contingentes, como JEAN-BAPTISTE CRENIÈRE (1744-?), que apenas denominava como “Constituição de um povo” aquela em que eram estabelecidos, 14 Para além do espírito de abstracção, expresso no vocabulário utilizado: o «homem», o «cidadão», a «vontade geral», a «sociedade»54, outro dado relevante para a exclusão dos direitos colectivos é o estabelecimento de uma hierarquia entre as duas figuras da liberdade: a liberdade-autonomia e a liberdade-participação55: A Revolução Francesa estabeleceu o primado “do homem egoísta, do homem separado do seu conjunto e da comunidade”56. Nesta hierarquia, a liberdadeparticipação (BURDEAU), ou seja, a liberdade política, apenas ocupava o segundo lugar57 (o que era|constituía para MARX uma perplexidade58). circunscritamente “direitos naturais e imprescritíveis”; as leis viriam posteriormente estabelecer os “direitos positivos ou relativos” (CRENIÈRE, Extrait de quelques observations sur la Constitution d’un peuple. Lu dans la séance de 31 juillet 1789, et dont l’Assemblée nationale a demandé l’impression. Par M. CRÉNIÈRE, député de Vendôme, in Les déclarations des droits de l’homme de 1789, pg. 129). 54 JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 43. 55 Para utilizar a terminologia de GEORGES BURDEAU, in Traité de Science Politique, 3.ª ed., VII, pg. 17. 56 GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, 3.ª ed., VII, pg. 17; KARL MARX, Para a questão judaica (original: Zur Judenfrage, publicado originariamente in Deutsch-französische Jahrbücher, Paris, 1/2, 1844, pp. 182-214), in KARL MARX, Manuscritos económico-filosóficos, trad. de ARTUR MORÃO, Edições 70, Lisboa, 1993, pg. 58 (= trad., introdução e notas de JOSÉ-BARATA-MOURA, Edições Avante!, Lisboa, 1997, I, pg. 83). 57 GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, 3.ª ed., VII, pg. 17. “(...) nenhum dos supostos|chamados direitos humanos vai além do homem egoísta, do homem enquanto como membro da sociedade civil, quer dizer, enquanto o indivíduo separado da comunidade [Gemeinwesen], confinado a si próprio|remetido a si — ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal” (KARL MARX, Para a questão judaica, I (pg. 58 (= pg. 86); apud JOSÉ BARATA-MOURA, Materialismo e subjectividade. Estudos em torno de Marx, Edições Avante!, Lisboa, 1998, pg. 324). É “enigmático que um povo|nação, que começara precisamente a libertar-se, a derrubar todas as barreiras entre as diversos secções do povo|população, a estabelecer uma comunidade política, tenha de proclamar 58 os direitos do homem egoísta, separado dos outros homens e da comunidade|a solenemente [na Declaração de 1789] legitimação do homem isolado do seu semelhante e da comunidade. (...) Mais enigmático se torna este facto|O assunto torna-se ainda mais incompreensível, ao observarmos que os libertadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem; e que, por consequência, o citoyen é declarado servo do homme egoísta, a esfera em que o homem age como ser genérico vem degradada para a esfera onde ele actua como ser parcial; e que, por fim, é o homem como bourgeois e não o homem como citoyen que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico.” (KARL MARX, Para a questão judaica, I, pgs. 58-59 (= pgs. 86-87)). 15 1.2.1. Analisando as consequências negativas da teorização, alguns actores do primeiro Estado liberal, veementemente individualista, consideravam que não deveria existir qualquer interposição entre o indivíduo e a comunidade nacional; a vontade geral veiculada pela lei não comportaria nenhum intermediário59, não sendo reconhecida mas, ao invés, condenada qualquer autoridade proveniente de um corpo intermédio60. |VER E REDUZIR| “O homem, como membro da sociedade civil — o homem impolítico —, surge, porém, necessariamente como o homem natural. (...)porque actividade autoconsciente se concentra no acto político. resultado passivo (apenas, a O homem egoísta é o dado|encontrado) da sociedade dissolvida|dissolução da sociedade, é objecto da certeza imediata, e, consequentemente, um objecto natural.” (KARL MARX, Para a questão judaica, I, pg. 62 (= pg. 90)). A revolução política dissolve a sociedade civil nas suas componentes sem “revolucionar” estas componentes e as submeter à crítica. Esta revolução considera a sociedade civil, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados e a lei civi como a “base da sua própria existência”, como um pressuposto inteiramente subsistente, portanto, como a sua “base natural”. Por fim, o homem como membro da sociedade civil é identificado como o “homem autêntico”, o “homme” como distinto do “citoyen”, porque é o homem na sua existência sensível, individual e “imediata”, ao passo que o homem “político” é unicamente o homem abstracto, artificial, o homem como pessoa alegórica, moral”. Deste modo, o homem real|tal como é na realidade, apenas é reconhecido na forma|figura do indivíduo egoísta, e o homem verdadeiro apenas [é reconhecido] na forma|figura do citoyen abstracto.” (IDEM, ibidem, pg. 62 (= pg. 90)) (cfr. JÜRGEN HABERMAS, O discurso filosófico da Modernidade, III, pg. 68 e nota)). 59 Neste sentido, cfr. JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 46; JOSE ANTONIO ALONSO DE ANTONIO, El derecho de reunión…, pg. 80. 60 “Os direitos políticos (…) não pertencem a nenhum tipo de corporação, pois estão vinculados à própria qualidade de cidadão” (SIEYÈS, Sobre los acuerdos que deberan adoptar las asambleas de los bailiazgos, Fev. de 1789, in IDEM, Escritos y discursos de la Revolución, ed., trad. y notas de RAMÓN MÁIZ, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1990, pg. 10). 16 Deste modo, os direitos de exercício colectivo, na relação com os outros homens, para serem exercidos conjuntamente61 como as liberdades de culto, de reunião e de associação , bem como os direitos concernentes à liberdade económica, eram excluídos no núcleo típico dos direitos, individuais por excelência. | aqui – VITALINO CANAS??| Do ponto de vista doutrinal, durante etapa de predomínio ideológico da burguesia, no centro das reivindicações revolucionárias, estava a liberdade de expressão62. Isto explica que o tratamento da liberdade de reunião era subordinado e, de certo modo, era dependente da liberdade de expressão63. 1.2.2. O conteúdo da Declaração de 1789 foi redigido em função, sobretudo, do momento e da necessidade de acabar com o Antigo Regime64; rejeitando o absolutismo, a Declaração exprimia o ideal político da Revolução então emergente65. Assim, o individualismo de 1789, para além de fundamentos ideológicos, é também explicável também por razões de ruptura66: 61 JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 45. Neste sentido, cfr. JOSÉ ASENSI SABATER, Un estudio sobre la aplicación del derecho de reunión en el periodo constitucional de 1869 in Los derechos fundamentales y libertades publicas (I), XII Jornadas de Estudio, volumen II, Dirección General del Servicio Jurídico del Estado, Ministerio de Justicia, Madrid, 1992, pg. 1584. 63 JOSÉ ASENSI SABATER, Un estudio sobre la aplicación del derecho de reunión..., pg. 1584. 64 A DDHC era, antes de mais, uma “máquina de guerra” preparada contra o Antigo Regime, na medida em que pretendeu assinar a sua “certidão de óbito” (neste sentido, JACQUES MARSEILLE, Nouvelle Histoire de la France. De la Révolution à nos jours, Perrin, s.l., 2002, pg. 27; RICARDO GARCÍA MANRIQUE, Sentido y contenido de la Declaración de 1789..., pg. 231). 65 Neste sentido, cfr. GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, 3.ª ed., VII, pg. 53. 66 Neste sentido, cfr. JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 46. 62 17 Anteriormente, aquando do reforço do absolutismo, certos corpos intermediários não tinham sido suprimidos (supra); o monarca havia reduzido as suas atribuições, mas deixara-os subsistir67. As condenações dos agrupamentos eram, antes de tudo, das células que constituía o tecido do Antigo Regime francês68; o seu desaparecimento era necessário para o triunfo da Revolução69. O individualismo oriundo do pensamento filosófico era, assim, reforçado por um individualismo conjuntural, ligado aos imperativos da acção revolucionária70. 1.2.3. Dado que os projectos de Declaração apresentados têm um conteúdo que ultrapassa muito largamente o texto definitivo de 178971, há, pelo menos, duas razões circunstanciais que explicam parcialmente essa omissão: i) A primeira foi a necessidade de aprovação célere. No curto período de tempo de um mês e meio, desde a data inicial de 9 de Julho até 26 de Agosto, com várias vicissitudes e interferências72. 67 RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 34. JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pg. 46. 69 IDEM, ibidem. 70 Cfr. IDEM, ibidem. 71 CHRISTINE FAURÉ, Présentation. Les déclarations des droits de l’homme in Les déclarations des droits de l’homme de 1789, pg. 18. 72 Cfr. GREGORIO PECES-BARBA MARTÍNEZ, Fundamentos ideológicos y elaboración de la Declaración de 1789, in Historia de los derechos fundamentales, Tomo II: Siglo XVIII, volumen III, El Derecho positivo de los derechos humanos. Derechos humanos y comunidad internacional: los orígenes del sistema, dir. de GREGORIO PECES-BARBA MARTÍNEZ / EUSEBIO FERNÁNDEZ GARCÍA / RAFAEL DE ASÍS ROIG, coord. de FRANCISCO JAVIER ANSUÁTEGUI ROIG / JOSÉ MANUEL RODRÍGUEZ URIBES, Dykinson, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Universidad Carlos III de Madrid, Madrid, 2001, pg. 178. Os moderados tinham objectivos muito práticos: evitar o vazio e garantir os princípios de um Direito constitucional monárquico (GÉRARD COGNAC, L’élaboration de la déclaration des 68 droits de l’homme et du citoyen in La déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789. Histoire, analyse et commentaires, dir. de GÉRARD CONAC / MARC DEBENE / GÉRARD TEBOUL, Economica, Paris, 1993, pg. 21). a) Com o objectivo de evitar atrasar a elaboração de uma declaração, PIERRE-VICTOR MALOUET (1740-1814) alertou que, a querer definir os direitos, a Assembleia se enredaria em intermináveis discussões metafísicas (Opinion de M. MALOUET sur la Déclaration des droits de l’homme. Dans la séance du 2 août, in Les déclarations des droits de l’homme de 1789, pg. 164). b) O único projecto aprovado na generalidade (vencendo largamente com 505 votos na votação de 19 de Agosto) e, posteriormente, discutido na especialidade, viria a ser o da sexta comissão, na qual não se encontrava nenhuma personalidade de primeiro plano (GÉRARD COGNAC, L’élaboration de la déclaration des droits de l’homme et du citoyen, pg. 26), tendo sido mais um pretexto para passar à discussão na especialidade, do que um modelo constringente (cfr. GÉRARD COGNAC, L’élaboration de la déclaration des droits de l’homme et du citoyen, pg. 26). 18 ii) A segunda teve que ver com a suspensão dos debates (formalmente não houve um encerramento73) em 26 de Agosto, com a intenção de serem continuados futuramente, algo que não ocorreu74. 1.2.4. A concepção liberal estava em contradição com as condições sociológicas da época, consistentes na emergência dos clubs como formas de sociabilidade (para além da anterior existência de salões e de reuniões políticas)75. A Revolução, sendo o catalizador das atitudes colectivas76, desde os primeiros dias, pôs fim ao regime preventivo de interdição, que imperava na legislação do Antigo Regime, substituindo-o por um regime de liberdade. Sendo filha da Revolução77, a liberdade de reunião apareceu espontaneamente nos clubs e na rua, antes de ser consagrada pela lei78. De facto, durante todo este começo da Revolução, as reuniões políticas tiveram lugar livremente, embora não houvesse reconhecimento juspositivo da liberdade de reunião. As reuniões eram estimuladas pelos clubs ou sociedades populares79. 73 Archives parlamentaires, p. 492 (GÉRARD COGNAC, L’élaboration de la déclaration des droits de l’homme et du citoyen, pg. 34). 74 RICARDO GARCÍA MANRIQUE, Sentido y contenido de la Declaración de 1789 y textos posteriores, in Historia de los derechos fundamentales, Tomo II: Siglo XVIII, volumen III, pgs. 276-277. Não houve sequer uma “leitura geral de todos os artigos aprovados”, como notou o “Courrier de Provence” (jornal de MIRABEAU). 75 Nas vésperas da Revolução, após a convocação real, em 24 de Janeiro de 1789, para a eleição dos membros dos Estados Gerais — altura em que foram criadas ao Terceiro Estado elevadas expectativas de mudança —, até 12 de Maio desse ano, todas as eleições para os Estados Gerais, sem excepção, foram precedidas de uma campanha eleitoral, um tempo intenso da política (RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 49). As discussões e os debates ocorriam nos clubes patrióticos, nas sociedades literárias e nas lojas maçónicas existentes nas cidades francesas, colaborando para a politicização de seus membros e para a formação de opiniões. 76 MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa (original: Breve storia della Rivoluzione francesa, Gius. Laterza & Figli Spa, Roma), trad. de ANA FALCÃO e LUÍS LEITÃO, 2.ª ed., Presença, Lisboa, 1994, pg. 50. 77 Na expressão de GILLES LEBRETON, in Libertés publiques…, 4.ª ed., pg. 476. 78 GILLES LEBRETON, Libertés publiques…, 4.ª ed., pg. 476. 19 2. Consagração da liberdade de reunião (Dezembro de 1789 — 1793) 2.1. Ainda que não figurasse expressamente na DDHC, a liberdade de reunião era o direito de exercício colectivo menos incompatível com os obstáculos levantados pelo individualismo de 178980. Assim, logo no final de 1789, a liberdade de reunião foi reconhecida na legislação ordinária, tendo sido regulada no art.º 62.º do Decreto de 14 de Dezembro. A titularidade era restringida aos cidadãos activos; os fins deveriam ser determinados; era ainda previsto, pela primeira vez, um regime de comunicação prévia acerca do lugar e da hora em que as reuniões seriam celebradas. No mesmo mês, por iniciativa de deputados pertencentes à ala esquerda da Assembleia Constituinte — desejosos de almejar a influência que o defunto club bretão havia tido, entre Junho e Agosto81 —, foi criada a “Sociedade dos amigos da Constituição”, tendo escolhido como lugar das suas reuniões o convento de SaintJacques, situado na rua Saint-Honoré, em Paris (daí a denominação de “club dos jacobinos”). 79 LÉON DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, V, pg. 342. Encontramos um exemplo pioneiro na acção do club bretão na Assembleia Constituinte (cfr. PATRICE GUENIFEY, La politique de la Terreur. Essai sur la violence révolutionnaire. 1789-1794, Fayard, s.l., 2000, pgs. 111-117). Em 1 de Julho de 1789, era bastante numeroso; contavam-se entre os seus membros LE CHAPELIER, GOUPIL DE PRÉFELN, LANJUINAS, SIEYÈS, BARNAVE, LAMETH; o presidente era o DUQUE D’AIGUILLON. Entre a reunião dos Estados Gerais em Maio e a dissolução desse agrupamento (ocorrida provavelmente no fim do mês de Agosto), esse club interveio de forma decisiva nas diferentes etapas que, em três meses, conduziram ao fim da sociedade do Antigo Regime. Cada uma das decisões relevantes da Assembleia, entre os meses de Junho e Agosto, foi previamente concertada aquando das reuniões preparatórias do club bretão, que acertavam a estratégia para tal efeito (neste sentido, cfr. PATRICE GUENIFEY, La politique de la Terreur, pg. 112). 80 JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, II, 7.ª ed., pg. 241. 81 PATRICE GUENIFEY, La politique de la Terreur, pg. 218. 20 2.2. Um segundo subperíodo decorreu entre Agosto de 1790 e Agosto de 1792, distinto em virtude da previsão de restrições à liberdade de reunião. A Constituição de 1791 não foi elaborada num clima de serenidade82. Os chefes refugiaram-se nos clubes e para aí se transferiu o peso da vida política francesa. A festa revolucionária era o lugar privilegiado em que se projectava o sonho de uma sociedade nova e de um mundo ideal83. Os clubes multiplicavam as suas filiais, especialmente o jacobino, convertendose no lugar por excelência da vida política popular. 2.2.1. Nos meses seguintes, foram aprovados vários diplomas legais regulamentando as actividades dos clubs. I. O primeiro foi a célebre Lei de 16-24 de Agosto de 179084. Um mês mais tarde, através do Decreto de 19-20 de Setembro de 1790, foram impedidas as correspondências, “sob qualquer pretexto”, entre “qualquer associação ou corporação” e corpos do exército85. Os clubs foram reconhecidos pela Assembleia Nacional através do terceiro (e mais relevante) desses diplomas: o Decreto de 13-19 de Novembro de 1790: Tributário de um entendimento identificativo entre os conceitos de associação e de reunião, considerando que aquele, sendo essencialmente político, se manifestava por meio de reuniões, foi reconhecido aos cidadãos 82 MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 22. IDEM, ibidem, pg. 107. 84 V. o art.º 3.º do título XI, concernente às reuniões, e o art.º 7.º, relativo aos ajuntamentos. 83 85 Cfr. art.º 2.º do Decreto de 19-20 de Set. de 1790 (especificando os regimentos franceses, suíços e estrangeiros que compunham o exército (in Lois annotées, ou lois, décrets, ordonnances, Avis du Conseil d’État, etc.,avec notes historiques, de concordance et de jurisprudence; par A.-A. CARETTE, continuées depuis 1845 para L.-M. DEVILLENEUVE / A.-A. CARETTE, 1789 à 1830, Sirey, Administration du Recueil Général des lois et des arrêts, Paris, 1854, pg. 64). 21 Comment [MSOffice4]: outra palavra “o direito de se reunir pacificamente e de formar entre si sociedades livres”, com a condição de observar as leis que regiam todos os cidadãos86, a propósito da dissolução de uma filial do club dos jacobinos, a “Sociedade dos amigos da Constituição”, na cidade de Dax 87. II. Após a comemoração da tomada da Bastilha de 1790, no ano posterior, a aparente unanimidade desvanecera-se. À excepção de cinco deputados de extrema-esquerda, todos os parlamentares moderados jacobinos quem eram membros do club dos jacobinos, abandonaramno e fundaram um novo club — o dos “feuillants”, em torno de LA FAYETTE e de BARNAVE. Todavia, o club dos jacobinos permaneceu activo, com ROBESPIERRE (1758-1794), PÉTION, BRISSOT e LE CHAPELIER, tentando manter a fidelidade das numerosas sociedades provinciais filiadas. Esta cisão de 15 de Julho de 1791 implicou uma viragem: a Assembleia dissociou-se dos jacobinos e seus sequazes; deste modo, veio a regular o exercício das liberdades de reunião e de associação, através do art.º 14.º do Decreto de 19-22 de Julho de 1791 (relativo à organização de uma polícia municipal e correccional)88: os fundadores dos clubes eram obrigados a emitir previamente, no arquivo público do seu município, a declaração do lugar e do dia das suas reuniões89. 86 “os cidadãos têm o direito de se reunir pacificamente e de formar entre si sociedades livres, com a condição de observar as leis que regem todos os cidadãos (...)”. Cfr. JEAN FOURNIER-PONCELET, La liberté de réunion..., pg. 41. 87 “[O] município de Dax não pode perturbar a sociedade formada nessa cidade, sob o nome de “Sociedade dos amigos da constituição”; assim, “a dita sociedade”, que havia sido dissolvida, teria “o direito de continuar as suas sessões” e os seus papéis deveriam ser-lhe devolvidos. 88 Apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 279. A “occasio legis” foi marcada pelos factos ocorridos dois dias antes, em 17 de Julho (um grupo de postulantes do club dos “cordeliers” (club composto |pelas camadas mais baixas)) organizou uma manifestação em Paris, que exigia a deposição de LUÍS XVI; no decurso da manifestação, foi deposta sobre o altar da pátria uma petição, convidando os deputados a convocar “um novo poder constituinte”; considerando que era necessário pôr fim ao excesso da “canalha”, após a proclamação da lei marcial, a Guarda Nacional — sob a autoridade de LA FAYETTE, em articulação com o “maire” de Paris, BAILLY, próximo da maioria da Assembleia — disparou sobre os manifestantes, provocando dezenas de mortos; seguiram-se numerosas prisões). 89 “Aqueles que pretenderem formar sociedades livres ou clubs” eram “obrigados, (...) sob pena de 200 libras de multa, a fazer previamente no cartório do município a declaração dos locais e dias da sua reunião” (art.º 14.º, 1.º período, do Decreto de 19-22 de Jul. de 1791). 22 2.2.2. Após a previsão na lei ordinária, a liberdade de reunião foi reconhecida a um nível hierárquico superior, na primeira Constituição francesa, de 3 de Setembro de 1791 (a segunda Constituição escrita europeia90, que brotou do “maior seminário de teoria política que o mundo jamais conheceu”91). Nesta positivação pioneira, extrai-se os seguintes aspectos: a) a qualificação da liberdade de reunião como direito natural e civil; b) no plano da titularidade, a indistinção entre cidadãos activos e passivos; c) a continuidade da utilização da expressão “pacificamente e sem armas”; d) a adopção, pela primeira vez, de uma norma constitucional aberta: a remissão para as leis de polícia, permitindo restrições ao nível infraconstitucional. Cfr. LÉON DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, V, pg. 342), sob pena de multa “processada contra os presidentes, secretários ou comissários desses clubs ou sociedades”. 90 Uma vez que a efémera Constituição da Polónia, desse mesmo ano, foi aprovada alguns meses antes (neste sentido | como|conforme precisam GEORG JELLINEK, Teoría general del Estado (original: Allgemeine Staatslehre, 2.ª ed. alemã, de 1911), prólogo de FERNANDO DE LOS RÍOS, Fondo de Cultura Económica, México, reimpressão, 2002, XV (A Constituição do Estado), pg. 471); e JORGE MIRANDA, Teoria do Estado…, pg. 147 (nota)). 91 KARL LOEWENSTEIN, Réflexions sur la valeur des Constitutions dans une époque révolutionnnaire. Esquisse d’une ontologie des Constitutions (original: Reflections on the value of Constitutions on our Revolutionary Age, in Constitutions and Constitutional Trends after World War II, ARNOLD J. ZURCHER (ed.), Nova Iorque, 1951, pp. 191 ss.), in Revue française de science politique, II, Jan.-Mar. de 1952, n.º 1, pg. 10. Esta Constituição, no Título I, relativo às “disposições fundamentais garantidas pela Constituição”, § 2.º, garantia, “como direitos naturais e civis: / (...) / A liberdade dos cidadãos se reunirem pacificamente e sem armas, de acordo com as leis de polícia”. 23 2.2.3. As pressões dos clubs neste período92 — mais constringentes do que as ocorridas na anterior Assembleia Constituinte — desagradavam aos moderados presentes na nova Assembleia Legislativa, que as consideravam contrárias ao governo representativo; e, assim, fizeram esforços para resistir a essa “acção usurpadora”, aprovando um Decreto sobre as sociedades populares, em 29 e 30 de Setembro e 19 de Outubro de 1791. I. Num relatório redigido por LE CHAPELIER, era denunciado que os jacobinos se queriam arrogar de um monopólio na expressão da opinião pública. Em teoria, nenhum corpo deveria existir entre o corpo social (representado pela Assembleia nacional e o rei) e os indivíduos. No entanto, LE CHAPELIER distinguia a situação revolucionária da situação post-revolucionária: nesta, findada a Revolução, “quando a Constituição do Império está determinada (…), quando é necessário, para a salvação desta constituição, que tudo reentre na ordem mais perfeita, que nada 92 Nas eleições, os 745 mandatos de deputados da Assembleia Legislativa única foram ocupadas predominantemente por 264 “feuillants”, por 136 da esquerda (jacobinos “cordeliers”) e 345 “independentes”. |(mais à esquerda, havia cinco ou seis deputados “democratas”, isto é, expresamente republicanos populares ou “sans-cullottistas”)| confirmar se isto está bem. Nesta fase da Monarquia Constitucional, na anarquia administrativa que resultava da derrocada das estruturas tradicionais, na efervescência que incendiava os ânimos, os patriotas pretenderam transmutar a intenção inicial dos clubs, transformando-os no instrumento mais avançado da Revolução: frequentemente arrogavam-se de direitos, imiscuíam-se na gestão dos assuntos (RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 162), vigiavam os agentes públicos, denunciavam os que a “traíam”, estimulavam os “frouxos”. No fim do mês de Setembro de 1791, era patente a clivagem entre a Assembleia e o club dos jacobinos. Este não se apresentava já como um auxiliar da representação nacional, mas como uma “contra-assembleia”, investida não só do poder de discutir as leis a serem feitas, mas também do poder de censurar as leis votadas e de vigiar a sua execução (PATRICE GUENIFEY, La politique de la Terreur, pgs. 120-121, 219). 24 entrave a acção dos poderes constituídos, que a deliberação e o poder não estejam descentrados de onde a Constituição os colocou”93. As consequências deste relatório eram obstaculizar a multiplicação das sociedades políticas, que colocariam em causa o governo representativo como puro sistema deliberativo e de instituir a opinião como um actor à parte das instituições94. II. A praxis colocou a liberdade de reunião em conexão com a actividade das associações políticas e dos clubs; por esta razão, a liberdade de reunião é referida de modo particular no relatório que acompanha o Decreto sobre as sociedades populares, feito em nome do Comité da Constituição95: “É permitido a todos os cidadãos reunir-se pacificamente: num país livre, desde que uma Constituição fundada nos direitos do homem criou uma pátria, um sentimento caro e profundo liga todos os habitantes do Império à coisa pública; é uma necessidade ocupar-se de falar; longe de extinguir ou de comprimir esse fogo sagrado, é necessário que todas as instituições sociais contribuam para o conservar”. No entanto, “ao lado desse interesse geral, dessa viva afeição que fazem nascer a existência de uma pátria e o livre gozo dos direitos do homem, colocam-se as máximas da ordem pública e os princípios do governo representativo”96. 93 | Rapport de Le Chapelier sur les sociétés populaires, 29 de Set. de 1791, in Orateurs de la Révolution française, FR. FURET / R. HALÉVI, pp. 432-439. 94 Neste sentido, PATRICE GUENIFEY, La politique de la Terreur, pg. 213, afirmando que este discurso tendia à supressão dos clubs, ou, pelo menos, à sua exclusão da esfera pública, à relegação para uma sociabilidade puramente privada. 95 Rapport sur les sociétés populaires fait au nom du comité de constitution, 4.º par., in Associations illicites, in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pgs. 280-281 (nota). 96 É patente nesta passagem a influência da teoria do governo representativo de MONTESQUIEU: “— Apenas existem os poderes constituídos pela vontade do povo, expressa pelos seus representantes; apenas há autoridade delegada por ela; apenas pode haver acção dos seus mandatários investidos de funções públicas”. 25 Em contraponto, na última parte deste quarto parágrafo, veiculava-se o argumento inspirado em ROUSSEAU: “— É para conservar esse princípio em toda a sua pureza que, de um extremo do Império ao outro, a Constituição fez desaparecer todas as corporações, e que ela apenas reconhece o corpo social e os indivíduos.” Em oposição aos jacobinos e aos “cordeliers”, afirmava: “As sociedades, as reuniões pacíficas de cidadãos, os clubs, são indistintos no Estado. Servem-se da situação privada em que a Constituição os coloca, surgem contra ela, destroem-na, em lugar de a proteger, e esta palavra preciosa de reunião (amigo da Constituição) parece mais apenas um grito de agitação, destinado a perturbar o exercício das autoridades legítimas. (...)” (5.º par.). III. No texto do Decreto de 29 e 30 de Setembro – 9 de Outubro de 1791, era proibido que qualquer “sociedade”, qualquer “club, associação de cidadãos” tivesse, sob qualquer forma, “uma existência política”. Na esteira do relatório de LE CHAPELIER, no intuito de evitar coacção, os clubs não deveriam “exercer qualquer acção sobre os actos dos poderes constituídos e das autoridades legais”. A Assembleia Constituinte proibiu a essas sociedades chamarem junto a si funcionários públicos ou meros cidadãos, bem como empecerem os actos da autoridade (art.º 1.º). Por outro lado, “considerando (…) que sob nenhum pretexto” poderiam “aparecer sob um nome colectivo”, fosse “para formar petições ou delegações, para assistir a cerimónias públicas”, fosse “para qualquer outro objecto” (preâmbulo), proibiu essas petições em nome colectivo (art.º 2.º). 26 IV. Embora estes princípios fossem “muito sábios”97, a sua aplicação era impossível na situação turbulenta em que a França se encontrava98. Tal como outros diplomas, também este Decreto ficou sem execução. 2.3. Num terceiro subperíodo, de transição, o fenómeno da extensão dos clubs acentuou-se, tendo coberto o restante território francês muito densamente99. Nas cidades e nas vilas, multiplicavam-se os clubes e as sociedades populares, cujo modelo e ideologia o club jacobino da capital fornecera100. A guerra contra a Áustria motivou até Setembro manifestações e levantamentos populares em Paris. Finalmente, o povo invadiu a Assembleia, onde a família real estava refugiada, e exigiu o extermínio da realeza. Apavorados, os deputados votaram a convocação de nova Assembleia Nacional Constituinte (designada “Convenção Nacional”101, entrando numa fase radical102. 97 Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 281. 98 Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 281. 99 Cfr. MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 107. 100 MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 107. 101 A Convenção, composta, na maioria dos casos, por juristas e frequentadores de clubs, dividiu-se em três grandes blocos: i) os girondinos; ii) à esquerda da assembleia, os montanheses (nos quais se incluíam os jacobinos), que ocupam os lugares mais altos da Câmara (“Montanha”), chefiados por ROBESPIERRE e SAINT-JUST, tendo assumido posições mais radicais; iii) um grupo de deputados, sem opiniões muito firmes, votava na proposta que tinha mais possibilidades de vencer (eram designados como “planície” (pois ocupavam a parte baixa) ou “pântano”) (o club dos “feillants” |, entretanto, havia desaparecido|). Na sequência da “jornada” de 10 de Agosto, o rei foi suspenso do poder executivo (Décret relatif à la suspension du chef du pouvoir exécutif, desta data). LUÍS XVI foi condenado à morte (v. arts. 1.º e 2.º do Decreto relativo à condenação de Luís XVI, de 15, 17, 19 – 20 de Janeiro de 1793) e, em 21 de 102 Janeiro de 1793, guilhotinado. Em 10 de Março de 1793, foi instalado em Paris um Tribunal revolucionário (Décret relatif à la formation d’un tribunal criminel extraordinaire, et qui règle sa composition et ses attributions, de 10-12 de Março de 1793)), que julgava os opositores da Revolução (v. os termos vagos utilizados pelo art.º 1.º), violando mesmo o princípio da não retroactividade (v. Título II, art.º 1.º, art.º 3.º). Em Abril, o Comité de Defesa geral (criado em 1 de Janeiro) foi encarregado do poder executivo, transformado no “Comité de Salvação pública” (“Comité de Salut public”), sendo formado por nove membros (nomeadamente ROBESPIERRE, DANTON, 27 2.4. A liberdade de reunião foi prevista no “Plano de Constituição”, apresentado pelos girondinos em 15-16 de Fev. de 1793, com um carácter eminentemente negativo, e retomando, na parte final, a norma constitucional aberta prevista na Constituição de 1791. | INSERIR A DISPOSIÇÃO 3. O reconhecimento unilateral das liberdades de reunião e de associação no período do «grande Terror» jacobino Após os montanheses terem vencido os girondinos103, a liberdade de reunião foi reconhecida, embora, na prática, de forma meramente unidireccional, para os apoiantes dos montanheses, uma vez que os clubs dos outros grupos políticos eram proibidos. Os patriotas reagruparam-se nas sociedades populares, nos clubs, nomeadamente nas filiais jacobinas da sociedade-mãe de Paris, pelo que esta se tornou, com ROBESPIERRE104, a “ponta de lança” da política revolucionária105. Alguns dos clubs eram a base de apoio do regime; no quadro do Terror, eram considerados, nos termos de uma circular do Comité de Salvação Pública, nos seus “mais poderosos auxiliares” |do “Comité de Salvação pública”, DESMOULINS, SAINT-JUST e MARAT), eleitos cada dois meses pela Convenção, sujeito à responsabilidade perante esta (Décret pour la formation d’un comité du salut public, de 6-11 de Abril de 1793). Dois meses depois, a Convenção nacional tornou comuns a todos os tribunais criminais da República o conhecimento destes “crimes” (Décret qui condamne à la déportation les convaincus de crimes ou délits non prévues par le Code pénal et autres lois, de 7-8 de Junho de 1793). 103 Expulsos da Convenção em Junho de 1793, na sequência da intimação dos Montanheses da Comuna (em 31 de Maio). 104 ROBESPIERRE ia quase quotidianamente à sociedade dos amigos da Constituição actualizar as actividades da Convenção (JEAN-MARC SCHIAPPA, La Révolution française. 1789-1799, Librio Inédit, Paris, 2000, pg. 54). 105 JEAN-MARC SCHIAPPA, La Révolution française, pg. 91. 28 | auxiliares da Administração, num verdadeiro exercício privado de funções públicas (Terá sido um dos primeiros casos. Sobre esta questão de Direito Administrativo, v. PAULO OTERO, O poder de substituição..., ; PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos. O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas, diss., Almedina, Coimbra, 2005). Os clubs tornavam-se portanto apoios|bases|fundamentos|assises essenciais do poder. Este último vai mesmo delegar no club dos Jacobinos, durante a Convenção, o |soin de cumprir missões administrativas (CHARLES DEBBASCH / JACQUES BOURDON, Les associations, 8.ª ed., pg. 39) Para depurar as administrações e recuperar a situação, a Convenção enviou em missão aos departamentos certos dos seus membros, oficialmente, bem como agentes secretos. Nos departamentos, eles poderiam contar com os clubs dos jacobinos, transformados em sociedades populares, que lhes forneciam as informações necessárias106. Até ao final de 1793, o jacobinismo ocupou a totalidade do espaço das sociedades políticas, alargando a sua área de difusão pela criação massiva de cerca de 3.000 sociedades107. Curiosamente seriam os jacobinos, adeptos fervorosos imbuídos da ideologia rousseauniana, a inflectir a doutrina de ROUSSEAU, e a incentivar os clubs. Rememorando a teorização deste Autor (supra), vislumbra-se uma separação entre «criador» e «criatura» (a ideologia rousseauniana)108. 3.1. Constituição do ano I (1793) Após a queda dos girondinos (supra), entre 11 de 24 de Junho, os montanheses elaboraram um novo texto constitucional, com 80 artigos109, tendo sido submetido a um referendo. A liberdade de reunião constava quer da declaração de direitos quer da garantia da Constituição do ano I: 106 JEAN TULARD, Les révolutions, pg. 119. PATRICE GUENIFEY, La politique de la Terreur, pg. 217. 108 Embora a Constituição de 1791 tivesse recusado às mulheres a maioridade política, garantindo-lhes apenas igualdade no casamento e no divórcio, as mulheres mantiveram-se implacavelmente activas; fundaram clubes em Paris e na província. Em Maio de 1793, surgiu a Sociedade das Revolucionárias Republicanas. 109 Cujas linhas-mestras haviam sido redigidas por HÉRAULT DE SÉCHELLES, em ligação com SAINT-JUST e CAMBON. 107 29 a) No n.º 1 do art.º 7.º da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, era consignado o direito de se reunir pacificamente, como direito de carácter eminentemente negativo (supra) e em interligação estreita com a liberdade de expressão110. b) Na “garantia dos direitos”, “[a] Constituição” garantia “a todos os franceses a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade, (...) o direito de petição, o direito de se reunir em sociedades populares, o gozo de todos os Direitos do Homem” (formulação do art.º 122.º), não estabelecendo distinção entre reuniões e associações políticas. A Constituição de 1793, embora “filha” do pensamento de ROUSSEAU — dado que procurava realizar a teorização defendida por aquele Autor n’O Contrato social —, considerava implicitamente a liberdade de reunião como um direito natural111. 3.1.1. Em 25 de Julho de 1793, um mês após a aprovação da Constituição (que não chegaria a vigorar112), foi emanado um Decreto que instituía severas penas contra aqueles que impedissem as sociedades populares de se reunir ou que as tentassem dissolver113-114. 110 “A ninguém pode cerceado o direito de manifestar o seu pensamento e as suas opiniões por meio de imprensa ou por qualquer outra forma, o direito de se reunir pacificamente e o livre exercício dos cultos.” (in Textos Históricos…, organização e tradução de JORGE MIRANDA, 2.ª ed., pg. 76) 111 Cfr. o preâmbulo da Constituição de 1793: “O povo francês, convencido de que o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das desgraças do mundo, resolveu expor, numa declaração solene, esses direitos sagrados e inalienáveis (...)”. 112 A pretexto de facilitar a condução da guerra contra a coligação monárquica, a Constituição foi suspensa em 10 de Outubro de 1793, dois meses depois de aprovada. 113 “Quaisquer sociedades, quaisquer indivíduos que (…), sob” qualquer pretexto”, levantassem “obstáculos à reunião” ou empregassem “quaisquer meios para dissolver as sociedades populares”, incorreriam no crime de “ataque contra a liberdade” (art.º 1.º). Era previsto|Previa-se um crime específico impróprio em relação aos “comandantes da força pública que” tivessem agido ou “dado ordens para agir com o objectivo de impedir a reunião ou para dissolver as sociedades populares”, independentemente de serem portadores de requisição escrita (art.º 3.º). 30 3.1.2. A Convenção considerando que a declaração prévia constituía um obstáculo, eliminou esse regime, previsto no art.º 62.º do Decreto de 14 de Dez. de 1789, que era conotado como “preventivo”115: “A necessidade de enunciar estes direitos supõe a presença ou a lembrança recente do despotismo.”116. Recorde-se que eram punidos os “os funcionários públicos que” fossem “dados como culpados” de “levantar obstáculos à reunião”117. Assim, teoricamente, era aplicável um regime repressivo puro (embora, na prática, as reuniões de sectores oposicionistas fossem impedidas|não fossem permitidas). Novamente a «criatura» se afastava do «criador», uma vez que ROUSSEAU admitia a existência de um regime preventivo de censura em relação à liberdade de expressão118. 3.2. No contexto da luta entre facções dentro do |jacobinismo, tardiamente houve uma crescente vontade de refrear a influência dos movimentos populares potenciados pelos clubs. | INSERIR SAINT-JUST Entre o Inverno e a Primavera, foi reprovado o constante aumento do número de sociedades populares; “[t]odas as sessões das sociedades populares e as das sociedades livres das artes” deveriam ser “públicas”119. Era ainda criminalizado o facto de retirar ou de dar ordem de “retirar os registos ou documentos das sociedades populares” (art.º 4.º). 114 O Decreto de 14 Frimário do ano II (Dezembro de 1793) associava o club dos jacobinos e as sociedades populares favoráveis ao governo à execução das leis e às medidas de segurança geral, nomeadamente em matéria económica. 115 JEAN FOURNIER-PONCELET, La liberté de réunion..., pg. 93. 116 Art.º 7.º, n.º 2, da Constituição do ano I. 117 Cfr. arts. 2.º e 1.º do Decreto de 25 de Jul. de 1793. 118 JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du contrat social, Livro IV, Cap. VII, 1.º parágrafo e seguintes (supra, Parte I). 119 Art.º 2.º do Decreto de 9 Brumário do ano II (Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 281 (nota)). 31 Por outro lado, a militância das mulheres tornou-as suspeitas aos olhos dos actores masculinos da Revolução120. A partir do Decreto de 9 Brumário do ano II121, os clubs e as sociedades populares de mulheres, “sob qualquer denominação” que ostentassem, foram proibidos (art.º 1.º). 4. A ausência geral de positivação no período entre 1794 e 1868 A partir do golpe bem sucedido de 9 Termidor nr – Sobre este golpe, v. e durante a maior parte do século XIX, as liberdades colectivas contaram com a desconfiança dos liberais122. Os abusos dos clubs, as suas usurpações de autoridade criaram temores e feridas; os governos temiam o poder da acção colectiva; no domínio político, os clubs forneciam armas aos opositores e facilidades à contestação123. Devido à sua projecção na esfera política, a tendência geral apontava no sentido de não dotar de autonomia própria os direitos políticos, como os de reunião ou de associação, proibindo especificamente o seu exercício, na medida em que afectassem directamente a esfera política124. O motivo principalmente determinante da luta contra as liberdades de reunião e de associação não foi teórico; também após 1793, não foi recuperado o legado teórico originário dos textos de ROUSSEAU, 120 121 238. VIRIATO SOROMENHO-MARQUES, Direitos humanos e Revolução, pg. 64. |Data do novo calendário revolucionário, correspondente a 30 de Outubro de 1793. 122 Cfr. JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, II, 7.ª ed., pg. 123 Cfr. IDEM, ibidem. JOSÉ ASENSI SABATER, Un estudio sobre la aplicación del derecho de reunión..., 124 pg. 1584. 32 designadamente a sua doutrina contra as associações (supra); novamente se comprova que a ideologia rousseauniana se libertara da «pureza» doutrinária do seu «criador». Tendo sido os clubs os principais alvos, não obstante, as próprias reuniões, de forma genérica acabam por ser restringidas125. Deste modo, as liberdades de reunião e de associação foram confundidas, no sentido de que as associações, essencialmente políticas, se manifestariam por meio de reuniões126. As medidas restritivas multiplicaram-se, à excepção de períodos intercalares; até ao último terço do século XIX, o Legislador francês adoptou as máximas cautelas127, criando uma tradição unitiva adversa em relação a reuniões e agrupamentos128. 4.1. Termidor e Directório Este subperíodo foi caracterizado por acesas lutas políticas entre os detentores do poder e os clubs, potenciais poderes concorrentes. As “cabeças de hidra” dos clubs periodicamente refaziam-se e novamente era reiterada a proibição da sua existência ameaçante. A ampla coligação do golpe do 9 Termidor não era homogénea, mas heteróclita e, de certo modo, ambígua129. 125 Cfr. ARLETTE HEYMANN-DOAT, Libertés publiques..., 3.ª ed., pg. 44. IDEM, ibidem, pg. 23. 127 JOSÉ ASENSI SABATER, Un estudio sobre la aplicación del derecho de reunión..., pg. 1587. 128 JEAN FOURNIER-PONCELET, La liberté de réunion..., pg. 34. 129 Cfr. MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 39. Havia, desde logo, moderados que pretenderam acabar com a política jacobina. À Deputados da “Planície”, vieram juntar-se: os girondinos que haviam sobrevivido à proscrição, 126 33 Estava de acordo quanto a |no aspecto negativo de derrubar ROBESPIERRE130. Uma palavra de ordem também a unia: “A Revolução está feita”. Não estava em questão prosseguir o caminho trilhado pelos Montanheses, mas, pelo contrário, de “reagir”131. Essa reacção política132 foi “antiterrorista”, ou seja, dirigida contra os actores do Terror (“no encalço dos bebedores de sangue”, utilizando uma expressão da época133), de molde a não permitir o regresso ao poder dos que o haviam dirigido ou que, de algum modo, lhe tinham sido favoráveis134. A reacção antiterrorista foi também, de certa sorte, uma reacção “parlamentar” contra a autoridade do poder executivo; a Convenção retomou o seu poder135. Os homens que agora dirigiam a França temiam simultaneamente a vingança dos jacobinos e também dos monárquicos136-137, embora fosse a primeira que mais os atormentava138. O medo dos dirigentes e de franjas da sociedade dominou as épocas do Termidor e do Directório139. A Convenção pôs em causa as estruturas do governo revolucionário140, tendo sido suprimidas as instituições e as práticas que haviam servido de apoio a esse poder popular141: os comités, a comuna e a “mairie” parisienses. A reacção ao Terror conduziu também à perseguição dos clubs, em particular, os clubs dos jacobinos, órgãos paralelos de vigilância e de como LANJUINAS e LOUVET; alguns dantonistas, como LEGENDRE; ex-adeptos do “Terror”, então arrependidos, v. g., BARRAS e TALLIEN; terroristas ameaçados, como FOUCHÉ; jacobinos afastados, como BILLAUD-VARENNE e COLLOT D’HERBOIS. 130 Cfr. JEAN-MARC SCHIAPPA, La Révolution française, pg. 59. No dia 9 Termidor do ano II (27 de Julho de 1794), a Convenção, numa operação célere, votou um decreto de acusação contra ROBESPIERRE e seus partidários, nomeadamente SAINT-JUST e COUTHON. No dia seguinte, o “Incorruptível” ROBESPIERRE e vinte e um dos seus foram guilhotinados sem julgamento. 131 JEAN TULARD, Les révolutions, pg. 139. 132 IDEM, ibidem, pg. 138. 133 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire. 1795-1799, nouvelle édition, Messiaor, Paris, 1984, pg. 24. 134 Cfr. IDEM, ibidem. Assim, no dia seguinte ao Termidor, nas faixas das proclamações enviadas pela Convenção às autoridades departamentais, figuravam as fórmulas sugestivas de “Guerra aos partidários do Terror” e “Guerra aos partidários dos emigrados e da realeza”. 135 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 25. 136 Uma vez que “esses mesmos Termidorianos”, “antes de executar|em| Robespierre, haviam enviado Luís XVI para a guilhotina” (MARC FERRO, Histoire de France, Odile Jacob, Paris, 2003, pg. 316). 137 IDEM, ibidem. 138 IDEM, ibidem. 139 Cfr. IDEM, ibidem. 140 Cfr. MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 39. 141 MARC FERRO, Histoire de France, pg. 316. 34 reflexão142; foram combatidos e, finalmente, acabaram por ser suprimidos e, com eles, a liberdade de reunião143. Cerca de dois meses após o Termidor, a Convenção adoptou uma lei provisória|geral sobre as associações — o Decreto, de 25 Vindemiário do ano III (16 de Outubro de 1794), proibindo todas as filiações, agregações, federações, bem como todas as correspondências em nome colectivo entre sociedades. Através do Decreto de 23 Brumário (12 de Novembro de 1794), o club dos jacobinos de Paris foi suspenso até nova ordem. Não houve qualquer acção popular em seu favor144. Em 21 de Março de 1795, a Convenção ditou a pena de morte contra aqueles que, de forma concertada, responsabilizassem a Assembleia. Este Decreto, contudo, não proibia as reuniões dos clubs de forma isolada, que poderiam ter lugar na condição de que a lista dos seus membros fosse comunicada às autoridades municipais e exposta na sala de reuniões. As medidas deram resultado — as sociedades declinavam e agonizavam145; o dinamismo popular diminuiu146; as duas últimas jornadas revolucionárias parisienses — um motim espontâneo em 12 Germinal (1 de Abril de 1795) e o 1.º Pradial (20 de Maio do mesmo ano) — fracassaram. 4.1.1. Constituição do ano III A Convenção termidoriana procurou-se aproveitar a lição dos anos trágicos do jacobinismo147; assim, não estando em causa retomar a vigência da Constituição do ano I148, foi aprovado um novo texto constitucional, que ditou a dissolução da Convenção e o fim da curta época do Termidor. 142 MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 39. H. BERTHÉLEMY, Traité Élémentaire de Droit Administratif, 12.ª ed., Librairie Arthur Rousseau, Paris, 1930, pg. 319. 144 JEAN TULARD, Les révolutions, pg. 140. 145 RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 192. 146 MICHEL VOVELLE, Breve história da Revolução francesa, pg. 39. 147 Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política..., I, 6.ª ed., pg. 96. 148 JEAN TULARD, Les révolutions, pg. 143. 143 35 Comment [MSOffice5]: será? acho que este é um decreto anterior I. A Constituição do ano III149 reagiu contra os abusos da liberdade, em ruptura com os jacobinos150, o que se traduziu nos seguintes aspectos: a) Após a experiência do Terror, os Termidorianos sentiam-se desiludidos e desconfiados, pois o povo não tinha usado correctamente|convenientemente|bem_| os seus direitos151; assim, aditaram a enunciação dos deveres, prevendo uma severa Declaração dos direitos e dos deveres do homem e do cidadão152-153. b) Por outro lado, o articulado da Constituição era muito extenso (377 artigos), com o fito de regular bem o exercício de todas as atribuições e de nada deixar ao arbítrio dos governantes que pudesse fazer regressar ao despotismo das assembleias154. II. A brevidade da Declaração era compensada pela amplitude e pela minúcia das “Disposições gerais” do Título XIV da Constituição, consagradas para a garantia dos direitos (artigos 351.º a 377)155. Alguns Autores, como GEORGES LEFEBVRE, consideram que, “a contrario”, a Constituição do ano III permitia as sociedades políticas ou clubs constitucionais156; eram previstas, todavia, várias interdições, plenas de precisão e de contundência (artigos 360.º a 364.º), destinadas a prevenir a restauração do seu poder concorrente157: 149 Datada de 5 Frutidor, 22 de Agosto de 1795; foi aprovada através de referendo, realizado no mês seguinte. 150 Cfr. GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 103. 151 IDEM, ibidem, pg. 31. 152 MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política..., I, 6.ª ed., pg. 96. 153 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 31. 154 Neste sentido, MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política..., I, 6.ª ed., pg. 96. 155 Assim, JEAN RIVERO / HUGUES MOUTOUH, Libertés publiques, I, 9.ª ed., pgs. 56-57. 156 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 679. 157 “Os cidadãos apenas” poderiam “exercer os seus direitos políticos nas Assembleias primárias ou comunais” (art.º 363.º). 36 a) Dado que os termidorianos não pretendiam que as sociedades de jacobinos se reconstituíssem e voltassem a ser uma espécie de governo ao lado do governo legítimo158, foram interditadas as sociedades populares; visando impedir a utilização recordação viva e temerosa159 das sociedades dos jacobinos, nenhuma “assembleia de cidadãos” poderia tomar o título de “sociedade popular”160; b) Não poderiam “ser formadas corporações ou associações contrárias à ordem pública” (art.º 360.º); c) Era prevista uma conscienciosa enumeração de interdições, que encontra a sua explicação no passado recente e que se liga ao intuito de prevenir qualquer o regresso dos jacobinos161: “Nenhuma sociedade particular, ocupando-se de questões políticas, pode corresponder-se com outra, nem nela se filiar, nem efectuar sessões públicas, compostas por societários e por assistentes distintos uns dos outros, nem impor condições de admissão e de elegibilidade, nem se arrogar de direitos de exclusão, nem fazer os seus membros usar qualquer sinal exterior da sua associação.” (art.º 362.º)162. Em comparação com a Constituição anterior, embora houvesse a divergência de a liberdade de reunião ter sido omitida da Declaração e do Neste sentido, cfr. GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 32. Cfr. RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 192. 160 Do art.º 361.º constava que “[n]enhuma assembleia de cidadãos se” poderia “qualificar de sociedade popular”. 161 RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 192. 162 Como mais tarde se aclararia, “a Constituição não permite, para as reuniões que se ocupem de questões políticas, nenhuma condição de admissão nem de elegibilidade, nem nenhum direito de exclusão; (…) a maior parte das sociedades ditas círculos constitucionais parecem formar corporações no Estado; que os cidadãos que as compõem e agem colectivamente, violam evidentemente a Constituição, que apenas reconhece outros corpos, outras reuniões sob denominações colectivas, das autoridades constituídas” (deliberação do Directório executivo, de 24 Ventoso do Ano VI (14 de Março de 1798)). 158 159 37 articulado, continua a registar-se esparsamente a influência de ROUSSEAU. 4.1.2. No dia seguinte à entrada em vigor da Constituição (em 6 Frutidor, 23 de Agosto de 1795), um Decreto emanado pela Convenção interditou totalmente os clubs: “Qualquer assembleia conhecida sob o nome de club ou de sociedade popular” era “dissolvida”163. Estando as sociedades populares já em declínio, o estatuto restritivo imposto pelo diploma apenas deixava aos sobreviventes o recurso da clandestinidade164. Os artigos 605.º e 613.º e seguintes do Código dos delitos e das penas, de 3 Brumário do ano IV, cominaram a pena de morte contra qualquer ataque ou resistência em relação à força pública que actuasse contra a execução das conspirações tendentes a perturbar a República, e cominava uma multa de mera polícia contra os autores dos ajuntamentos injuriosos e nocturnos. 4.1.3. A linha “dura” em relação aos clubs viria a inflectir: durante uma época breve, o Directório permitiu a reconstituição de alguns clubs165, o que tinha como consequência a ressurreição dos jacobinos, na província e em Paris. Com efeito, o Directório permitiu “não oficiosamente” a criação do club do Panteão, contando com republicanos próximos do Directório, no Outono do ano IV, na antiga Abadia de Sainte-Geneviève não longe do Panteão166; este club esteve aberto desde 25 Brumário do ano IV (16 de Novembro de 1795); em Frimário, contava já com 934 membros (revolucionários de craveira167, terroristas, jacobinos, republicanos de extrema-esquerda). 163 Art.º 1.º, 1.º período. “[C]onsequentemente, as salas onde as ditas assembleias tinham as suas sessões” seriam “fechadas imediatamente” (art.º 1.º, 2.º período). 164 Neste sentido, RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 192. 165 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 99. 166 IDEM, ibidem. 167 IDEM, ibidem, pg. 103. 38 Esta ressurreição dos clubs seria fugaz; quando o club do Panteão se tornou num dos lugares de agitação (com BABEUF à cabeça) contra o Directório, a reacção começou: este órgão tomou medidas contra os jacobinos (apoiadas pelos conservadores e monárquicos): Em 8 Ventoso (27 de Fevereiro de 1796), o Directório ordenou o encerramento dos clubs jacobinos e das sociedades apoiantes da restauração da monarquia168. O então chefe do exército do Interior, NAPOLEÃO BONAPARTE (não obstante ter sido considerado anteriormente “jacobino”169) foi encarregue da 168 169 IDEM, ibidem, pgs. 105, 192. BONAPARTE frequentara os clubs jacobinos e convivera| com ROBESPIERRE (MARCEL PRÉLOT / GEORGES LESCUYER, História das Ideias Políticas..., II, n.º 333, pg. 146 Em Agosto de 1793, NAPOLEÃO havia publicado uma verdadeira profissão de fé montanhesa (Le souper de Beaucaire, ou dialogue entre um militaire de l’armee de Carteaux, un Marsellais, um Nîmois et un fabricant de Montpellier, sur les événements qui sont arrivés dans le ci-devant Comtat à l’arrivée des Marsellais), na sequência de uma fuga dos Bonaparte da Córsega, chegando a Toulon em 10 de Junho de 1793, já após o triungo dos montanheses (supra) (cfr. (JACQUES GODECHOT, Napoleão, pg. 103). | resumir: O „militar“ exprime evidentemente as ideias de NAPOLEÃO: toma a defesa da Convenção montanhesa, apoiado pelo de Montpellier e de Nînes, ao passo que o Marteslhês tednta justificar os federalistas. ... A brochura foi reeditada à custa do Estado, ... NAPOLEÃO foi assim classificado entre os montanheses mais „quentes“; e, quando alcançou a sua primeira vitória em Toulon, foi considerado como um verdadeiro general jacobino (JACQUES GODECHOT, Napoleão, pg. 103). AUGUSTIN ROBESPIERRE – o irmão de MAXIMILIEN –, em missão no exército de Itália uniu-se a NAPOLEÃO e transmitiu os seus planos de campanha ao comité de salvação pública (JACQUES GODECHOT, Napoleão, pg. 103). A queda de ROBESPIERRE devia naturalmente implicar a „desgraça“ do general jacobino; foi preso, diz-se, em 11 de Agosto de 1794. Após a expedição ao Egipto, os jacobinos falavaou do seu „Souper de Bveaucaire“, do seu papel em Toulon e em Paris; vs. os moderados mosttravam-se tranquilizados pela energia que ele tinmha demonstrado ao encerrar o club de BABEUF e pela sua acção contra os anarquistas em Itália) (JACQUES GODECHOT, Napoleão, pg. 106) . 39 operação, executando imediatamente a ordem de encerramento do club do Panteão170 (o que é demonstrativo da importância dos clubs na época). Pretendendo completar as interdições, no dia seguinte171, através de mensagem, o mesmo Directório pediu que se fosse elaborada uma lei sobre as associações; em 8 Germinal (28 de Março), no Conselho dos Quinhentos, MAILHE apresentou um relatório propondo a limitação a sessenta os membros das associações políticas nas grandes cidades e a previsão de penas severas contra todos aqueles que infringissem as Comment [MSOffice6]: confr imar a data regras impostas pela Constituição. Em 27 Germinal (16 de Abril), o Conselho dos Anciãos aprovou essa lei “terrível” e famosa, que previa a pena de morte contra os que provocassem à dissolução dos Conselhos e do Directório, os que aconselhassem a morte dos seus membros, e os que provocassem o restabelecimento da Constituição de 1793 ou da realeza172. Na realidade, embora visando também os monárquicos, esta lei era sobretudo dirigida contra os jacobinos173, fazendo sobre eles pairar uma ameaça que perturbou a sua propaganda. Foi também instituída pena de morte contra aqueles que tomassem parte num ajuntamento nesse sentido e que não se retirassem após as intimações (artigos 6.º a 8.º). 4.1.4. Em Paris, os republicanos procuraram defender-se, criando uma associação, chamada “Círculo constitucional”174 — composta por burgueses 170 Devido ao sucesso desta operação, BONAPARTE viria a ser nomeado chefe do exército de Itália. 171 Em 9 Ventoso (28 de Fev.). 172 Seriam “culpados do crime contra a segurança interna da República e contra a segurança individual dos cidadãos, e (…) punidos com a pena de morte, em conformidade com o art.º 612.º do Código dos delitos e das penas, todos aqueles que com os seus discursos ou com os seus escritos impressos, tanto distribuídos como afixados”, provocassem “à dissolução da representação nacional ou do directório executivo, ou à morte de todos ou de qualquer um dos membros, que o componham, ou o restabelecimento da monarquia ou o restabelecimento da Constituição de 1793, ou o da Constituição de 1791, ou de qualquer governo diverso do estabelecido pela Constituição do ano III, aceite pelo povo francês, ou a invasão das propriedades públicas, ou o saque ou a repartição das propriedades privadas, sob o nome de lei agrária ou sob qualquer outra forma” (art.º 1.º). Previa-se o dever de os “cidadãos tranquilos” não testemunhadores prenderem “os culpados” (art.º 5.º). 173 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pgs. 106, 195. 174 IDEM, ibidem, pg. 298. 40 directoriais, que era tolerado pelo Directório —, e outros clubs; no início de Messidor175. A presença dos “sans-culottes” nesses clubs significava um risco de agitação de esquerda, não previsto de antemão, que o Directório não pretendia correr176. A hostilidade contra os jacobinos contribuiu para uma nova lei: Declarando que os clubs eram organizados “instrumentos de bandidos”177, o Decreto de 7 Termidor (25 de Julho) proibiu provisoriamente qualquer sociedade particular que se ocupasse de questões políticas (art.º 1.º), considerando que “[o]s indivíduos, que se” reunissem “em tais sociedades”, incorriam no crime de “ajuntamento” (art.º 2.º). Os clubs de Clichy e de Montmorency fecharam portas. É pouco provável que essas sociedades tenham desaparecido realmente. No entanto, pelo menos as sociedades de província, verdadeiramente populares, em que os “sans-culottes” se haviam conseguido reagrupar, foram de novo encerradas178. Reiterando ideia similar, o art.º 37.º do Decreto de 7 Frutidor do mesmo ano ordenava o encerramento de qualquer sociedade particular tendo um objectivo político, na qual fossem professados princípios contrários à Constituição179. 4.1.5. No Verão de 1799, as sociedades políticas ou clubs constitucionais (em particular, o club do “Manège”, inaugurado em 18 Messidor do ano VII180) ressurgiram, conduzindo a agitações. O medo antijacobino despoletou a reacção, em 26 Termidor (13 de Agosto): alegando a infracção das regras impostas pela Constituição, FOUCHÉ fez fechar o club do “Manège” que, após ter fechado a sala a que devia o seu nome, se instalou na igreja dos jacobinos da rua do “Bac”. Este facto marcou a ruptura definitiva entre os jacobinos e o Directório. As sociedades políticas não desapareceram; poderiam ser abertos novos clubs. No entanto, nesse mesmo dia de 26 Termidor, foi pedido que a conclusão da lei que os iria 175 Um relatório de polícia asseverava que havia, em Paris, pelo menos, quarenta clubs; o reaparecimento destes ocorreu também na província. 176 Neste sentido, cfr. GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 299. 177 Utilizando a expressão de DUMOLARD, que, num longo discurso, em 24 Messidor (12 de Julho), apoiou o relatório de DUPLANTIER, que propunha suprimir os clubs. Em 5 Termidor do ano V, o Conselho dos Quinhentos discutiu a supressão das sociedades políticas, tendo o Conselho dos Anciãos, dois dias depois|, aprovado o Decreto. 178 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 300. 179 Aqueles entre os seus membros, que tivessem manifestado tais princípios, seriam processados e punidos, em conformidade com a lei de 7 Germinal do ano IV. 180 6 de Julho (GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 679). 41 regulamentar fosse acelerada. Aparentemente, as sociedades, intimidadas, cessaram pouco a pouco de se reunir; a ofensiva do Directório contra os jacobinos181 resultara182. 4.1.6. Neste subperíodo, não sendo reconhecida a liberdade de reunião, era gizada uma identificação parcial entre reuniões e ajuntamentos, Comment [MSOffice7]: repet e advérbio atrás traduzida em normas contundentes, permissivas do uso da força. O art.º 365.º da Constituição do ano III esconjurava os ajuntamentos, considerados “um atentado à Constituição”, devendo ser dissipados “imediatamente através da força”183-184. 4.1.7. Para além das medidas referidas acima, os Termidorianos retomaram a tradição legislativa anterior185 de interdição das petições em nome colectivo: 181 182 GEORGES LEFEBVRE, La France sous le Directoire, pg. 685. No Conselho de Estado, DENISART e RENAULT (do grupo da “Orne”) e CHOLLET (dos girondinos), a partir de 2 Frutidor ano VII, expuseram a ampla margem de manobra deixada às reuniões e o perigo que, da existência de sociedades políticas, poderia resultar para o Estado (cfr. JEAN FOURNIER-PONCELET, La liberté de réunion..., pg. 93). 183 Mesmo qualquer “ajuntamento não armado” deveria, igualmente, “ser (…) dissipado, antes de mais, através de ordem verbal, e, se necessário, através da execução da força armada.” (art.º 366.º). 184 Regista-se ainda as criminalizações no Código dos delitos e das penas, de 3 Brumário do ano IV (artigos 605.º, 613.º e seguintes), bem como as disposições relativas aos ajuntamentos na lei de 27 Germinal do ano IV (16 de Abril de 1796) (supra). Posteriormente, o art.º 25.º da Lei relativa à organização do exército (de 28 Germinal do ano VI) encarregava este de dissolver todos os ajuntamentos armados ou não armados. O Decreto do Directório, contendo uma instrução sobre a guarda nacional e sobre as relações da autoridade civil com a força pública (de 18 Florial do ano VII), mencionava os ajuntamentos nos capítulos III e IV. 185 a) No art.º 62.º do Decreto de 14 de Dezembro de 1789 (supra), era referido que “[o]s cidadãos activos” tinham “o direito de se reunir, (...) para redigir mensagens ou petições, (…) com a condição (...) de apenas poder enviar como representantes 10 cidadãos para levar e apresentar essas mensagens e petições.” b) “[C]omo consequência necessária” do princípio representativo, a Assembleia Legislativa “interditou qualquer petição, qualquer anúncio sob um nome colectivo: decreto muito caluniado por aqueles que queriam reforçar a sua facciosa voz da autoridade de uma sociedade; mas decreto cuja sabedoria foi reconhecida por todos os homens que quiseram meditar um pouco sobre a natureza do governo” adoptado (Relatório sobre as sociedades populares feito em nome do Comité da Constituição, junto ao Decreto de 29 e 30 de Setembro – 9 de Outubro de 1791, sobre sociedades populares (4.º par.)). “No caso de as (…) sociedades, clubs ou associações terem feito petições em nome colectivo, algumas delegações em nome da sociedade, e, em geral, todos os actos em que elas” aparecessem “sob as formas de existência política, aqueles que” tivessem “presidido às deliberações, trazido as petições, composto das delegações, ou tomado parte activa na execução desses actos”, seriam “condenados pela mesma forma a serem suprimidos durante seis meses do quadro cívico, suspensos de todas as funções públicas, e declarados inábeis a ser eleitos a qualquer lugar durante o mesmo tempo.” 42 “Quaisquer petições ou mensagens não” poderiam “ser feitas nome colectivo”, devendo “ser individualmente assinadas.” (art.º 2.º do Decreto de 25 Vindemiário do ano III (16 de Outubro de 1794))186. 4.2. Constitucionalismo napoleónico Continuando a tradição anterior, a Constituição consular de 22 Frimário do ano VIII (13 de Dezembro de 1799) e as duas Constituições seguintes187 continuaram intencionalmente silentes acerca da liberdade de reunião188. Para além desta falta de positivação, as liberdades foram suprimidas, desapareceram189, nomeadamente as de reunião e de associação, que eram indispensáveis a uma vida pública normal190. a) Na vigência da Constituição do ano VIII, o Decreto consular de 12 Messidor do ano VIII determinava, entre as funções do prefeito de polícia, a de tomar as medidas (art.º 2.º do Decreto de 29 e 30 de Setembro – 9 de Outubro de 1791, sobre sociedades populares). 186 Mais tarde, uma deliberação, tomada no mesmo espírito, do Directório executivo, de 24 Ventoso do Ano VI (14 de Março de 1798), concernia às mensagens ou petições dos círculos constitucionais: “O Directório executivo, considerando que cada dia aparecem mensagens ou petições intituladas: Os cidadãos de .... reunidos em círculo constitucional; — que essas petições ou mensagens (...) não mencionam sociedades compostas exclusivamente por um número insignificante de cidadãos admitidos”, violando a Constituição (supra); tendo esses “círculos constitucionais” abusado “até comunicar, nessa qualidade, com as potências estrangeiras”, deliberou que seria fechada “[q]ualquer sociedade dita círculo constitucional, ou reunida sob qualquer outra denominação colectiva”, que praticasse “colectivamente um qualquer acto, ou cujos membros, fazendo a sua petição individual”, referissem “a sua pretendida qualidade de membros, ou” fizessem “menção da sua reunião em sociedade ou círculo” (art.º 2.º). 187 Datadas de 16 Termidor do ano X (4 de Agosto de 1802) e de 28 Florial do ano XII (18 de Maio de 1804), respectivamente. 188 Neste sentido, cfr. JEAN FOURNIER-PONCELET, La liberté de réunion..., pg. 93 ; H. BERTHÉLEMY, Traité Élémentaire de Droit Administratif, 12.ª ed., pg. 319. 189 RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 252. 190 Neste sentido, IDEM, ibidem, pg. 253. 43 necessárias para prevenir ou dissolver os ajuntamentos e “as reuniões tumultuosas ou ameaçadoras da tranquilidade pública” (o Decreto de 3 Brumário do ano IX conferia a mesma atribuição aos comissários gerais de polícia). A Lei de 18 Pluvial do ano IX, relativa à implantação dos tribunais especiais, dispunha que esses tribunais seriam competentes para o julgamento de crimes de sangue perpetrados pelos ajuntamentos armados (art.º 11.º) e do crime de reuniões sediciosas, contra as pessoas reunidas surpreendidas em flagrante delito (art.º 12.º). b) O I Império aumentou os rigores impostos sobre as associações revolucionárias, através uma tipificação penal rigorosa, e com fortes apoios de uma concepção interventiva do poder público — os artigos 291.º a 294.º do Código Penal de 1810 (infra), de carácter não liberal191. Na exposição de motivos, referia-se que “[o] direito absoluto e indefinido que a multidão teria de se reunir para tratar de assuntos políticos, religiosos ou outros da mesma natureza, seria incompatível com o (…) estado político” da época192. 4.3. Monarquia constitucional 191 ROSSI, na introdução ao seu Tratado de Direito Penal, referia-se ao Código Penal como obra precipitada de um poder que restabelecia o confisco e que de novo abria as portas da Bastilha, para demonstrar que o mesmo Código devia ficar, e efectivamente ficava, muito aquém da civilização do povo francês. 192 BERLIER, Extrait de l’exposé des motifs de la loi contenant le chap. 3 du tit. 1 du livre 3 du code pénal, n.º 1, sessão de 6 de Fev. de 1810, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 282 (nota). 44 A Monarquia restaurada não renegou a herança do I Império193 em relação ao nosso tema. Os artigos 291.º e seguintes do Código Penal foram objecto de ataques veementes; foi-se ao ponto de pretender que teriam sido revogados pela Carta de 1814194. No entanto, permaneceram em vigor. O movimento imprimido aos espíritos pela Revolução de Julho, o ardor das ideias novas, o espírito audaz e de empreendimento que ela tinha inspirado à imprensa e aos partidos, fizeram com que, após a entrada em vigor da Carta Constitucional de 1830195, a crítica ao art.º 291.º tivesse sido reiterada de forma incisiva196. No entanto, os acontecimentos viriam a frustrar certas esperanças que a Revolução de 1830 tinha feito prever. Após a Revolução, várias sociedades organizaram-se, abertamente, em diferentes sítios do reino. O Governo invocou (nomeadamente contra a sociedade dos “Amigos dos povo”) o art.º 291.º do Código Penal. As sociedades obedeceram à dissolução imposta197; contudo, posteriormente, as associações destruídas reagruparamse então, fraccionando-se em secções de menos de vinte pessoas. Assim foi constituída 193 RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 406. Embora tivesse, sem o ter deliberado claramente, inaugurado o governo da opinião (IDEM, ibidem, pg. 367). 194 De 4 de Junho, em vigor até 1830, excepto durante a interrupção do “Governo dos cem dias” de NAPOLEÃO. 195 De 14 de Agosto. 196 Mesmo o Governo, pela voz de GUIZOT, então Ministro do Interior, tinha condenado nestes termos o artigo 291.º do Código Penal: “Eu apresso-me a dizer, e do fundo do meu pensamento, que este artigo [291.º] é mau; não deve figurar eternamente — muito tempo, se quiserdes — na legislação de um povo livre. Os cidadãos têm o direito de se reunir para conversar entre si sobre os assuntos públicos; é bom que o façam. Jamais contestarei esse direito, jamais pretenderei atenuar os sentimentos gerais que impelem os cidadãos a se reunir e a comunicar entre si as suas simpáticas opiniões” (Moniteur de 25 de Set. de 1830, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 283). 197 Cfr. Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 283. 45 a “Sociedade dos direitos do homem”, cujos rápidos e ameaçadores progressos atemorizaram o Governo. Abertamente atacado na sua existência por pela actividade dos grupos de oposição e da sua proliferação clandestina, enfraquecido, de algum modo198, o Executivo ponderou uma iniciativa de alteração à lei: Em relação a associações, a legislação de 1810 não preparava “para a manutenção da segurança pública, cuja defesa” era “o seu primeiro dever, senão as disposições previstas nos artigos 291.º e seguintes do Código Penal”199. No entanto, "[a] experiência” quotidiana demonstrava que “a eficácia do art.º 291.º” desaparecera, “perante a facilidade deixada às associações para o iludir”200. Em lugar de revogar as disposições do Código Penal de 1810 concernentes às associações201, foi aprovada a Lei de 10-11 de Abril de 1834202, no intuito de contrariar a actividade dos republicanos203, correspondendo à necessidade de completar e corroborar as disposições de 1810, prevendo as situações lacunares204. 198 Cfr. ibidem. Exposé des motifs du projet de loi sur les associations, présenté par M. le garde des sceaux à la chambre des pairs (séance du 27 mars 1834), n.º 26, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 286 (nota). 200 IDEM, ibidem. 201 V. art.º 5.º da Lei sobre associações, de 10-11 de Abr. de 1834, que ressalvava “[a]s disposições do Código Penal que não” fossem “revogadas”. 202 O projecto de lei foi apresentado na Câmara dos Deputados, em 25 de Fevereiro de 1834, nos termos que marcam a gravidade da situação em que o Governo se encontrava (Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pgs. 283-284). Após uma discussão viva, entre 11 e 24 de Março, o projecto foi adoptado em 26 desse mês, com a maioria de 246 votos contra 154. 203 RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 406. 204 Em tom de compromisso dilatório (na acepção de CARL SCHMITT), era referido que a lei, que declarava ilícita uma associação sem autorização, seria mesmo unicamente fundada em necessidades políticas temporárias; não perderia uma parte da sua oportunidade à medida que as circunstâncias que a reclamaram desaparecem (cfr. Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 289). Assim, o carácter transitório do art.º 291.º do Código Penal foi reconhecido pelos autores da Lei de 10-11 de Abr. de 1834, nomeadamente por GUIZOT: 199 “Disse que o art.º 291.º não figuraria eternamente nas leis de um povo livre (…). Virá, espero, um dia em que a França poderá ver a abolição desse artigo como um novo desenvolvimento da liberdade. Mas, até lá, é a prudência das Câmaras e de todos os grandes poderes públicos de manter esse artigo; é mesmo necessário modificá-lo segundo a necessidade dos tempos para que seja eficaz contra as associações perigosas de hoje” (in Moniteur de 13 de Março de 1834, apud Associations illicites in 46 Reconhecia-se (divergindo de ROUSSEAU) que “[a] liberdade de associação (...) é um direito natural que, à sociedade, importa proteger o pleno exercício. O homem isolado é demasiado impotente; nas ciências, na literatura, na economia social, sabe-se que os grandes resultados apenas são produzidos pela agregação das luzes e das forças. Os cidadãos têm, de algum modo, necessidade de se associar para o uso e para a conservação dos seus direitos constitucionais e políticos”205. No entanto, “a associação” não seria “um direito, mas apenas uma faculdade”206: Essa “faculdade de associação” seria “susceptível de influência para o bem-estar, tanto menos para o mal, e precisamente sob esta última aplicação, ela” deveria “ser sujeita a certas condições”, “restrições legais que o interesse social pretende e a Carta Constitucional permite, como a liberdade individual que a Carta garante”207; assim, “nenhuma associação” poderia “chegar a uma acção exterior, à via pública, sem recair imediatamente no domínio da lei”208 (infra). As associações não poderiam “seriam constituídas em hostilidade resoluta contra o poder constitucional”209. Os orleanistas, atemorizando-se com os riscos do renascimento dos agrupamentos, seriam porventura mais hostis em relação à liberdade de associação do que os “ultras”210. 4.3.1. Os regimes preventivos em relação a associações Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 289). 205 GIROD (de l’Ain), Rapport fait à la chambre des pairs, (…) sur le projet de loi relatif aux associations (séance du 5 avril 1834), n.º 33, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 287 (nota). 206 IDEM, ibidem. 207 IDEM, ibidem. 208 IDEM, ibidem. 209 Cfr. GIROD (de l’Ain), Rapport fait à la chambre des pairs, (…) sur le projet de loi relatif aux associations (séance du 5 avril 1834), n.º 34, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 288 (nota). 210 Cfr. RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 406. 47 A regulamentação draconiana do Código Penal de 1810211, instituindo um regime preventivo, e o complemento da Lei de 10-11 de Abril de 1834 baseavam-se no princípio de que a liberdade de associação não poderia ser exercida senão com a autorização e sob a vigilância do Governo212. O 1.º parágrafo do art.º 291.º do Código Penal francês de 1810 proibia que qualquer “associação de mais de vinte pessoas, cujo objectivo” fosse “o de reunir todos os dias ou em dias determinados, para se ocupar de objectos religiosos, literários, políticos ou outros”, pudesse “ser formada sem o acordo do governo, e nas condições impostas pela autoridade pública à sociedade (…)”. Eram exceptuadas do “número das pessoas indicadas” por este preceito “aquelas domiciliadas na casa onde a associação se” reunia. A partir de 1830, como se aludiu, “[q]uanto mais aplicação” do art.º 291.º “se tornava necessária, mais as associações perigosas procuraram a ele subtrair-se”213; “por meio de fraccionamentos calculados, de algumas precauções tomadas pelas suas assembleias, elas eram conseguiam-no completamente”214. O art.º 1.º da Lei de 10-11 de Abril de 1834 colmatava o vazio normativo, estendendo proibição ao caso de as associações de mais de vinte pessoas serem divididas em secções de um menor número, ainda que não se reunissem todos os dias ou em dias determinados215. Por outro lado, o 2.º parágrafo do art.º 1.º da Lei acrescentava que “[a] autorização dada pelo Governo” seria “sempre revogável”. 211 JEAN FOURNIER-PONCELET, La liberté de réunion..., pg. 93. Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 289. 213 GIROD (de l’Ain), Rapport fait à la chambre des pairs, (…) sur le projet de loi relatif aux associations (séance du 5 avril 1834), n.º 32, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 287 (nota). 214 IDEM, ibidem. 215 “As disposições do artigo 291.º do Código Penal são aplicáveis às associações de mais de vinte pessoas, mesmo que essas associações sejam divididas em secções de um número menor, e que elas não se reúnam todos os dias ou em dias fixados.” (art.º 1.º da Lei sobre associações, de 10-11 de Abr. de 1834). 212 48 O art.º 292.º do Código Penal de 1810 impunha a dissolução de qualquer “associação da natureza referida” que tivesse sido “formada sem autorização, ou que, após a ter obtido”, tivesse “infringido as condições a ela impostas”216. 4.3.1.1. No pensamento dos autores do Código Penal de 1810, as normas visavam simultaneamente as associações e as reuniões217, não fazendo cessar a osmose entre ambas as liberdades218: “o governo não pretende impedir as associações dos cidadãos, cujo objectivo é ocupar-se de objectos religiosos, literários ou políticos, ou de se entregar a algum prazer; mas é seu dever vigiálos, é o objecto desta secção: assim, qualquer a reunião deste género, desde que seja de mais de vinte pessoas, apenas poderá ser formada com autorização (...)”219. No mesmo sentido, no período posterior a 1814, as disposições do Código Penal foram indistintamente aplicadas a reuniões e a associações. No entanto, ao contrário do rigor com que eram aplicadas durante o Império, foi tolerado o subterfúgio dos agrupamentos se furtarem à 216 “Os chefes, directores ou administradores da associação” seriam, “além disso, punidos com uma multa de 16 francos a 200 francos” (art.º 292.º do Código Penal de 1810). Mais tarde, a Lei sobre associações, de 10-11 de Abr. de 1834, completou a incriminação: quem fizesse “parte de uma associação não autorizada” seria “punido com pena de prisão de 2 meses a um ano, e com multa de 50 a 1.000 francos” (art.º 2.º). “Em caso de reincidência, as penas” poderiam “ser elevadas ao dobro”. Neste caso, “[o] condenado” poderia “ser colocado sob a vigilância da alta polícia durante um período de tempo que não” superior ao “dobro do máximo da pena”. 217 LÉON DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, V, pgs. 342-343. 218 GIUSEPPE SAREDO, Adunanze pubbliche, pg. 289. 219 Extrait du rapport fait au corps législatif par M. NOAILLES, sur la loi contenant le chap. 3 du tit. 1 du livre 3 du code pénal (séance du 16 fév. 1810) in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pgs. 282-283 (nota). 49 aplicação do art.º 291.º, fragmentando-se em secções com menos de vinte pessoas e adoptando para suas reuniões um ritmo irregular (supra). I. No âmbito de aplicação da Lei de 1834, o grau de abrangência em relação à liberdade de reunião viria a ser alterado. O Ministro da Justiça defendia que existia uma “distinção fundamental (...) no espírito da lei entre associação propriamente dita e a reunião”220: “Fazemos uma lei contra as associações, e não uma lei contra as reuniões acidentais e temporárias que tenham por objecto o exercício de um direito constitucional.”221 A distinção entre associações e reuniões foi também reconhecida na Câmara dos Pares e na Câmara dos Deputados: “O alcance político da lei não vai para além das associações que formam [um] Estado no Estado (…)”222 O art.º 1.º da Lei não continha “excepção em favor das simples reuniões e das associações evidentemente úteis ou sem perigo”223; em relação a esta não aplicação “às simples reuniões”, era referido: 220 Cfr. ODILON BARROT, intervenção na Câmara dos Deputados, acerca da Lei sobre associações de 10-11 de Abr. de 1834, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 291. 221 Ministro da Justiça francês, intervenção na Câmara dos Deputados, acerca da futura Lei sobre associações de 10-11 de Abr. de 1834, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 290. 222 ROEDERER, intervenção na Câmara dos Pares acerca da futura Lei sobre associações (de 10-11 de Abr. de 1834), 9 de Abr. de 1834, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 291. 50 “A dúvida não poderia ser colocada em relação às reuniões de família, de negócios, de prazer”224; “[a] lei não autoriza a inquietar (...) as reuniões, quer fortuitas, quer habituais; ela apenas concerne às associações”225. II. Contudo, duas causas contribuíam para atenuar essa distinção parcelar: a) O facto de a distinção não constar da letra da lei226. Em resposta a esta omissão confirmatória, era referido que, “[s]e essa declaração superabundante não” era “a própria lei”, formaria, “pelo menos, o comentário oficial e inseparável”227; b) O facto de, por precaução, não terem sido excluídas quaisquer associações228; “a distinção entre reuniões e associações não” seria “totalmente nítida e definida, que não” permitisse “alguns equívocos (...)”229. 223 GIROD (de l’Ain), Rapport fait à la chambre des pairs, (…) sur le projet de loi relatif aux associations (séance du 5 avril 1834), n.º 35, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 288 (nota). 224 IDEM, ibidem. 225 ROEDERER, intervenção na Câmara dos Pares acerca da futura Lei sobre associações, 9 de Abr. de 1834, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 291. Mais tarde, em 8 de Fev. de 1848, MALEVILLE pretendia que a lei não interditava aos cidadãos o direito de se reunir livremente e que, pelo contrário, o direito de se reunir acidentalmente resultava do art.º 291.º do Código Penal e da Lei de 10-11 de Abr. de 1834. 226 “[T]eria sido desejável que essa distinção fosse explicitamente inserida na própria lei, que aí teria uma definição legal do que é associação” (ODILON BARROT, intervenção na Câmara dos Deputados, acerca da Lei sobre associações de 10-11 de Abr. de 1834, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 291); no entanto, haveria dificuldade nessa definição. Esta consideração, de que a lei não se aplicaria às meras reuniões, fez igualmente retirar, devido a inutilidade, uma proposta de emenda que tinha por objecto exceptuar das suas proibições as determinadas reuniões eleitorais. 227 GIROD (de l’Ain), Rapport fait à la chambre des pairs, (…) sur le projet de loi relatif aux associations (séance du 5 avril 1834), n.º 35, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 288 (nota). O artigo foi adoptado pela Câmara dos Pares neste pressuposto; “(…); e não é de recear que um tribunal em França recuse compreendê-lo deste modo.” (IDEM, ibidem). 228 Em relação “às verdadeiras associações”, era reconhecido “com pena que era impossível distinguir entre elas sem retirar à lei toda a sua eficácia; pouco mais ou menos exactas que tivessem podido ser as distinções, as definições, tomando aparências enganadoras, as associações mais perigosas teriam podido muito facilmente subtrair-se às exigências legais” (GIROD (de l’Ain), Rapport fait à la chambre des pairs, (…) sur le projet de loi relatif aux 51 III. Em suma, o regime preventivo de 1834 coarctava a liberdade de reunião, ainda que não totalmente: Se apenas excluía as reuniões acidentais, “a contrario”, incluía as reuniões concertadas previamente; por outro lado, coarctava os fins das reuniões, que não poderiam ocorrer com vista à formação de uma associação ou de uma actividade que fosse realizada periodicamente no tempo. IV. Mais tarde, no II Império, foi confirmada a abrangência. Assim ocorreu no processo dos “Treize” (Agosto de 1864), contra os membros notáveis do partido republicano que haviam formado em Paris um comité eleitoral230. Tratava-se aí de reuniões privadas, mas foram condenadas como formando uma sociedade não autorizada231. 4.3.2. Aberturas do ordenamento à liberdade de reunião Após 1815, sendo expressão da classe média que impunha os seus usos e os seus costumes, a burguesia francesa reunia-se nos círculos privados — não os clubs das associations (séance du 5 avril 1834), n.º 36, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 288 (nota)). 229 ROEDERER, intervenção na Câmara dos Pares acerca da futura Lei sobre associações (de 10-11 de Abr. de 1834), 9 de Abr. de 1834, apud Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 291. “O objecto imediato da lei é o de atingir as associações existentes, as associações manifestas, organizadas e armadas para a guerra que declararam ao Governo do Estado. O objecto mais secundário é o de dar a esse Governo o meio de prevenir o renascimento de uma associação do mesmo tipo, ou seja ostensivamente declarada, organizada em exército militante.” (IDEM, ibidem). 230 A. ESMEIN, Éléments..., II, pg. 638. 231 A. ESMEIN, Éléments..., II, pg. 638. 52 sociedades populares jacobinas (supra), mas os “clubs” à inglesa232, uma variante diluída, fechada, na qual a política não estava verdadeiramente no centro das atenções. A segunda abertura residiu no regime específico das reuniões eleitorais. As proporções restritas do corpo eleitoral imprimiam a sua marca no estilo das campanhas eleitorais233. Tendo em conta o pequeno número de votantes, a campanha não tinha carácter público: não decorria a céu aberto, com reuniões ao ar livre. As candidaturas nasciam nos salões, em redor de uma mesa; elas prosseguiam nos jantares e em reuniões com carácter discreto, onde os assuntos permaneciam confidenciais234. No entanto, na segunda metade da Monarquia limitada do período da Restauração, a prática sofreu algumas modificações prenunciando a evolução ulterior235. Durante a Monarquia de Julho, o sistema de reuniões desenvolveu-se. Na discussão da Lei sobre associações, de 10-11 de Abril de 1834, alguns deputados oposicionistas propuseram declarar claramente que essa lei não poderia ter como consequência privar os cidadãos, no momento em que o país era chamado a exercer uma das suas mais importantes prerrogativas, do direito de se reunir, de balançar os atributos dos candidatos, de apreciar a sua conduta política, e de designar à confiança pública os homens que lhes parecessem os mais dignos236. Essas reuniões, provocadas pela necessidade de um momento, pelas circunstâncias que apenas se manifestam com intervalos latos de tempo, não poderiam ter carácter perigoso de qualquer espécie237. 232 MARC FERRO, Histoire de France, pg. 875. RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 321. 234 IDEM, ibidem, pg. 323. 235 IDEM, ibidem. Em 1827, a sociedade “Ajuda-te, o Céu não te ajudará” conduziu uma campanha que ultrapassou o círculo estreito dos conciliábulos habituais (a fórmula estendeu-se à província reuniões preparatórias alargadas a todos os eleitores presumidos liberais) (IDEM, ibidem). 236 Cfr. MARTIN (du Nord), Rapport fait à la chambre des députés, (...) sur le projet de loi sur les associations (séance de 6 mars 1834), n.º 23, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 286 (nota). 237 Em sentido contrário, outros Deputados afirmavam: 233 53 5. O período intercalar de uma parcela da II República (1848-1849) A desconfiança de princípio conheceu um interregno breve — como que um eclipse —, após a Revolução de 1848: a liberdade de associação, consagrada pela Constituição da II República, não lhe sobreviveu. Na sequência da Revolução de 1848238, o art.º 291.º do Código francês não subsistiu; esta Revolução romântica consagrou “de facto” o “a época em que elas poderão ser verdadeiramente úteis deve ser determinado, e isto apenas pode ser aquela em que a convocação do colégio tenha chamado os cidadãos a ocupar-se dos grandes interesses que ela suscita” (MARTIN (du Nord), Rapport fait à la chambre des députés, (...) sur le projet de loi sur les associations (séance de 6 mars 1834), n.º 23, in Associations illicites in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., V, 1847, pg. 286 (nota)); é “assim necessário reconhecer que, se essas reuniões se filiam em outras reuniões do mesmo tipo em outros departamentos; elas degenerariam em associações cuja existência legal está (…) subordinada à condição de autorização.” (IDEM, ibidem). 238 As reuniões políticas estiveram na origem da queda da Monarquia de Julho:A oposição — pretendendo contrariar a política do chefe de Governo, GUIZOT —, na impossibilidade de celebrar reuniões públicas, encontrou na “campanha dos Banquetes” um outro meio; os primeiros banquetes foram celebrados em Paris, em 9 de Julho de 1847, tendo durado até Fevereiro de 1848; sessenta e seis banquetes congregaram mais de 17.000 convivas (reformistas, radicais, socialistas) (RENÉ RÉMOND, La vie politique en France depuis 1789, I, pg. 407). O Governo, alarmado, por intermédio do Ministro do Interior DUCHÂTEL, distinguindo as reuniões públicas, não livres, das reuniões de família, sustentava que se opunha a qualquer a reunião pública susceptível de perturbar a ordem pública; a autoridade encarregada da polícia teria a possibilidade de interditá-las com base nas disposições combinadas das leis de 1790 e de 1791 (pelo lado da oposição, ODILON BARROT combateu estes argumentos (Réunion in Grand Dictionnaire Universel du XIXe. siècle, par PIERRE LAROUSSE, XIII, pg. 1089). O Governo acabou por proibir o banquete final da campanha oposicionista, previsto para o XII bairro de Paris, em 13 de Fevereiro de 1848, o que foi acatado pelos organizadores, que desmobilizaram o banquete. Todavia, a população de Paris desencadeou gigantescas manifestações populares contra o impedimento (VINCENT ROBERT, Aux origines de la manifestation en France (1789-1848), 54 “direito absoluto de reunião e de associação”239. As reuniões públicas decorriam livremente e, retomando as tradições e a imitação da primeira Revolução francesa, as reuniões e os clubs reapareceram240. Um dos primeiros actos do Governo provisório, saído da revolução, referenciava: “Os clubs são para a República um desejo, para os cidadãos um direito”241. 5.1. Não obstante, dentro de pouco tempo, a efervescência engendrou os mais graves perigos242: pg. 70). Em 23 de Fev., ocorreram motins e, na resposta por parte das forças de segurança, um fuzilamento no “boulevard des Capucines”. Perante os factos, no dia seguinte, o Rei LUÍS FILIPE abdicou em favor do CONDE DE PARIS; a Revolução romântica de 1848 triunfara; II República foi proclamada no “Hôtel de ville”. 239 Neste sentido, cfr. Réunions publiques in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., XXXIX, 1858, pg. 475. 240 Não eram excluídas as reuniões populares nas igrejas. Proclamation concernant les clubs do Governo provisório francês, de 19 de Abril de 1848 (publicado in Bulletin officiel, 29, n.º 247), in Lois annotées, ou lois, décrets, ordonnances, Avis du Conseil d’État, etc.,avec notes historiques, de concordance et de jurisprudence; par A.-A. CARETTE, continuées depuis 1845 para L.-M. DEVILLENEUVE / A.-A. CARETTE, 3.e. série, deuxième série, 1848-1854, Sirey, Administration du Recueil Général des lois et des arrêts, Paris, pg. 53 (citado também em Réunions 241 publiques in Répertoires méthodique et alphabétique de législation..., nouvelle édition, D. DALLOZ et. al., XXXIX, 1858, pg. 475). 242 Estes episódios foram qualificados por MARX como a traição e o abandono do “partido proletário” pelo partido “pequeno-burguês democrático” (in O 18 de Brumário de Louis Bonaparte (escrito em Dez. de 1851 – Março de 1852; publicado pela primeira vez no primeiro número da revista Die Revolution, em 1852, em Nova Iorque; 2.ª ed. de 1869), III, trad. de JOSÉ-BARATA-MOURA / EDUARDO CHITAS, Edições Avante!, Lisboa, 1984, pg. 47; em sentido idêntico, LÉNINE, O Estado e a revolução. A doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução, Cap. II, 1, in IDEM, Obras escolhidas em seis tomos, 3, trad. de JOSÉ OLIVEIRA (segundo a correspondente edição russa, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao Comité Central do Partido Comunista da União Soviética), Edições «Avante»! — Lisboa, Edições Progresso — Moscovo, 1985, pg. 208). 55 i) Em 16 de Abril, em Paris, uma manifestação pacífica de operários, que iam entregar uma petição ao Governo provisório sobre a “organização do trabalho” e a “abolição da exploração do homem pelo homem”, foi detida pela Guarda nacional; ii) Em 15 de Maio, poucos dias depois do início dos trabalhos, durante uma manifestação popular, os operários e artesãos de Paris invadiram a sala de sessões da Assembleia Constituinte; tentaram dissolvê-la e formar um governo revolucionário243; os manifestantes foram rapidamente dispersos pela Guarda Nacional e pela tropa244; iii) Entre 23 e 26 de Junho, ocorreu uma insurreição dos operários de Paris (classificada por MARX como “o acontecimento mais colossal na história das guerras civis europeias”245), que foi esmagada. Estes episódios suscitaram a reacção da Assembleia Constituinte, através do Decreto de 28 de Julho de 1848246, sobre clubes, círculos e sociedades secretas: Os cidadãos teriam “o direito de se reunir, conformando-se com as disposições” desse Decreto (art.º 1.º). Os “clubs” foram submetidos a uma regulamentação precisa que não era conhecida até aí247: “[a] abertura de todo o club ou reunião de cidadãos” seria “precedida de uma declaração” (art.º 2.º). Os clubs seriam públicos (art.º 3.º). Em relação a “grupos ou reuniões não públicas”, “com um fim não político”, era estabelecido um regime de comunicação prévia 248. 243 Cfr. KARL MARX, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, I, pg. 28. Os dirigentes dos operários (BLANQUI, BARBÈS, ALBERT, RASPAIL, SOBRIER e outros), “os efectivos chefes do partido proletário” (KARL MARX, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, I, pg. 28), foram presos. 245 In O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, I, pg. 29. 246 D.P. 48.4.130. 247 A. ESMEIN, Éléments..., II, pg. 638. 248 Dever-se-ia “fazendo previamente conhecer à autoridade municipal o local e o objecto da reunião, e os nomes dos fundadores, administradores e directores (...)” (art.º 14.º, 1.º período). 244 56 No entanto, era estabelecido um regime preventivo em relação a “reuniões não públicas, cujo fim” fosse “político”249. A Constituição de 4 de Novembro de 1848 proclamou, de forma geral, a liberdade de reunião, no art.º 8.º; embora não regulamentasse em profundidade, referia como limites à liberdade de reunião “os direitos ou a liberdade alheia e a segurança pública”. 249 “|apenas” poderiam ser formadas “com a permissão da autoridade municipal, e nas condições que ela” determinasse (art.º 15.º). 57